OBJECTO DO CRIME
PERDA A FAVOR DO ESTADO
PRESSUPOSTOS
Sumário

I - A perda dos instrumentos do crime assenta na verificação cumulativa de dois pressupostos:
a) terem servido ou estarem destinados à prática dum facto ilícito típico;
b) por natureza ou pelas circunstâncias do caso porem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou oferecerem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
II - Um motociclo, não sendo instrumento objectivamente perigoso, pode tornar-se perigoso em função da personalidade ou modo de vida de quem o detém, mas o receio de o detentor poder vir a cometer novos ilícitos deve assentar num juízo de forte probabilidade e não em mera possibilidade.
III - Há, porém, que ter sempre em conta os direitos de terceiro que não tenham contribuído de forma censurável para a utilização nem daí tenham retirado vantagens.

Texto Integral

Acordam, precedendo julgamento, na Relação do Porto

No processo comum singular ../.., do tribunal Judicial de....., O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido Nelson....., imputando-lhe a prática das seguintes infracções: um crime p. e p. pelo artigo 3°, nº2, do Dec. Lei n°.2/98, de 3.01; um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348°, nºl, al. b), do Código Penal; um crime de coacção grave, p. e p. pelos artºs 154°, nº1,e 155°, nº1-a), do CP, e uma contra-ordenação, p. e p. pelo artº 37°,nº6, do Regulamento do Código da Estrada.
Submetido a julgamento, veio a proferir-se sentença, tendo o arguido sido condenado na coima de 20.000$00 pela prática de uma contra-ordenação ao artº 37°, nºs 6 e 7, do R.C.E., e na pena única de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, correspondente ao cúmulo das seguintes penas parcelares: 4 meses de prisão, pelo crime p. e p. pelo artigo 3°, nº2, do DL 2198; 2 meses de prisão, pelo crime de desobediência, p. e p. pelo artº 348°, nº1-b), do CP, e 8 meses de prisão, pelo crime p. e p. pelo artº 347° do CP.
Na mesma sentença, foi declarado perdido a favor do Estado o motociclo de matrícula ..-..-IS, apreendido e examinado, respectivamente, a fls. 22 e 32, sob condição suspensiva de o arguido e Cristiana....., cumprirem integralmente as obrigações decorrentes do contrato de mútuo celebrado com o Banco....., S.A..
Inconformado com a decisão que declarou perdido o motociclo a favor do Estado, o arguido interpôs o presente recurso, tendo, em síntese, formulado as seguintes conclusões:
1 ° A propriedade do motociclo pertence a Cristiana.....;
2° É desproporcionado declarar a perda do motociclo, atento o seu valor de 1.600.000$00, e já que não foi provocado nenhum acidente nem se pôs em perigo concreto a vida ou a integridade física de ninguém, nem o crime cometido é dos mais graves;
3° Não se fez qualquer prova de que a Cristiana tivesse concorrido de forma censurável para a utilização do motociclo ou que tenha retirado quaisquer vantagens dessa utilização.
4° O motociclo deve ser restituído à sua proprietária Cristiana..... e não declarado perdido a favor do Estado.
O Ministério Público respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, por entender que, embora verificado o cometimento de um facto ilícito típico - a condução do motociclo sem a necessária habilitação- (1º requisito), inexiste, in casu, o segundo requisito, ou seja, a perigosidade objectiva do instrumento (do motociclo).
Cumpre decidir:
O objecto do recurso é demarcado pelas conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação – artº 412°, nº 1, do Código de Processo Penal.
Apesar de terem sido documentados os actos da audiência, os poderes de cognição deste Tribunal ad quem cingem-se à revisão da matéria de direito, sendo sabido que este tribunal pode conhecer ex officio dos vícios da matéria de facto indicados no artigo 410°, nºs 2 e 3, do CPP, que resultem do texto da decisão recorrida, por si ou conjugados com as regras da experiência comum, vícios que não foram arguidos pelo recorrente nem se considerando existirem.
Deste modo, considera-se estabilizada a matéria de facto com o julgamento da 1ª instância.
São duas as questões a resolver: saber se o motociclo deve ou não ser declarado perdido a favor do Estado e, no caso de não dever ser declarado perdido, saber a quem deve ser restituído.
Os factos provados:
No dia 19 de Maio de 2000, cerca das 10H15, o arguido conduzia o motociclo de matrícula ..-..-IS pela Rua ....., em....., sem que fosse titular de carta de condução.
Tendo o soldado da GNR, Armando....., que se encontrava uniformizado e no exercício das suas funções, reconhecido o arguido, e porque sabia que este não era titular de carta de condução, moveu-lhe uma perseguição, vindo a interceptá-lo algumas centenas de metros à frente, quando o arguido já tinha imobilizado e se encontrava a retirar o capacete.
De seguida, o soldado Armando..... abordou o arguido e pediu-lhe que lhe mostrasse os seus documentos pessoais e os documentos relativos ao motociclo.
O arguido recusou-se a apresentar tais documentos, alegando que não estava a conduzir .
Avisado pelo soldado Armando... de que tal recusa constituía crime de desobediência, o arguido persistiu em não exibir os referidos documentos.
Em consequência desse comportamento, o soldado Armando... disse ao arguido para entrar para o jipe da GNR, a fim de o acompanhar ao posto.
Porém, quando se encontrava à porta da viatura e o soldado Armando... segurava o arguido por um braço, este deu-lhe um safanão, atingindo-o no rosto, com o propósito de se soltar, o que conseguiu, após o que se ausentou do local, caminhando a passo largo.
Chamados os soldados da GNR Castro e Ferreira, procederam então, juntamente com o soldado Armando, à detenção do arguido, não obstante este se tentar soltar e fazer força para não ser conduzido ao posto.
De seguida, os soldados Castro e Ferreira levaram o arguido, a pé, até ao posto, seguindo o soldado Armando de jipe.
No percurso, o arguido, referindo-se a este último, disse: «quando o apanhar leva um malho de lenha», «eu fodo-o», «eu parto-o todo» e «tem os dias contados».
Uma vez no posto da GNR e já na presença do soldado Armando.., o arguido dirigiu-lhe directamente as mesmas expressões.
No momento em que o arguido tripulava o referido motociclo, este apresentava uma chapa de matrícula com dimensões inferiores às legalmente homologadas pela Direcção Geral de Viação.
O arguido circulava frequentemente pela via pública e a horas variadas, tripulando o referido motociclo, inclusivamente passando em frente do posto da GNR de...... Designadamente, no dia 20 de Setembro de 1999, o arguido conduzia na via pública esse motociclo, tendo sido julgado e condenado por um crime de condução sem habilitação.
O arguido agiu sempre de forma livre.
Dispõe o artigo 109°, nº1, do Código Penal:
«São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a, servir para a prática de um facto lícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do, caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos».
Ou seja, a perda dos instrumentos do crime assenta na verificação cumulativa de dois pressupostos: a) terem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico e b) quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou oferecerem serio risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público junto desta Relação citou de forma apropriada o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias: «Em primeira linha, por conseguinte, deve ser a perigosidade do objecto em si mesmo considerado, independentemente da pessoa que o detém - o tratar-se de uma arma, de um explosivo, de moeda contrafeita ou de cunhos para a fabricar etc. - que justifica, em perspectiva político-criminal, a perda» (Cfr. As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 622).
Porém, devendo a perigosidade do objecto ser avaliada em concreto, refere o mesmo professor, na citada obra, que a conexão entre a perigosidade do objecto e as concretas circunstâncias do caso pode acabar por implicar uma referência ao próprio crime.
Ou seja, a aludida perigosidade pode ser aferida pela natureza dos instrumentos e/ou pelas circunstâncias do caso (Cfr. Maia Gonçalves, no Código de Processo Penal Anotado, 14ª Ed., pág. 369).
Um motociclo, pela sua natureza intrínseca e específica e co-natural utilidade social, não está de modo algum especialmente vocacionado para a prática criminosa, ou seja, não é um instrumento objectivamente perigoso.
Mas o mesmo veículo pode tornar-se perigoso, se detido por determinada pessoa, considerando a personalidade ou o modo de vida desta.
Porém, o receio de o detentor poder vir a cometer factos ilícitos típicos deve assentar num juízo de forte probabilidade e não em mera possibilidade.
No caso sub judice, podemos concluir que o veículo, pela sua natureza ou pelas circunstâncias, oferece sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos crimes?
O Sr. Juiz a quo entendeu que sim, justificando esse risco na circunstância de o arguido, anteriormente, ter sido condenado por uma infracção da mesma natureza.
Porém, essa convicção do tribunal recorrido está em manifesta contradição com a decisão de conceder ao mesmo arguido a suspensão da execução da aplicada pena de 10 meses de prisão. Com efeito, justificando essa suspensão, o tribunal conclui: «Pelo exposto, cremos que a simples ameaça da pena e a censura do facto bastarão para o afastar da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime».
Se o tribunal está convencido que o arguido se irá afastar da criminalidade, dada a ameaça da pena e a censura do facto, então também não existe o risco (assente num juízo de probabilidade séria) de o arguido usar o veículo para o cometimento de novos crimes.
Entendemos que, embora não seja uma questão suscitada neste recurso, esse juízo de prognose que determinou a suspensão da execução da pena de prisão se mostra acertado e que o mesmo deve servir igualmente para se concluir pela não verificação de um dos requisitos exigidos pelo artigo 109°, nº1, do Código Penal, para o decretamento do instrumento do crime, invocado na sentença recorrida.
Mesmo que assim não se entendesse, sempre se imporia, como se impõe, a salvaguarda dos direitos de terceiro.
Nos termos do nº1 do artigo 110º do CP, «..a perda não tem lugar se os objectos não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada».
A perda dos objectos pertencentes a terceiro será, porém, decretada se os seus titulares tiverem concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiverem retirado vantagens - cfr. nº2 do referido artº 110°.
No caso concreto, provou-se que a propriedade do motociclo se encontra registada em nome da namorada do arguido – Cristiana.....- , com reserva de propriedade a favor do Banco....., S.A. e que, para pagamento do preço do motociclo, o arguido e a namorada contraíram junto um empréstimo
junto daquele banco, no valor de 1.600.000$00, a pagar em 60 prestações mensais.
Ou seja, desta factualidade resulta que foram celebrados dois contratos: um contrato de compra e venda e um contrato de mútuo.
No primeiro foram intervenientes o Banco.....S.A, na qualidade de alienante, e a referida Cristiana....., na qualidade de adquirente.
Porém, a vendedora do motociclo manteve a propriedade do motociclo, até cumprimento do outro contrato -contrato de mútuo-, no qual o arguido figura também como mutuário.
Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento - artigo 409º, nº1, do Código Civil.
Nestes termos e como bem refere o tribunal recorrido, a transferência da propriedade da coisa vendida que devia operar-se por mero efeito do contrato de compra e venda -cfr. artigo 879°, al. a), do Código Civil- foi afastada por vontade dos contraentes mediante a convenção do chamado «pactum reservati dominii» previsto no artigo 409° do, Código Civil.
Assim, para todos os efeitos, o banco é detentor do direito de propriedade e da posse jurídica do motociclo, enquanto que a adquirente, até cumprimento integral do contrato de mútuo, é uma mera detentora precária do mesmo.
Importa, no entanto, considerar que o alienante só pode obter a restituição do veículo, fazendo valer a convencionada reserva de propriedade, depois de obter a resolução do contrato por incumprimento. Enquanto essa resolução não se verificar, o adquirente continua a gozar do poder de facto sobre o veículo.
Assim sendo, o veículo deve ser restituído a quem goza do seu poder de facto, por força do contrato que celebrou como legítimo proprietário, sabendo-se que não se mostra provada a resolução contratual, assim se cumprindo o desiderato previsto nos artigos 186°, nº2, e 374°, nº3-c),. do Código de Processo Penal.
E, dos factos provados, não pode concluir-se que esses terceiros tenham concorrido, de forma censurável, para a utilização do instrumento do crime ou que do facto ilícito tenham retirado quaisquer vantagens.
Designadamente, não é de extrair essa conclusão à aludida Cristiana, pela mera circunstância de esta ter conhecimento que o arguido não tinha carta de condução.
Ao ter decretado a perda do veículo, ainda que com efeito suspensivo, o tribunal recorrido violou os normativos contidos nos artigos 109°, nº1, e 110°, nºs 1 e 2, ambos do Código Penal.
Pelo exposto, improcedem as conclusões 1ª e 2ª do recurso (Não se provou que o motociclo seja propriedade da identificada Cristiana.
Por outro lado, a perda do veículo não pressupõe qualquer princípio de proporcionalidade – a perda do instrumento do crime, independentemente do seu valor e das concretas consequências do crime cometido, é determinada pela sua perigosidade e do perigo de cometimento de novos crimes, não sendo uma pena acessória nem um efeito do crime ou da condenação do arguido), e procedem as demais conclusões formuladas.
Consequentemente, acordam os Juízes desta relação em revogar a decisão recorrida na parte em que declarou perdido a favor do Estado o motociclo de matrícula ..-..-IS, e determina-se que este seja restituído a Cristiana......
Sem tributação.
Honorários ao defensor nesta instância pelo n.6 da tabela anexa à Portaria 1200-C/00, 20.12.
Porto, 13 de Fevereiro de 2002
Heitor Pereira Carvalho Gonçalves
José Manuel Baião Papão
José Henriques Marques Salgeiro