ACIDENTE DE VIAÇÃO
HOMICÍDIO INVOLUNTÁRIO
CONDUÇÃO PERIGOSA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Sumário

I - Comete dois crimes - homicídio involuntário e condução em estado de embriaguez - o arguido que com uma taxa de álcool no sangue de 1,76 g/l ultrapassa um veículo articulado de mercadorias em local de visibilidade reduzida, para o que desrespeita o traço contínuo que separa as duas faixas de rodagem, assim colhendo com o veículo ligeiro que conduzia a vítima que seguia em sentido contrário, tripulando um ciclomotor, a quem causa lesões que provocaram a morte.
II - A pena, a aplicar nos termos do artigo 71 do Código Penal, atenta a culpa e as exigências de prevenção tendo em conta que o arguido agiu com negligência grosseira, tem-se por justa e adequada em 2 anos de prisão para o homicídio e 2 meses para a condução e em cúmulo 2 anos e 1 mês.
III - Estando o arguido socialmente inserido, tendo confessado os factos e demonstrado arrependimento e sendo considerado condutor prudente, que neste momento até exerce a profissão de motorista, deve o mesmo beneficiar da suspensão da execução da pena, tal como foi decidido na sentença recorrida.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de processo comum singular n.º ../.., do -º Juízo, -ª Secção, do Tribunal Judicial de....., mediante acusação do M.º P.º, foi o arguido Manuel....., nascido a 25.03.1951, na freguesia de....., ....., filho de José..... e de Glória....., casado, residente na Rua....., ....., julgado pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência grosseira previsto e punido pelo artº 137º n.º 1 e 2 do Código Penal, em concurso efectivo com um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artº 291º nº 1 a) e b) e de uma contra-ordenação prevista e punida, à data da prática dos factos, pelos artº 38º e 148º alínea j) do CE, e actualmente pelos artº 38º e 146º alínea j) do Código da Estrada e 69º do CP.
A final foi proferida sentença, que assim decidiu:
1. Condenou o arguido, pela prática de um crime condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artº 291 nº 2 do C.P., na pena de dois meses de prisão;
2. Condenou-o, pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artº 137 nº 2 do C.P. na pena de onze meses de prisão.
3. Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 1 ano de prisão.
4. A execução da pena de prisão foi-lhe declarada pelo período de dois anos.
5. Foi ainda o arguido condenado na sanção acessória de inibição de conduzir por seis meses.
6. Conquanto não conste da parte decisória da sentença, a Sra. Juiz considerou amnistiada a contra ordenação, face ao disposto na Lei 29/99, de 12 de Maio.

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Inconformado com o assim decidido, o M.º P.º interpôs recurso, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões:
1. Ao arguido foi nestes autos aplicada a pena unitária de 1 ano de prisão, cuja execução logo se declarou suspensa pelo período de 2 anos, pela prática, em concurso efectivo, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário tipificado no art.º 291º, n.º 2 do C. Penal e de um crime de homicídio por negligência grosseira tipificado no art.º 137º, n.º 1 e 2 do mesmo diploma legal (ilícitos a que corresponderam, respectivamente, as penas parcelares de 2 meses e 11 meses de prisão);
2. Sucede que verificando-se, no caso, uma relação de subsidiariedade entre as normas punitivas em questão (sendo, portanto, o concurso entre ambos os crimes meramente aparente), a punição do arguido deveria ter sido feita apenas com recurso à que prevê o crime de homicídio por negligência, cuja prevalência radica na circunstância de a especificação dominante ser aqui a negligência grosseira;
3. Diversamente do que sucederia se se estivesse perante a prática de factos subsumíveis também seja ao crime de homicídio por negligência simples, seja ao de ofensa à integridade física por negligência, em que prevaleceria então o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, por via da maior especificidade da respectiva previsão típica, com a agravação da respectiva moldura penal abstracta, decorrente da remissão operada pelo art.º 294º para o art.º 285º do C. Penal;
4. Na douta sentença recorrida consta, por outra parte, como matéria fáctica provada, para além do nexo causal entre a conduta do arguido e a morte do ofendido, que o acidente em questão ficou a dever-se à circunstância daquele (arguido) ter efectuado uma manobra de ultrapassagem a uma viatura pesada em local sem qualquer visibilidade relativamente ao trânsito que circulava em sentido contrário; que estava ali marcada na via uma linha longitudinal contínua proibindo a realização de tal tipo de manobra e, bem assim, existia sinalização vertical com o mesmo significado; que sabia ser proibida tal manobra; que para a efectuar violou aquela linha longitudinal contínua, passando a ocupar a via de trânsito contrária; que foi nela que embateu frontalmente no ciclomotor do ofendido, que por ali transitava regularmente; e que (o arguido) conduzia embriagado, apresentando uma TAS (taxa de álcool no sangue) de 1,76 g/l, resultante de bebidas alcoólicas que voluntariamente havia ingerido antes de iniciar a condução;
5. Tendo ficado assente também que agiu de forma voluntária, livre e consciente, podendo e devendo ter actuado de outra forma, não ultrapassando no local onde o fez;
6. Não foram, por outro lado, apuradas quaisquer circunstâncias anteriores ou posteriores ao facto, passíveis de favorecer o arguido, seja em sede de ilicitude do facto, seja em sede de culpa;
7. Atendendo ao limite máximo da moldura penal abstracta cominada no tipo de crime de homicídio por negligência grosseira que a apurada conduta do arguido efectivamente integra - pena de prisão até 5 anos -, ao grau da ilicitude do facto, à manifestada culpa daquele e às muitíssimo prementes exigências de prevenção sentidas no caso, a pena adequada a aplicar àquele, em função e em observância dos critérios estabelecidos no art.º 70º e 71º, n.º 1 do C. Penal, deve ser a de prisão efectiva em medida não inferior a 2 anos;
8. Não se justificando o recurso à suspensão da execução de tal pena, dado não se verificar o pressuposto material da sua aplicação, a saber, o poder concluir-se, atenta a personalidade e as circunstâncias do facto, por um prognóstico favorável relativamente ao arguido, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. art.º 50º, n.º 1 do C. Penal);
9. Por outro lado, integrando a matéria de facto apurada a prática pelo arguido das contra ordenações estradais por que vinha acusado, tipificadas, à data, nos art.ºs 38º, n.º 1, 2, alínea a) e 4 do Código da Estrada e 6º, n.ºs 3, alínea a) e 17º do Regulamento do Código da Estrada aprovado pelo Decreto n.º 39987, de 22/12/54, deveria ter sido aquele correspondentemente punido por tais infracções, dado encontrarem-se as mesmas em situação de concurso efectivo com o praticado crime de homicídio por negligência e não se verificar relativamente a tal matéria nenhuma causa extintiva da responsabilidade do respectivo agente;
10. Assim, ao considerar existir “in casu” um concurso efectivo ou verdadeiro dos crimes tipificados nos arts 137º, n.º 2 e 291º, n.º 2 do C. Penal e imputados ao arguido na acusação (em vez de concluir pela existência de simples concurso de normas), efectuou a M.ª Juíza recorrida errónea interpretação das respectivas previsões normativas;
11. Ao determinar, a final, ao arguido uma pena de 1 ano de prisão cuja execução se suspendeu por 2 anos, violou o disposto nos art.ºs 50º, n.º 1, 70º e 71º, n.ºs 1 e 2 do C. Penal;
12. E ao não sancionar o arguido pela prática das contra ordenações estradais por que vinha acusado e que os factos dados como assentes também integram, violou os preceitos legais que, respectivamente, as prevêem e mandam punir, ou seja, os supra referidos arts 38º, n.ºs 1, 2, alínea a) e 4 do Código da Estrada e 6º, n.ºs 3, alínea a) e 17º do respectivo Regulamento;
13. Neste entendimento, deverá a douta sentença recorrida ser revogada, na parte ora posta em crise, e substituída por outra que condene o arguido apenas pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira em pena de prisão efectiva não inferior a 2 anos e, bem assim, o sancione pelas também cometidas infracções estradais, aplicando-lhe as coimas correspondentes.
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Respondeu o arguido, com as seguintes conclusões:
1. Salvo o mais elevado respeito, pensamos que a M.ª Juiz a quo fez uma correcta e sábia apreciação e ponderação dos factos sub judice,
2. E decidiu pela aplicação de uma pena ao arguido que se revela justa e adequada aos fins que lhe são subjacentes,
3. Nunca postergando, em momento algum o Homem, a pessoa do arguido, tal como é, a sua personalidade, a sua postura, o seu juízo de auto - censura, o erro grave e a tragédia que lhe é consequente,
4. Tanto na escolha da punição, a pena de prisão, como na medida da pena, em função da culpa e das exigências de prevenção.
5. Com a sua conduta, postura e desabafos sentidos, o arguido revelou auto censura, juízo crítico de si mesmo, reconhecimento e consciência do erro que praticou, arrependimento sincero e firme propósito de continuar como antes sempre foi,
6. Mesmo recorrendo a tratamento psiquiátrico para tentar recuperar o equilíbrio que perdera e atenuar as suas angústias que tanto o castigam e sente que castigarão por toda a vida.
7. Contrariamente ao alegado pelo M.º P.º, não vem provado na douta sentença que o arguido conduzia a sua viatura embriagado,
8. Mas antes que, no exame de pesquisa de álcool no sangue, revelou uma taxa de 1,76 g / l.
9. Sendo do conhecimento geral que a capacidade de resistência à afectação pelo álcool varia de pessoa para pessoa em consequência de múltiplos factores que a ciência enuncia.
10. O arguido referiu que se sentia bem, não lhe parecendo que os seus reflexos estivessem toldados, apesar de haver ingerido bebidas alcoólicas pela comemoração do seu aniversário.
11. Conhecia bem a estrada e, porque o camião que seguia à sua frente circulava muito devagar, reparando mas não se apercebendo de qualquer luz em sentido oposto,
12. Cometeu o grave erro, de que tanto se arrepende e penitência, no pressuposto de que não ocasionaria qualquer acidente, sendo este ocorrido, a maior desgraça da sua vida.
13. Apesar de tudo, o arguido é tido como bom condutor, prudente, cauteloso, respeitador das regras estradais e raramente ingere bebidas alcoólicas;
14. Por isso, foi admitido a laborar como motorista para uma empresa local, actividade que, ora, apenas suspendeu em consequência da entrega que fez nos autos da sua carta de condução, no pressuposto da inexistência deste recurso.
15. O arguido tem uma vida social, profissional e familiar estável, sendo acarinhado e respeitado no meio.
16. Revelou arrependimento sincero.
17. Nem antes nem depois dos factos dos autos o arguido procedeu por forma e modo merecedores de censura quer em sede criminal quer contraordenacional.
18. Sendo ainda que a factualidade dos autos, ocorrida há já mais de 4 anos,
19. Constituiu um caso fortuito, mero e único incidente na vida do arguido que se norteia pelos valores que o direito defende e protege.
20. Atendendo como atendeu a douta sentença a todos estes factores, designadamente:
À personalidade do arguido, ao arrependimento demonstrado, às suas condições e modo de vida,
À sua situação familiar e considerando que é dito como um bom condutor, sendo esta tragédia um mero acidente da sua vida,
Também modestamente entendemos que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
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Nesta Relação o Ex.mo PGA emite douto parecer.
Entende, por um lado, que não existe concurso aparente; por outro, que a pena do crime de homicídio negligente deve ser elevada; ainda que a suspensão da pena deve ser mantida; e, finalmente, que o arguido deve ser punido pela prática da contra ordenação.
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Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos, e efectuada a audiência de julgamento com inteira observância do pertinente formalismo legal, cumpre apreciar e decidir.
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O tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade, que se tem por assente atendendo a que não foi impugnada e não se verificam os vícios do n.º 2 do art.º 410º do CPP:
1. Pelas 21 horas de 11 de Março de 1997, o arguido ao volante do veículo de automóvel ligeiro de passageiros de matrícula JB-..-.., seguia na EN n.º.., em....., no sentido ..... - ......
2. Embora fosse proibido ultrapassar ao Km 51.371, quer pela linha longitudinal contínua existente no piso, quer pelo sinal vertical aí existente, o arguido iniciou uma manobra de ultrapassagem de um pesado articulado de mercadorias que seguia imediatamente à sua frente.
3. Assim, passou a ocupar a metade esquerda da via, atento o sentido de marcha em que seguia, vindo a embater frontalmente no velocípede com motor de matrícula ..-VRL-..-.., conduzido por António....., o qual seguia em sentido contrário na respectiva via.
4. Na sequência da deslocação ao local da GNR, foi o arguido submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, apurando-se que circulava com uma taxa de alcoolémia de 1,76 gr/l.
5. Devido à sua actuação, António....., que era beneficiário do Serviço Sub Regional de Segurança Social de..... sob o nº.....0, sofreu secção completa de artéria femural esquerda com amputação completa do membro inferior esquerdo e hematoma retro perietenal referido e descrito no relatório de autopsia de fls. 4 a 7 do apenso, os quais lhe determinaram directa e necessariamente a morte.
6. O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, iniciando a ultrapassagem num local onde sabia ser proibida tal manobra e sem ter a visibilidade da metade esquerda da via devido ao pesado que seguia à sua frente, bem sabendo igualmente que havia consumido bebidas alcoólicas em quantidade que não lhe permitia conduzir sem por em perigo a segurança de todos os restantes utilizadores da via, tendo encarado a hipótese de, com essa conduta, poder vir a provocar a morte de alguém, o que, efectivamente veio a ocorrer com a vitima, mas confiando levianamente, que tal não viria a concretizar-se.
7. Sabia igualmente que sua conduta era proibida e punida por lei.
8. Não chovia, estava a escurecer e no local existe alguma iluminação pública.
9. O velocípede seguia na sua mão de trânsito.
10. Seguia a velocidade não concretamente apurada mas não superior a 60 Km horários.
11. O veículo do arguido seguia também a velocidade moderada concretamente não apurada.
12. Após o embate o velocípede veio a imobilizar-se no sentido e da forma descrita no croqui junto a fls. 17 do apenso, tendo deixado os vestígios aí descritos, bem dentro da faixa de rodagem por onde seguia o velocípede no sentido ..... - ......
13. O arguido podia e devia ter actuado de outra forma, não ultrapassando no local onde o fez.
14. O arguido, ao iniciar a ultrapassagem fê-lo sem tomar as devidas precauções e num local onde não o poderia fazer não só por ser proibido mas também por não ter qualquer visibilidade do trânsito que se aproximava em sentido contrário.
15. Na data do acidente o arguido fazia anos, e tinha comemorado o seu aniversário, onde ingeriu vinho à refeição, champanhe e vinho do Porto.
16. O arguido é motorista de uma pedreira – G....., Lda, onde ganha o ordenado mínimo.
17. É tido pelo amigos e familiares como bom condutor, prudente e cauteloso, respeitador das regras estradais e que raramente ingere bebidas alcoólicas.
19. Reside com a esposa, doméstica, e com dois filhos já maiores.
20. Tem de habilitações literárias a 4ª classe e do seu CRC nada consta.
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Sendo as conclusões da motivação quem fixa o objecto do recurso, dela se vê serem 4 as questões a tratar:
- A de apurar se há concurso efectivo de crimes, ou antes, meramente aparente, entre o crime de homicídio por negligência grosseira e o de condução perigosa de veículo rodoviário;
- A da medida da pena no tocante ao crime de homicídio negligente, que o Recorrente entende dever ser aumentada;
- Se a pena deve ser de prisão efectiva ou se deve manter-se a suspensão da execução da pena;
- Se a contra ordenação está ou não amnistiada.
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Vejamos:
1.
A tese do Recorrente – existência de um concurso aparente de normas – é a que o Prof. Germano Marques da Silva defende in “Crimes Rodoviários”, pg. 22 e segs.
Salvo o devido e merecido respeito, permitimo-nos discordar daquele entendimento. Antes, cremos que, no caso concreto, existe um verdadeiro concurso efectivo, como tentaremos demonstrar.
Dispõe o art.º 137º do C. Penal:
“1. Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos”.
O bem jurídico protegido por este preceito legal é, indiscutivelmente, a vida humana, a vida de outra pessoa.
Por seu lado, na alínea a) do n.º 1 do art.º 291º do C. Penal, pune-se quem conduzir veículo, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva, desde que, deste modo, crie perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
E, acrescenta-se, no n.º 2 do mesmo preceito legal: “Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”.
Escreve a Dr.ª Paula Ribeiro de Faria, a propósito deste último preceito legal, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, vol. II, pg. 1079:
“Com esta disposição pretendeu-se evitar, ou pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, que tem vindo a aumentar assustadoramente no nosso país nos últimos anos, punindo todas aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação, e que, ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado”.
Do exposto se vê, e como bem refere o Ex.mo PGA no seu douto parecer, que o bem jurídico protegido pelo art.º 291º do C. Penal é mais alargado do que o protegido pelo art.º 137º do mesmo diploma legal. Isto é, enquanto que neste preceito se protege apenas a vida individual, de uma certa e determinada pessoa, no art.º 291º protege-se “a vida em geral e não apenas a da concreta vítima”.
E se este valor poderá ainda compreender a integridade física, outrotanto não sucede com os bens patrimoniais de valor elevado que jamais se poderão integrar no valor vida.
Ora, é consabido que o concurso aparente assenta no pressuposto de que várias leis penais concorrem só em aparência porquanto uma delas há-de excluir as outras – cfr. Jescheck in “Tratado de Derecho Penal”, vol. II, pg. 1033.
E essa exclusão ocorre porque entre as normas em apreço há uma relação de especialidade, de subsidariedade ou de consunção.
Ainda segundo o mesmo autor, a relação de especialidade existe quando um preceito penal reúne todos os elementos de outro e só se diferencia dele pelo facto de que, pelo menos contém um elemento adicional que permite ver o facto sob um ponto de vista específico. Na especialidade concorre, pois, a relação lógica de dependência própria da subordinação, pois toda a acção que configure o tipo do delito especial também configura, necessariamente, ao mesmo tempo o tipo geral, embora o contrário não seja verdadeiro. Em Direito Penal a consequência é a lei especial derroga a lei geral.
Ou, como diz o Prof. Eduardo Correia in “Direito Criminal”, vol. II:
A relação de especialidade “Traduz-se na relação que se estabelece entre dois ou mais preceitos, sempre que na «lex specialis» se contêm já todos os elementos duma «lex generalis», isto é, da aquilo que chamamos um tipo fundamental de crime, e, ainda certos elementos especializadores. Esta relação terá como efeito, evidentemente, a exclusão da lei geral pela aplicação da lei especial: «lex specialis derogat legi generali» - e isto, contra o que pensava HONIG, independentemente da referência de ambos os preceitos a uma só conduta. Ponto será só que a realização de um tipo especial de crime esgote a valoração jurídica da situação; sob pena, de outra forma, de se violar o princípio me bis in idem»”.
É o que sucede, por exemplo entre o homicídio simples e o qualificado. Mas não entre o homicídio involuntário e a condução perigosa de veículo rodoviário.
Há uma relação de subsidariedade quando um preceito penal só seja aplicado desde que um outro não tenha aplicação.
Como diz Honig, citado por Jescheck, ob. citada, pg. 1036, o fundamento material da subsidariedade está no facto de “que distintas proposições jurídico-penais protegem o mesmo bem jurídico em distintos estádios de ataque” (tradução nossa). A estrutura lógica da subsidariedade não está na subordinação, mas antes na interferência.
Assim, o preceito penal subsidiário só deve ceder perante uma lei que abarque acções dotadas da mesma “direcção de ataque criminal”.
O Dr. Robin de Andrade, “Direito Penal”, apontamentos coligidos em 1971/72, pg. 339, defende: “Quando duas normas penais prevêem estádios ou escalões de diversas gravidades na ofensa do mesmo bem jurídico, a norma que prevê o estádio menos grave de agressão é subsidiária da que prevê o estádio mais grave, e é por esta absorvida”.
Ora, como se referiu, o bem jurídico tutelado pelo art.º 291º do C. Penal é mais amplo do que o tutelado pelo art.º 137º do mesmo diploma.
No caso concreto, ao fazer uma ultrapassagem em local proibido, quando estava sob o efeito do álcool, o arguido ceifou a vida da infeliz vítima, mas também criou, de forma objectiva, perigo para todos os veículos que circulassem em sentido contrário. Isto é, criou perigo para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Consequentemente, não pode actuar a relação de subsidariedade, por não haver total coincidência do fim tutelado.
Finalmente, há uma relação de consunção quando o facto previsto numa norma é também previsto por outra, embora o alcance desta seja mais vasto que o da primeira.
A diferença entre a consunção e a subsidariedade, segundo Jescheck, ob. citada, pg. 1038, está em que naquela aparecem distintos factos puníveis numa vinculação típica, o que o legislador teve em conta ao estabelecer a pena dos tipos em questão.
Não é também, e manifestamente, o caso dos autos.
Consequentemente, há concurso efectivo de crimes, como se decidiu na sentença recorrida, e não concurso aparente.
2.
Defende o Ilustre Recorrente que a pena, quanto ao crime de homicídio, deve ser fixada em 2 anos de prisão.
A moldura penal abstracta é de prisão até 5 anos já que dúvidas não há – nem tal vem questionado no presente recurso – que o arguido cometeu um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.º 137º, n.º 2 do C. Penal, como facilmente se constata da factualidade assente.
A Sr.ª Juiz fundamentou assim as penas aplicadas:
“As circunstâncias atendíveis para a determinação da pena concreta, constam do artº 71º do Código Penal.
Deste modo, na dosimetria da pena, serão tidos em conta dois vectores essenciais, previstos no artº 40 nº 1 e 2 e 71º, a saber: a culpa e a prevenção.
Quanto à prevenção, a pena deve dar expressão à necessidade comunitária de punição dos crimes praticados, realizando as finalidades da sua estatuição. As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade.
Quanto à culpa ela será o limite máximo da pena. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Dá-se, assim, tradução à exigência de que a vertente pessoal da pena - ligada à dignidade da pessoa humana - seja limite inultrapassável pelas exigências de prevenção, sejam elas gerais ou especiais.
Uma vez fixado o limite máximo da culpa, poderá ser tida em conta a prevenção geral por forma a se garantir aquilo a que o Prof. Figueiredo Dias, em Consequências Jurídicas do Crime, chama de “estabilização das expectativas comunitárias da validade da norma violada”. É necessário determinar as exigências comunitárias que ressaltam do caso, no complexo da sua forma concreta de execução, da sua específica motivação e das consequências que dele resultam.
(vd. Prof. Figueiredo Dias, Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime, em RPCC, I).
Dentro da moldura da prevenção geral actuam as finalidades de prevenção especial. Tendo em conta o ilícito típico e porque a culpa tem que ser documentada no facto, é necessário que a pena possa ter como função: a socialização ou advertência individual, a segurança ou inocuização.
As medidas abstractas das penas por cujos crimes o arguido se encontra acusado são de pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias para o crime de condução perigosa de veículo rodoviário (artº 291 nº 2 do CP), e de pena de prisão até 5 anos para o crime de homicídio negligente (artº 137 nº2 do CP).
Atenta a gravidade dos factos e do resultado só a pena de prisão se mostra suficiente no caso concreto, para realizar as finalidades da punição.
No entanto, quanto à dosimetria em concreto da pena de prisão a aplicar, deve ser graduada em função da culpa e das exigências de prevenção.
No presente caso, mostram-se baixas as necessidades de prevenção especial, atento o carácter e a personalidade do arguido, que admitiu os factos e revelou um arrependimento sincero.
Mostram-se elevadíssimas as necessidades de prevenção geral, dada o alto índice de sinistralidade das nossas estradas, ocupando, estatisticamente o nosso país um lugar tristemente cimeiro na verificação de acidentes de viação, com graves e vastas consequências para pessoas e bens.
Relativamente ao homicídio o arguido agiu com negligência consciente, sendo elevado quer o desvalor da acção atentos os factos supra referidos quer o desvalor do resultado atentas as consequências do seu acto.
Relevam em favor do arguido o facto de ser primário, ser tido como condutor prudente e respeitador das regras estradais, ter uma vida social, profissional e familiar estável, sendo pessoa acarinhada e respeitada no meio onde vive.
Assim, tomando-se em consideração, os factores já atrás descritos entende-se como justas e adequadas as penas de:
- dois meses de prisão pelo crime p. e p. pelo artº 291º do CP.
- onze meses de prisão pelo crime p. e p. pelo artº 137 nº 2 do CP”.
Crê-se que a Sr.ª Juiz raciocinou de forma correcta, alicerçada nos critérios legais para a determinação da pena, mas concluiu com demasiada benevolência, em contradição com os referidos critérios, atento a todo o circunstancialismo que rodeou a infracção.
Com efeito, nos termos do art.º 71º do CP, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra aquele, enumerando-se nesse preceito exemplificativamente alguns desses factores. E a pena não pode ultrapassar a medida da culpa – art.º 40º, n.º 2, do mesmo código.
O modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, “aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente” (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, páginas 186 e 187).
No caso sub judice, e como concluiu – bem, de resto - a Sr.ª Juiz, o arguido agiu com negligência grosseira, a forma mais grave de culpa strito sensu. O arguido ultrapassou outro veículo em local proibido, seja pelo sinal vertical, seja pela existência de linha contínua, sem curar de se certificar que não punha em causa os restantes utentes da via. E fê-lo sob o efeito do álcool.
A culpa permite, pois, uma pena acima do meio da moldura penal abstracta.
O sentimento jurídico da comunidade não se compadece, em crimes como o dos autos, com penas próximas dos limites mínimos, sendo certo que, como é notório, os acidentes de viação ceifam, em Portugal, muitas vítimas.
A tutela dos bens jurídicos aconselha, por isso, que a pena seja fixada de acordo com o máximo permitido pela culpa.
É certo, todavia, que o arguido está inserido socialmente e é considerado condutor prudente, apesar de apenas possuir licença de condução há cerca de 3 anos.
O acidente ocorreu em Março de 1997.
A prevenção especial permite, assim, que a pena seja fixada abaixo do que a culpa e a prevenção geral aconselham.
Assim, tem-se como justa e adequada a pena de 2 anos de prisão.
3.
Em consequência da alteração da pena relativamente ao crime de homicídio, há que refazer o cúmulo jurídico, nos termos do art.º 77º do C. Penal.
Ponderando todos os factos supra descritos, e o disposto neste preceito legal, entende-se dever fixar a pena única em 2 anos e 1 mês de prisão.
4.
O Ilustre Recorrente entende ainda que a pena não pode ser declarada suspensa na sua execução.
Durante algum tempo vinha a Jurisprudência dos tribunais superiores entendendo que, em caso de condenação pela prática de crime de homicídio cometido com negligência grosseira não deveria haver lugar a suspensão da execução da pena porque a isso se opunham razões de prevenção geral.
Mais recentemente tem vindo a ser entendido que, desde que se faça o juízo positivo a que alude o art.º 50º do C. Penal, nada obsta à referida suspensão – cfr., a título de exemplo, o Ac. da RC de 21/3/01, CJ XXVI, 2, pg. 49.
Lê-se no art.º 50º, n.º 1 do C. Penal que o tribunal suspende a execução da pena ... se, atendendo à personalidade do agente, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime, às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Para aplicação da pena de substituição é, pois, necessário que se possa concluir que o arguido presumivelmente não voltará a delinquir.
Trata-se, no dizer da Prof. Anabela Rodrigues, in “A posição jurídica do recluso”, pg. 78 e segs., de alcançar a socialização, prevenindo a reincidência.
Tal conclusão tem de ser extraída de um juízo de prognose antecipado, que seja favorável ao arguido, o qual tem de assentar essencialmente na prevenção especial.
Mas devem ter-se ainda em conta as necessidades de prevenção geral.
Assim, face à factualidade assente, o juízo de prognose há-de ditar que, com toda a probabilidade, o arguido não voltará a cometer novo ilícito.
Extraindo-se esta conclusão, deve decretar-se a suspensão da execução da pena.
Concluindo-se em sentido contrário, deve negar-se a suspensão.
A averiguação da dita probabilidade deve ser feita em concreto, passando em revista a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a conduta que manteve antes e depois do facto e as circunstâncias em que o praticou.
Perante a factualidade apurada, não pode senão fazer-se um juízo de prognose favorável.
Com efeito, o arguido está inserido socialmente, confessou a prática dos factos, demonstrou arrependimento e é considerado condutor prudente, sendo certo que agora exerce a profissão de motorista profissional.
Por tal razão deve beneficiar do instituto da suspensão da pena, como se fez na sentença recorrida.
5.
O arguido vinha acusado da prática de prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelo artº 38º e 146º alínea j) do Código da Estrada, vigente à data da prática dos factos.
A Sr.ª Juiz entendeu que tal contra ordenação estava amnistiada face à lei 29/99, de 12 de Maio.
Dispunha o artº 38 do CE:
“1. O condutor de veículo não deve iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com o veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário.
2. O condutor deve, especialmente, certificar-se de que:
a) A faixa de rodagem se encontra livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança;
(...)
3...
4. Quem infringir o disposto nestes números é sancionado com coima de 20.000$00 a 100.000$00”.
Hoje a infracção é punida com coima de 120 a 600 Euros.
Está apurado nos autos que, pelas 21 horas de 11 de Março de 1997, o arguido ao volante do veículo de automóvel ligeiro de passageiros de matrícula JB-..-.., seguia na EN n.º -, em ....., no sentido..... - ......
Embora fosse proibido ultrapassar ao Km 51.371, quer pela linha longitudinal contínua existente no piso, quer pelo sinal vertical aí existente, o arguido iniciou uma manobra de ultrapassagem de um pesado articulado de mercadorias que seguia imediatamente à sua frente.
Assim, passou a ocupar a metade esquerda da via, atento o sentido de marcha em que seguia, vindo a embater frontalmente no velocípede com motor de matrícula ..-VRL-..-.., conduzido por António....., o qual seguia em sentido contrário na respectiva via.
Desta matéria fáctica não há dúvidas de que o arguido cometeu a referida contra ordenação.
As contra ordenações punidas com coima até 500.000$00 em caso de dolo, ou até 1.000.000$00 em caso de negligência, estão amnistiadas desde que praticadas até 25 de Março de 1999, o que era o caso – cfr. art.º 7º da Lei 29/99, de 12 de Maio.
Porém, acrescenta a mesma lei – alínea c) do n.º 2 do art.º 2º -, que não beneficiam da amnistia nem do perdão os infractores ao Código da Estrada quando tenham praticado a infracção sob a influência do álcool.
Ora, na sequência da deslocação ao local, a GNR submeteu o arguido a exame de pesquisa de álcool no sangue, apurando-se que circulava com uma taxa de alcoolémia de 1,76 gr/l.
Isto é, o arguido cometeu a contra ordenação sob a influência do álcool.
Consequentemente não está amnistiada a contra ordenação, devendo o arguido ser condenado na coima mínima de 20.000$00 – 99,76 Euros -, atenta a falta de antecedentes contra ordenacionais, sendo esse o regime mais favorável já que, segundo o novo Código da Estrada, a coima mínima é mais elevada – 120 Euros (cfr. n.º 4 do art.º 38º do C. Estrada).
E porque a contraordenação é considerada grave – alínea e) do art.º 146º do C. Estrada vigente à data – deverá o arguido ser inibido de conduzir pelo período mínimo de um mês, atento o supra referido – n.ºs 1 e 2 do art.º 139º do citado C. da Estrada.
Não há, porém, que falar em cassação da carta ou licença porque não estão reunidos os requisitos exigidos pelo n.º 1 ou 2 do art.º 148º do C. Estrada.
É segundo o exposto que o recurso merece parcial provimento.
DECISÃO:
Nestes termos, ao abrigo das disposições legais supra citadas, acordam os Juízes da 1ª Secção Criminal desta Relação, no provimento parcial do recurso do M.º P.º em alterar a sentença recorrida e, em consequência:
Condenam o arguido Manuel....., pela prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo n.º 2 do art.º 137º do C. Penal, na pena de 2 anos de prisão.
Em cúmulo jurídico, vai o arguido condenado na pena única em 2 anos e 1 mês de prisão.
Como autor de uma contra ordenação p. e p. pelo artº 38 do C.E., vigente à data da prática dos factos, vai condenado na coima de 99,76 Euros.
E inibem o arguido de conduzir pelo período de 1 mês.
No mais mantêm a sentença recorrida, designadamente na parte respeitante à suspensão da execução da pena de prisão.
Custas pelo arguido, fixando-se em 4 Ucs a tributação.
Porto, 10 de Abril de 2002
Francisco Marcolino de Jesus
Fernando Manuel Monterroso Gomes
Nazaré de Jesus Lopes Miguel Saraiva