CENTRO COMERCIAL
CONTRATO DE EXPLORAÇÃO
CONTRATO INOMINADO
Sumário

O contrato de exploração de lojas instaladas em centros comerciais deve ser qualificado como contrato atípico, inominado, caindo no âmbito da liberdade contratual das partes quanto à fixação do respectivo conteúdo, e rege-se pelas respectivas cláusulas, pelas disposições reguladoras dos contratos em geral e, se necessário, pelas disposições não excepcionais dos contratos com os quais apresente maior analogia

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

1. - No Tribunal Judicial da Comarca de ........ – Vara de Competência Mista,
“F.........., S. A.” intentou acção declarativa contra ROSA .......... e marido, MANUEL ..........., e “S......., LDA.” pedindo que se declarasse a invalidade do negócio jurídico de trespasse celebrado entre os 1.ºs RR. e a segunda Ré, que se decretasse a resolução do contrato celebrado entre as partes e que se condenassem ambos os RR. a entregar à A., livre de pessoas e bens o espaço correspondente à loja identificada como loja n.º .., no estado e condições em que a A. a entregou.
Para tanto a A. alegou que é dona de um Centro Comercial, constituído por um conjunto integrado de várias lojas, sendo que destas, por contrato que a A. celebrou com Maria ........, em 19/2/91, que os outorgantes apelidaram de arrendamento, cedeu-lhe a loja n.º .., para o exercício do comércio de lãs e lingerie, tendo a Maria ...... trespassado o estabelecimento que ali explorava à R. Rosa ........ em 28/5/92, a qual, por sua vez, com oposição da A., o trespassou à Ré Sociedade em 19/3/99. Mais alegou que aquele contrato remete para documento complementar cuja cláusula 9ª remete, por seu turno, para o Regulamento Interno da Galeria Comercial cujo art. 8º-d) veda a cada lojista ceder a sua posição contratual sem o consentimento prévio da proprietária, Regulamento que, pela expressa remissão referida, os 1.ºs RR. conheciam e incumpriram.
Contestando, os RR. sustentaram que o contrato deve ser qualificado como arrendamento, sendo ineficaz a referência feita ao Regulamento Interno, quer por ser posterior ao contrato (1/10/92), quer por não ter sido levado ao conhecimento dos RR., agindo a A. com abuso de direito ao alterar unilateralmente o contrato e a sua posição anterior.
Na réplica a A. articulou que o Regulamento Interno existe desde a data da abertura da Galeria, em 1989, da versão anterior constava cláusula idêntica à do art. 8º-d) da versão actual e de ambas foi dado conhecimento aos 1.ºs RR, de acordo com a cláusula 9.ª do documento complementar da escritura pública.
Após completa tramitação, a acção foi julgada procedente e, em consequência, foi decretada a resolução do contrato que vinculava a AA. e os 1.ºs RR. (com fundamento no incumprimento, por parte destes, do disposto no art. 8º do Regulamento Interno da Galeria Comercial ........), e foram todos os RR. condenados a entregar à A., livre de pessoas e bens, o espaço correspondente à loja n.º .., no estado e condições em que a A. a entregou.
Os RR. apelaram, para pedirem a revogação da sentença e a absolvição do pedido, tudo ao abrigo das seguintes conclusões:
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.....................................
2. - A decisão recorrida assentou no seguinte quadro fáctico:
1°- A autora é possuidora de um empreendimento, composto por um hipermercado e um centro comercial (constituído por um conjunto de 27 lojas comerciais), situado na ......., ......., ....., tendo assumido a sua gestão e exploração comercial, prosseguindo nesse empreendimento a autora por conta própria e com intuito lucrativo, a actividade de comércio retalhista;
2°- Esse Centro Comercial é constituído por um agregado de várias lojas, onde uma pluralidade de agentes de mercado, no geral comerciantes, oferecem as suas mercadorias, produtos e serviços em situação de concorrência;
3°- Desde a constituição da autora que esta tem vindo a proporcionar serviços na parte comum da Galeria a todas as lojas, nomeadamente de limpeza, manutenção e ar condicionado, para além de promoção e publicidade do conjunto do empreendimento comercial;
4°- A autora procedeu à integração das lojas num conjunto que constitui uma Galeria a que se junta um Hipermercado e bem assim um parque de estacionamento gratuito;
5°- Em escritura pública outorgada no dia 19/02/1991, na Secretaria Notarial de ........, a autora declarou dar de arrendamento a Rosa ....... - que declarou aceitar - a loja n.º .., sita na Galeria Comercial referida nos anteriores factos, nos termos de cláusulas constantes em documento complementar dessa escritura, com destino a comércio de lingerie e lãs, com início em 1/01/91, e mediante a renda anual de mil oitocentos e sessenta contos, a pagar em duodécimos mensais e iguais de cento e cinquenta e cinco contos, constando, entre outros considerandos, do referido do complementar que “o arrendamento é feito pelo prazo de um ano, sucessivamente renovável por igual período, nos termos da lei, devendo a renda ser paga até ao oitavo dia anterior àquele a que disser respeito, ficando sujeita a actualizações anuais que forem fixadas por Portaria Governamental, nos termos do DL 463/83, não podendo ser dado à loja outro fim ou destino, sem prévia e expressa autorização da autora, podendo o inquilino efectuar na loja arrendada as obras de adaptação e decoração ou remodelação porventura necessárias ao fim a que se destina, desde que se integram esteticamente no conjunto comercial, devendo para tal efeito o inquilino submeter, previamente, o projecto das obras a realizar à apreciação da autora que sobre ele se deverá pronunciar no prazo máximo de cinco dias, devendo do projecto constar as peças desenhadas referentes a acabamentos, decoração, equipamento e respectiva disposição e indicação dos materiais a utilizar, podendo também o inquilino executar na frontaria da loja, na respectiva área, montras, bem como colocar reclamos alusivos ao seu comércio, devendo submeter para o efeito à apreciação da autora o respectivo desenho ou projecto, obrigando-se a autora a prestar ao inquilino, sem qualquer acréscimo ao preço, serviços de manutenção e conservação das partes e equipamentos de utilização comuns da galeria (definidos no artigo quarto do seu regulamento interno, cujo teor a inquilina declarou conhecer), segurança permanente na galeria, recepção e informação, publicidade e promoção do Hipermercado e Galeria, tendo também o inquilino direito a serviços suplementares que venham a ser prestados no âmbito da Galeria Comercial, obrigando-se o inquilino a respeitar as normas e instruções constantes do Regulamento Interno da Galeria Comercial ........, bem como de futuras alterações (das quais a autora lhe dará conhecimento atempado)”;
6°- Em escritura pública outorgada em 28/05/92, na Secretaria Notarial de ........, Maria ....... e marido declararam trespassar à primeira ré mulher, que declarou aceitar, o estabelecimento comercial de lãs e lingerie instalado na loja n.º 9 referida nos anteriores números;
7°- Em Regulamento Interno da Galeria ........., datado de 1/10/92, constam, entre outras, as cláusulas com a numeração e redacção seguintes:
Artigo 7° (Direitos).
São direitos dos lojistas:
a) A utilização e fruição da respectiva loja, com as limitações decorrentes da integração na Galeria ........;
b) A utilização e fruição das partes e equipamentos de utilização comum, nos termos legais;
c) Auferir os benefícios decorrentes dos serviços comuns obrigatórios bem como dos serviços complementares facultativos.
Artigo 8.º (Deveres).
É especialmente vedado a cada lojista:
(...)
d) Ceder a sua posição contratual sem o consentimento expresso e prévio da proprietária.
2- Cada lojista obriga-se ainda, em especial, a
I Funcionamento da loja
a) Manter a loja aberta ao público nas condições normais de actividade, durante o horário fixado;
b) Não encerrar a loja sem prévia justificação e correspondente assentimento da proprietária;
c) Abandonar a galeria ......... antes da hora estabelecida para o seu encerramento;
(...)
III Publicidade.
a) Sujeitar a aprovação da proprietária qualquer forma de publicidade, dentro ou fora da sua loja, seja a aposição de tabuletas, reclamos luminosos ou outras;
b) Incluir o nome galeria ......... e/ou Hipermercado ........ em todos os anúncios relativos à sua actividade.
8º- Por carta datada de 12/02/99 os primeiros réus comunicaram à autora que iriam trespassar à segunda ré o estabelecimento comercial instalado na loja n.o 9, referida nos anteriores números;
9°- A autora comunicou aos primeiros réus, por carta registada com A/R datada de 23/02/99, que não autorizava ou consentia o trespasse, e, por carta datada de 1/03/99, a autora deu conhecimento à segunda ré da comunicação referida;
10°- Em escritura pública outorgada no .. Cartório Notarial de ......., os primeiros réus declararam trespassar à segunda ré, que declarou aceitar o trespasse, o estabelecimento comercial de lãs e lingerie instalado na loja n.º 9 referida nos anteriores números;
11 °- Por carta datada de 29/03/99, a segunda ré comunicou à autora que por escritura outorgada no .. Cartório Notarial de ....... de 19/03/99, tomou de trespasse o estabelecimento comercial de venda de lãs e lingerie, instalado na referida loja n.º ...
3. - Na douta sentença recorrida qualificou-se o contrato celebrado entre as Partes como contrato atípico, de instalação de lojista em centro comercial, e decretou-se a resolução desse contrato que vinculava a Autora e os primeiros Réus com fundamento na violação do disposto no art. 8º-d) do Regulamento Interno da Galeria Comercial (cessão da posição contratual sem consentimento expresso e prévio da Autora).
A posição da Autora é a que foi acolhida na sentença, enquanto os RR. pugnam pela qualificação do contrato como de arrendamento comercial ou, quando assim se não entenda, pela inaplicabilidade da dita al. d) do art. 8º do Regulamento.
Importa, pois, antes de mais, tomar posição sobre a qualificação do contrato.
Com efeito, se este dever ser qualificado como um contrato típico de arrendamento comercial, deve, em consequência, integrar-se no respectivo regime legal, de natureza vinculística, tal como estabelecido no art. 110o e ss. do RAU, designadamente no n.º 1 do art. 115º, que permite a livre transmissão da posição de arrendatário, por acto entre vivos, sem dependência da autorização do senhorio, em caso de trespasse do estabelecimento comercial, ou seja, uma «cessão de contrato forçada» (MOTA PINTO, “Cessão da Posição Contratual”, 85, nt. 2).
No caso em apreciação, como consta do respectivo título (escritura publica a fls. 37) e vem pressuposto, o negócio de trespasse engloba a transmissão da posição de arrendatário, e não apenas os elementos do estabelecimento separáveis do local onde se encontra instalado o estabelecimento.
Daí que a questão passe, necessariamente, pela licitude ou ilicitude da cessão operada através do negócio de trespasse não autorizado, problema que, por sua vez, só se coloca se não se concluir que o contrato está submetido à disciplina do contrato de arrendamento para fins comerciais.
4. 1. - A questão da qualificação de contratos como o que está em discussão nos autos, de exploração de lojas instaladas em centros comerciais, vem sendo objecto de discussão em termos semelhantes àqueles que este processo reflecte, perfilando-se, no essencial, duas posições: de um lado, os que entendem que tais contratos se reconduzem ao tipo legal do arrendamento, cujo regime deve ser-lhes aplicado; do outro, os que defendem a tese do contrato atípico, inominado e, como tal, não sujeito ao regime vinculístico da legislação locatícia.
Na jurisprudência, aquela primeira posição foi perdendo expressão, sendo que, presentemente, a última posição ganhou foros de uniformidade ou quase uniformidade (vd., por todos, os Ac.s STJ, de 28/9/2000 e RP, de 6/11/2001, e os neles referenciados, in CJ-STJ VIII-III-49 e CJ XXVI-V-174).
Os defensores da tese do contrato de arrendamento salientam que tais contratos encerram todos os elementos definidores e típicos desse negócio, tal como o define a lei (art. 1º do RAU e art.s 1022º e 1023º C. Civil), sendo a sua localização em espaço privilegiado para os negócios e sob um plano organizatório e de funcionamento, enquanto elementos potenciadores de clientela, bem como a prestação de serviços pelo proprietário ou organizador do Centro, insuficientes para pôr em causa a qualificação, que sempre há-de manter-se a de arrendamento, dada a prevalência da prestação de cedência do gozo das partes do prédio sobre as mencionadas prestações que, podendo dar lugar a contratos mistos ou contratos coligados mantém a aplicabilidade das regras do arrendamento urbano (cfr. COUTINHO DE ABREU, “Da Empresarialidade”, 320 e ss; PINTO FURTADO, “Os Centros Comerciais...”, GALVÃO TELLES, “Contratos de Utilização de Espaços ...”, in CJ XV-II-23).
Por seu turno, os proponentes da atipicidade apoiam-se, essencialmente, na ideia de que se em tais contratos são identificáveis elementos essenciais da locação, também o são, simultaneamente, outros elementos e, também eles essenciais. Detectam-se entre estes a integração do espaço cedido na mais vasta área privilegiada do centro comercial, a sua inserção no âmbito de um conjunto seleccionado de lojas, o conjunto de serviços prestados pelo organizador do centro e a sua submissão a uma gestão comum e unitária, coordenadora das actividades dos vários lojistas, etc..
Chamam ainda a atenção para o facto de ser diferente a função económico-social do contrato celebrado entre o organizador do centro e o lojista e o mero contrato de arrendamento. Aqui, trata-se apenas de proporcionar o gozo da coisa, sendo o desenvolvimento duma actividade uma faculdade do arrendatário, enquanto acolá a obrigação de levar a cabo uma actividade - bem determinada - é imposta (vd. A. VARELA, in RLJ 122º- 62 e ss., 128º-315 ess., 129º-49 e ss. e 131º-143 e ss.; PAIS DE VASCONCELOS, ROA, A. 96-II- 535 e ss.; PINTO DUARTE, “Tipicidade e Atipicidade dos Contratos”, 159 e ss.).
Enquanto contrato atípico, cairá, ele, então, no âmbito da liberdade contratual das partes quanto à fixação do respectivo conteúdo e reger-se-á pelas respectivas cláusulas, pelas disposições reguladoras dos contratos em geral (art.s 405º e ss. C. Civil) e, se necessário, pelas disposições, não excepcionais) dos contratos com os quais apresente maior analogia (RLJ 128º-307).
4. 2. - Saber se o contrato é de arrendamento ou atípico é uma questão de qualificação que passa pela interpretação das cláusulas que o constituem.
Importa, para tanto, procurar captar qual tenha sido a vontade das partes para, em conformidade, e como resultado de tal tarefa se qualificar o contrato que quiseram celebrar e, consequentemente, a que regime, de harmonia com a lei, o quiseram submeter.
O Prof. A. Varela ensaia um critério de demarcação e definição da natureza jurídica do contrato celebrado entre o organizador do centro e os lojistas nestes termos: Se as cláusulas especiais introduzidas não prejudicam a causa do contrato típico (a função económico-social do tipo de contrato de que a lei fixa o regime) em que ele se integra, atentas as cláusulas restantes, a convenção negocial continua a pertencer a este tipo e negócio, com as modificações impostas pela vontade das partes; Se, pelo contrário, aquelas cláusulas afastam a composição os interesses das partes de qualquer dos modelos básicos de contratação tipificados ou padronizados pela lei, a convenção cai na categoria dos contrato inominados (RLJ 127º-181; Ac. STJ de 20/1/98, BMJ 473º-516).
Por sua vez, Pais de Vasconcelos dá conta de que entre um contrato francamente típico e um contrato atípico puro existe uma graduação fluída que permite um juízo de qualificação do contrato como mais ou menos típico, como mais ou menos atípico.
Não dispensando o contributo dos tipos contratuais já conhecidos, os contrato atípicos são quase sempre elaborados a parir daqueles, que as partes modificam ou combinam em função dos interesses que prosseguem. Daí que «numa perspectiva genética, os contratos atípicos, que o não sejam puramente, podem classificar-se em contratos atípicos de tipo múltiplo e de tipo modificado. (...) Estes são contratos atípicos mistos», numa perspectiva tipológica. Neles, o tipo de referência que serviu de base à respectiva construção não deixará de dar um contributo importante para a sua concretização, não por aplicação directa da sua disciplina típica, porque o contrato não é típico, mas antes por analogia (ROA, cit., 537 e ss.)
4. 3. - Pois bem: Convocando o clausulado do contrato que as partes outorgaram, imediatamente se detectam nele, e ressaltam, aqueles já referidos elementos essenciais que, paritariamente com os que também o identificam com o contrato de arrendamento, quer a jurisprudência largamente dominante, quer grande parte da doutrina vêm enunciando, ambas em crescendo de aperfeiçoamento, como determinantes da qualificação do contrato designado de instalação de lojista em centro comercial como contrato inominado ou atípico.
Tais notas revelam-se especialmente no conjunto fáctico constante do ponto 11. da matéria de facto - que reproduz o «documento complementar» anexo à escritura pública - e no clausulado do Regulamento Interno para o qual aquele documento, por seu turno, remete, afigurando-se-nos desnecessário, e mesmo ocioso, proceder aqui a um exercício de colocação em evidência de cada uma delas, de tão referidas e definidas em seus contornos e efeitos que se encontram nas obras e arestos citados e mesmo na sentença impugnada.
De referir, finalmente, que, em sede de qualificação, o intérprete não está vinculado à qualificação que as partes atribuíram ao contrato, sem prejuízo de a mesma não dever deixar de ser tomada em consideração «como índice importantíssimo do tipo» (PAIS DE VASCONCELOS, “Contratos Atípicos”, 198).
Aceita-se, por isso, a qualificação do contrato como atípico, como se fez na douta decisão recorrida.
5. 1. - Como já se deixou aflorado, nos contratos atípicos, diferentemente do que sucede nos típicos, o intérprete tem de contar sobretudo com as estipulações dos contraentes, pois que é justamente no conteúdo dessas estipulações que se encontra a razão de ser da alteração da tipicidade e do respectivo regime de regulação. Como escreve Pais de Vasconcelos (ob. cit., 376), “a regulação contratual, nos contratos típicos, reside principalmente no tipo enquanto que nos atípicos se encontra principalmente nas estipulações negociais”.
As Partes remeteram no clausulado que estabeleceram para o Regulamento do Centro, cujo art. 8º veda a cessão da posição contratual do lojista sem consentimento expresso da proprietária.
Na violação dessa disposição fundou a Autora a sua pretensão de resolução do contrato, pretensão que viu inteiramente acolhida na sentença.
Dada a conclusão a que se chegou quanto à natureza do contrato, poderá parecer que nenhuma dúvida seria de suscitar sobre o acerto do julgado.
Com efeito, como consta da mencionada cláusula 9 «o inquilino obriga-se a respeitar as normas e instruções constantes do Regulamento Interno da Galeria Comercial ........., acima referido, bem como das futuras alterações, das quais o F......, Lda lhe dará conhecimento atempado».
Tais estipulações contratuais correspondem, nessa parte, ao conteúdo de um contrato de adesão, pois que, como é característico destes contratos, uma das partes, sem intervenção directa na elaboração de certas cláusulas, se limita a aceitar o texto oferecido pelo outro contraente.
De qualquer modo, não se pondo em equação a existência de qualquer situação de abuso na contratação relativamente à inserção da cláusula, nem estando em causa a sua validade atenta a aceitação da atipicidade do contrato, sendo mesmo que cláusulas idênticas ou análogas correspondem à normalidade nos denominados contratos de instalação de lojista, a proibição integrada no contrato dos autos é, em princípio, lícita, válida e eficaz.
5. 2. - Acontece, porém, que o Regulamento em que foi inserida a proibição de cessão que passou a integrar o contrato é posterior, não só à celebração do contrato que as Partes denominaram de arrendamento, como também ao contrato de trespasse por via do qual, mediante transmissão da posição contratual, os ora trespassantes adquiriram a qualidade de «inquilinos».
Dito doutro modo, quer ao tempo da celebração do «contrato de arrendamento», quer ao tempo da aquisição da posição de «inquilinos» pelos ora primeiros Réus, o Regulamento era omisso quanto a qualquer regulação em matéria de trespasse ou de cessão da posição contratual.
E idêntica omissão se verificava nas cláusulas do contrato.
Assim, seguramente que a proibição da cessão, por via do Regulamento, só poderia fazer parte do estatuto do contrato a partir da respectiva elaboração e entrada em vigor, o que aconteceu após 1/10/92.
Quer isto dizer que até ao momento da absorção da alteração produzida pelo Regulamento pelo regime do contrato este tem de ser interpretado, integrado e aplicado em conformidade com o clausulado anteriormente existente e correspondente à sua versão original – art. 406º-1 C. Civil.
5. 3. - O trespasse causal deste litígio ocorreu já em 1999, logo em plena vigência do Regulamento que proíbe a cessão.
Segundo a transcrita cláusula 9., o F......, Lda obrigou-se a dar atempado conhecimento ao inquilino das normas do Regulamento e suas futuras alterações.
Ora, a Autora-apelada arrancou do pressuposto de que o Regulamento alterado estava em vigor relativamente às obrigações dos Réus trespassantes, facto que estes não aceitaram, alegando que o documento que o contém jamais lhes foi dado a conhecer(art. 9º da contestação), o que, por sua vez, a Apelada não aceita ter omitido (art. 9º da réplica).
Tal facto, correspondente a uma prestação de facto a que se obrigara a Autora como condição de integração no clausulado do contrato de eventuais alterações ao Regulamento no regime de regulação do mesmo é, nessa medida um facto constitutivo do seu direito, ou seja, para que a Apelada pudesse invocar, como invocou, a violação do art. 8º-d) do Regulamento e inerente violação do contrato, necessário seria que esse preceito fizesse parte do estatuto do contrato.
Negado pelos RR. o conhecimento do Regulamento, impendia sobre a Autora demonstrar que, em cumprimento da prestação a que se obrigara, dera conhecimento atempado da alteração com repercussão nas obrigações contratuais da outra parte – art. 342º-1 C. Civil.
Por isso, não era aos RR. que cabia demonstrar que não conheciam as alterações, como se entendeu ao elaborar a base instrutória e, depois, a sentença.
Consequentemente, na perspectiva em que ora se coloca a questão, a acção teria de improceder, por isso que não ocorre o pressuposto de ter sido posta em vigor, quanto aos RR., a norma do Regulamento alegadamente violada e invocada como fundamento do pedido.
6. - Aqui chegados, põe-se o problema de saber se, malgrado a inexistência da proibição da cessão como cláusula contratual, a solução não deve ser a encontrada na decisão impugnada.
É que, como é sabido, do regime geral dos contratos faz parte a regra de que a transmissão da posição contratual só produz efeitos se for consentida pela outra parte no contrato – art. 424º C. Civil.
Donde que, perante a omissão de estipulação dos contraentes se deveria entender que, por aplicação do regime supletivo que proíbe a cessão, efectivada definitivamente esta, o contrato poderia ser resolvido.
Entendemos que não cabe ao caso essa solução.
Mais uma vez a questão é de interpretação e integração do negócio.
Determina o art. 239º C. Civ. que a declaração negocial deve ser integrada de acordo com a vontade que as partes teriam tido se tivessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução por eles imposta.
O contrato dos autos foi pelas partes designado de arrendamento, foi celebrado por escritura pública, teve por objecto uma loja ainda sem qualquer estabelecimento nela instalado, como contraprestação do inquilino foi fixada uma renda anual pagável em duodécimos mensais iguais e actualizável segundo os coeficientes anuais a fixar por Portaria para os arrendamentos comerciais, nos termos do DL n.º 436/83, ao que acresce ter sido a posição dos primeiros RR no contrato obtida no seguimento de contrato de trespasse celebrado em Maio de 1992 com os primitivos «inquilinos», ao que dos autos consta sem a menor reacção da ora Apelada.
Estes elementos ou índices do tipo, remetendo-nos para um contrato construído por referência ao tipo de arrendamento urbano para fim comercial, embora, como dito, com divergências suficientemente relevantes para fundar a atipicidade, conduzem a que se deva considerar que “é intenção das partes aproveitar a base, ou uma parte importante, da regulação interna do tipo, mas modificada”. Em tais casos, o direito dispositivo fornecido pelo tipo é afastado quando o sentido do desvio o prive de fundamento e quando do desvio e do concreto contrato resulte que as partes não quiseram aquela regulação dispositiva (PAIS DE VASCONCELOS, Ob. cit., 385).
Efectivamente, a expressa inclusão de todos os elementos do arrendamento comercial, designadamente quanto à renda e sua forma de actualização, a circunstância de o estabelecimento ter sido criado e instalado pelo lojista – que é, afinal, a razão de ser da faculdade de transmissão da titularidade do estabelecimento e da posição de arrendatário, sem dependência de autorização do locador – e a sua designação como tal, tudo conjugado com uma anterior cessão não reagida, são circunstâncias que, no seu conjunto, apontam para que a vontade hipotética das partes, quer entendida de modo objectivo, quer de modo subjectivo, convergira no sentido da admissibilidade do trespasse com transmissão da posição do «inquilino» se se lhes deparasse a necessidade de reduzirem a escrito a estipulação.
De outro modo, não se percebe o silêncio da Autora perante a anterior cedência, nem a completa omissão quanto à invocação de qualquer circunstância donde pudesse decorrer a ideia de o contrato ter sido celebrado intuitus personae. Bem diversamente, o que o processo parece deixar transpirar é que, perante a aludida evolução da qualificação destes contratos, a Apelada despertou para a possibilidade de disso retirar proveito e, ao abrigo das clausulas contratuais, alterou o Regulamento Interno que invoca nesta acção, “alteração” que, pelas mesmas razões, e sem mais, não deve, ao menos a nosso ver, ter-se por meramente interpretativa da disciplina do contrato, mas realmente inovadora.
O acabado de referir permite ainda convocar no mesmo sentido - da não previsão da proibição no contrato original – o critério da boa fé a que manda atender o art. 239º, boa fé cujos ditames se sobrepõem mesmo à vontade hipotética dos contraentes.
Conclui-se, assim, que, face aos elementos de facto disponíveis e ao entendimento que propomos, a acção não pode proceder.
7. - Mas, atenção! Como atrás se deixou dito, ter-se-á entendido que era aos RR. que competia demonstrar que desconheciam o Regulamento que terá integrado o estatuto do contrato, quando esse ónus recaía sobre a Autora, enquanto prestação a que contratualmente se obrigara, sendo, consequentemente, facto constitutivo do direito accionado.
Ora, a Autora não provou esse facto, desde logo porque a oportunidade lhe não foi dada, designadamente através da inclusão na base instrutória de um ponto que colocasse a seu cargo a possibilidade de demonstrar o cumprimento da parte final da cláusula 9., impugnado pelos RR. e a resposta ao quesito 6º, de “não provado” não permite concluir que o pertinente e devido conhecimento foi dado.
Torna-se, pois, necessária a ampliação da matéria de facto, mediante a elaboração e aditamento de um novo quesito à base instrutória com o objectivo de averiguar sobre o cumprimento do referido ónus, que é condição necessária à inserção do art. 8º-d) do invocado Regulamento na disciplina reguladora do contrato, facultando-se à Autora a competente prova.
Para tanto, torna-se necessária a anulação parcial da decisão da matéria de facto, a repetição do julgamento para os referidos fins, tudo nos termos previstos no art. 712º-4 do CPC (cfr. art. 650º-2-f)).
8. - Termos em que, de conformidade com o exposto, se decide:
- Anular oficiosamente a decisão da matéria de facto e termos posteriores do processo, incluindo a sentença recorrida;
- Ordenar a repetição parcial do julgamento, após ampliação da base instrutória, nos termos referidos, mediante a elaboração de um novo ponto de facto que inclua o alegado na primeira parte do artigo 34º da petição inicial e 9º da réplica, com referência ao alegado no artigo 33º e ao cumprimento da parte final da clausula 9. do documento complementar anexo à escritura de «arrendamento», sem prejuízo do uso da faculdade/dever a que se alude na última parte do n.º 4 do citado art. 712º; e,
- Que as custas – da acção e do recurso - sejam suportadas pelas Partes segundo o critério que vier a ser fixado a final.
Porto, 2 Maio de 2002
António Alberto Moreira Alves Velho
Camilo Moreira Camilo
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha