DEFENSOR OFICIOSO
PEDIDO CÍVEL
HONORÁRIOS
Sumário

A nomeação de defensor ao arguido é imposta pela obrigatoriedade de assistência do defensor ao arguido, mas as suas funções não englobam as de representar o arguido enquanto demandado no pedido de indemnização civil.
Por isso, tendo o advogado sido nomeado defensor ao arguido para o assistir no âmbito da acção penal, mas não para o representar no pedido de indemnização civil, no âmbito do apoio judiciário, não tem direito a receber honorários relativos a este pedido.

Texto Integral

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (4.ª) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I
1. No processo n.º .../... da ... Vara Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia foi atribuída ao Exm.º Defensor oficioso a quantia de 64 000$00 a título de honorários.
2. Inconformado, veio ele interpor recurso da parte do acórdão em que se fixam os respectivos honorários, rematando a motivação apresentada com a formulação das seguintes conclusões:
«1.º Os honorários a atribuir aos advogados nomeados para patrocinarem determinada causa em tribunal devem ser fixados nos termos dos artigos 48.º e 49.º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e da tabela anexa à Portaria n.º 1200-C/2000, de 20 de Dezembro;
«2.º Num processo crime com a forma comum, cuja competência é dum tribunal colectivo, e o crime de que o arguido é acusado é punível com pena de prisão superior a 8 anos, os honorários a atribuir ao defensor oficioso, que é advogado, são de Esc. 64 000$00, isto é, 16 unidades de referência;
«3.º Num processo crime com a forma comum, onde tenha sido deduzido um pedido cível com um valor compreendido entre Esc. 80 001$00 e 120 000 000$00 os honorários a atribuir são de Esc. 360 000$00, isto é, 90 unidades de referência;
«4.º Se dois patronos nomeados fazem o mesmo trabalho processual, devem ser remunerados do mesmo modo;
«5.º No presente processo, só foram atribuídos ao defensor oficioso, a título de honorários, a quantia de Esc. 64 000$00, quando este também contestou o pedido cível e esteve presente em todas as sessões que se realizaram de audiência de julgamento no presente processo;
«6.º Não se cumpriu deste modo o disposto nos artigos 48.º e 49.º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, na tabela anexa à Portaria n.º 1200-C/2000, de 20 de Dezembro, pois não foram fixados honorários pela participação processual do ora recorrente na parte do processo relativa ao pedido cível;
«7.º O douto acórdão da 1.ª instância deve ser modificado quanto aos honorários atribuídos ao defensor oficioso, fixando-se também a quantia de Esc. 360 000$00, a atribuir a título de honorários, além dos 64 000$00 fixados.»
3. Admitido o recurso e efectuada a legal notificação, não foi apresentada resposta.
4. O Exm.º Juiz manteve a decisão de fixação de honorários recorrida.
5. Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor «visto» nos autos.
II
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
1. A questão objecto de recurso, como emerge das conclusões da motivação, está em saber se no processo penal, que tenha por objecto uma acção penal e um pedido de indemnização civil, ao defensor oficioso são devidos, cumulativamente, honorários pela acção penal e pela acção civil.
2. Embora o recurso tenha sido instruído apenas com certidão do acórdão (para além das peças estritamente respeitantes ao recurso), o conhecimento do acórdão habilita-nos com os dados pressupostos na questão que constitui o objecto do recurso.
Com efeito, resulta do acórdão:
- que o arguido Joaquim Fernando ..... foi submetido a julgamento, em processo comum e perante tribunal colectivo,
- que o seu julgamento foi requerido pelo Ministério Público, em 21 de Dezembro de 2000, imputando-lhe a prática de um crime de burla agravada, p. e p., actualmente, pelos artigos 217.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de falsificação de documentos, p. e p., actualmente, pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do Código Penal,
- contra o arguido foi deduzido pedido de indemnização civil, no valor de 82 221 879$99, que veio a ser reduzido na quantia de 11 840 000$00, por J....., Lda.,
- o acórdão condenatório, de 27 de Novembro de 2001, julgando parcialmente, procedente, por provados, quer a acusação, quer o pedido de indemnização civil, no que se reporta a custas:
- quanto à acção penal, condenou o arguido no pagamento de 3 UC de taxa de justiça, 1% daquele valor nos termos do artigo 13.º, n.º 3, do DL 423/91, de 30/10, 20 000$00 de procuradoria e a quantia de 64 000$00 a título de honorários a favor do defensor e 15 000$00, a título de reembolso de despesas (montantes estes a adiantar pelos Cofres, caso não haja pagamento tempestivo),
- quanto ao pedido cível, foram condenados a demandante e o demandado em custas, na proporção do respectivo decaimento.
3. Passemos, agora, à questão objecto de recurso.
3.1. A prática de uma infracção criminal é possível fundamento de dois pedidos diferentes: um de natureza criminal, para que o autor do crime seja penalmente censurado, outro de natureza cível, para que os prejudicados com o crime sejam indemnizados pelas consequências materiais e morais a que o crime tenha dado causa.
O artigo 71.º do Código de Processo Penal (CPP) consagra o princípio da adesão obrigatória da acção civil à acção penal, segundo o qual no mesmo e único processo penal devem ser resolvidos e decididos os dois pedidos: o criminal e o civil.
As duas acções, embora dentro do mesmo processo, conservam, porém, autonomia quer quanto a questões de legitimidade activa e passiva, quer quanto à tramitação e julgamento e regime de recursos, como corolário da sua diferente natureza.
Designadamente, conservam plena autonomia quanto à responsabilidade por custas.
É distinta a responsabilidade por custas quanto à acção penal e quanto à acção civil, regendo-se por normas próprias e específicas a responsabilidade por custas numa e noutra acção.
Neste aspecto, convém salientar que a Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, no sentido de remover dúvidas que a formulação do artigo 520.º do CPP originou, introduziu uma disposição sem correspondência na versão originária do Código, dispondo que «à responsabilidade por custas relativas ao pedido de indemnização civil são aplicáveis as normas do processo civil» (artigo 523.º).
Assim, ainda que seja a mesma a pessoa responsável pelas custas criminais e pelas custas civis, porque, por exemplo, tem as posições processuais de arguido e de demandado, terá de pagar as custas criminais e as custas civis a que deu causa.
3.2. O exercício da função de defensor nomeado é sempre remunerado (artigo 66.º, n.º 5, do CPP) e os advogados, advogados estagiários e os solicitadores têm direito, em qualquer caso de apoio judiciário, a receber honorários pelos serviços prestados (artigo 48.º, n.º 1, da Lei n.º 30-E/2000).
Os honorários a atribuir ao defensor em processo penal, ainda que nomeado fora do âmbito do apoio judiciário, em sentido estrito (sem prejuízo de o defensor apresentar nota de honorários, de acordo com o n.º 2 do artigo 42.º da Lei n.º 30-E/2000), e os honorários dos advogados, advogados estagiários e solicitadores pelos serviços que prestem no âmbito do apoio judiciário são os fixados nos termos de tabelas aprovadas pelo Ministro da Justiça (artigo 47.º, n.º 1, e artigo 49.º da Lei n.º 30-E/2000).
Na tabela anexa à Portaria n.º 1200-C/2000, de 20 de Dezembro [Tal como na tabela anexa à Portaria n.º 150/2002, de 19 de Fevereiro] – a que se encontrava em vigor à data do acórdão -, no ponto 3., sob o título «processo penal», estão inscritos os honorários, relativos ao processo penal (3.1), em função das diversas formas de processo e, dentro do processo comum, consoante o tribunal competente, distinguindo-se, ainda, dentro dos crimes da competência do tribunal colectivo, os crimes puníveis com pena até 8 anos e os crimes puníveis com pena superior a 8 anos (3.1.1 a 3.1.6), relativos ao pedido de indemnização cível (3.2), com os valores aplicáveis às acções declarativas, de acordo com os pontos 1.1.1.1 a 1.1.2.3, relativos à execução de pedido de indemnização cível (3.3), com os valores aplicáveis às acções executivas, de acordo com os pontos 1.2.1 a 1.2.2, relativos aos recursos (3.4), em função da sua natureza ordinária ou extraordinária (3.2.1.e 3.2.2).
A previsão, nessa tabela, de honorários pela acção penal e pelo pedido civil não pode deixar de significar que o advogado nomeado no âmbito do apoio judiciário tem direito a receber honorários pelos serviços prestados na acção penal e na acção civil [Nas tabelas anexas aos Decretos-Leis n.os 391/88, de 26 de Outubro, 102/92, de 30 de Maio, e 231/99, de 24 de Junho, nos respectivos pontos 1, também sempre estiveram expressamente previstos os limites, mínimo e máximo, dos honorários no pedido de indemnização em processo penal, embora, restritos aos pedidos com valor superior à alçada da Relação].
Solução que é imposta pela distinção a que a tabela procede e é a única conforme à diferente natureza dos dois pedidos (criminal e cível) e à autonomia que as duas acções conservam embora devam ser decididas no mesmo processo.
Solução que é exigida, ainda, pelo direito que os advogados têm de receber compensação material de adequada dignidade pelos serviços prestados, como condição indispensável de um efectivo acesso ao direito.
3.3. A inscrição de honorários pelo «pedido de indemnização civil» não depende da posição processual da parte assistida, de modo a entender-se que se limita apenas à situação de dedução desse pedido já não tendo aplicação no caso de contestação do mesmo.
Na verdade, o artigo 20.º da Constituição proclama que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos» e que «todos têm direito, nos termos da lei, (...) ao patrocínio judiciário (...)».
Ao nível do direito ordinário, o artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 30-E/2000 concretiza que «o sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a promover que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos».
Por isso, o apoio judiciário é independente da posição processual que o requerente ocupe na causa (artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 30-E/2000).
De acordo com as regras enunciadas e o princípio de que os advogados têm direito em qualquer caso de apoio judiciário a receber honorários pelos serviços prestados (artigo 48.º da Lei n.º 30-E/2000), as tabelas já referidas inscrevem os honorários para o apoio judiciário e, designadamente, nos pontos relativos ao processo civil e ao pedido de indemnização civil em processo penal, não distinguem os honorários em função da posição processual na causa daquele a quem o apoio é concedido.
Assim sendo, quer o apoio seja concedido ao demandante, para dedução, sustentação e prova do pedido, quer o apoio seja concedido ao demandado, para sustentação e prova das questões civis julgadas no processo, em consonância com os respectivos poderes processuais (artigo 74.º do CPP), aos advogados são devidos os mesmos honorários.
3.4. Um dos aspectos em que se concretiza a autonomia das acções penal e civil julgadas no mesmo processo é o de cada uma delas dar lugar a custas, regendo-se a responsabilidade por custas da acção penal pelas regras do processo penal e a responsabilidade por custas do pedido de indemnização cível pelas normas do processo civil.
É sempre subsidiariamente aplicável o disposto no Código das Custas Judiciais (artigo 524.º do CPP).
As custas cíveis compreendem, designadamente, o reembolso ao Estado do dispêndio com o apoio judiciário, de acordo com a alínea h) do artigo 32.º do CCJ, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 320-B/2000, de 15 de Dezembro.
Sendo a responsabilidade por custas do pedido de indemnização civil regulada pelas normas do processo civil, com aplicação subsidiária das pertinentes normas do CCJ, integram os encargos que as custas civis compreendem as quantias que resultam da aplicação da tabela prevista no artigo 49.º da Lei n.º 30-E/2000, pagas pelo Estado, no âmbito do apoio judiciário, aos advogados nomeados aos demandados.
3.5. No caso dos autos, porém, o recorrente não foi nomeado advogado ao demandado no âmbito do apoio judiciário.
Como claramente a motivação de recurso informa (e decorre do próprio acórdão) o recorrente foi nomeado defensor ao arguido.
3.5.1. No pedido cível deduzido em processo penal, os demandados e intervenientes devem fazer-se representar por advogado (artigo 76.º, n.º 2, do CPP).
Na versão primitiva do Código, a regra de que os demandados e intervenientes deveriam ser sempre representados por advogado, determinava que, no caso de não constituírem advogado, o juiz lhes nomeasse advogado.
O n.º 4 do artigo 76.º era, nesse ponto, explícito: «devem fazer-se representar por advogado os intervenientes, mas se o não fizerem são representados por defensor nomeado pelo juiz».
O dever de o juiz nomear advogado aos demandados que não constituírem advogado, deixou de ser imposto, nada constando, agora no n.º 2 do artigo 76.º, a esse respeito.
Esse segmento foi eliminado pela Lei n.º 59/98.
A exposição de motivos que precede a revisão que a Lei n.º 59/98 veio a consagrar, constante da Proposta de Lei n.º 157/VII [Publicada no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 27, de 29.01.98, p. 481 e ss] esclarece que as alterações introduzidas no regime do pedido de indemnização civil, com respeito pelo princípio do pedido, têm o sentido de melhorar a protecção do lesado no âmbito do processo penal. Concretamente quanto ao regime de representação, afirma-se:
«O regime de representação sofre modificações substanciais, em conciliação com as regras do processo civil e com os poderes de intervenção do Ministério Público decorrentes do seu estatuto, sem fragilizar a protecção dos mais carenciados economicamente.»
Em seguida, esclarece-se que:
- é afirmado o princípio da representação do lesado por advogado, de acordo com o regime do patrocínio judiciário, mas permitindo-se a intervenção directa do lesado, sem advogado, nos casos em que o pode fazer no processo civil,
- não se eliminando a intervenção do Ministério Público, em representação do lesado, harmoniza-se o respectivo regime com o resultante do seu estatuto orgânico e das leis de processo, introduzindo-se, nesta conformidade, uma disposição (artigo 76.º, n.º 3) prevendo a intervenção em representação do Estado, das autarquias e das pessoas e interesses a quem o Estado deve protecção, designadamente dos incapazes, incertos e ausentes.
Continuando a ser afirmando o princípio da representação por advogado do demandado, pela necessidade de assegurar uma intervenção técnica, a eliminação do segmento que impunha a nomeação de defensor significa que o demandado não pode, por si, exercer os poderes processuais que lhe cabem, nessa qualidade.
Para exercer os poderes processuais quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo (artigo 74.º, n.º 3), designadamente contestar e oferecer provas (artigos 78.º e 79.º), o demandado ou constitui advogado ou requer (e é-lhe concedido) apoio judiciário na modalidade de nomeação e pagamento de honorários de patrono ou de pagamento de honorários de patrono escolhido (artigo 15.º, alínea c), da Lei n.º 30-E/2000), para o representar na qualidade de demandado.
Se o demandado não constituir advogado ou se não requerer (e lhe for concedido) apoio judiciário, na modalidade indicada, não é admitido a intervir no pedido de indemnização civil, que segue para decisão dos factos alegados no pedido, uma vez que a falta de contestação não implica confissão dos factos (artigo 78.º, n.º 3).
3.5.2. O recorrente foi nomeado defensor ao arguido, para o assistir no âmbito da acção penal e não para, ainda, o representar, enquanto demandado, na acção civil, sendo que ao processo se aplicam as alterações introduzidas ao Código de Processo Penal pela Lei n.º 59/98.
A nomeação de defensor ao arguido é imposta pela obrigatoriedade de assistência do defensor ao arguido, nos casos indicados no artigo 64.º do CPP.
As funções do defensor não englobam as de representar o arguido, enquanto demandado, no pedido de indemnização civil, tanto mais que deixou de ser imposta a nomeação de defensor aos demandados.
Por isso, o recorrente – que não foi nomeado patrono ao demandado para o representar no pedido de indemnização civil, no âmbito do apoio judiciário -, não tem direito a receber honorários relativos ao pedido de indemnização civil.
III
Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso.
Por ter decaído, vai o recorrente condenado em 5 UC.
Porto, 22 de Maio de 2002
Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro
Agostinho Tavares de Freitas