ARRENDAMENTO URBANO
CADUCIDADE
MORTE
ARRENDATÁRIO
DETERIORAÇÃO
RESPONSABILIDADE
HERDEIRO
ESTADO
HERANÇA VAGA
Sumário

I - Caducado o arrendamento por morte do arrendatário, o herdeiro deste é obrigado a indemnizar o senhorio, pelas deteriorações do local arrendado, se não provar que tais deteriorações já existiam no início do arrendamento.
II - Essa obrigação é extensiva aos danos ocorridos entre a morte do arrendatário e a restituição do local ao senhorio.
III - Tal obrigação cabe ao Estado se a herança lhe for deferida, como herança vaga.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

António ............., apresentou Reclamação de Créditos, em 14.3.2000, por apenso ao Proc. .../.., de Liquidação da Herança Vaga em Benefício do Estado [relativa a Carminda ..........], pendente pela, actualmente, .. Vara Cível da Comarca do ........., processo em que é reclamado o Ministério Público.
Com os seguintes fundamentos:
- o reclamante é proprietário do prédio sito na ........, da cidade do ......., com a área coberta de 115 m2 e descoberta de 240 m2, composto por cave, 2 andares e sótão, com jardim, garagem, lavandaria, inscrito sob o art..... na matriz predial urbana;
- o referido prédio havia sido arrendado a António Costa, tendo-se o arrendamento transmitido por morte deste à sua viúva, Carminda .........;
- a última renda paga ao reclamante respeitou ao mês de Março de 1997, não tendo a partir dessa data sido efectuado qualquer pagamento;
- o valor dessa renda, que deveria vigorar durante o ano de 1997, foi de 5.967$00; - o contrato de arrendamento caducou com a morte da arrendatária, devendo, a partir dessa altura, ser o prédio locado restituído ao aqui reclamante;
- durante o período de 34 meses, compreendido entre a última renda paga e a data da devolução pelos Serviços do Mº Pº das chaves do prédio, o reclamante, viu-se privado do recebimento de quaisquer rendas ou de tirar rendimento do mesmo;
- o prédio foi entregue ao reclamante num estado de profunda degradação e vai exigir custosas e vultosas obras de reparação, cujo o preço orça em 3.673.800$00.
Terminou, pedindo que seja reconhecido o seu crédito, no valor de 4.079.556$00, sendo 405.756$00, por indemnização correspondente ao atraso na entrega do imóvel – art. 1045º,nº2, do Código Civil; e 3.673.800$00, relativos ao custo das obras que importa realizar, face à deterioração que o prédio sofreu antes de lhe ser restituído.
O Ministério Público contestou por impugnação.
Foi proferido despacho saneador. Procedeu-se à selecção e fixação da matéria assente e da Base Instrutória.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância das legais formalidades.

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Afinal, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a reclamação de créditos, e reconheceu a favor do reclamante António .......... o crédito de 202.878$00, referente as 34 rendas, em singelo, devidas desde a data da morte da locatária, até á data da entrega das chaves ao reclamante.
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Inconformado recorreu o reclamante que, alegando, formulou as seguintes conclusões:
1- O art. 1043º do Código Civil e o art. 4º do RAU consagram como princípio geral, o direito do senhorio exigir que o arrendado lhe seja restituído em bom estado de manutenção e a correspondente obrigação do inquilino de restituição do arrendado em tal bom estado de manutenção;
2 - Esse direito do senhorio e a correspondente obrigação do arrendatário existem seja qual for o motivo da cessação do contrato e da subsequente restituição do arrendado (denúncia, rescisão, acordo entre as partes, caducidade, nesta se incluindo, naturalmente, a decorrente da morte do arrendatário);
3 - Os referidos preceitos devem ser interpretados extensivamente (ou, se for entendido existir uma lacuna, serem aplicados analogicamente), abrangendo no seu comando as situações em que a caducidade seja consequência da morte do arrendatário e a obrigação de restituição caiba ao herdeiro deste;
4 - Caso o arrendado tenha sofrido deteriorações para além das admitidas na lei fica o arrendatário, por força do art. 1044º do Código Civil, obrigado à sua reparação ou ao pagamento de uma indemnização ao senhorio correspondente ao valor das obras necessárias à reparação das mesmas;
5 - Em caso de morte do arrendatário o pagamento dessa indemnização passa a constituir responsabilidade da herança – arts. 2068º e 2071º do Código Civil;
6- O herdeiro-Estado tem perante a herança as mesmas obrigações e responsabilidades de qualquer outro herdeiro – art. 2153º do Código Civil;
7 - A obrigação de indemnização prevista no n°2 do art. 1045º do Código Civil deverá ser extensiva às situações em que o arrendado deva ser restituído por virtude da morte do arrendatário;
8 - Nesse caso a obrigação de indemnizar o locador pela mora na restituição transmite-se para a herança, devendo o seu pagamento ser satisfeito pelo herdeiro;
9- O reclamado não só nunca alegou que o valor dos bens inventariados fosse insuficiente para pagamento dos valores peticionados pelo aqui apelante ou eventualmente herdados como se constata que dado o grande valor dos bens herdados (prédios rústicos e urbanos, depósitos bancários, carteiras de títulos, bens móveis diversos) estes excedem largamente tais indemnizações;
10 - O M.mo. Juiz “a quo”, ao absolver o reclamado dos referidos pedidos violou os citados art. 4º do RAU e arts. 1043º, 2068º, 2071º, 2153º e 1045º-2, todos do Código Civil.
Nestes termos deve a sentença ora em crise ser revogada e condenado o requerido a pagar as peticionadas indemnizações, com o que se fará Justiça.
O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela confirmação do Julgado.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em que é a seguinte a matéria de facto considerada provada:
I) - O direito de propriedade do prédio sito na ........, descrito sob o n° ..... na matriz predial urbano encontra-se registado a favor do reclamante.
II) - Em 1997, a titular do contrato de arrendamento relativo ao imóvel supra referido era Carminda ..........
III) - O valor da renda em vigor em 1997 era de 5.967$00.
IV) - A última renda foi paga em Março de 1997.
V) - Entre Março de 1997 e a devolução das chaves do prédio aos Serviços do Mº Pº mediaram 34 meses.
VI) - O prédio foi entregue apresentando sujidade, buracos e rachadelas nas paredes e tectos.
VII) - Manchas extensas de humidade e de bolor no tecto e paredes de algumas divisões, resultantes de infiltrações de água da chuva entrada pelas janelas abertas e vidros partidas.
VII) - O papel das paredes rasgado e a cair.
IX) - Os vidros partidos e persianas estragadas.
X) - Os lixos e detritos estavam acumulados em grande quantidade no interior e exterior do prédio.
XI) – As obras de reparação do prédio estão orçadas em 3.673.800$00. [Muito embora este facto não conste na sentença, no elenco dos factos provados, ele corresponde ao quesito 7º da Base Instrutória que foi respondido afirmativamente.- cfr. fls. 42 e 74]
Fundamentação.
A questão objecto do recurso, delimitada pelo teor das conclusões do apelante – que definem o respectivo âmbito de conhecimento – consiste, essencialmente, em saber se, “in casu”, o Estado deve indemnizar o recorrente pelas deteriorações que o prédio de que era dono sofreu e pela indemnização, devida por alegado atraso na restituição ao senhorio, do imóvel.
Como resulta dos autos, o apelante era dono do prédio de que foi arrendatária Carminda ........., cujo decesso ocorreu, em 14 de Março de 1997.
Porque tal senhora faleceu sem deixar testamento, doação ou qualquer outra disposição de última vontade, nem ascendentes, descendentes ou quaisquer outros parentes sucessíveis, o Estado, representado pelo MºPº intentou , nos termos dos arts. 1132º e 1133º do Código de Processo Civil, acção de liquidação em seu benefício.
O senhorio do imóvel de que ao tempo a referida Carminda era arrendatária [por morte do marido primitivo locatário] reclamou, nos termos do art. 1134º do Código de Processo Civil, alegados créditos de rendas em mora, e indemnização pelo atraso na restituição do locado, bem como indemnização pelos danos que o imóvel patenteia e que imputa à arrendatária.
Na sentença recorrida, que inteiramente acolheu a tese sustentada pelo Ministério Público, foi entendido que com a morte da arrendatária caducou o contrato de arrendamento - arts. 66º, nº1, do RAU e 1051ºd) do Código Civil - e que o Estado apenas é responsável pelo não pagamento das rendas durante o período de tempo – 34 meses – que esteve na respectiva posse.
Quanto à indemnização pela deterioração do locado, considerou a sentença que não ficou provada a existência de nexo de causalidade entre a conduta do Estado e as deteriorações que o imóvel apresenta.
Nos termos do art. 1043º, nº1, do Código Civil – “ Na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e a restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização em conformidade com o contrato”.
O nº2 consigna- “Presume-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção, quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega”.
Decore do art. 1044º do mesmo diploma – “O locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não exceptuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela”.
Não tendo sido ilidida a presunção do nº2 do art. 1043º do Código Civil, tem de concluir-se que o arrendatário recebeu o locado em bom estado de manutenção, devendo proceder à entrega no estado em que o recebeu, ressalvadas as pequenas deteriorações que lhe é permitido fazer na vigência do arrendamento, mas que deve eliminar, repondo o locado no estado em que o recebeu, aquando da restituição, finda a relação contratual.
Sendo que a arrendatária não deixou herdeiros – a herança foi declarada vaga para o Estado – art. 1133º do Código de Processo Civil – põe-se a questão de saber quem responde pela indemnização que é devia ao senhorio - se devida for - para repor o locado no estado em que o locatário o recebeu.
Na sentença recorrida a solução encontrada baseou-se mais na consideração (indiscutível) de que o Estado não era arrendatário e que o arrendamento caducara com a morte da locatária; mas, salvo o devido respeito, a questão axial está em considerar qual a posição jurídica do Estado, para quem reverteu a herança vaga da locatária, para saber se pode ser responsabilizado, nos termos em que o apelante pretende.
Como decorre dos arts. 2131º, 2132º e 2133 e) do Código Civil o Estado é considerado herdeiro legítimo, integrando a última classe de sucessíveis.
Sendo chamado - “Na falta de cônjuge e de todos os parentes sucessíveis” - art. 2152º do Código Civil.
A aquisição da herança vaga pelo Estado, “como sucessor legítimo” opera “de jure”, sem necessidade de aceitação, não podendo sequer haver repúdio – art. 2154º do citado diploma.
Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado” , vol. VI, pág. 251 - edição de 1998 - escrevem em comentário ao art. 2154º:
“Esta espécie de aceitação forçada revela que a lei não permite que as heranças em que os sucessíveis legítimos são ainda ignorados fiquem abandonadas, entregues ao acaso e ao arbítrio daquele que primeiro as quiser ocupar.
E é precisamente para saber se há ou não parentes sucessíveis do de cuius que, numa primeira fase da situação, a lei (art. 1132.° do Código de Processo Civil ) manda, ainda antes de saber quem são os sucessíveis, tomar as providências necessárias para assegurar a conservação dos bens, e, só em seguida, citar, por meio de éditos, quaisquer interessados incertos para deduzirem a sua habilitação como sucessores[...].
[...]Declarada assim vaga a sucessão, estão criadas as condições de facto necessárias para se operar de direito a transmissão da herança, sem necessidade de aceitação, e, por isso, o mesmo artigo 1133.° da lei processual manda proceder à liquidação da herança, com as diversas fases (cobrança de dívidas activas, venda judicial de bens, pagamento de dívidas da herança e adjudicação do remanescente porventura existente ao Estado) em que a operação sucessivamente se desdobra”.
Dispõe o art. 2153º do Código Civil – “O Estado tem, relativamente à herança, os mesmos direitos e obrigações de qualquer herdeiro”.
Os Ilustres Civilistas , na obra citada , pág. 249 ensinam:
“O artigo 2153.°, ao definir indirectamente os direitos e obrigações do Estado como sucessor legítimo de qualquer pessoa singular, responde por uma dupla via e em termos inequívocos à questão de saber qual o fundamento da posição sucessória do Estado e qual a natureza jurídica da sua posição perante os credores da pessoa a quem o Estado é chamado a suceder [...].
[...] E, para além de usar explicitamente o nome de herdeiro (como em relação a qualquer dos demais sucessíveis), o artigo 2153.° prescreve com todas as letras que o Estado tem, relativamente à herança, os direitos e obrigações próprias de um herdeiro.
Quer isto dizer que não lhe dá apenas o nome de herdeiro, porque lhe confere também o estatuto jurídico de herdeiro”.
Ora, tendo o Estado o estatuto jurídico de herdeiro da falecida arrendatária, com os direitos e obrigações próprias de um herdeiro, responderá pelas obrigações do “de cujus” que não cessem com a sua morte.
Como antes vimos, a aceitação forçada da herança vaga, implica que o Estado tome as “providências necessárias para assegurar a conservação dos bens”, como referem Pires de Lima e Antunes Varela.
Ora, caducando o arrendamento, com a morte da arrendatária, competia ao Estado, desde logo, diligenciar pela pronta entrega do locado ao senhorio, ou enquanto tal não fosse possível, acautelar o imóvel para que não fosse sujeito a deteriorações.
Com o devido respeito, não acompanhamos a sentença recorrida, quando pretendendo responsabilizar o dono do imóvel, pela situação degradada deste, afirma que ele se desinteressou, nem sequer reivindicando a propriedade.
Salvo devido respeito, ao Estado competindo fazer a entrega do imóvel, após a caducidade do arrendamento, também a ele competia, como liquidatário da herança acautelar o imóvel até que fosse restituído.
Tal, manifestamente não sucedeu, como exuberantemente resulta das fotografias juntas aos autos e da expressa confissão do apelado de que, durante cerca de três anos e meio, esteve na posse do imóvel sem sequer pagar a renda.
Esta atitude não significa actuação diligente como herdeiro da falecida Carminda ........
“As deteriorações enumeradas ficaram-se a dever ao total abandono a que o imóvel esteve votado durante o período de 34 meses referido em E)”- cfr. resposta ao quesito 6º.
Este período foi o que mediou entre a data da morte da Carminda ....... e a entrega das chaves do locado ao senhorio feita pelo Estado.
Afirma a sentença que não se provou a existência de nexo de causalidade entre tais deteriorações e a conduta do Estado.
Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar tal asserção.
Não ilidida a presunção de que no início de vigência do contrato, o locatário recebeu o locado em bom estado, e cumprindo-lhe a este ou aos seus sucessores, ocorrendo a caducidade do contrato por morte [e não havendo lugar à transmissão da posição de arrendatário], (art. 66º,nº1, do RAU e art. 1051ºd) do Código Civil), proceder à respectiva entrega ao locador no estado em que o recebeu – art. 1043º, nº1 do Código Civil – sendo mesmo obrigado a eliminar as “pequenas deteriorações” que lhe era lícito fazer para sua comodidade - art. 4º, nº2 do RAU – competiria, no caso ao herdeiro da locatária fazer a prova de que as deteriorações que o imóvel arrendado apresentava no momento da entrega, não lhe eram imputáveis.
Não foi feita tal prova de matéria excepcional, a cargo do Estado - art. 342º nº2, do Código Civil – sendo mesmo que, a nosso ver, a existência de nexo de causalidade que explica as deteriorações está nos 34 meses, de total abandono a que esteve votada a casa arrendada, quando durante tal período de tempo competia já ao Estado velar pela sua conservação e rápida entrega ao senhorio.
Concluímos, assim que a quantia de 3.678.000$00, que mais não é que uma indemnização pela prática, por omissão, de acto gerador do dever de indemnizar – art. 483º, nº1, do Código Civil, deve ser reconhecida como crédito do reclamante senhorio.
Finalmente, a questão de saber se o apelante tem direito a receber as rendas em singelo, durante os 34 meses em que esteve privado do imóvel por não lhe ter sido restituído pelo herdeiro-Estado, logo após a caducidade do arrendamento por morte da arrendatária – como na sentença se decidiu – ou, se terá direito a receber tal quantia, em dobro, por existência de mora – nº2 do art. 1045º do Código Civil.
Logo que “por qualquer causa” finde o contrato o locatário é obrigada a restituir a coisa locada; se o não fizer constitui-se na obrigação de pagar, a título de indemnização, a renda estipulada até ao momento da restituição, a menos que haja fundamento para consignar em depósito a quantia devida – cfr. art. 1045º, nº1, do Código Civil.
O nº2 deste normativo consigna -“ Logo porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada para o dobro”.
Realidades distintas são a mora no pagamento da renda, e a mora ou atraso na entrega da coisa locada.
“...Se, findo o contrato, houver mora do locatário na obrigação de restituir a coisa, a indemnização é elevada para o dobro da quantia estipulada como renda. Assim, a mora prevista no nº2 do artigo 1045º é também a mora na restituição da coisa e não apenas a mora no pagamento da indemnização referida no nº1 do mesmo artigo” – Ac. da Relação de Lisboa de 18.11.1999,in CJ., 1999, V, 95.
Entendemos que não restituindo ao senhorio o imóvel locado, 34 meses após a data em que o devia ter feito – a da morte da locatária – o Estado incorreu em mora, quanto à obrigação de restituição, e, por isso, constituiu-se na obrigação de pagar a quantia devida como “renda” em dobro, ou seja, o total de 405.756$00.
Decisão:
Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e decretando-se que o apelante tem direito aos créditos que reclamou, no total de 4.079.556$00, ou 20.348,74 Euros.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
Porto, 1 de Julho de 2002
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale