EXECUÇÃO DE SENTENÇA
EMBARGOS DE EXECUTADO
CONSIGNAÇÃO EM DEPÓSITO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Sumário

I - A consignação em depósito, enquanto causa de extinção de uma obrigação, só é admissível se quem a requer não tiver dúvidas da existência da mesma, ou seja, se apresente como efectivo devedor.
II - Havendo várias acções pendentes, umas já julgadas e outras por julgar, onde se encontra controvertido não só o montante indemnizatório decorrente do acidente de viação, mas igualmente a própria existência dessa obrigação de indemnização, não é admissível o recurso à consignação em depósito por parte de quem não se reconhece como devedor - Ac. do STJ de 13/12/2000, in CJSTJ, III, 161.
III - Não tendo a acção de consignação (artigo 841 do Código Civil) a virtualidade de fazer com que o Fundo de Garantia Automóvel extinga a sua obrigação enquanto devedor, ela em nada contende com o direito que os exequentes estão a exercer, pelo que não se verificam os requisitos do artigo 279 do Código de Processo Civil.
IV - Diferente seria a situação se fosse pedida, ou decretada, a suspensão da instância nos embargos, até ao trânsito em julgado da sentença proferida nas acções apensadas, pois aí estaria em causa o direito do Fundo de Garantia Automóvel não pagar aos exequentes, enquanto não estivesse definida a sua responsabilidade - artigos 16 ns.1 e 2 do Decreto-Lei n.522/85, de 31 de Dezembro.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I) Maria ........, viúva, por si e na qualidade de legal representante de seus filhos menores - Laura ...... e Ricardo ........;
Paula ........, viúva, por si e na qualidade de legal representante de seu filho menor - Bruno ...........
Intentaram, em 15.3.1999, pelo Tribunal de ........., Execução de Sentença, na forma sumária, contra:
Fundo da Garantia Automóvel.
Alegando:
- foi proferido, em 3/2/99, Acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, transitado em julgado, que confirmou os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto e do Tribunal Colectivo .........., proferidos na Acção Sumária nº.../...
- o executado foi condenado a pagar às exequentes as seguintes quantias:
- para a exequente Maria ......... e filhos 19.172.600$00.
- para a exequente Paula ........ e filho 17.660.600$00;
- o executado foi condenado a pagar juros, à taxa de 10% ao ano, desde a sua citação, em 12.4.96, até ao efectivo pagamento;
- os juros vencidos até ao presente são: para a exequente Maria ........ e filhos a quantia de 5.604.696$00; para a exequente, Paula ....... e seu filho, a quantia de 5.162.508$00, mais os vincendos, calculados à taxa de 10% ao ano, até ao efectivo pagamento.
- o executado não liquidou as quantias em que foi condenado, daí a presente execução.
Termos em que, requereu que, apensado à acção declarativa, fosse determinada a penhora do dinheiro depositado na conta do executado, aberta na Direcção das Grandes Empresas Institucionais, no Banco ......, para pagamento à exequente Maria ....... da quantia de 19.172.600$00 e juros vencidos de 5.604.696$00, e, à exequente Paula ....... da quantia de 17.660.600$00 e juros vencidos de 5.162.508$00, bem assim, juros vincendos à taxa legal, desde a entrada da presente execução em juízo até ao efectivo pagamento, sobre o capital em dívida a ambas as exequentes e o mais legal, seguindo o processo os demais termos até final.
II - O Executado embargou, com o fundamento essencial de que a indemnização a que se refere a execução emerge da responsabilidade do FGA em indemnizar os exequentes, por via de um acidente de viação:
- sucede que o mesmo acidente provocou outras 4 vítimas mortais que instauraram, pelo Tribunal de .......... as respectivas acções, cujos pedidos no total ascendem a 132.228.540$00;
- este valor ultrapassa, em muito, a quantia pela qual o embargante é globalmente responsável – 35.000 contos por lesado e 50.000 contos no caso de vários lesados - pelo que a procederem as acções sempre terá que haver lugar a rateio – art. 16º, nº1, do DL. 522/85, de 31.12;
- daí que os exequentes apenas possam exigir parte da indemnização em que foram condenados;
- visando a salvaguarda dos demais lesados, o embargante intentou acção de Consignação em Depósito – nº.../.. – pelo .. Juízo da Comarca de ........, da quantia por que, na totalidade, pode ser responsabilizado – 50.000 contos;
- nas quatro acções apensadas, pendentes naquele Tribunal, foi decretada a suspensão da instância, até decisão no processo da consignação em depósito, por se entender que este é causa prejudicial em relação àquelas acções e também à execução embargada;
- não foi proferida sentença, ainda, na processo de consignação.
Concluiu, pedindo pela procedência dos embargos, ou a assim se não entender, requereu a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da sentença a proferir no processo de consignação em depósito, ou nas acções pendentes e apensadas entre si.
III) Os exequentes contestaram, alegando no essencial, que inexistia fundamento legal, tanto para a oposição por embargos, como para a suspensão da instância.
IV) Por despacho de fls.136 verso, de 24.11.1999, foi ordenada a suspensão da instância, até ser decidida a acção de Consignação em Depósito nº.../.., então em fase de recurso.
V) As exequentes recorreram de tal despacho que foi mantido por Acórdão desta Relação, de fls. 155 a 158, de 28.3.2000;
VI) Entretanto, a decisão proferida no processo .../.. que havia subido em recurso a esta Relação e depois ao STJ, foi apreciada – cfr. de fls. 176 a 191, sendo o Ac. do STJ, de 8.3.2001 – tendo sido recusado fundamento para a consignação em depósito em tal processo, pelo que, a fls. 162, as exequentes requereram a prossecução dos embargos;
VII) Notificada o Embargante/FGA, nos termos do despacho de fls. 192, para se pronunciar, veio, a fls. 193, em 4.6.2001, afirmar que não obstante ter decaído na acção de Consignação em Depósito .../.., por ter sido, entretanto, proferida sentença na acção sumária e apensos nº .../.. – ainda não transitada por se achar em fase de recurso – se encontrava removido obstáculo que impedia a consignação, pelo que o embargante iria promovê-la “agora com fundamentos adequados”, reiterando que se impunha “manter a suspensão da instância com os fundamentos em que inicialmente foi decidida”;
VIII) As exequentes, por requerimento de fls. 195, opuseram-se ao requerido pelo FGA;
IX) Por despacho de fls. 197, foi ordenado ao embargante que explicitasse se tinha intentado ou não nova acção de consignação em depósito visando, assim, esclarecer o seu pedido de suspensão da instância;
X) O embargado informou que, em 18.9.2001, intentara nova acção especial de Consignação em Depósito - cfr. fls. 199 a 208 - no valor de 50.000 contos, onde além do mais, indicava o rateio que deveria ser feito;
XI) As embargadas pronunciaram-se – fls. 291 a 294 - pugnando pelo indeferimento da suspensão da instância, louvando-se nos fundamentos do Acórdão do STJ proferido nos autos e pedindo a condenação do FGA, como litigante de má-fé, em multa e indemnização;
XII) A fls. 302, em 10.12.2001, foi informado que a nova acção de Consignação em Depósito tinha o nº..../.. e que se achava a aguardar o cumprimento do despacho que ordenava o cumprimento do art. 1025, nº1, do Código de Processo Civil.
XIII) Por despacho de fls. 302 e verso, daquela data, a Senhora Juíza suspendeu a instância, ao abrigo do disposto no art. 279º, nº1, do Código de Processo Civil, até ser proferida decisão em tal acção, considerando que esta é causa prejudicial, relativamente à execução embargada.

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Inconformada recorreram as exequentes/embargadas que, alegando, formularam as seguintes conclusões:
1ª - Não existe causa prejudicial dada a nova acção intentada se apresentar como caso julgado e já devidamente indeferida a pretensão da recorrente.
2ª- A suspensão foi intentada para ganhar tempo no pagamento das indemnizações devidas às embargadas e tão só.
3ª- O despacho recorrido violou os arts. 1º e 2º do art. 279º do Código de Processo Civil.
Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso e revogar-se o despacho recorrido dando- se continuidade aos autos, fazendo-se, assim, Justiça.
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O recorrido contra-alegou, pugnando pela confirmação do decidido no despacho posto em crise.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir tendo em conta que a matéria de facto relevante é a que se elencou sob os itens I) a XIII), que aqui se tem por reproduzida.
Fundamentação:
A questão objecto do recurso, delimitada pelo teor das conclusões que balizam o respectivo âmbito de conhecimento, consiste em saber se, no quadro circunstancial descrito, poderia ser determinada a suspensão da instância por prejudicialidade.
Em síntese a questão é a seguinte, no dia 31.3.1995, houve um grave acidente de viação que provocou cinco mortos.
As ora recorrentes demandaram o FGA e, talvez porque mais pressurosas, obtiveram sentença transitada que condenou esta entidade a indemnizá-las em valores que quase esgotam a sua responsabilidade legal.
Entretanto, o FGA é alvo de quatro acções que vieram a ser apensadas, em que o total dos pedidos ascende a 143.514.520$00.
O FGA intentou acção de consignação em depósito na perspectiva de, sendo condenado, ter que ratear a quantia máxima legal de 50.000 contos que lhe incumbirá pagar.
Tal pretensão foi indeferida na Relação e no STJ, por doutos Acórdãos, que no essencial consideraram que não tendo transitado em julgado as outras acções, não se pode considerar, ainda, que o FGA tenha que pagar aos demais AA., nas acções pendentes, quaisquer quantias – logo, nem sequer se pode considerar devedor – e, por isso, foi considerado não ocorrerem os fundamentos da consignação.
Desde o tempo em que assim se sentenciou, ocorreu o facto de o FGA ter sido condenado nas outras acções apensadas, sendo que a sentença não transitou em julgado, por dela ter recorrido o Fundo.
Baseado nessa nova condenação, que robustece o seu receio de, condenado definitivamente, ter que pagar quantia que excede largamente o capital por que é responsável, o FGA intentou nova acção de consignação e pediu de novo a suspensão da instância, pretensão que lhe foi deferida.
Vejamos.
Antes de mais cumpre referir que o FGA é uma instituição criada pelo DL. 522/85, de 31.12, que exerce uma função social de grande importância, competindo-lhe proceder ao pagamento de indemnizações emergentes da sinistralidade automóvel, nos casos prevenidos no citado diploma legal.
Ao tempo em que ocorreu o acidente, o FGA apenas poderia ser responsável pelo pagamento de indemnizações, até ao limite de 35.000.000$00 por lesado, ou 50.000.000$00 no caso de coexistência de vários lesados.
O art. 16º nº1 do citado diploma estatui:
“1. Se existirem vários lesados com direito a indemnizações que, na sua globalidade, excedem o montante do capital seguro, os direitos dos lesados contra a seguradora ou contra o Fundo de Garantia Automóvel reduzir-se-ão proporcionalmente até à concorrência daquele montante.
2. A seguradora ou o Fundo de Garantia Automóvel que, de boa-fé e por desconhecimento da existência de outras pretensões, liquidar a um lesado uma indemnização de valor superior à que lhe competiria nos termos do número anterior não fica obrigada para com os outros lesados senão até à concorrência da parte restante do capital seguro”.
O nº1 deste normativo impõe a obrigatoriedade de rateio, e do nº2 decorre que, esgotando o FGA o capital por que é responsável, liquidando a um lesado indemnização que, por exemplo, esgote o capital, caso tenha agido de boa-fé, não está obrigado a pagar a outros lesados qualquer montante por o ter esgotado, quando ignorava (sem culpa) existirem outros lesados.
No caso dos autos, os embargados, por circunstâncias que ao caso não interessam, viram, antes de outros lesados, as suas pretensões indemnizatórias contra o FGA acolhidas por sentença transitada em julgado.
O FGA, ulteriormente, foi confrontado com novas quatro acções em que são formulados pedidos que quase triplicam o capital que, por lei, terá que pagar existindo vários lesados.
Se pagar aos embargados jamais poderá proceder ao cumprimento da lei, rateando entre os demais a quantia que remanescer, se alguma quantia remanescer, uma vez que os juros de mora vão crescendo diariamente.
Ninguém imputa ao FGA que tenha agido com negligência, por desconhecer a existência de outros lesados; logo que soube da eminência de provável condenação, procurou nos termos da lei tratar todos os lesados por igual, consignando em depósito a quantia de 50.000 contos.
Nos doutos Acórdãos que apreciaram da viabilidade da consignação, como meio do FGA se livrar da sua obrigação, foi essencialmente considerado que, por nas outras acções as decisões ainda não terem transitado em julgado, nem sequer o FGA se pode considerar devedor aos demais lesados.
Cumpre ponderar que nas acções (apensadas) cuja sentença foi condenatória do FGA - cfr. fls. 268 a 283 – a responsabilidade do Fundo, no essencial, dependia da apreciação dos mesmos factos que estiveram na base do êxito da sentença dos exequentes, pelo que é muito provável que o Fundo seja condenado.
O art.841º do Código Civil estabelece:
“1. O devedor pode livrar-se da obrigação mediante o depósito da coisa devida, nos casos seguintes:
a) Quando, sem culpa sua, não puder efectuar a prestação ou não puder fazê-lo com segurança, por qualquer motivo relativo à pessoa do credor;
b) Quando o credor estiver em mora.
2. A consignação em depósito é facultativa”.
Na acção de consignação, pela segunda vez intentada pelo FGA, este é já sabedor das quantias em que foi condenado nas acções apensadas – não tendo tal sentença transitado em julgado.
Nessa acção alega no artº11º, que assume o compromisso de desistir do recurso que interpôs e garantir o trânsito em julgado da decisão, desde que, decretada a consignação.
Mas este comportamento que, com o devido respeito, parece uma proposta feita ao Tribunal; não tem o mérito de enquadrar a situação na previsão do citado normativo do Código Civil.
O que há de novo nesta acção, relativamente à anterior, é que agora o FGA está condenado a pagar quantias que largamente excedem o valor máximo – 50.000 contos – por cujo pagamento é responsável, pelo que, a confirmar-se a sentença, propôs aos lesados uma base de rateio que por eles não foi aceite.
Dir-se-ia que o FGA tendo recorrido da sentença não é um devedor, confessadamente, das indemnizações fixadas nas acções apensadas.
A consignação em depósito, só é permitida ao devedor, nos casos do art. 841º do Código Civil, sendo que o facto de a não poder efectuar com “segurança”, se refere à pessoa do credor; essa segurança não se refere à existência objectiva do direito, mas, repete-se, à pessoa do credor.
O consignante tem de ter dúvidas sérias – não motivadas por culpa sua – em relação a quem deve satisfazer a prestação (ao credor dela), muito embora tenha que ter por certa a existência da obrigação.
No caso dos autos, o FGA, enquanto a sentença não transitar em julgado, não pode afirmar que tem dúvidas em relação à pessoa do credor; o que acontece, é ainda não estar certa, nem ser por isso exigível a obrigação de indemnizar a seu cargo.
Para que a consignação fosse válida o FGA teria que confessar dever aos demais lesados indemnizações.
Mas este facto não é admitido pelo Fundo, que apenas o tem como uma probabilidade.
“I – A consignação em depósito, enquanto causa de extinção de uma obrigação, só é admissível se quem a requer não tiver dúvidas da existência da mesma, ou seja, se apresente como efectivo devedor.
II – Havendo várias acções pendentes, umas já julgadas e outras por julgar, onde se encontra controvertido não só o montante indemnizatório decorrente do acidente de viação, mas igualmente a própria existência dessa obrigação de indemnização, não é admissível o recurso à consignação em depósito por parte de quem não se reconhece como devedor”- Ac. do STJ, de 13.12.2000, in CJSTJ, III, 161. [este Acórdão foi proferido nos autos - Volume I - dos Embargos de Executado].
Cremos assim, que pela via da consignação a sua pretensão não pode proceder.
Quanto à existência de prejudicialidade entre a execução e a nova acção de consignação em depósito.
Não sendo admissível, pelas razões invocadas, a nova acção de consignação, nem sequer é cabido falar-se em relação de prejudicialidade entre ela e execução embargada.
Afirma o agravado, nas suas contra-alegações, que tal nexo existe, porquanto na nova consignação aceita a sua responsabilidade e obrigação, relativamente a todos os lesados tendo proposto até uma fórmula para se proceder ao rateio.
Mas não é rigorosa a alegação.
O FGA recorreu da sentença; é certo que propôs a tal fórmula, mas condicionou tudo ao facto de ser atendida a consignação, comprometendo-se a desistir desse recurso, o que vale por dizer que o FGA não assume, inequívoca e claramente a sua condição de devedor.
Ai invés, através do recurso, pretende até ser absolvido da condenação que lhe foi imposta nas acções apensadas.
Não tendo a acção de consignação a virtualidade de fazer com que o FGA extinga a sua obrigação enquanto devedor, ela em nada contende com o direito que os exequentes estão a exercer; por isso, não se verificam os requisitos do art. 279º do Código de Processo Civil.
Diferente seria a situação, se fosse pedida ou decretada, a suspensão da instância nos embargos, até ao trânsito em julgado da sentença proferida nas acções apensadas, pois aí estaria em causa o direito do FGA não pagar aos exequentes, enquanto não estivesse definida a sua responsabilidade - art. 16º, nºs 1 e 2, do DL 522/85, de 12.12.
Decisão:
Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que considere cessada a suspensão da instância, devendo os embargos prosseguir os seus termos.
Sem custas, por delas estar isento FGA.
Porto, 8 de Julho de 2002
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale