EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
LETRA
EXTRAVIO
TRIBUNAL
FOTOCÓPIA
Sumário

Uma execução para pagamento de quantia certa pode prosseguir com base em simples fotocópia de letra de câmbio, como título executivo, se houver indícios de que o original da letra foi apresentado com o requerimento inicial da execução mas veio a desaparecer, no tribunal, por causa não imputável ao exequente.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de Execução Para Pagamento de Quantia Certa, que, sob a forma ordinária, a exequente “R......., Ldª” , em 21.11.2000, move a:
António ......... e G........
Pretende a Exequente obter dos Executados a cobrança da quantia de 766.295$00, sendo 763.000$000 de capital, acrescida de juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento, alegando a existência de uma dívida dos executados, titulada por uma letra de câmbio, emitida em 25.7.2000, e vencida em 25.9.2000, de que é sacadora (a exequente) e sacados-aceitantes os executados.
A fls. 8 dos autos, surge lavrada cota onde a Secção informa que a petição inicial não se fazia acompanhar do original do documento n°1 – a letra de câmbio – ali invocada, mostrando-se juntas com os duplicados meras fotocópias do mesmo.
Face a tal informação, foi ordenada pelo Tribunal, a notificação da Exequente para juntar aos autos o original da letra de câmbio referida como documento nºl, mencionada no art. 2° do seu requerimento executivo.
Em resposta, alegou a Exequente que o original em causa foi entregue na Secção Central do Tribunal, no momento da apresentação do requerimento executivo, e que tudo foi conferido na Secção Central, nenhuma objecção tendo sido posta à recepção da petição executiva e dos documentos com ela juntos, tanto mais que foi passada guia para pagamento da taxa de justiça.
[Como se vê de fls.7 a guia foi emitida em 23.11.2000 e paga em 4.12.2000].
Mais peticiona que, caso não seja o mesmo encontrado, se proceda à reforma do título.
A Sr.ª. Funcionária da Secção Central, que recebeu o requerimento executivo, prestou informação nos autos (fls. 16), na qual adianta que não há sinal de o original em falta ter sido junto, no momento da apresentação do requerimento executivo nos serviços, aludindo a que nos originais e nas cópias da petição inicial há marca de um outro agrafo diferente do que anexa agora a petição inicial, concluindo, assim, que os documentos foram desagrafados e agrafados novamente.
Nessa informação diz-se: “...Aquando do recebimento dos requerimentos tem-se por norma verificar a junção dos mencionados documentos”.
Ora, se ante tal verificação, se não detectou a falta do original da letra de câmbio, não é ousado supor que ela estava lá.

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O Senhor Juiz proferiu despacho a indeferir liminarmente a petição por falta de título executivo, essencialmente, por entender que não pode valer como tal, mera fotocópia da letra não estando minimamente comprovada nos autos a impossibilidade de junção do original do título e, partindo do princípio de que a letra poderia ser invocada como quirógrafo da obrigação, ela constituiria título executivo, bastando então à exequente juntar “cópia certificada do documento particular” em questão, para que se concluísse possuir “título formalmente válido para a sua pretensão processual”.
Como a cópia certificada não foi junta, mas apenas mera fotocópia, afirmou inexistir título executivo.
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Inconformada recorreu a exequente que, alegando, formulou as seguintes conclusões:
I. A aqui recorrente deu entrada na Secção Central do Tribunal “a quo” de requerimento executivo contra os aqui recorridos, reclamando o pagamento de uma letra de câmbio;
II - Com o referido requerimento executivo juntou o original da letra de
câmbio em questão e respectivos duplicados legais;
III - Com efeito, a posse da letra é indispensável ao exercício do direito nela mencionado, com vista à efectivação do seu direito cambiário;
IV - Na verdade, um dos caracteres que dominam as obrigações cambiárias e que lhes dão fisionomia própria é a incorporação da obrigação no titulo;
V- A letra é um documento comercial que constitui o próprio fundamento do direito nela mencionado;
VI- Sendo esse princípio geral que decorre do direito cambiário, só o portador do original da letra é que pode obviamente reclamar o pagamento da mesma;
VII- Pelo que, mesmo que se considere a possibilidade de situações excepcionais em que se justifica o uso da cópia autenticada da letra como título executivo, nunca o âmbito dessas situações abarcaria o caso “sub-judice”;
VIII- Com efeito, tais situações excepcionais, de força maior alicerçam-se no facto do exequente não dispor do original por razões que não lhe são imputáveis;
IX- Ora, a Recorrente deu entrada na Secção Central do Tribunal “a quo” de requerimento de execução e respectivos duplicados;
X- Quando da entrega do original e respectivas cópias foi feita a conferência dos documentos juntos, original e duplicados, bem como a análise sumária do requerimento de execução;
XI- Tudo foi recebido sem reparo, ou seja, o original e duplicados;
XII- Mais, foi emitida a respectiva guia para pagamento do preparo respectivo e não foi feita qualquer chamada de atenção pela Secção;
XIII- Entregue o original da letra nas condições acima mencionadas, deverão as autos prosseguir mediante a reforma da letra de câmbio em questão;
XIV- Não existe, “in casu”, fundamento para indeferir liminarmente o requerimento de execução;
XV- Foi, assim, violado o art. 811° do Código de Processo Civil;
XVI- Mais, não pode agora o Tribunal exigir que a aqui Recorrente proceda à junção aos autos da cópia autenticada da referida letra, como se a Recorrente tivesse sido desapossado da letra;
XVII- Aliás, tal solução violaria, “in casu”, o princípio da incorporação - cfr. arts. 39°, 45°, 46° e 50° da LULL;
XVIII- Deve em conformidade, revogar-se a sentença recorrida que indeferiu liminarmente o requerimento executivo nos termos do art. 811°-A- al. a) do Código de Processo Civil por falta de título executivo, prosseguindo os autos para execução mediante a reforma da letra.
Termos em que, no provimento do agravo, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que julgue em conformidade com as conclusões anteriores.
Assim decidindo, far-se-à Justiça.
Não houve contra-alegações.
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O Senhor Juiz sustentou o seu despacho, acrescentando que a “Reforma do Título”, pedida pela exequente, é inviável por lhe caber processo especial – arts. 1069º e segs. do Código de Processo Civil – pelo que não poderia ocorrer no âmbito da execução.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir tendo em conta que a matéria de facto relevante é a que consta do Relatório, acrescendo que, por solicitação deste Tribunal, o Tribunal recorrido enviou fotocópia certificada do duplicado da letra existente em arquivo – art. 152º, nº5, do Código de Processo Civil – e que consta de fls. 51.
De tal documento pode concluir-se que se trata de uma letra de câmbio sacada pela exequente, pelo valor de 763.000$00, em 2000.7.25, com vencimento aprazado para 2000.9.25, sendo sacado o executado, e constando no lugar destinado ao aceite, a assinatura deste e da executada G.........; no verso, consta um carimbo com a menção - “Sem Despesas”- e o carimbo da exequente e assinatura da gerência desta, bem como a expressão –“Efeito entrado em carteira em 2000.08.02, no Banco ......”.
Fundamentação:
A questão objecto do recurso, aferida pelo teor das conclusões do recorrente – que recortam o respectivo âmbito de conhecimento – consiste em saber se, no quadro factual em causa, se impunha o indeferimento liminar por falta de título executivo – e, a assim se não entender, se há lugar à reforma do título.
O melindre da questão começa pelo facto de a exequente afirmar ter entregue no Tribunal recorrido o original da letra junto com a petição inicial, resultando do processo que o documento aí não existe, sendo que as explicações do Tribunal recorrido quase deixam entrever que o extravio do documento ocorreu na instituição.
Decorre do art. 152º, nº3, do Código de Processo Civil que a secretaria do Tribunal onde são recebidas as peças processuais, mormente, no que se refere à admissão da petição inicial, tem o dever de verificar a regularidade dos documentos e duplicados, já que a citação, excepto os casos previstos no art. 234, nº4, do citado diploma, é feita oficiosamente sem precedência de despacho judicial, como sucede no processo executivo –cfr. ainda, nº1 do citado preceito.
Tendo a petição sido apresentada pessoalmente, no Tribunal recorrido, e não tendo sido detectada qualquer falta, tudo leva a crer que o original tivesse sido entregue; tal transparece da informação prestada a fls.16, que nem sequer recusa a possibilidade de tal não ter acontecido, referindo a Senhora Funcionária que prestou a informação, que ela e um outro funcionário “acordaram em fazer buscas exaustivas”.
Notificado o mandatário da exequente para juntar o original da letra, afirmou ele tê-lo feito, aquando da entrega dos documentos na Secção, pelo que não dispunha de tal documento.
O Senhor Juiz, pelas razões antes indicadas, considerou não dispor a exequente de título executivo e indeferiu liminarmente a petição, até pelo facto de a exequente nem sequer ter junto fotocópia certificada da letra.
Esta referência parece ter que ver com a possibilidade de o título poder estar a ser invocado pela exequente como quirógrafo da obrigação, o que lhe conferiria força executiva, desde que o exequente tivesse invocado, na petição executiva, qual o fundamento jurídico que esteve na base da emissão do título.
A execução deu entrada em juízo em 21.11.2000, menos de dois meses após o vencimento do título.
Ora, sendo a execução movida pelo sacador contra o aceitante, o prazo de prescrição, nos termos do art. 70º § 1º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças -LULLL- é de três anos, pelo que, nada alegando a exequente na petição, no sentido que não estava usando o documento como título cambiário, mas como mero documento particular dotado de força executiva - art. 45 c) do Código de Processo Civil na redacção da Reforma de 1995/96, parece, salvo o devido respeito, incorrecto afirmar que o documento poderia ter sido invocado como quirógrafo da obrigação.
Pelos prazos de vencimento do título e do recurso a juízo, a letra estava longe de estar prescrita pelo que, “prima facie”, estaria dotada de força executiva, nos termos da LULL.
É certo que, tratando-se de execução cambiária e atento princípio da incorporação que vigora no regime cambiário, a posse, “in casu”, da letra era condição essencial para o exercício do direito de crédito consubstanciado do documento cartular.
No Acórdão do STJ. de, 10.11.1993, in CJSTJ, III, 127 decidiu-se:
“É princípio geral de direito cambiário o de que a posse da letra é condição indispensável ao exercício do direito nela mencionado, e, por isso, o exequente para efectivar o direito cambiário deve estar na posse da letra, não bastando a sua fotocópia, ainda que certificada pelo notário”.
O Acórdão daquele Alto Tribunal, de 27.9.114, in BMJ-439/605 considerou que:
“...Salvo caso de força maior, não pode ser reconhecida exequibilidade a fotocópias de livranças, ainda que autenticadas”.
No mesmo sentido decidiu o Acórdão desta Relação do Porto, de 15.6.1998, in CJ, 1998, II, 194.
Mais, recentemente, o STJ, em seu Acórdão de 28.2.2001, in CJSTJ, 2001, I, 100, sentenciou:
“I - A posse da letra de câmbio envolve condição necessária para o exercício do direito nela integrada, em conexão com o princípio da incorporação, característico do regime cambiário.
II- Contudo, excepcionalmente, é justificado o uso de cópia autenticada da letra como título executivo, mesmo que a cópia não indique a pessoa em cuja posse se encontre o original, e desde que não haja quebra do princípio da boa-fé e da segurança devida ao devedor, quando se verifique a impossibilidade do exequente dispor do original por razões que lhe não sejam imputáveis”.
O art. 67º da LULL não exclui a possibilidade de o portador de uma letra poder tirar cópias dela, regulando o art. 68º a que requisitos deve obedecer tal procedimento.
Mas tal hipótese, manifestamente, não é a dos autos.
A questão fulcral que o recurso coloca, e que se nos afigura inultrapassável, é a que o original da letra desapareceu, ao que tudo indica no Tribunal recorrido, por causa não imputável à recorrente.
Assim e, desde logo, a exequente está impossibilitada de proceder nos termos sugeridos no despacho – apresentação de fotocópia certificada - porque a certificação pressupõe a exibição, logo a posse, do documento a certificar, o que é impossível.
Nos termos do art. 161º, nº6, do Código de Processo Civil – “Os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes”.
Ora, o extravio no Tribunal do original da letra - que tudo leva a crer foi junta com a petição inicial - não pode prejudicar o direito que a exequente se propunha exercer.
A situação é insuperável porque, inexistindo o original do título, não pode proceder-se à apresentação do documento para certificação notarial.
Daí que, para que a exequente não seja irremediavelmente prejudicada, em termos até de celeridade, só se entrevê uma solução, qual seja a de execução seguir os seus termos com base na fotocópia da letra que foi fornecida pelo Tribunal recorrido – o que de todo não parece prejudicar os executados – que tendo sido citados, para a execução e para o recurso, disporão de cópias de tal documento.
A perda ou extravio pelo Tribunal do documento, que é invocado como título executivo, sem culpa da parte e em circunstâncias que inviabilizam, sequer, a apresentação de cópia certificada do documento, é de equiparar, objectivamente, a caso de força maior.
E, porque não pode a exequente ser prejudicada pelo acto da secretaria, a única via que se abre para a legítima defesa dos seus direitos é admitir a execução com base na fotocópia do documento certificado pelo Tribunal, que é fotocópia do original.
Os executados tendo sido citados para os termos da execução, poderão deduzir a oposição que tiverem por pertinente, sendo certo que, no caso em apreço, tem de se considerar que, por força das circunstâncias, a exequente não está desprovida de título executivo, pelo que, com o devido respeito, se não justifica o indeferimento liminar da petição executiva.
É certo que o art.484º do Código Comercial prevê a reforma de títulos de crédito, tramitando o processo segundo a ritologia prevista no art. 1069º a 1071º do Código de Processo Civil.
Todavia, no quadro circunstancial descrito, “obrigar” a exequente a recorrer, autonomamente, ao moroso processo previsto nos aludidos normativos constitui um prejuízo e, no caso em apreço, a adoptar-se tal solução, ainda aí a parte seria prejudicada, por acto da secretaria judicial.
Não é processualmente viável, nem sequer ao abrigo do princípio da adequação formal – art. 265º-A do Código de Processo Civil, proceder à reforma do documento em falta, nos termos do processo previsto no art. 1069º e segs. do referido diploma – face à flagrante disparidade da ritologia processual entre os dois tipos de processo.
Decisão:
Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que ordene a tramitação da execução com fundamento excepcional no documento de fls. 51, tendo-se em conta que, nos termos do art. 234-A, nº4, do Código de Processo Civil, os executados devem ser notificados da revogação do despacho de indeferimento liminar “sub-judice”, iniciando-se, desde tal notificação, o prazo de que dispõem para embargar.
Sem custas.
Porto, 30 de Setembro de 2002
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale