REIVINDICAÇÃO
PENHORA
PRÉDIO
OBJECTO
COMPRA E VENDA
REGISTO PREDIAL
PREVALÊNCIA
ESCRITURA PÚBLICA
Sumário

O adquirente de um imóvel, por via de um processo executivo, não deve, para efeitos de registo predial, ser considerado terceiro em relação a um anterior adquirente, por via de escritura pública, do mesmo imóvel, mas com o registo da aquisição posterior ao registo da penhora, pelo que este adquirente pode opor àquele o seu direito de propriedade cuja aquisição foi operada pela escritura, e não pelo registo predial.

Texto Integral

Relatório

No Tribunal Judicial de Matosinhos, Maria..., acompanhada posteriormente pelo interveniente, seu marido, António..., intentou a presente acção declarativa com processo ordinário, contra, D...-Participações e Investimentos S.A. e Incertos, pedindo se declare que, relativamente ao imóvel identificado no artigo 1º da p.i., se radicou nos AA. o direito de propriedade originária, ou, de qualquer modo, seja reconhecida essa propriedade, dada a validade e suficiência do título aquisitivo derivado e a anterioridade do mesmo face ao registo de penhora, condenando-se os RR a fazer a entrega da dita fracção aos AA. e ordenando-se o cancelamento dos registos da penhora e da aquisição a favor da Ré (considerou-se já a ampliação do pedido de fls. 119).

Em fundamento da sua pretensão alegaram, no que aqui interessa considerar a seguinte factualidade:
- Em 13 de Maio de 1983, o interveniente António..., marido da A., adquiriu por compra, titulada por escritura pública, à sociedade "C...-Sociedade de Investimentos Imobiliários Ldª" o prédio (fracção) identificado no artigo 1º da p.i. (cfr. certidão de fls. 101/106).
- Em execução pendente na 2ª Secção do 9º Juízo, em que figura como exequente Joaquim... e executado "C...-Sociedade de Investimentos Imobiliários Ldª", foi penhorado em 3/2/94, o referido imóvel, tendo a penhora sido registada em 9 de Março de 1994 (cfr. certidão de fls. 9 e seguintes).
- Só em 12 de Fevereiro de 1997 é que o interveniente registou a aquisição da referida fracção (cfr. certidão de fls. 9 e seguintes).
- A Ré "D..." adquiriu a mesma fracção por arrematação em processo de execução, e registou essa aquisição em 26 de Janeiro de 1999.

Após os articulados, foi proferido saneador-sentença, que, conhecendo do mérito, julgou a acção procedente, e consequentemente, declarou que o direito de propriedade, sobre a fracção em causa se radicou na esfera jurídica dos AA., condenando a Ré a fazer a entrega da fracção aos AA. e ordenando o cancelamento do registo de aquisição a favor da ré.

É desta decisão que, inconformada, recorreu a Ré "D...", recurso que veio a ser admitido como de apelação com efeito suspensivo.

Conclusões

Apresentadas tempestivas alegações, formulou a apelante as seguintes conclusões:
A- A sentença recorrida padece de um erro de enquadramento jurídico do litígio;
B- O problema em discussão nos autos é o do conflito entre dois adquirentes do mesmo transmitente;
C- Os apelados adquiriram mas não registaram o facto aquisitivo antes do registo da penhora;
D- A apelante adquiriu o imóvel através da venda judicial, livre de quaisquer direitos reais com registo posterior do da penhora;
E- Como o registo efectuado pelos apelados é posterior ao da penhora, o seu alegado direito de propriedade caducou por via da venda judicial (art. 824 n.2 do C.C.),
F - Deverá, pois, prevalecer a posição jurídica da apelante, mantendo-se eficaz a inscrição registral da aquisição do seu direito de propriedade G-2, feita pela ap.....

Foram violados os arts. 824 n.2 do C.C. e 5º, 6º e 7º do C. do Registo Predial.

Nas contra-alegações defende-se a confirmação do decidido, com o prosseguimento do processo com a elaboração de especificação e questionário, se assim não for entendido.

Os Factos

A factualidade a ter presente é apenas a que já se descreveu a respeito dos fundamentos da acção, no antecedente relatório, sendo certo que esses factos, estão provados no processo através dos competentes documentos.

Fundamentação

Conforme as conclusões, a questão estaria em saber se, no caso concreto se está perante um conflito entre dois adquirentes do mesmo transmitente ou se a resolução do caso passa pela averiguação sobre se o adquirente de um imóvel por via de um processo executivo deve ser considerado terceiro, para efeitos de registo predial (art. 5 n.1 do C. Reg. Predial), em relação a um adquirente anterior, mas com registo da aquisição posterior ao registo da penhora.
Não parece que seja esse o cerne da questão aqui a decidir, uma vez que em qualquer caso, a solução passará pela definição do conceito de terceiro para efeitos de registo e, por outro lado o caso concreto em análise é rigorosamente aquele que foi encarado pela decisão recorrida.

Ora, como se salientou na referida decisão a questão tem sido particularmente debatida na doutrina e jurisprudência, defendendo uns, um conceito alargado de terceiro e outros, um conceito mais restrito.
A polémica está exaustivamente exposta em dois acórdãos do S.T.J., uniformizadores de jurisprudência, daí que nos dispensemos de a historiar.
Assim, segundo o Ac. n. 15/97 de 21/5 -D.R.- 1ª Série de 4/7/97 -, que aderiu ao conceito mais amplo, "terceiros, para os efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito arredado por facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.
Por sua vez, revendo esta jurisprudência, foi tirado novo Ac. do S.T.J. (uniformizador) em 18/5/99 - Ac. n. 3/99 -D.R., 1ª Série, de 10/7/99 - que, optando pelo conceito mais restrito defendido por Manuel de Andrade, doutrinou que "terceiro, para efeitos do disposto no art. 5 do C. Reg. Predial, são os adquirentes de boa-fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa".

Foi esta última orientação que veio a ser perfilhada pelo C. do Reg. Predial aprovado pelo Decreto-Lei 533/99, que, reformulando a anterior redacção do art. 5, lhe introduziu um n. 4, segundo o qual "terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si".
Como, claramente resulta do próprio relatório, do citado D.L. e da anterior controvérsia sobre a matéria, trata-se de uma norma interpretativa e como tal de aplicação retroactiva, visto que, como diz o art. 13 nº 1 do C.C., "a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento de obrigações...".

Por conseguinte, encontrando-se em vigor o novo C. do Registo Predial, por força do n. 4 do seu art. 5, é lei vigente a orientação perfilhada pelo citado Ac. uniformizador de 18/5/99, a qual em consequência da sua retroactividade se aplica ao caso concreto.

E assim, facilmente se conclui que para efeitos de registo predial a Ré "D..." não pode ser tida, como terceira em relação ao negócio de compra e venda celebrado entre o interveniente A. e a executada "C..." pela escritura pública de 13/5/83, portanto em data anterior do do registo da penhora e à da aquisição da mesma fracção pela Ré, em arrematação no processo executivo.
De facto, quer em relação à penhora quer em relação à aquisição por arrematação em hasta pública, não pode dizer-se que os direitos do credor ou do arrematante e o direito de propriedade dos AA. tenham sido adquiridos do mesmo transmitente.
Defender o contrário parece-nos pura ficção jurídica, pois o que se passa na realidade das coisas é que, na penhora ou na subsequente arrematação não há a intervenção da vontade do executado, pois, não obstante ser ele o titular do direito, limita-se a suportar passivamente as consequências patrimoniais da penhora e venda executiva, que são actos coercitivos praticados pelo tribunal ao abrigo da lei.
Portanto, os direitos emergentes da penhora ou da aquisição em hasta-pública surgem para os respectivos titulares por força da lei e não do executado, pelo que, no caso de existirem 2 vendas - a venda executiva e outra anterior -, não pode dizer-se que ambos, entroncam em autor comum, não obstante a identidade do titular dos bens em causa.
Consequentemente, segundo esta orientação, que, pensamos ser a perfilhada pela lei, os AA. e a Ré "D..." não são terceiros entre si para efeitos de registo predial, daí que os AA. como anteriores adquirentes podem opôr o seu direito de propriedade à Ré, não obstante o registo de que beneficiam ser posterior ao registo da penhora.
De facto, como é sabido, no nosso C.C. o contrato de compra e venda tem eficácia real, o que significa que a constituição da transferência dos direitos reais sobre coisas determinadas dá-se por mero efeito do contrato (art. 408 do C.C.).
Assim, realizada a escritura pública de compra e venda de um imóvel, imediatamente o prédio que foi objecto desse negócio, sai da esfera patrimonial do vendedor, transferindo-se para a do comprador, por simples efeito do contrato e independentemente do registo da aquisição, que não é constitutivo no nosso direito. (Por isso mesmo, a sua eficácia entre as partes não depende do registo (art. 4º C. Reg. P.)).

Ora, segundo o disposto no art. 821 do C.P.C., estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, apenas podendo ser penhorados bens de terceiros nos casos especialmente previstos na lei e desde que a execução tenha sido movida contra eles.
Assim sendo, uma vez que, no caso concreto a penhora do imóvel em questão ocorreu em data muito posterior à transferência da sua propriedade, operada pela escritura de 13/5/83, é claro que a penhora recaiu sobre prédio que já não pertencia ao património da executada "C..." mas sim ao património dos AA. não lhes sendo o registo da penhora oponível, por o seu beneficiário não Ter a qualidade de terceiro para efeitos de registo aquela penhora sofre de nulidade não podendo prevalecer em confronto com o anterior direito de propriedade dos AA., o que arrastará a nulidade dos actos executivos subsequentes, designadamente a venda judicial.

Procede, assim, por esta via a acção, tal como se decidiu na sentença recorrida.

Todavia, como já se salientou, sustenta a Ré que a questão não pode ser assim equacionada pois, no caso, o que releva é apenas o conflito entre dois adquirentes do mesmo transmitente.

Também já se deixou dito que se entende que em casos como o dos autos, não será lícito, para efeitos do disposto no art. 5 n. 4 do C. Reg. Predial, considerar-se ser o mesmo o autor das 2 transmissões em confronto. Não ignoramos, no entanto, a existência de orientações diferentes, como a que vem defendida doutamente no Ac. de S.T.J. citado pela Ré nas suas alegações (Ac. de 7/7/1999 - Col. J. 1999 - 2ª - 164 e Seg.), nem se esquece que, o próprio Ac. uniformizador de 18/5/99 a que atrás aludimos vai no mesmo sentido, quando se trate de venda executiva já efectuada (nesta situação, segundo o acórdão, quer a 1ª transmissão, quer a 2ª, emergente de venda executiva, proviriam do mesmo transmitente).

Só que, mesmo então, não assistiria razão à Ré.
O douto acórdão de 7/7/99, citado pela Ré em abono da sua tese apreciou um caso de conflito entre uma aquisição anterior não registada e uma aquisição posterior (venda judicial) registada, e foi nessa perspectiva que entendeu fazer prevalecer a aquisição registada por aplicação directa do n. 4 do art. 5 do C. Reg. P..
Ora, no caso dos autos, equacionando-se a questão como quer a Ré, o confronto verifica-se entre a aquisição dos AA. registada definitivamente a seu favor em 12/2/1997 e a aquisição da Ré, conseguida por via de arrematação em execução, registada em 26/1/1999.

Assim sendo, ainda que se aceitasse que a Ré tem a qualidade de terceiro para efeitos do art. 5 do C. Registo Predial, tem de concluir-se que, então, os AA. podem opor-lhe a sua aquisição porquanto gozam da prioridade de registo (art. 6 do C. Reg. P.).
Chegar-se-ia, assim, por esta via, à mesma solução atrás referida.

Improcedem, pois, todas as conclusões da apelação.

Decisão

Termos em que acordam neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, por isso, a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Porto, 14 de Novembro de 2002.
António Manuel Machado Moreira Alves
José Joaquim de Sousa Leite
António Alberto Moreira Alves Velho