ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
Sumário

I - A imputabilidade diminuída pressupõe a existência de uma anomalia ou alteração psíquica que afecte o sujeito e interfira na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.
II - Se a frustração não é plena, mas antes diminuída, deve ser encarada ou nos termos do n.2 do artigo 20 do Código Penal, ou apenas no quadro da medida concreta da pena, porventura, por via dela, atenuada, ou, pelo contrário, agravada.
III - Podem haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não-atenuação ou mesmo à agravação da pena, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem particularmente desvaliosas e censuráveis, verbi gratia, em casos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da inconstância dos lábeis ou os da pertinácia dos fanáticos.
De qualquer modo, a consideração da imputabilidade diminuída só se justifica se puder ser afirmada uma base biopsicológica particularmente grave, permanente e incontrolável pelo agente nos seus efeitos.
IV - O elemento ou substrato biopsicológico (anomalia psíquica) é imprescindível à verificação, em concreto, de uma inimputabilidade ou de uma imputabilidade diminuída.
V - Se o arguido -de crime de abuso sexual de crianças- apresenta uma personalidade imatura, com traços que lhe conferem uma dimensão acrescida de fragilidade com dificuldades na socialização, mas não evidencia uma qualquer anomalia ou perturbação psíquica não há que convocar a consideração de uma imputabilidade diminuída.

Texto Integral

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I

1. No processo n.º .../... do ... Juízo Criminal de M....., após julgamento em processo comum e perante tribunal colectivo, por acórdão de 17 de Maio de 2002, foi o arguido Joaquim ..... condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 6 anos de prisão.

2. Inconformado, o arguido veio interpor recurso do acórdão, rematando a motivação apresentada com a formulação das seguintes conclusões:

«1. Face à prova produzida em audiência de julgamento e conjugados todos os elementos de prova existe contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

«2. A decisão recorrida violou o disposto no artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal.

«Se assim não se entender, o que se admite por hipótese, deverão V. Ex.ªs:

«3. Julgar diminuída a imputabilidade do arguido e condená-lo numa pena de prisão por 3 anos, suspendendo-se a execução da mesma por um período de 5 anos,

«4. sendo que ao arguido nesse período seriam impostas as obrigações que V. Ex.ªs entendessem adequadas ao caso em apreço,

«5. bem como o tribunal determinaria a sujeição do arguido a tratamento médico ou a cura em instituição psiquiátrica adequada, para o que tem desde já o consentimento do arguido.

3. Admitido o recurso e efectuadas as legais notificações, apresentou resposta o Ministério Público no sentido de o recurso ser rejeitado.

4. Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que, na parcial procedência do recurso, ao recorrente seja aplicada uma pena de prisão que não ultrapasse os 4 anos.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [Em diante referido pelas iniciais CPP], não foi apresentada resposta.
6. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência, que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões postas no recurso.

II

Cumpre decidir.

1. No caso, tendo sido observado o princípio geral de documentação na acta das declarações prestadas oralmente na audiência (artigo 363.º do CPP), os poderes de cognição deste tribunal abrangem matéria de facto e matéria de direito (artigo 428.º do CPP).

São, porém, as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que definem e delimitam o objecto do recurso e, assim, as questões que a relação é chamada a apreciar (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades ainda que não invocados ou arguidos pelos sujeitos processuais.

As conclusões formuladas pelo recorrente mostram-se muito deficientemente elaboradas, particularmente as conclusões 1. e 2., mas, integrando-as e completando-as com recurso à própria motivação, consegue alcançar-se a definição das questões que coloca e o sentido da sua pretensão.

As conclusões 1. e 2. se, numa rápida leitura, sugerem que o recorrente se situa no âmbito da impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, pelo menos no quadro dos vícios da decisão (contradição insanável entre a fundamentação e a decisão), quando integradas com recurso à própria motivação, reconduzem-se à questão da adequada valoração da personalidade do recorrente, nas perspectivas duma imputabilidade diminuída e da pena adequada à sua personalidade e que satisfaça as necessidades e exigências de prevenção especial.

Com efeito, na motivação, o recorrente não questiona os factos que foram dados por provados nem a qualificação jurídica dos factos a que se procedeu no acórdão (aparecendo, por isso, desligada de qualquer fundamentação subjacente a alegação contida na conclusão 2. de que a decisão recorrida violou o disposto no artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal).

Por outro lado, salientando os aspectos relativos à sua personalidade (essencialmente os que foram dados por provados no acórdão) o recorrente não impugna a sua condenação, invocando, designadamente, inimputabilidade ou falta de consciência da ilicitude, mas apenas a pena concreta em que foi condenado.

Temos, assim, que pelas conclusões 1. e 2, o recorrente reporta-se à questão da adequada valoração da sua personalidade, nas perspectivas de uma imputabilidade diminuída e da pena adequada à sua personalidade e que responda às exigências da prevenção especial, a ela se reconduzindo as restantes conclusões nas quais o recorrente a retoma enunciando as pretensões de ser reconhecida a sua imputabilidade diminuída e de ser condenado numa pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução, com as obrigações adequadas, designadamente, tratamento médico.

2. Antes de mais, vejamos o que consta do acórdão e releva no âmbito do objecto do recurso.

2.1. Foram dados por provados os seguintes factos:

«1.º O Rui ..... nasceu no dia 27-02-85.

«2.º O arguido é tio do Ricardo, um dos companheiros da escola do ofendido.

«3.º Desde os tempos da escola primária que o Rui ..... conhece o arguido, por ele frequentar a casa do Ricardo, de quem é vizinho.

«4.º O arguido, aproveitando as relações de confiança que estabelecia com os amigos do sobrinho Ricardo, convidava-os para ver filmes pornográficos, na sua residência.

«5.º Neste contexto, no período compreendido entre 1995 e meados de 1998, em datas não concretamente apuradas, o arguido convidou o Rui ....., por várias vezes, para ver os aludidos filmes em sua casa.

«6.º Por vezes o Rui ia sozinho, tendo ido algumas vezes com o Helder e o Tiago.

«7.º Em data indeterminada, mas certamente no ano de 1997 ou 1998, num dia ao fim da tarde, depois de entrar na casa do arguido, este fechou a porta da entrada à chave e, aproveitando-se de se encontrarem sozinhos e da inexperiência do menor, mandou que tirasse as calças, após o que lhe introduziu o pénis erecto no ânus do ofendido, Rui ....., friccionando-o com movimentos de vai-vem.

«8.º Como o menor, Rui ..... se recusasse, o arguido ameaçou-o que o matava se o não fizesse.

«9.º Atemorizado e envergonhado o menor, Rui ..... nunca disse nada a ninguém.

«10.º O arguido agiu livre e conscientemente, com o propósito conseguido de se satisfazer sexualmente, à custa do sofrimento do menor, Rui ..... .

«11.º Não ignorava o arguido a idade do mesmo a quem apesar da sua oposição lhe causou muitas dores, vergonha e medo de ser descoberto, tão só para satisfazer a sua lascívia.

«12.º Assim como não desconhecia que o seu comportamento era censurável e punido por lei.

«13.º O arguido demonstra ter capacidades de se situar no âmbito normativo não muito diferenciadas. Na escala ascensional: normativo concreto (estrato das aprendizagens de costumes, fruto da educação e da experiência), normativo jurídico (o saber acerca das leis) e normativo ético (plano do elaborar de categorias ideais, da dialéctica Bem/Mal), pode afirmar-se que se move bem no plano do concreto, quanto baste no jurídico, não mostrando capacidade para elaboração ética. Isto é, o arguido tem o conceito do que é proibido mas não tem capacidade para em termos conceptuais e em abstracto distinguir o bem do mal.

«14.º O arguido a nível da sua personalidade demonstra os seguintes traços estruturais: global imaturidade impulsivo/afectiva, hipersensibilidade emocional, dotação intelectiva fraca (ainda dentro de variação normal). Neste aspecto, o arguido tem um rendimento intelectivo abaixo da normalidade, que se situa no grau 100, sendo que o arguido tem um QI entre o 75 e 85. Demonstra dificuldade de socialização.

«15.º Face a situações novas, tendo presente a sua menor capacidade intelectiva, o arguido reage com uma não reacção, isto é, desiste. Por outras palavras, o arguido perante uma situação de rotina ou mecanizada, não demonstra qualquer dificuldade, no entanto, se o arguido for confrontado com a necessidade de conceptualização, a sua reacção é quase nula.

«16.º O arguido teve uma infância marcada por situações de afecto e de violência, afecto perante a figura maternal, quase protectora, e de violência perante a figura paternal, o qual aliada ao seu fraco desenvolvimento intelectual, lhe provocaram instabilidade. O seu ambiente conjugal actual é marcado pela violência, designadamente, em relação à sua actual mulher. A figura maternal, muito protectora, ainda hoje se mantém muito forte junto do arguido.

«17.º O arguido iniciou o seu percurso laboral aos 15 anos de idade, exercendo actualmente as funções de chefe de secção na Serralharia ....., auferindo mensalmente a quantia de € 500, a sua mulher trabalha, auferindo cerca de € 100, tem uma filha de 19 meses de idade e tem como habilitações literárias o 1.º ano do ciclo preparatório, antigo regime.

«18.º O arguido é primário.»

2.2. Em face dos factos provados o tribunal teve por preenchido pela conduta do recorrente o crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal.

3. Os factos provados relativos ao modo de execução do crime comportam uma, pelo menos aparente, contradição que releva no aspecto da correcção da qualificação jurídica dos factos a que o tribunal procedeu.

Com efeito, enquanto nos factos descritos sob o n.º 7.º se descreve um modo de execução do crime que indubitavelmente situa a actuação do recorrente no âmbito dos crimes contra a autodeterminação sexual, o facto descrito sob o n.º 8.º aparenta oposição àqueles, conformando uma conduta típica de coacção da vítima enquadrável no artigo 164.º do Código Penal, a reclamar a integração dos factos nesse tipo de ilícito com a agravação do n.º 4 do artigo 177.º do mesmo diploma.

Todavia, a análise do acórdão, na sua globalidade, e sem prejuízo da evidente falta de cuidado e rigor posta na enunciação da matéria de facto provada, permite ultrapassar o que se apresenta como uma incoerência quanto ao modo de execução do crime a suscitar perplexidade quanto à qualificação jurídica dos factos.

Por um lado, o acto de coacção descrito no ponto 8.º não surge imediatamente dirigido à prática do coito anal, não permitindo estabelecer entre ele e o acto sexual uma relação meio/fim.

Por outro lado, o modo de execução do crime aparece esgotantemente descrito no ponto 7.º e o ponto 8.º, seguindo-o, já não se ligará à conduta típica mas, antes, ao que se vem a afirmar a seguir. Ou seja, a ameaça de morte não aparece ligada à execução do crime (realizada com abuso da inexperiência do menor) mas antes à imposição de silêncio. Neste ponto, releva a motivação da decisão de facto na qual se refere que o menor afirmou simplesmente «que o arguido lhe tirou as calças e lhe foi ao rabo» e que «o arguido lhe disse que se contasse a alguém o matava».

Neste entendimento, ultrapassamos a aparente contradição que se verifica entre os pontos 7.º e 8.º da matéria de facto e afirmamos a correcção da qualificação jurídica da conduta do recorrente a que se procedeu no acórdão.

4. Para a decisão da questão posta no recurso, na dupla perspectiva antes enunciada, relevam, em primeira linha, os factos provados que informam sobre a personalidade do recorrente e sobre o seu percurso existencial.

Deles resulta, em síntese:

A personalidade do recorrente apresenta traços estruturais caracterizados por uma global imaturidade impulsivo/afectiva, hipersensibilidade emocional, introversão e dotação intelectiva fraca mas ainda dentro de valoração normal.

Em concordância com a sua dotação intelectiva média baixa o recorrente não mostra capacidade para elaboração de categorias ideais éticas mas move-se bem no plano normativo concreto, ao nível das aprendizagens de costumes, fruto da educação e da experiência, como, aliás, é demonstrado pela sua adequada e bem sucedida integração no mercado de trabalho e na opção pelo modelo familiar tradicional (casamento e filhos).

O recorrente teve uma infância marcada por situações de violência paterna e o seu ambiente conjugal é também marcado pela violência. A figura materna, sempre protectora, ainda hoje se mantém muito forte junto do recorrente.

4.1. Podendo concluir-se que o recorrente apresenta uma personalidade imatura, com traços que lhe conferem uma dimensão acrescida de fragilidade com dificuldades na socialização, não se evidencia uma qualquer anomalia ou perturbação psíquica que convoque a consideração de uma imputabilidade diminuída.

Com efeito, a imputabilidade diminuída pressupõe e exige a existência de uma anomalia ou alteração psíquica (substrato bio-psicológico) que afecte o sujeito e interfira na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída (efeito psicológico ou normativo).

O artigo 20.º do Código Penal nada diz sobre que tipo de anomalia psíquica deve ser considerada deslocando o acento para o efeito psicológico ou normativo que devem produzir as alterações psíquicas. O efeito psicológico ou normativo constitui, nos termos definidos pelo artigo 20.º, uma perturbação das faculdades intelectuais ou volitivas e esta perturbação deve incidir na compreensão da ilicitude do facto ou na capacidade de orientar a conduta de acordo com essa compreensão.

Se a perturbação não é plena, mas antes diminuída, deve ser encarada ou nos termos do n.º 2 do artigo 20.º ou apenas no quadro da medida concreta da pena, porventura, por via dela, atenuada ou, pelo contrário, agravada.

É que, como referiu Eduardo Correia [Actas da Comissão Revisora do Código Penal (Acta da 8.ª sessão, de 24 de Janeiro de 1964), edição da Associação Académica de Lisboa, p. 145]:
«Uma de duas: ou a anomalia não é uma tal que furta ao agente a possibilidade de dominar os seus efeitos e, consequentemente, ele não incorre no âmbito do artigo 18.º [Actual n.º 2 do artigo 20.º], sendo declarado imputável e a pena até porventura atenuada; ou ela tem aquela natureza, ele é perigoso e, portanto, terá de sofrer um internamento de segurança pelo menos igual ao mínimo correspondente ao tipo legal de crime que praticou. Em qualquer caso ter-se-ão eliminado os perigos que tradicionalmente se assinalavam ao tratamento da chamada imputabilidade diminuída.»
Se o juiz entender que o efeito normativo da inimputabilidade só parcialmente se verifica pode concluir pela inimputabilidade; se o não fizer, a lei não diz que a imputabilidade diminuída deve necessariamente conduzir a uma pena atenuada.

A propósito, afirma Figueiredo Dias [«Pressupostos da Punição», Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, Livraria Petrony, Lisboa, p. 77]:

«Não o dizendo parece, porém, não querer obstar à doutrina – também entre nós defendida por Eduardo Correia e a que eu próprio me tenho ligado – de que pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não-atenuação ou até mesmo à agravação da pena. Isso sucederá, do meu ponto de vista, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, v. g., em casos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da inconstância dos lábeis ou os da pertinácia dos fanáticos».

De qualquer modo, a consideração da imputabilidade diminuída só se justifica se puder ser afirmada uma base biopsicológica particularmente grave, permanente e incontrolável pelo agente nos seus efeitos.

O elemento ou substrato biopsicológico é imprescindível à verificação, em concreto, de uma inimputabilidade ou de uma imputabilidade diminuída.

Se é certo que esse substracto (a «anomalia psíquica») não se contém no conceito médico de doença mental, em sentido estrito, podendo ser preenchido pelas perturbações da consciência, as diversas formas de oligofrenia, de anormalidade psíquica grave (psicopatias, neuroses, pulsões) [Figueiredo Dias, idem, p. 76], a personalidade imatura do recorrente não integra o substrato biopsicológico requerido e a que necessariamente se terá de ligar o efeito psicológico ou normativo da diminuição sensível da capacidade de avaliação da ilicitude do facto ou de determinação de acordo com essa avaliação.
Improcede, por isso, o recurso na vertente da consideração da personalidade do recorrente no quadro da imputabilidade diminuída, como obstáculo à culpa.

Se bem que de um ponto de vista dogmático não haja óbice a que a inimputabilidade seja contabilizada entre as causas de exclusão da culpa, ela constitui, mais do que uma causa de exclusão, um verdadeiro obstáculo à determinação da culpa. «E isto porque o chamado substrato biopsicológico da inimputabilidade – principalmente uma anomalia mental, mas mesmo também uma idade jovem -, aliado a um certo efeito sobre a personalidade, destrói as conexões reais e objectivas de sentido que ligam o facto à pessoa do agente, a tal ponto que o seu acto pode ser “explicado”, mas não pode ser “compreendido” como “facto de uma pessoa”.» [Figueiredo Dias, «Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime», 2.ª Parte, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Aequitas, Editorial Notícias, Ano 2, Fasc. 1, Janeiro-Março de 1992, pp. 15-16].

4.2. Resta abordar o aspecto da personalidade do recorrente no quadro da culpa com necessária incidência na determinação da medida concreta da pena.

As finalidades de aplicação de uma pena assentam, em primeira linha, na tutela de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade. Contudo, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.os 1 e 2, do CP).

Logo, num primeiro momento, a medida da pena há-de ser dada pela medida de tutela dos bens jurídicos, no caso concreto, traduzindo a ideia de prevenção geral positiva, enquanto «reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida» [Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pp. 72-73].
Valorada em concreto a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, a culpa funciona como limite máximo da pena, dentro da moldura assim encontrada, que as considerações de prevenção geral, quer positiva ou de integração, quer negativa ou de intimidação, não podem ultrapassar.

Por último, devem actuar considerações de prevenção especial, de socialização ou de suficiente advertência.

Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do CP, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.

No caso, os propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada, pela frequência com que estão a ser conhecidas violações do bem jurídico em causa e pelos «sentimentos» que essas violações causam na comunidade, reclamam uma intervenção forte do direito penal sancionatório, por forma a que a aplicação da pena, no seu quantum, responda às necessidades de tutela do bem jurídico, assegurando a manutenção, apesar da violação da norma ocorrida, da confiança comunitária na prevalência do direito.

À culpa do recorrente deve assinalar-se uma função de limite à medida da pena; a aplicação da pena não pode ter lugar numa medida superior à suposta pela culpa, fundada num juízo autónomo de censura ético-jurídica.

O que se censura em direito penal é a circunstância de o agente ter documentado no facto – no facto que é expressão da personalidade – uma atitude de contrariedade ou de indiferença (no tipo-de-culpa doloso) ou de descuido ou leviandade (no tipo-de-culpa negligente) perante a violação do bem jurídico protegido. O agente responde, na base desta atitude interior, pelas qualidades jurídico-penalmente desvaliosas da sua personalidade que se exprimem no facto e o fundamentam [Figueiredo Dias, «Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime» cit., p. 14].

O recorrente expressou uma atitude contrária ao direito no plano de um bem jurídico que não requer especiais capacidades de elaboração ética porque se situa, com fortíssima coloração ética e, até, moral, ao nível das aprendizagens básicas decorrentes da educação e da experiência de vida. Não se mostra, por isso, procedente, toda a linha argumentativa do recorrente no sentido da diminuição – que quer acentuada -, da culpa assente na falta de capacidade para a elaboração de categorias ideais na dialéctica Bem/Mal e no rendimento intelectivo médio-baixo.

O recorrente, não obstante demonstrar, ao longo da vida, capacidades para cumprir as exigências que se lhe depararam de integração social, a elas respondendo adequadamente (escolaridade, integração no mundo do trabalho, casamento, paternidade), é portador de traços estruturais de personalidade e de uma experiência de vida susceptíveis de relevar, no caso, ao nível do juízo de censura ético-jurídica.

Com efeito, a imaturidade impulsivo/afectiva aliada a uma infância marcada pela violência paterna, é de molde a criar tensões favoráveis à expressão de violência, que se evidencia no relacionamento conjugal, e de que o crime em causa é também, afinal, expressão.

Só neste limitado e estrito âmbito é que a personalidade do recorrente poderá ser considerada para efeitos de uma ligeira atenuação do juízo de censura.

Não se detectam particulares exigências ao nível da prevenção especial. Ao recorrente não são conhecidos antecedentes (ou, o que leva ao mesmo, não foram dados por provados) e os traços da sua personalidade não comportam por necessidade desvios no plano sexual, designadamente, dimensão pedófila.

O dolo directo e o grau de ilicitude contêm-se na média comum ao tipo-de-ilícito.

Ao contrário do que se faz no acórdão, no momento da determinação da medida concreta da pena, não podem ser consideradas quaisquer consequências do crime que não foram dadas por provadas (influência do crime na concreta alteração do desenvolvimento da personalidade do Rui .....).

Tudo ponderado, temos por justa e adequada, no caso, a pena de 5 anos de prisão, a qual, satisfazendo as exigências de prevenção, não ultrapassa a medida da culpa.

III

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em manter a condenação do recorrente Joaquim ..... pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal, condenando-o, porém, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.

Por ter decaído parcialmente, condena-se o recorrente em 4 UC de taxa de justiça e nas custas (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º do CPP, 87.º, n.º 1, alínea b), 89.º e 95.º do CCJ).

Porto, 8 de Janeiro de 2003

Isabel Celeste Alves Pais Martins

David Pinto Monteiro

Agostinho Tavares de Freitas

José Casimiro da Fonseca Guimarães