EMBARGO DE OBRA NOVA
TUTELA DE DIREITOS DE PERSONALIDADE
Sumário

I - O “direito de vizinhança” no quadro das relações de dominialidade pode constituir-se como fonte ou causa de verdadeiros e próprios direitos subjetivos, cujo intuito é o de garantir a convivência equilibrada entre titulares e usuários de prédios.
II - Com fundamento no art. 1346.º CC, o proprietário pode exercer a ação negatória, também preventiva, para impedir emissões de ruído e fumos e trepidações provenientes do prédio vizinho, quando estas causem prejuízo substancial ou excedam o uso normal do prédio de origem.
III - A tutela não abrange meros incómodos pessoais nem, por si só, lesões a direitos de personalidade (como saúde ou ambiente), quando não exista violação das disposições dos arts. 1360.º e segs. CC, não legitimando nesses casos o embargo de obra nova.

Texto Integral

Processo: 261/25.2T8ARC.P1

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1º Adjunto: Ana Vieira

2º Adjunto: Isabel Ferreira

Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

AA propôs contra BB procedimento cautelar de embrago de obra nova, ao abrigo dos artigos 397.º a 403.º do Código de Processo Civil, requerendo que se decrete o embargo judicial de obra nova, suspendendo-se imediatamente os trabalhos de construção do pavilhão industrial sito em ..., ..., Arouca; notificar o Requerido com urgência, sob pena de sanção pecuniária compulsória por cada dia de incumprimento; e determinar a propositura da ação principal, que terá por objeto a declaração de ilegalidade da obra e a sua demolição ou transferência para zona industrial própria, nos termos e com os fundamentos que resultam da petição inicial.

Foi proferida decisão de indeferimento liminar do procedimento.

Da apreciação do requerimento inicial, entendeu-se que a Requerente não alegou qualquer facto capaz de demonstrar que a obra realizada pelo Requerido violava normas de construção ou afetava o seu direito de propriedade. Considerou-se que as alegações apresentadas diziam respeito, sobretudo, a potenciais lesões de direitos de personalidade — como o direito à saúde, ao ambiente sadio e ao sossego — direitos estes que, embora relevantes, não integram o conteúdo do direito de propriedade nem sustentam o embargo de obra nova.

Concluiu-se, por isso, que mesmo que a factualidade alegada viesse a ser provada, tal não levaria à procedência da pretensão, por não evidenciar qualquer ofensa a um direito real, pessoal de gozo ou à posse da Requerente. Assim, entendeu o tribunal que não se encontram preenchidos os pressupostos do artigo 397.º do Código de Processo Civil, decidindo pela não verificação das condições necessárias ao decretamento da providência solicitada.

É desta decisão de indeferimento liminar que vem interposto o presente recurso pela requerente, mediante as seguintes conclusões:

1. A decisão recorrida indeferiu liminarmente o pedido de embargo de obra nova requerido por AA.

2. A Recorrente é proprietária de imóvel habitacional contíguo à obra industrial em curso, em zona estritamente residencial.

3. A construção implica risco concreto e iminente de poluição atmosférica, contaminação dos solos e lençóis freáticos, ruído e vibrações anormais.

4. Esses riscos afetam diretamente o uso e gozo normal do prédio, integrando o conteúdo protegido do direito de propriedade (arts. 1305.º e 1346.º CC e 66.º CRP).

5. O embargo de obra nova tem natureza preventiva, bastando a ameaça séria e objetiva de violação para justificar a providência (art. 397.º, n.º 1, CPC).

6. O direito de propriedade compreende o uso pacífico, salubre e ambientalmente seguro do imóvel, sendo ofendido por qualquer atividade que torne o prédio insalubre ou ambientalmente degradado.

7. A eventual licença camarária não elimina a tutela jurisdicional civil dos direitos privados nem impede a intervenção cautelar.

8. O indeferimento liminar violou o artigo 20.º da CRP e os princípios do contraditório e da tutela jurisdicional efetiva, ao impedir a prova dos factos relativos à poluição e contaminação ambiental.

9. Deve ser revogada a decisão recorrida e ordenada a tramitação da providência cautelar, para assegurar a proteção preventiva do direito de propriedade e do ambiente da Recorrente.

Conclui pedindo seja revogada a decisão recorrida e ordenado o prosseguimento da providência cautelar de embargo de obra nova.

II.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são basicamente três as questões a tratar.

As convocadas[1] pelas alegações de recurso e, assim, as de determinar: a) se os factos alegados na petição inicial mesma quanto ao perigo de dano implicado pela indústria em construção, no que importa ao risco concreto e iminente de poluição atmosférica, contaminação dos solos e lençóis freáticos, prejudicando o uso pacífico, salubre e ambientalmente seguro do imóvel integram fundamento legal para a providência nominada de embargo de obra e b) se o perigo de dano integrado pela causação de ruído intenso e persistente pela indústria a instalar no prédio em construção se reconduz à violação do direito de propriedade, por via agora do artigo 1346º do CC e por isso se se constitui como fundamento, nesse segmento, da pretendida providência nominada de embargo de obra nova, com o que incorreto o indeferimento liminar.

Uma outra, já de conhecimento oficioso, qual seja, a de determinar, no pressuposto de que não está verificada a hipótese legal de recurso à providência nominada instaurada, da possibilidade de convolação da providência para o procedimento cautelar comum.

Na apreciação das questões que nos ocupam importará atender aos factos alegados na petição para fundamentar a pretensão de decretamento da providência. Assim:

- Encontra-se em curso a construção de um pavilhão industrial na freguesia ..., concelho de Arouca, em local inserido em zona estritamente habitacional, até à data exclusivamente destinada a moradias familiares;

- Esta construção terá um impacto direto e gravíssimo na qualidade de vida dos moradores, traduzindo-se em aumento de ruído, intensificação da circulação de veículos pesados, riscos acrescidos para a segurança rodoviária e perturbação da tranquilidade e sossego da população;

- Nomeadamente, impactos ambientais e riscos para a saúde pública;

- O processo de fabrico inerente a este tipo de atividade industrial, serralharia metálica envolve frequentemente o uso de produtos químicos agressivos, nomeadamente substâncias destinadas à limpeza e acabamento de superfícies metálicas;

- Estas substâncias, muitas vezes tóxicas, representam risco efetivo de contaminação do solo e do lençol freático, podendo provocar danos irreversíveis ao ambiente;

- Tais agentes químicos são nocivos para a saúde humana, em especial das crianças, mais vulneráveis à exposição a compostos tóxicos, o que configura uma ameaça à saúde pública e ao direito constitucionalmente consagrado a um ambiente sadio e equilibrado (art. 66.º CRP);

- Tal “obra”, construção de um pavilhão industrial é totalmente incompatível com a área habitacional onde se encontra inserida;

- A instalação de uma unidade fabril nesta área acarretará aumento significativo do ruído, da poluição atmosférica e visual, bem como movimentação constante de maquinaria e veículos pesados;

- Tal é manifestamente incompatível com o uso habitacional da zona, violando os direitos fundamentais dos moradores ao descanso, à saúde, ao ambiente e à qualidade de vida;

- Os moradores são expostos a ruídos intensos e persistentes decorrentes de trabalhos de serralharia e metalomecânica, o que permite antever o impacto ainda mais negativo que uma estrutura industrial de maior dimensão acarretará, de forma permanente;

- A Requerente, enquanto proprietária e moradora diretamente afetada, é titular de direitos de propriedade, posse, sossego, habitação, saúde e qualidade de vida;

- A obra nova é suscetível de causar dano grave e de difícil reparação: ruído e vibrações intensas, tráfego pesado em zona residencial, riscos ambientais e sanitários decorrentes de químicos nocivos, com ameaça à saúde pública, incompatibilidade absoluta com a vocação habitacional da área, perturbação já comprovada pela atividade clandestina em garagem, injustificação da escolha do local, dada a existência de zona industrial própria a 2 km.


*

A providência cautelar de embargo de obra nova depende da verificação cumulativa de dois requisitos: (i) probabilidade da existência de um direito de propriedade ou outro direito real/pessoal de gozo ou posse e (ii) ofensa desse direito por obra inovadora (art. 397.º, n.º 1, CPC).

A mera violação do direito de propriedade ou de qualquer direito real ou pessoal de gozo basta para configurar o dano jurídico que justifica o embargo. Apenas a ofensa de um direito subjetivo confere legitimidade para embargar; assim, a existência de licença camarária não obsta ao embargo se houver violação desse direito, e a ausência de licença ou a eventual desconformidade com o RGEU ou com regulamentos municipais, por si só, não o fundamenta. Com o que espúria a conclusão sob 7 e irrelevantes as considerações sobre a natureza habitacional da área.

As restrições de direito privado, reguladas nos arts. 1360.º e segs. do CC, visam tutelar interesses entre proprietários vizinhos, em contraste com as limitações de natureza pública resultantes de normas administrativas. A emissão de licença municipal constitui apenas um ato de controlo administrativo de legalidade urbanística, não concedendo direitos subjetivos aos particulares. De acordo com o Acórdão do STJ de 00/10/19, «não é o facto de uma construção não estar em conformidade com o respetivo regulamento que fundamenta o embargo; exige-se que a obra, licenciada ou não, viole ou ameace violar um direito real ou pessoal de gozo» (C.J., VIII-3.º, 85).

Cumpre, pois, averiguar se vêm alegados factos dos quais resulte que a obra viola direitos reais da embargante. O art. 1305.º CC consagra o uso e fruição plenos do proprietário, dentro dos limites legais, incluindo as restrições relativas a construções e edificações previstas nos arts. 1360.º a 1365.º CC. Esses limites impõem ao proprietário que concilie o seu direito com o do vizinho, também titular de um direito de propriedade pleno. Trata-se de problemática típica das relações de vizinhança, em que se definem limites físicos e funcionais entre prédios[2]. Como refere o autor identificado na nota de rodapé, estas situações constituem “relações jurídicas reais” no sentido de Oliveira Ascensão.

A relação entre requerente e requerida no que à requerida providência interessa rege-se exclusivamente pelas normas do CC relativas a construções e edificações, e não pelo RGEU, PDM ou outras, cujas normas pertencem ao direito público e não conferem, em princípio, direitos subjetivos aos particulares.

A este propósito, segundo determinada corrente jurisprudencial, as normas do RGEU ou outros regulamentos (acrescentamos) não conferem aos particulares o direito de se oporem à construção de edifícios (cf., por ex., Ac RC de 24-1-1991, C.J. ano XVI, tomo I, pág.149, Ac RP de 25-11-1993, C.J. ano XVIII, tomo V, pág.231, RG, 02-10-2002, CJ XXVII, IV, 273; STJ, 15-5-2003, proc. 03B535; STJ, 08-7-2003, proc. 03A2112, estes na dgsi). Argumenta-se, em síntese, serem normas que condicionam o direito de construção, com base nas quais a autarquia emitirá juízo prévio para o respectivo licenciamento, e cujas vantagens para os cidadãos são meramente reflexas, logo não poderem os tribunais comuns substituírem-se às autarquias locais na escolha dos procedimentos mais ajustados à realização do interesse público (Ac STJ de 5/4/84, BMJ 336, pág.425 ) e ao controlo do seu poder discricionário para outras soluções (cf. arts.63 e 64 do RGEU), tarefas legalmente cometidas ao ente público, cujas decisões são sindicáveis nos tribunais administrativos[3].

Em todo o caso, ainda que se admita outra solução, como mais razoável, no sentido de que o particular só tem o direito de pedir a suspensão de edificação que lese os seus direitos de propriedade, por violação das normas do RGEU ou outro regulamento, se a Câmara Municipal tiver o poder de ordenar a sua demolição ou de recusar o licenciamento por estar em desconformidade com normas legais de licenciamento (cf., por ex., Ac STJ de 26-9-1996, C.J. ano IV, tomo III, pág. 20,), cujo enfoque é posto, por um lado, na “ função social “ da propriedade e, por outro, no espetro tutelar mais abrangente das normas do RGEU, que, apesar de serem de interesse público, não deixam de proteger também interesses privados no âmbito das limitações à construção civil, embora não coincidentes com as do art.1360 do Código Civil, a verdade é que por esta via falta fundamento factual à pretensão da A..

Na verdade, não vem concretizada/caraterizada qualquer efetiva e real limitação legal ou regulamentar concreta ao licenciamento da construção ou da atividade a exercer e sequer vem afirmada a existência ou antes a falta de licenciamento.

Nessa parte, pois, totalmente ausente uma efetiva causa de pedir, reconduzível à inobservância de disposições legais ou regulamentares impeditivas do licenciamento da atividade a exercer na construção em curso, em termos de sustentarem a existência de um interesse privado reflexo da Autora correspondente. Sem qualquer relevo, pois, as afirmações perfeitamente vagas a propósito de um virtual licenciamento.

Adiante-se que em causa já, na única afetação possível do direito de propriedade da requerente invocada, possíveis limitações funcionais do direito de propriedade, mediante a emissão de ruídos intensos e persistentes (artigo 13º da petição) em razão da atividade que irá ser exercida no prédio em construção.

Assim,

Os interesses, rectius, direitos, da A. apenas poderão merecer consideração, em sede de embargo de obra nova, enquanto providência que se reconduz à tutela de situações de natureza real, como melhor se explicitará, à luz do direito de oposição a emissões de ruído provenientes de prédio vizinho previsto no art. 1346.º do CC: “O proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.

Trata-se de uma norma de protecção que tutela os proprietários de prédios vizinhos. Neste sentido, cfr. Elsa Vaz de Sequeira, Anotação ao artigo 1346.º, in Comentário ao Código Civil – Direitos Reais, Universidade Católica Editora, nota VII.

Naturalmente que em causa uma colisão entre direitos de propriedade, já que o direito a usar o prédio respetivo também assiste à requerida. Sempre tem que estar em causa um prejuízo substancial para o uso do prédio da requerente, afetando de forma grave o uso deste como local de habitação ou o uso anormal do prédio da requerida, sendo que a conjugação entre o exercício das faculdades do direito de propriedade da A. e os direitos da requerida passará, em primeira linha, pela aplicação do regime específico previsto no art. 1346.º do CC e não pela regra geral do n.º 1 do art. 335.º do C.C.

Ora, ainda que de forma básica ou perfunctória, a Autora reconduziu-se a essa realidade na petição, quando aduz o ruído excessivo, trepidações já provocadas por uma oficina explorada numa garagem, mais pequena, em termos que fazem antever a maior gravidade destes na atividade industrial a levar a cabo na construção em curso. Em causa o artigo 13º da petição.

Reconheça-se, pois, que vêm alegados factos, parcimoniosamente e de forma algo genérica, é certo, mas que podem reconduzir-se à invocação da tutela “real” correspondente ao artigo 1346º do CC, de resto invocado, em termos de não se evidenciar a completa ausência de fundamento para o embargo de obra nova que justifica o indeferimento liminar.

A aplicação ao caso sub judice do regime do art. 1346.º do CC, implica determinar, a partir agora de tais factos alegados pela requerente: (i) quem são os sujeitos protegidos; (ii) quem são os sujeitos obrigados; (iii) quais são os direitos abrangidos e correspondentes danos; (iv) como se conjugam as duas situações objectivas previstas na sobredita norma (importarem as emissões um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultarem da utilização normal do prédio de que emanam).

Para efeitos do art. 1346.º do Código Civil (CC), o "prédio vizinho" refere-se a qualquer imóvel adjacente ou próximo cujas atividades possam projetar efeitos negativos, desde logo, ruídos ou trepidações, sobre o imóvel do proprietário que se opõe. Não é necessário que os prédios partilhem uma linha de fronteira, sendo suficiente que os efeitos da atividade se propaguem até ao prédio vizinho de forma substancial. Donde, um “prédio vizinho" abrange qualquer imóvel que possa ser afetado pelas emissões ou impactos negativos provenientes de outro, próximo situacionalmente.

Sempre a emissão ou o impacto deve ser capaz de causar um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultar da utilização normal do prédio de que emana.

Sempre quanto à natureza dos direitos tutelados pelo art. 1346º do CC, teve lugar, ao longo das últimas décadas, uma clara evolução jurisprudencial (cfr. Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017, págs. 189 e segs.; Elsa Vaz de Sequeira, Anotação ao artigo 1346.º, cit., nota VI) no sentido de, para além da afectação das faculdades que integram o direito de propriedade (ou outros direitos reais), se abrangerem também os direitos de personalidade, ou melhor, como assinala a referida autora, no sentido de que “o âmbito de garantia efetiva de um direito de gozo é definido não apenas pelo âmbito de garantia efetiva de outro direito de gozo, mas também pelo âmbito de garantia efetiva dos direitos de personalidade”.

No caso concreto, o conflito estruturado pela requerente circunscreve-se aos parâmetros do direito privado, em sede das relações de vizinhança (arts.1346 do CC) e à tutela dos direitos de personalidade da Autora (art.70 nº2 do CC).

A moderna teorização do “direito de vizinhança”, engendrada no terreno fértil da jurisprudência, não se compadece com uma concepção pandectística do direito de propriedade, como direito absoluto e ilimitado, já que no actual estádio da dominialidade dos bens cada vez mais se acentua a função social do direito de propriedade, perspetivado agora como um “dever social”, pelo que a problemática deriva sobretudo da “relação de facto” emergente da utilização da propriedade em consequência do exercício da actividade económica privada, socialmente vinculada, cujo equilíbrio da “coexistência pacífica” é rompido pela perturbação anormal ou excessiva, isto é, intolerável.

Daí que alguns autores empreguem sugestivamente a noção de “quase contrato de vizinhança” para realçarem as obrigações recíprocas entre titulares de prédios vizinhos. É justamente o rompimento desse equilíbrio, com a violação das obrigações recíprocas de vizinhança, que faz desencadear o mecanismo sancionatório, com vista à reposição do “status quo ante”, quer através da tutela ressarcitória, quer da tutela inibitória, também chamada de “acção negatória” (cf. Oliveira Ascensão, A previsão do equilíbrio imobiliário como princípio orientador das relações de vizinhança, ROA 67, pág. 7 e segs. ). A qual pode ser preventiva ou cautelar, mediante recurso a embargo de obra nova ou ao procedimento cautelar comum, como se verá.

A regulamentação do direito de vizinhança no Código Civil Português foi enquadrada no capítulo reservado à propriedade de imóveis, cujo art.1346 consagra a “acção negatória”, ao atribuir ao proprietário de um imóvel o poder de se opor às emissões provenientes de prédio vizinho.

Este normativo, inspirado no § 906 do BGB, apresenta um conceito geral de emissão, o qual abrange realidades físicas, materiais, sob a forma energética, gasosa ou em pequenas partículas, corpos gaseiformes misturados com o ar, visto que a enumeração é meramente exemplificativa, como, aliás, resulta do próprio texto (cf. Rodrigues Bastos, Direito das Coisas, II, pág.13, Henrique Mesquita, Direitos Reais, pág.142).

Por outro lado, contemplam-se somente as emissões que resultem reflexamente da atividade exercida em certo prédio, quando esta atividade ou os seus efeitos se propaguem ou difundam naturalmente e atinjam os prédios vizinhos. Mas para que seja fundada a oposição é necessário que as emissões importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel vizinho ou que não resultem da utilização normal do prédio que emanam. Note-se, porém, que a essencialidade do prejuízo deve ser apreciada objetivamente, conforme a natureza e a finalidade do prédio vizinho, e o uso normal do prédio depende do seu destino económico, também objetivamente considerado.

Não sendo uniforme o entendimento doutrinal quanto à exigência dos dois requisitos, deve, no entanto, e contrariamente à posição de Menezes Cordeiro (Direitos Reais, pág.595)[4], adotar-se o entendimento de que os mesmo operam em alternativa, como sustentam Pires de Lima / Antunes Varela, no Código Civil Anotado, vol.III, 2ªed., pág.178, com o sufrágio da jurisprudência (por ex., os já longínquos Ac R.P. de 25-5-82, C.J. ano VII, tomo III, pág.213, Ac R.C. de 7-1-92, C.J. ano XVII, tomo I, pág.83).

Acresce ser pressuposto da tutela inibitória o carácter de continuidade, ou, pelo menos de periodicidade das emissões, como observa Antunes Varela (RLJ ano 114, pág.74), pois só nesta medida é que a concreta perturbação se poderá configurar como excessiva e, por isso, intolerável.

Importa realçar que o conceito de “prejuízo substancial para o uso do imóvel “ deve ser entendido de forma lata, de modo a abranger também as lesões que a conduta do vizinho infrator cause ao morador do imóvel (cf., por ex., Vaz Serra, RLJ ano 103, pág.378), ou seja, que afetem os seus direitos de personalidade (arts.64 e 66 da CRP e art.70 do CC).

Em conclusão, o chamado “direito de vizinhança”, extrapolando a clássica tutela do direito de propriedade, impõe-se com um direito subjetivo, derivando sobretudo da “relação de facto” emergente da utilização da propriedade em consequência do exercício da actividade económica privada, socialmente vinculada, cujo equilíbrio da “coexistência pacífica” é rompido pela perturbação anormal ou excessiva, isto é, intolerável. Donde, o art.1346 do CC consagra a “acção negatória”, atribuindo ao proprietário de imóvel o poder de se opor às emissões que resultem reflexamente da actividade exercida em certo prédio, quando esta actividade ou os seus efeitos se propaguem ou difundam naturalmente e atinjam os prédios vizinhos, desde que essas emissões importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel vizinho ou que não resultem da utilização normal do prédio que emanam, operando os requisitos em alternativa.

Sempre não está em causa a mera tutela do bem-estar dos proprietários ou ocupantes do prédio, nem também uma lesão de direitos de personalidade que não sejam causados mediante uma violação do direito de propriedade. A ofensa a direitos como saúde ou ambiente saudável, quando não associada à violação das normas dos arts. 1360.º e segs. CC, não legitima o embargo de obra nova.

E, assim, no caso dos autos, atenta a alegação da requerente, temos para nós que quanto aos demais danos, rectius, perigo de danos (qualidade ambiental, poluição, contaminação de lençóis freáticos, zona habitacional, saúde, bem estar) não está em causa, por falta de substanciação bastante, a afetação da garantia de qualquer direito efetivo, real e pessoalizado direito de personalidade da A. – como o seu direito ao repouso, por exemplo[5].

Na verdade, ainda quando se admita que a garantia efetiva dos direitos de personalidade pode decorrer de normas de conteúdo real, como o artigo 1346º, sempre a alegação respetiva tem que se reconduzir a um verdadeiro direito subjetivo de personalidade.

Ora, os direitos de personalidade protegem a esfera individual e intransferível de uma pessoa concreta, não se confundindo agora com direitos subjetivos públicos como os interesses difusos a que apela mais proficientemente a Requerente, em termos que se têm por excluídos agora da tutela que emerge da dominialidade ou propriedade, enquanto direito de gozo ou fruição. Assim, como adiantado, quedam-se a intendida tutela da saúde pública ou ambiente (não poluição), qualidade de vida e saúde como insuscetíveis de fundar a tutela real que é a caraterística da providência de embargo de obra nova.

Na verdade, não se reconduz a requerente, nessa parte, à tutela de um seu pessoalíssimo direito de personalidade afetado, mas à titularidade conjunta de um direito público, que extravasa agora a tutela concedida pelo regime positivado de proteção do proprietário em função de relações de vizinhança.

Nessa medida, embora com fundamentação distinta, tem-se como correta a leitura na decisão recorrida da insusceptibilidade de conceder a pretensão com base na afetação daqueles direitos, justamente agora por não se terem como caraterizados autênticos direitos de personalidade encabeçados pela requerente[6] e que se integrem no âmbito da proteção do seu direito de propriedade, conforme artigo 1346º do CC.

De todo o modo, permanece a relevância do alegado desrespeito pelo direito de oposição a emissões de ruído e trepidações, em termos de poder justificar o requerido embargo, sendo certo que, na medida em que não foi objeto de consideração na decisão recorrida (que não perspetivou a violação em apreço), quanto a estarem ou não presentes naquela alegação mesma requisitos de gravidade, continuidade na emissão de barulho e trepidação para o prédio vizinho, o da Autora, pois só nessa medida é que a concreta perturbação se pode configurar como excessiva e, por isso, intolerável, dessa questão não é possível conhecer neste recurso.

Impõe-se, consequentemente, conceder provimento limitado ao recurso, determinando que o tribunal recorrido aprecie agora liminarmente ainda da suficiência do alegado sob 13º da petição para caracterizar a hipótese do convocado art. 1346º do CC e, considerando-a[7], determine o normal prosseguimento da providência requerida, nos termos legais.

III.

Tudo visto, concede-se parcial provimento ao recurso, determinando que o tribunal recorrido aprecie agora liminarmente ainda da suficiência do facto alegado sob 13º da petição (em articulação com outros artigos, no que tange à emissão de ruídos intensos e trepidação) para caraterizar a hipótese do convocado art. 1346º do CC e, em conformidade, decidir do prosseguimento do procedimento ou da sua extinção.

Sem custas.

Notifique.


Porto, 12 de Dezembro de 2025
Isabel Peixoto Pereira
Ana Vieira
Isabel Ferreira
______________
[1] Não sem esforço interpretativo, já que a Recorrente mantém, sem razão, como resultará, a confusão entre tutela ambiental difusa e tutela da propriedade contra emissão de ruídos e vapores, com recondução à norma do artigo 1346º do CC, realidades totalmente distintas e com consequências dissemelhantes para o que importa à susceptibilidade de fundamentarem a providência requerida. De todo o modo, a distinção impõe-se e resulta consequente, como se verá.
[2] Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, Principia, 3ª edição, págs. 80 e segs.
[3] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.3.2020 (processo 861/18.7T8EPS-A.G1). Em sentido concordante, vejam-se também os acórdãos do TRP de 17-02-1997, C.J., XXII-1.º, 236, e de 15-02-2005, proc. 0520345 (diminuição de vistas e insolação), dgsi.pt.
[4] Quanto à conjugação das duas situações objetivas previstas na norma, tem a mesma suscitado diversas dúvidas interpretativas. Socorremo-nos da síntese de Elsa Vaz de Sequeira (Anotação ao artigo 1346.º, cit., nota V): “A interpretação da norma não se mostra isenta de dúvidas, indagando-se até ponto estes requisitos são alternativos ou cumulativos. Em termos puramente literais, a solução parece passar por considerar os ditos requisitos alternativos, bastando para que as emissões fossem proibidas que provocassem um prejuízo substancial ou que resultassem do exercício anormal do direito. A doutrina, no entanto, tem julgado esse resultado interpretativo desprovido de sentido, porquanto ele implica a proibição das emissões procedentes do exercício anormal do direito não lesivas. Aceitar que o titular de um direito de gozo possa vedar o exercício do direito alheio, apenas porque ele sai fora dos padrões de normalidade, não obstante ser absolutamente inócuo, redundaria numa possível situação de abuso do direito (HENRIQUE ANTUNES: 186-187). Por essa razão, MENEZES CORDEIRO sustenta a natureza cumulativa desses requisitos. “O proprietário só pode proibir emissões que efectivamente o prejudiquem e não resultem do uso anormal do prédio” (1979: 596). A maior parte dos autores, contudo, tem rejeitado esta visão, seja por falta de apoio literal – a lei utiliza a conjunção “ou” e não “e” –, seja por ausência de um interesse legítimo merecedor de proteção, seja por comprometer o âmbito de tutela do artigo 1346.º, reduzindo-o desmedidamente. Sob este prisma, haverá que discernir duas hipóteses: as emissões resultantes do exercício normal do direito alheio e aquelas originadas pelo seu exercício anormal (RUI PINTO DUARTE, 2013: 86). Ali, as emissões apenas serão proibidas se causarem um prejuízo substancial ao prédio vizinho. Aqui, diferentemente, a sua proibição fica dependente da produção de algum tipo de prejuízo – ainda que não substancial – no imóvel vizinho, não sendo suficiente, por isso, o cariz anómalo do referido uso (…)”.
[5] Sempre não alegado que a atividade o seja noturna ou em tempos de descanso.
[6] O que, desde logo, afasta qualquer objeção de inconstitucionalidade, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, que sempre o seria, na medida do que infra se explicitará também, a da admissibilidade de recurso a outra forma de tutela, atento o princípio da especialidade dos procedimentos cautelares tipificados no CPC. É que a decisão não denega a tutela à requerente. Considera-a inconcedível pelo meio escolhido, tão só.
[7] Desconsiderando-a, tendo por insuficiente a caraterização da hipótese real de tutela, mais lhe caberá apreciar também ou ainda da possibilidade de convolação do procedimento requerido para providência cautelar comum, nos termos do art. 376.º, n.º 3, CPC, segundo o qual «o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida».
Esta norma configura uma derrogação ao princípio do dispositivo, permitindo um poder judicial de adequação material. Neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L.F. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 444. O objetivo do art. 376.º, n.º 3, 1.ª parte, é permitir o “aproveitamento” de um procedimento que, de outro modo, seria inútil, com base nos factos alegados e no direito invocado. Cfr., Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, Almedina, pág. 85.