INDEFERIMENTO LIMINAR
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
USO INDEVIDO DO PROCEDIMENTO
EXCEÇÃO DILATÓRIA
Sumário

I – No caso de indeferimento liminar do requerimento executivo, o princípio do contraditório não impõe que o exequente seja ouvido previamente quanto ao motivo desse indeferimento liminar.
II – O procedimento de injunção só é aplicável às obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contratos, pelo que não tem a virtualidade de servir para a exigência de obrigações pecuniárias resultantes, por exemplo, de responsabilidade civil, contratual ou extracontratual.
III – Por isso, não é meio processual adequado para o exercício de direitos decorrentes do incumprimento de um contrato de concessão de crédito, designadamente os que correspondem à pretensão de recebimento das prestações não pagas e declaradas vencidas em virtude da resolução do contrato e ainda a juros vencidos e vincendos.
IV – Se numa situação destas correu termos procedimento de injunção, ao qual viria a ser aposta fórmula executória, daí não decorre que se tenha formado um título executivo válido, de tal forma que instaurada execução, com base nele, se verifica uma exceção dilatória inominada suscetível de conhecimento oficioso.

Texto Integral

Proc. nº 742/25.8T8VLG.P1

Comarca do Porto – Juízo de Execução de Valongo – Juiz 2

Apelação

Recorrente: “Banco 1..., Sucursal da S.A. Francesa”

Recorrida: AA

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Rui Moreira e Anabela Andrade Miranda

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

A exequente Banco 1..., Sucursal da S.A. Francesa veio intentar a presente ação executiva contra a executada AA com vista ao pagamento da quantia de 24.374,02€, dando à execução dois requerimentos de injunção aos quais foi aposta fórmula executória alegando no primeiro (nº 149746/24.9YIPRT) o seguinte:

“Requerente e Requerido(s) celebraram em 30/11/2021 um contrato de concessão de crédito, ao qual foi atribuído o n.º ..., por força do qual, a Requerente disponibilizou ao(s) Requerido(s) um financiamento de €12325,39.

Por força do contrato celebrado o(s) Requerido(s) obrigou-se(aram-se) a proceder ao reembolso do montante financiado em 84 prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de €208,50.

O(s) Requerido(s) aderiu(iram) ao seguro de proteção ao crédito em 30/11/2021.

Ocorre que o(s) Requerido(s) deixou(aram) de proceder aos pagamentos a que estava(m) obrigado(s) por força do contrato de crédito celebrado com a Requerente, tendo a Requerente procedido ao cumprimento do PERSI mediante envio das competentes comunicações. Não obstante o(s) Requerido(s) não procedeu(eram) à regularização dos valores em divida apesar de interpelado(s) para o efeito, pelo que face ao incumprimento verificado a Requerente procedeu à resolução do contrato em 30/09/2024.Face à resolução ocorrida o valor atualmente em dívida ascende a €10506,12 ao qual acrescem juros vencidos desde a data de resolução contratual até à entrada do presente procedimento de injunção, à taxa contratual estipulada de 13,9%%, e juros vincendos até efetivo e integral pagamento.

É igualmente devido o imposto de selo sobre os juros de mora – que, à presente data, ascende a 12,64) – calculados à taxa de 4%, nos termos do 17.3.1 da Tabela Geral do Imposto de Selo.

O(s) Requerido(s) é(são) assim devedor(es) do valor supra peticionado pelo que a Requerente exerce agora o seu direito de exigir judicialmente o cumprimento da obrigação pecuniária do valor que lhe é devido”.

No segundo requerimento de injunção (nº 149748/24.5YIPRT) alega-se o seguinte:

“Requerente e Requerido(s) celebraram d o i s contratos de crédito, um de crédito em conta corrente em 02/11/2022 com o n.º ... e outro de financiamento para aquisição de um bem ou serviço a um fornecedor em 04/05/2022 com o nº. ....

**Contrato de Crédito em conta corrente n.º ...: O Requerente concedeu ao requerido um financiamento inicial de 4.000,00 e 2 financiamentos subsequentes no valor total de €5276,00. Pese embora este contrato tenha sido celebrado por referência a prestações inicial de 108€, e com um prazo pré-estabelecido, os mesmos são meramente indicativos porque válidos apenas para a primeira do financiamento concedido, variando em função das utilizações, montante e duração do saldo devedor e adesão ou não ao Seguro. O Requerido(a) aderiu ao Seguro em 02/11/2022.

** Contrato de concessão de crédito nº. ...: O Requerente concedeu ao requerido um financiamento de 7.000,00€. Por força deste contrato, o requerido(a) obrigou-se a proceder ao reembolso do montante financiado em 84 prestações iguais, mensais e sucessivas, no valor de 116,68€. O Requerido(a) aderiu ao seguro de proteção ao crédito em 04/05/2022.

Ocorre que o(a) Requerido(a) deixou de proceder aos pagamentos a que estava obrigado(a) por força dos contratos de crédito celebrados com a Requerente, apesar de interpelado para o efeito, pelo que face ao incumprimento verificado a Requerente procedeu à resolução dos contratos em 30/09/2024.

Face à resolução ocorrida o valor atualmente em dívida perfaz o montante de €5774,00 relativamente ao contrato de crédito n.º ... e de 6360,92€ relativamente ao contrato de crédito nº. ...; perfazendo o valor total em dívida de €12.134,92, ao qual acrescem juros vencidos desde a data de resolução contratual até à entrada do presente procedimento de injunção, à taxa contratual estipulada que para o contrato ... é de 1 6 % e para o contrato ... é de 10,20%, e juros vincendos até efetivo e integral pagamento.

O Requerido(a) é assim devedor do valor supra peticionado pelo que a Requerente exerce agora o seu direito de exigir judicialmente o cumprimento da obrigação pecuniária do valor que lhe é devido”.

Porém, a Mmª Juíza “a quo”, ao abrigo do disposto nos arts. 726º, nº. 2, al. b) e 734º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, rejeitou a execução com a seguinte argumentação:

“Nos termos do artigo 7º do DL n.º 269/98 de 1 de setembro (…) considera-se injunção “a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1º do diploma preambular ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003 de 17 de fevereiro”.

Do exposto, resulta que são duas as situações que podem fundamentar o uso deste processo especial: transações comerciais nos termos do Decreto-Lei n.º 32/2003 de 17 de Fevereiro (DL n.º 32/2003) e o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valor não superior a 15.000 Euros (artº. 1º. D.L. 269/98).

Dos requerimentos de injunção dados à execução resulta que foram intentados, não para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes dos contratos, a contrapartida pelos empréstimos concedidos - a remuneração -, mas sim a efetivação das consequências da sua extinção por efeito da resolução, ou seja, fazer valer direitos indemnizatórios concernentes à responsabilidade contratual inerente ao incumprimento dos referidos contratos.

Não vem pedido nos requerimentos de injunção dados à execução o “cumprimento de uma obrigação pecuniária stricto sensu”, antes reconduzindo-se a pretensão formulada “ao exercício da responsabilidade civil contratual subsequente à resolução de um contrato por incumprimento, com todas as consequências dele resultantes” – Ac. RP de 14 de setembro de 2023 pub. in www.dgsi.pt.

Ora, como resulta do artº. 1º. do D.L. 269/98, o procedimento de injunção destina-se a “exigir o cumprimento de obrigações pecuniária emergentes de contratos”, ou seja, obrigações consistentes na entrega de dinheiro em sentido estrito e não obrigações de valor em que o valor pecuniário traduz apenas a liquidação do valor da obrigação.

Nas palavras de Salvador da Costa, o regime processual da injunção “só é aplicável às obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contratos, pelo que não tem a virtualidade de servir para a exigência de obrigações pecuniárias resultantes, por exemplo, de responsabilidade civil, contratual ou extracontratual.” –A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 6ª. ed., pág. 48. No mesmo sentido, Paulo Duarte Teixeira, essas obrigações são “(…) apenas aquelas que se baseiam em relações contratuais cujo objeto da prestação seja diretamente a referência numérica a uma determinada quantidade monetária (…) daqui resulta que só pode ser objeto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contrato, mas já não pode ser peticionado naquela forma processual obrigações com outra fonte, nomeadamente, derivada de responsabilidade civil. O pedido processualmente admissível será, assim, a prestação contratual estabelecida entre as partes cujo objeto seja em si mesmo uma soma de dinheiro e não um valor representado em dinheiro” - Os Pressupostos Objectivos e Subjectivos do Procedimento de Injunção, in “Themis”, VII, nº 13, pgs. 184-185).

Temos, assim, que os procedimentos de injunção requeridos pela exequente são um expediente processual impróprio para obter a satisfação dos pedidos, “já que estes não são subsumíveis ao conceito de cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de um contrato” – Ac. da RP de 15 de dezembro de 2021, relatado pelo Sr. Desembargador Rui Moreira e disponível in www.dgsi.pt.

Este uso indevido do procedimento de injunção, constitui uma exceção dilatória inominada que afeta “todo o procedimento de injunção, designadamente a aposição da fórmula executória, por não se mostrarem reunidos os pressuposto legalmente exigidos para a sua utilização (as condições de natureza substantiva que a lei impõe para que seja decretada a injunção) não permitindo o aludido vício qualquer adequação processual ou convite a um aperfeiçoamento, pois caso contrário, estava encontrado o meio para, com pensado propósito de, ilegitimamente, se tentar obter título executivo, se defraudar as exigências prescritas nas disposições legais que disciplinam o procedimento de injunção” – Ac. da RP de 8 de novembro de 2022, proferido no Proc. nº. 901/22.5T8VLG-.P1, relatado pela Srª. Desembargadora Alexandra Pelayo.

Os procedimentos de injunção deviam ter sido recusados pela secretaria com fundamento na pretensão nele deduzida não se ajustar à finalidade do procedimento, em conformidade com o que dispõe o artº 11º n.º 1 al. h) do Regime Anexo ao Dec. Lei 269/98 de 01/09, na redação introduzida pelo Dec. Lei 107/2005 de 01/07 ou, não o tendo sido, sempre devia o secretário judicial ter recusado a aposição da formula executória, conforme prevê o artº 14º n.º 3 do citado diploma.

E não obstante a questão não tenha sido suscitada nos procedimentos de injunção pela requerida, nada obsta a que na ação executiva ela possa ser apreciada uma vez que estamos perante um título executivo ilegal, porquanto obtido à revelia dos pressupostos legalmente exigidos para o recurso ao procedimento de injunção.

Estamos, assim, perante uma exceção dilatória inominada, insuprível, de conhecimento oficioso, que tem como consequência a absolvição da instância – cfr. artº. 576º. nº. 2 do e 578º. CPC.”

Discordando deste despacho dele interpôs recurso a exequente, que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:

A. Por sentença notificada à Recorrente em 10/03/2025 a M.ª Juiz a quo rejeitou a execução intentada por considerar que o procedimento de injunção que constitui título executivo da execução não é um procedimento admissível para reconhecimento dos pedidos efetuados pela Exequente/Recorrente porquanto considera que os mesmos não são subsumíveis ao conceito de cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de um contrato.

B. Salvo o devido respeito não pode a Recorrente concordar com tal entendimento.

C. Efetivamente os requerimentos de injunção intentados pela aqui Recorrente peticionavam o pagamento da quantia de €10.987,84 adveniente do incumprimento de um contrato de crédito, bem como juros de mora no valor de €316,08, e o pagamento da quantia de €12.134,92 referente ao incumprimento de dois contratos de crédito ao consumo celebrados com a mesma bem como de juros de mora vencidos no valor de €381,69.

D. É, pressuposto objectivo genérico do procedimento da injunção, a presença de obrigações pecuniárias geradas por um contrato, ou seja, por um negócio jurídico plurilateral de natureza onerosa, e apenas aquelas que tenham por objecto uma prestação em dinheiro destinada a proporcionar ao credor o valor de uma quantia devida em virtude daquele contrato.

E. Deste modo, o procedimento de injunção apenas poderá ter objecto obrigações pecuniárias em que a quantia (pecuniária) é o próprio objecto da prestação.

F. Ora, conforme supra referido o peticionado pela Autora nos procedimentos de injunção diz respeito a prestações vencidas e não pagas pela Requerida, capital vencido com a resolução do contrato e respectivos juros de mora, que resultam de forma direta do contrato em análise pelo que,

G. Todos eles quantificáveis e admissíveis, atento o estipulado o n.º 2, do artigo 10.º do DL n.º 268/98, de 01/09.

H. Não tendo sido peticionado qualquer valor a título de indemnização ou responsabilidade civil contratual.

I. Facto este que a ora Recorrente poderia facilmente ter esclarecido caso lhe tivesse sido dada oportunidade de se pronunciar quanto á alegada exceção inominada, o que não sucedeu.

J. Nos termos do DL n.º 269/98 de 1 de Setembro para que o procedimento de injunção possa ser utilizado, que se encontrem preenchidos dois requisitos: a existência de um contrato prévio e uma obrigação pecuniária não superior a 15.000,00€ emergente desse contrato [sic].

K. Requisitos esses, que não há qualquer dúvida, que se encontram preenchidos no caso em análise.

L. De facto, o valor peticionado só existe porque a Requerida, ora Executada, incumpriu as obrigações emergentes dos contratos celebrados, sendo essas obrigações de caráter pecuniário inferior a 15.000,00€.

M. Em momento algum da exposição dos factos dos requerimentos de injunção a aqui Recorrente fez referência ou peticionou qualquer indemnização pelo incumprimento contratual.

N. Pelo que não se compreende como pode a M.ª Juiz a quo ter considerando, sem que previamente tivesse ouvido a Exequente que os valores peticionados respeitavam a “(…) efetivação das consequências da sua extinção por efeito da resolução, ou seja, fazer valer direitos indemnizatórios concernentes à responsabilidade contratual inerente ao incumprimento do referido contrato”…”.

O. Salvo melhor entendimento, os procedimentos de injunção apenas seriam inadmissíveis se tivesse sido peticionada alguma indemnização a título de responsabilidade civil contratual, o que no caso em apreço não sucedeu – veja-se neste sentido Ac, do TR de Lisboa de 19/12/2024 proferido no âmbito do processo 7563/23.5YIPRT.L1-P. Não sendo o simples facto de um contrato se encontrar resolvido por incumprimento que invalida o recuso ao procedimento de injunção, considerando que tal esvaziaria por completo a utilidade do referido procedimento, mas sim o facto de serem peticionados valores a título de indemnização contratual, o que entraria com campo da responsabilidade civil contratual.

Q. Considerando o exposto, e salvo o devido respeito, baseando-se o procedimento de injunção no incumprimento de contratos de crédito ao consumo não pode simplesmente o M. Juiz a quo presumir que é peticionada qualquer valor a título de responsabilidade civil contratual quando não existe qualquer referência a tal facto no requerimento de injunção e sem sequer questionar o Requerente/Exequente para esclarecimento dessa circunstância.

R. Refira-se que não foi dada oportunidade à ora Recorrente de se pronunciar quanto à alegada exceção que levou à rejeição da execução, violando-se assim o disposto no artigo n.º 3, do artigo 3.º do CPC, e conforme douto Acórdão do TRL, proferido no âmbito do processo 286/09.5T2AMD-B.L1-1.

S. O que no entender da Recorrente determina a nulidade da sentença recorrida, por violação do princípio do Contraditório.

T. Face ao exposto, não tendo a aqui Recorrente peticionado qualquer indemnização pela resolução contratual, o procedimento de injunção é o meio processual adequado para exigir à Requerida, ora Recorrida, o cumprimento das obrigações assumidas aquando da celebração dos contratos de crédito celebrados com a Recorrente.

U. A Apelante está pois convicta que Vossas Excelências, analisando as normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de revogar a decisão recorrida, ou caso assim não se entenda ordenando a sua substituição por outra notifique a Recorrente para se pronunciar quanto à alegada exceção.

O recurso foi admitido como apelação com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Cumprido o disposto no art. 641º, nº 7 do Cód. Proc. Civil, a executada não apresentou resposta ao recurso interposto.

Há então que apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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As questões a decidir são as seguintes:

I – Apurar se ocorre no caso dos autos violação do princípio do contraditório;

II – Apurar se o título executivo em que a exequente funda a execução se formou em obediência à lei.


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Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso constam do antecedente relatório para o qual se remete.

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Passemos à apreciação do mérito do recurso.

I – Apurar se ocorre no caso dos autos violação do princípio do contraditório

1. Nas conclusões R e S do seu recurso a exequente veio alegar que não lhe foi dada oportunidade para se pronunciar quanto à exceção que levou à rejeição da execução, o que, no seu entender, determina a nulidade da sentença por configurar violação do princípio do contraditório.

2. Estatui o art. 3º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil que «o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem

Esta norma, introduzida pela Reforma de 1995, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, como garantia de uma discussão dialética ou polémica entre as partes no desenvolvimento do processo.

Com efeito, predomina hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, entendida esta como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de influir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo - cfr. LEBRE DE FREITAS, “Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto”, 1996, pág. 96).

3. Voltando ao caso dos autos, em que está em causa despacho de indeferimento liminar de requerimento executivo, há então que apurar se também aqui se impõe o prévio cumprimento do contraditório.

A jurisprudência não tem sido uniforme no tratamento desta questão, em que, conforme se escreve no Acórdão da Relação de Coimbra de 27.2.2018 (proc. 5500/17.0T8CBR.C1, relator JORGE ARCANJO, disponível in www.dgsi.pt.) se recortam duas correntes:

a) Uma no sentido de que o indeferimento liminar não é exceção ao cumprimento do contraditório, impondo-se sempre um despacho pré-liminar de audição (cfr., por ex., decisões singulares da Relação de Coimbra de 5.12.2017, proc. nº 6097/17.7T8CBR.C1, relator ARLINDO OLIVEIRA e de 29.1.2018, proc. nº3550/17.6T8CBR.C1, relator LUÍS CRAVO, disponíveis em www.dgsi.pt)[1];

b) Outra corrente para quem, em caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor/exequente sobre o motivo do indeferimento (cfr., por ex., Ac. STJ de 24.2.2015, proc. nº 116/14.6YLSB, relatora ANA PAULA BOULAROT; Ac. Rel. Porto de 4.11.2008, proc. nº 0826336, relator MÁRIO SERRANO; Ac. Rel. Lisboa de 27.9.2017, proc. nº 10847/15, relator LEOPOLDO SOARES; Ac. Rel. Lisboa de 9.11.2017, proc. nº 1375/04.8TYLSB-F.L1-2, relatora MARIA JOSÉ MOURO; Ac. Rel. Évora de 11.4.2019, proc. nº 1501/17.7T8SLV.E1, relator RUI MACHADO E MOURA, Ac. Rel. Lisboa de 24.9.2019, proc. 8333/16.8T8ALM.L1-7, relator DIOGO RAVARA; Ac. Rel. Porto de 23.5.2022, proc. 15598/20.9T8PRT.P1, relatora FÁTIMA ANDRADE; Ac. Rel. Porto de 23.2.2023, proc. 10540/22.5T8PRT.P1, relator FILIPE CAROÇO e Ac. Rel. Guimarães de 10.10.2024, proc. 3530/24.5T8VNF.G1, relator ALCIDES RODRIGUES, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

4. Aderimos a esta segunda corrente, que se mostra largamente dominante, pelas razões que passamos a expor.

Em primeiro lugar, há a salientar que a imposição de um despacho prévio ao despacho de indeferimento liminar parece ser em si mesmo contraditório porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faz sentido a parte ser ouvida preliminarmente a este - cfr. o já referido Ac. STJ de 24.2.2015.

Em segundo lugar, não se nos afigura que se possa, em rigor, falar de “decisão surpresa“ quando se profere despacho de indeferimento liminar de requerimento executivo, por ocorrência de exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso, uma vez que é a própria lei que prevê expressamente estas situações como causa específica de rejeição – cfr. art. 726º, nº 2, al. b) do Cód. Proc. Civil.

Em terceiro lugar, nas situações de indeferimento liminar, a lei difere o contraditório na medida em que se prevê sempre a admissibilidade do recurso, independentemente do valor e da sucumbência e se determina que o réu seja citado para os termos do recurso e da causa (arts. 629º, nº 3, c) e 641º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil)[2]. Daqui parece resultar a dispensa da audição prévia do autor, porque desnecessária, permitindo-se o contraditório diferido e em situação de igualdade.

Em quarto lugar, a decisão-surpresa pressupõe ainda que a parte não a possa perspetivar como sendo possível, ou seja, quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse prognosticado no processo.

Ora, a nosso ver, a possibilidade de o presente requerimento executivo ser rejeitado pela procedência da exceção dilatória inominada conhecida no despacho recorrido não poderia deixar de ser equacionada pela exequente, ora recorrente, até porque se reporta a questão que tem sido objeto de largo tratamento jurisprudencial.

Neste contexto, consideramos não ter sido proferida decisão-surpresa com violação do princípio do contraditório, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto.


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II – Apurar se o título executivo em que a exequente funda a execução se formou em obediência à lei

1. O art 10º, nº 5 do Cód. Proc. Civil estabelece que “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”, sucedendo que os títulos executivos vêm depois enumerados taxativamente no art. 703º do mesmo diploma.

Aí se prevê na sua alínea d) que podem servir de base à execução os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva, entre estes se incluindo os requerimentos de injunção a que foi aposta fórmula executória – cfr. arts. 14º e 21º do Anexo ao Dec. Lei nº 269/98, de 1.9.

2. Apurar se o título executivo em que se funda a presente execução se formou – ou não – com respeito pela lei, implica que se atente na causa de pedir e no pedido formulados pela exequente nos seus requerimentos de injunção.

As causas de pedir são em ambos os casos contratos de concessão de crédito pessoal, através dos quais a ora exequente entregou à executada as quantias de 12.325,39€ e de 12.276,00€ a reembolsar em 84 prestações mensais, iguais e sucessivas.

Acontece que a exequente veio alegar, em ambas as situações, que os executados não pagaram as prestações acordadas, motivo pelo qual procedeu à resolução dos contratos de concessão de crédito, ficando em dívida as quantias de, respetivamente, 10.506,12€ e 12.134,92€, quantias que passaram a vencer juros a partir da data da resolução contratual.

Assim, em função desta causa de pedir, a exequente pretende o pagamento do valor global de 24.374,02€, onde se incluem juros remuneratórios e moratórios vencidos, a que acrescerão também os juros vincendos.

3. Nos termos do art. 7º do anexo ao Dec. Lei n.º 269/98 de 1.9. considera-se injunção “a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1º do diploma preambular ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003 de 17 de fevereiro”.

Verifica-se assim que são duas as situações que podem fundamentar o uso deste processo especial: i) transações comerciais nos termos do Dec. Lei n.º 32/2003 de 17.2.; ii) cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valor não superior a 15.000,00€ (artº. 1º. do Dec. Lei nº 269/98[3]).

Excluída a primeira situação quanto ao caso dos autos, há que centrar a nossa atenção na segunda.

Sobre o conteúdo do conceito “obrigações pecuniárias emergentes de contratos” escreve PAULO DUARTE TEIXEIRA (in “Os Pressupostos Objectivos e Subjectivos do Procedimento de Injunção”, “Themis”, VII, nº 13, págs. 184/185) que essas obrigações são “(…) apenas aquelas que se baseiam em relações contratuais cujo objecto da prestação seja directamente a referência numérica a uma determinada quantidade monetária (…)”, para depois concluir que “daqui resulta que só pode ser objecto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias directamente emergentes de contrato, mas já não pode ser peticionado naquela forma processual obrigações com outra fonte, nomeadamente, derivada de responsabilidade civil. O pedido processualmente admissível será, assim, a prestação contratual estabelecida entre as partes cujo objecto seja em si mesmo uma soma de dinheiro e não um valor representado em dinheiro.”

No mesmo sentido, se pronuncia SALVADOR DA COSTA (Injunções e as Conexas Ação e Execução, 5ª ed., pág. 41), ao escrever que “o regime processual em causa só é aplicável às obrigações pecuniárias directamente emergentes de contratos, pelo que não tem a virtualidade de servir para a exigência de obrigações pecuniárias resultantes, por exemplo, de responsabilidade civil, contratual ou extracontratual…”.

Seguindo esta orientação, fundada quer na letra da lei, quer em atenção à intenção legislativa bem descrita no preâmbulo do diploma, o procedimento de injunção não está vocacionado para a exigência de cumprimento de qualquer obrigação, necessariamente pecuniária e de valor não superior a 15.000,00€.

Para além disso, essa obrigação tem que ser a que resulta diretamente do contrato invocado como causa de pedir, isto é, tem que ser a própria prestação contratualmente prevista. Como exemplos típicos, tendo havido um bem vendido, locado, ou um serviço prestado, a injunção destina-se à exigência do preço estipulado no contrato como contrapartida.

Na jurisprudência, adotando este entendimento segundo o qual o objeto admissível dos procedimentos de injunção se restringe às obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contratos, indicamos, a título exemplificativo, os seguintes acórdãos: TRP de 15.1.2019, proc. nº 141613/14.0YIPRT.P1 (do presente relator); TRP de 7.6.2021, proc. nº 2495/19.0T8VLG-A.P1 (JOAQUIM MOURA); TRL de 25.5.2021, proc. nº 113862/19.2YIPRT.L1-7 (CRISTINA COELHO); TRP de 8.11.2022, proc. nº. 901/22.5T8VLG-.P1 (ALEXANDRA PELAYO); TRP de 25.2.2025, proc. nº 3261/24.6T8VLG.P1 (RUI MOREIRA)[4], TRP de 9.10.2025, proc. nº 47/25.4T8VLG.P1 (CARLOS CUNHA RODRIGUES CARVALHO), todos disponíveis in www.dgsi.pt.

4. Sucede que, no caso “sub judice”, nos requerimentos de injunção dados à execução não se pede tão-somente o cumprimento de uma obrigação pecuniária, mas sim, com mais propriedade, a efetivação das consequências da extinção dos contratos de concessão de crédito em virtude da sua resolução.

Ou seja, o pedido efetuado corresponde não ao cumprimento de uma obrigação pecuniária diretamente prevista no contrato de crédito celebrado entre as partes, mas ao exercício da responsabilidade civil contratual subsequente à resolução desse mesmo contrato, por incumprimento, com todas as consequências daí advindas: vencimento imediato de todas as prestações previstas e contabilização de juros de mora, a acrescer aos juros remuneratórios já incluídos nas prestações.

Em suma, tal como se concluiu no Ac. Rel. Porto de 25.2.2025, em caso similar, não é pretendida a realização da prestação contratada, mas sim uma obrigação com um conteúdo diferente e a cumprir em condições diversas das contratadas, decorrente da extinção (justificada) do contrato.

Por conseguinte, o procedimento de injunção surge desde o início como meio processual impróprio para que a “Banco 1...” possa obter a satisfação do seu crédito, isto porque tal crédito não se subsume ao conceito de cumprimento de obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contrato, situação que, verificando-se, prejudica o posterior reconhecimento da qualidade de título executivo que adveio da aposição de fórmula executória ao requerimento injuntivo.[5]

Assim sendo, estando-se perante um título executivo ilegal, porque obtido em desrespeito dos pressupostos legalmente exigidos para o recurso ao procedimento de injunção, impõe-se confirmar a decisão recorrida, que qualificando acertadamente tal situação como exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, rejeitou a execução.

O que importa a improcedência do recurso interposto.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela exequente “Banco 1..., Sucursal da S.A. Francesa” e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas, pelo seu decaimento, a cargo da recorrente.


Porto, 12.12.2025
Rodrigues Pires
Rui Moreira
Anabela Miranda
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[1] Também nesse sentido aponta o Ac. Rel. Lisboa de 9.3.2017, proc. 17398/15.9T8LRS.L1-2, relatora TERESA ALBUQUERQUE, disponível in www.dgsi.pt.
[2] Disposições de carácter geral que têm também aplicação no processo executivo por força do disposto no art. 551º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil.
[3] Diz-se neste preceito o seguinte: «É aprovado o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15000, publicado em anexo, que faz parte integrante do presente diploma.»
[4] Em que o ora relator foi primeiro adjunto e cuja estrutura seguiu no presente acórdão.
[5] De qualquer modo, a solução processual adotada não inviabiliza o direito de ação que a aqui exequente sempre terá relativamente ao eventual incumprimento dos contratos de concessão de crédito em causa.