ATRIBUIÇÃO DE CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ANULAÇÃO DA DECISÃO
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Sumário

I - Tendo sido julgado improcedente, no despacho saneador, a exceção do erro na forma do processo e não tendo o recorrente impugnado esta decisão com o recurso interposto da sentença, está definitivamente adquirido nos autos que pode ser utilizado o processo de jurisdição voluntária previsto no art. 990º do C.P.C. para a requerente pedir a condenação do requerido a pagar-lhe uma compensação pela utilização exclusiva da casa de morada de família.
II - Tendo o tribunal recorrido declarado que, “com interesse para o conhecimento de mérito da causa, não houve factualidade não provada”, resulta claro que os factos alegados pelas partes que o tribunal recorrido considerou relevantes para a decisão da causa são apenas os factos que constam da matéria de facto provada.
III - Constituindo a casa de morada de família bem comum, o ex-cônjuge que não usufrui da mesma tem direito a receber compensação, na fixação da qual se deve considerar o valor locativo do imóvel e a situação patrimonial dos ex-cônjuges.
IV - Conforme resulta do art. 986º nº 2 do C.P.C., o tribunal não depende da alegação pelas partes do valor locativo da casa de morada de família, podendo conhecer oficiosamente desse facto.

Texto Integral

Processo: 2330/24.7T8VNG-A.P1

Sumário
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

No presente processo de jurisdição voluntária de atribuição de casa de morada de família, em que é requerente AA e requerido BB, este interpôs recurso da sentença pela qual foi julgada a ação procedente e, em consequência, foi condenado o requerido “a pagar a totalidade das despesas pelo uso exclusivo da casa de morada de família identificada nos autos, desde abril de 2024 e até à partilha, designadamente todas as despesas bancárias e mensalidades associadas ao mútuo a ela relativo e às despesas domésticas associadas”.
Na alegação de recurso, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
«1ª - A sentença é omissa quanto a factos não provados, sendo que inúmeros alegados pelo Recorrente, que não tendo sido dados como provados, teriam assim de ser descriminados;
2ª - O que viola o disposto nos nºs 3 e 4 do Artº 607 do Código de Processo Civil;
3ª - O que é ilegal e viola o princípio do direito ao recurso que fica cerceado, e que nos termos do Artº 615, nº 1 alínea c) do CPC é sancionado com nulidade, que aqui expressamente se invoca e deve ser declarada;
4ª - O que face à natureza da sentença condenatória, que a falta de fundamentação limita o próprio direito ao recurso, o que cerceia o previsto direito ao Recurso (Artº 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa)
5ª - Não se apreende como o Tribunal a quo, valorou e credibilizou as declarações de parte, julgando, sem fundamentar, as declarações de parte da Recorrida como, "claro, franco e seguro pela Requerente", sendo que no que tange às declarações do Requerido as considerou "comprometida e pouco expontânea"
6ª - Eis a frase com que o Tribunal destrinça, sem explicar o porquê, de valorar um depoimento em detrimento, de outro, por mera opção, não rectratada na documentação da audiência;
7ª - Da transcrição realizada resulta que todas as perguntas importantes e com relevo para os autos, não foram respondidas pela Recorrida, ou foram "descartadas" com respostas para "o lado";
8ª - De tal modo havia interesse e necessidade numa célere resolução que a Recorrida saiu de casa, ante a condição de pagamento das prestações bancárias, o que só podia ter pressupostos de celeridade;
9ª - Pois que o Recorrente não pretendia pagar prestações em divida da sua ex- -mulher, e muito menos indefinidamente, mais ainda quando aquela tem condições de pagar:
10ª - Aliás, pela simples soma dos encargos bancários, das necessidades de vida, dos custos inerentes ao uso da casa, o Recorrente não auferia rendimentos que permitissem assegurar tal pagamento, senão por um curto período de tempo;
11ª - Pois que enquanto casado, o mesmo despendia quase a totalidade dos seus rendimentos com os encargos familiares, não tendo quantias escondidas, pois nada lhe era dado a conhecer, limitando-se, a quase tudo pagar, o que até foi confessado em parte pela Recorrida;
12ª - O documento junto aos autos, como resulta da prova produzida, foi redigido muito depois do acordo realizado entre os ex-cônjuges quanto ao destino da casa de morada de família, e depois de pedidos de avaliação do imóvel por ambos os então cônjuges, pelo que, pelas regras de experiência resulta já a discussão de valores, de prazo de realização da partilha, não podendo o Recorrente assumir o pagamento de valores que não tinha, nem poderia suportar, face aos custos superiores às receitas;
13ª - Assim, ante a prova documental, a existência de confissão que a Recorrida pretendeu receber montantes inerentes a um acidente de viação sofrido pelo Recorrente naquele período (o que demonstra a negociação de valores e oportunismo) deve ser alterada a resposta ao nº 4 dos factos dados como provados, passando a do mesmo constar:
4) Pelo ora requerido foi então declarado à requerente que continuaria a pagar integralmente as prestações mensais e demais encargos relativos à casa, pelo facto de nela ficar a residir sozinho, até à partilha, o que aquela lhe declarou aceitar, com a condição da partilha se realizar a breve trecho e em período não superior a 3 ou 4 meses
14ª - Face aos poderes de modificabilidade da matéria de facto do Artº 662º do Código de Processo Civil, que deve actuar oficiosamente, ser determinada a ampliação da matéria de facto, no seguinte ponto:
a) Após o acordado no ponto nº 4 dos factos dados como provados, e porque fossem realizadas inúmeras manobras dilatórias pela Recorrida, no propósito de não realizar a partilha no prazo acordado, o Recorrente passou a depositar o montante correspondente a metade do valor dos créditos em dívida.
15ª - Aquando da acordada utilização da casa de morada de família, a Recorrida aceitou-o sem a redacção do documento entretanto junto, e que não retracta o que foi falado entre os interessados, sendo que sem data, o mesmo não representa, com fidedignidade o ocorrido, nem, pelo já invocado, tem qualquer valor jurídico, face às normas imperativas do pagamento das dividas comuns;
16ª - Atento o decretamento do divórcio, e os efeitos retroagidos à data de 1 de Janeiro de 2024, a declaração assinada, à posteriori, não goza de quaisquer efeitos jurídicos patrimoniais, ante o previsto no Artº 1789º, nº 2 do Código Civil;
17º - Sendo pressuposto da utilização da casa de morada de família a necessidade ou a premência da necessidade, ou alteração substancial das condições de vida do necessitado, também nenhuns factos foram alegados que demonstrem, uma alteração significativa dos pressupostos que levaram as partes a terem acordado, como acordaram;
18ª - Pelo que sempre, ainda se pretenda alguma benevolência, inexiste a alegação de factos que materializem a causa de pedir, que se exige;
19ª - Por outro lado, também o pedido, não decorre da normal interpretação, pois que não são obrigações fungíveis, e o que a Recorrida pretende é que, com um direito que não quis, obter vantagem patrimonial injustificada.
20ª - Nem a Doutrina, nem a Jurisprudência dão guarida ao pedido formulado pela Recorrida, acrescido, da falta de causa de pedir, tendo por isso a lide que improceder; Mas Mais,
21ª - A Recorrida tem situação financeira desafogada, auferindo 1900,00 euros mensais, líquidos, sendo que lhe é possível arrendar imóvel, além de que tem habitação e condição financeira condigna, pois doutro modo, teria alegado a necessidade ou premência da necessidade da utilização da casa de morada de família, o que não fez;
22ª - Apesar do Recorrente auferir valor salarial bruto superior, antes a muito maior retenção da fonte e descontos para a Segurança Social, a diferença do rendimento disponível é de apenas 500,00 euros, não havendo diferença substancial da disponibilidade financeira dos ex-cônjuges;
23ª - Porquanto se falou logo em sede inicial do valor da indemnização a que o Recorrente teria direito, tal demonstra que eram discutidos valores, meios de pagamento, o que é manifesto ser pressuposto da rápida outorga da escritura de partilha, pois doutro modo não faria sentido, tendo apenas de tratar-se dos acordos de divórcio por mutuo consentimento, o que manifestamente não se conseguiu, face ao entorpecimento do acordo:
24ª - Atentos os efeitos patrimoniais do divórcio, e a data em que foi fixada, não há obrigações assumidas por quem já é devedor solidário, a menos que o credor nisso assinta, nos termos do Artº 595º do Código Civil, o que não é viável atenta a inexistência de relações patrimoniais entre os ex-cônjuges após 1 de Janeiro de 2024, pelo que a declaração outorgada carece de quaisquer efeitos jurídicos;
25ª - Uma obrigação solidária, face a pessoas divorciadas, não permite a assumpção da divida ou a cessão de créditos, excepto se o credor o permitir, e teria do assumptor, não ser já devedor, face ao previsto no Artº 595º do Código Civil;
26ª - Além do acordo realizado e que não há qualquer alteração de facto da Recorrida, é o Recorrente quem carece da casa de morada de família, pois doutro modo teria de percorrer cerca de 200 quilómetros diários para trabalhar, assim como imporia aos filhos menores acordarem cerca das 6:30 da manhã para poderem chegar às Escolas em tempo;
27ª - Face à inexistência de relações patrimoniais desde 1 de Janeiro de 2024, e por a Recorrida não carecer de alimentos, não pode o Recorrente ser responsável por dividas comuns e solidárias, sob pena de alteração das regras imperativas que regem o regime das dividas comuns;
28ª - A sentença faz alterar o regime imperativo das dividas solidárias no regime de comunhão de adquiridos, e afecta o princípio da imutabilidade do regime de bens, permitindo que o Recorrente pagasse, com bens próprios, dividas de terceiros, quando há património comum responsável por esse pagamento, o que não é permitido pelo ordenamento jurídico, que visa a realização da justiça;
29ª - Por ter meios, a Recorrida, como qualquer devedor, tem de assumir e liquidar, tal como o faz o Recorrente, os valores da divida comum, pois que não carece de alimentos e tem meios de liquidar o que é seu, sob pena do Recorrente ser só "proprietário" do passivo, e a Recorrida proprietária do "activo," derrogando-se qualquer ideia de igualdade entre os cônjuges.
30ª - A douta sentença, com a aplicação do direito como fez, viola expressamente os Artº 1730 e 1689 do Código Civil, pois obriga um devedor solidário a liquidar sozinho uma divida comum e havendo património do outro devedor, para pagar, assim como existe património comum;
31ª - O recorrente não tem rendimentos, sequer, para custear e assumir o pagamento das prestações, e sabendo-se que o mesmo é intelectualmente qualificado e um profissional de mérito, não terá perdido a racionalidade, para assumir obrigações que o levassem à insolvência.
32ª - Pelo que nunca assumiria uma obrigação, nesses moldes, ad aeternum;
33ª - A Douta sentença recorrida, promove o enriquecimento sem causa da Recorrida, o que vai contra o ordenamento jurídico e a noção de justiça que lhe subjaz;
34ª - Estão verificados os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa, previstos no Artº 473º do Código Civil e seguintes;
35º - A Douta sentença viola o disposto nos Artºs 980º, 607, nºs 3, 4 e 5 do Código de Processo Civil, Artºs 1793º, 1789º, nº 2, 342º, 334º, 512°, 518 e 473 e seguintes do Código Civil.»
A requerente respondeu à alegação do recorrente, tendo formulado as seguintes conclusões:
«A. A Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo não padece de qualquer vício, erro de julgamento ou nulidade, tendo efetuado uma correta apreciação da prova produzida e uma justa aplicação do Direito, devendo, por isso, ser integralmente mantida.
B. Não se verifica a nulidade da sentença (Art. 615º, n.º 1, al. c) CPC), porquanto o Tribunal a quo declarou expressa e positivamente na fundamentação que “não houve factualidade não provada”, não cerceando, como se vê, qualquer direito de recurso.
C. A impugnação da matéria de facto deve ser rejeitada, por o Recorrente apresentar transcrições da prova áudio que são parciais, descontextualizadas e seletivamente editadas (como se demonstrou quanto à resposta em do áudio da Recorrida), violando o ónus de rigor do Art. 640º do CPC.
D. A audição da prova gravada, contrariamente ao alegado, confirma integralmente a convicção da 1ª Instância, demonstrando que o depoimento do Recorrente foi evasivo (e.g., "combinamos, como assim?") e que o seu incumprimento foi uma decisão unilateral ("porque eu percebi...").
E. A mesma prova áudio confirma que a Recorrida, questionada por três vezes pela Meritíssima Juíza, negou de forma "consistente, clara, franca e segura" a existência de qualquer prazo-limite ou condição.
F. A tese do Recorrente de que o acordo estava condicionado a um "breve trecho" é, assim, uma pura ficção de recurso, sem qualquer suporte na prova documental (o Doc. 2 da P.I.) ou na prova gravada.
G. Inexiste falta de causa de pedir: o objeto dos autos não é a atribuição da casa à Recorrida (Art. 1793º CC), mas sim a fixação de uma compensação (renda) pelo uso exclusivo de um bem comum, ao abrigo da equidade (Art. 987º CPC) e do acordo livremente celebrado entre as partes.
H. O acordo celebrado não é uma "assunção de dívida" (Art. 595º CC). Trata-se de uma válida regulação inter partes da compensação devida pelo uso exclusivo do bem, sendo o valor da prestação apenas o quantum (montante) acordado para essa compensação, não alterando a relação externa com o credor.
I. A retroatividade dos efeitos do divórcio (Art. 1789º CC) a 01/01/2024, anterior à assinatura do acordo, reforça a pretensão da Recorrida, pois coloca o imóvel em regime de compropriedade, tornando ainda mais evidente a obrigação de compensação pelo uso exclusivo (Art. 1406º CC).
J. A Douta Sentença não viola o regime de bens (Art. 1689º CC), pois o Recorrente não está a pagar uma "dívida" da Recorrida com "bens próprios"; está, sim, a pagar uma compensação (renda) pelo uso de um ativo que não é seu na totalidade.
K. É o Recorrente, e não a Recorrida, quem age em manifesto Abuso de Direito (Art. 334º CC), na modalidade de venire contra factum proprium: foi ele quem propôs o acordo, levou a Recorrida a sair da casa com base nessa promessa, cumpriu o acordado por três meses (Facto Provado n.º 5) e, agora, vem "dar o dito pelo não dito".
L. É o Recorrente, e não a Recorrida, quem se beneficiaria de Enriquecimento Sem Causa (Art. 473º CC) se a sua pretensão vencesse. O Recorrente pretende usufruir em exclusivo de um imóvel de elevado valor, pagando apenas metade dos seus encargos, enriquecendo à custa do empobrecimento da Recorrida, que está privada do uso do seu bem.
M. A Douta Sentença recorrida, ao fazer valer o acordo e a equidade, mais não fez do que repor a justiça e impedir o enriquecimento injusto do Recorrente, aplicando corretamente o Direito.»

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No despacho saneador, pode ler-se:
«No âmbito da ação principal, de divórcio, por sentença de 11/06/2024, transitada em julgado, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento entre as partes, pois obtiveram acordo a esse respeito, tendo apresentado os acordos devidos, com exceção do relativo ao uso da casa de morada de família, por existirem divergências entre as partes a esse respeito.
Consequentemente, o tribunal determinou, sem oposição das partes, que ficasse notificada a aí ré para, no prazo de 10 dias, querendo, deduzir oposição ao alegado pelo autor a esse respeito na petição inicial, juntando os respetivos meios de prova, nos termos do n.º 2 do art.º 990.º do Código de Processo Civil, e que, junta aos autos de divórcio essa oposição da ré, se extraísse certidão da petição inicial e dessa peça processual, autuando-se por apenso, como ação de atribuição da casa de morada de família.
Por razões que são alheias ao tribunal, a aqui requerente não cumpriu o determinado, antes dando início ela mesma a ação de atribuição do uso da casa de morada de família, invocando a norma do artigo 931.º, n.º 9, do Código de Processo Civil, e pedindo a condenação do réu compensá-la pela utilização da casa de morada de família, mediante o pagamento, até à partilha, e desde 01/01/2024, das mensalidades e despesas bancárias associadas aos dois mútuos outorgados por ambos os requerentes, por força dos financiamentos para aquisição da referida casa de morada de família (um para aquisição de habitação própria e permanente e outro de crédito ao consumo) e, bem assim, os respetivos consumos do imóvel e tributos, uma vez que desde a referida data tem o réu uso exclusivo do bem.

Estabelece o artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
A circunstância de a ora requerente invocar na petição inicial que apresentou nestes autos, o artigo 931.º, n.º 7 e 9, do Código de Processo Civil, não vincula o tribunal na aplicação das regras de direito, já que considerando o seu pedido (de condenação do réu compensá-la pela utilização da casa de morada de família, mediante o pagamento, até à partilha, e desde 01/01/2024, das mensalidades e despesas bancárias associadas aos dois mútuos outorgados por ambos os requerentes, por força dos financiamentos para aquisição da referida casa de morada de família), é manifesto que este é compatível com a previsão da norma do artigo 990.º do Código de Processo Civil e do artigo 1793.º do Código Civil, que entretanto citou na sua resposta antecedente.

Consequentemente, não obstante a ora requerente citar norma processual incorreta, não há dúvida de que a ação em curso é a prevista no artigo 990.º do Código de Processo Civil, considerando o efetivo pedido formulado e a matéria factual por si alegada, sendo certo que sempre incumbiria ao tribunal convidar à adequação formal, caso assim não fosse e o entendesse necessário para a conformação correta da causa.
Não há, portanto, qualquer erro na forma do processo, nem ineptidão do requerimento inicial, pelo que improcede a questão suscitada pelo requerido.»
No recurso interposto, o recorrente não impugnou esta decisão, tendo a mesma transitado em julgado e, portanto, tendo força obrigatória dentro do processo (art. 620º nº 1 do C.P.C.).
“Nestas circunstâncias, está definitivamente adquirido nos autos que os mesmos, grosso modo, identificados por referência ao disposto no art.º 990.º, do C. P. Civil, são o meio processual adequado à apreciação judicial da pretensão da A, mais propriamente, que a mesma podia utilizar esta forma processual para pedir a condenação do requerido a entregar--lhe uma compensação pela utilização da casa de morada que foi da família” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 27 de fevereiro de 2025, no processo 2557/22.6T8LSB-B.L1.SI).
Assim, são apenas as seguintes as questões a decidir:
- da nulidade da sentença recorrida;
- da impugnação da decisão sobre a matéria de facto; e
- da compensação pelo uso exclusivo da casa de morada de família.
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Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
«1) Autora e réu casaram no dia 26 de junho de 2020, sem convenção antenupcial.
2) As partes estabeleceram a sua residência, com os dois filhos menores de idade, na fração autónoma destinada a habitação, de tipologia T3, sita na Rua ..., hab. ..., em ..., Vila Nova de Gaia, inscrita na matriz sob o artigo ... e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., fração esta que foi adquirida pelas partes com recurso a financiamento de instituição bancária, com constituição de garantia hipotecária, mediante o pagamento da respetiva contrapartida mensal, acrescida de encargos, incluindo prémios de seguros, e juros acordados.
3) Na sequência da rutura do seu relacionamento conjugal, por acordo dos então cônjuges, no dia 1 de janeiro de 2024, a aqui requerente saiu dessa habitação, levando consigo os dois filhos do casal, passando o requerido a ocupá-la, usá-la e frui-la em exclusivo desde essa data e até à presente data.
4) Pelo ora requerido foi então declarado à requerente que continuaria a pagar integralmente as prestações mensais e demais encargos relativos à casa, pelo facto de nela ficar a residir sozinho, até à partilha, o que aquela lhe declarou aceitar.
5) O requerido procedeu ao pagamento da totalidade do valor de tais prestações nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2024, através de depósito na conta titulada pelas partes no Banco 1..., com o n.º ... e IBAN ..., designadamente pelo valor de € 1705,79.
6) A partir do mês de abril de 2024, o réu passou a transferir metade do valor mensal das referidas prestações.
7) No âmbito do processo principal, por sentença de 11 de junho de 2024, transitada em julgado, foi declarada a dissolução do casamento entre as partes, por divórcio por mútuo consentimento, nos termos constantes da ata da mesma data, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, homologando os acordos obtidos, com exceção do relativo ao uso da casa de morada de família.
8) Nessa sede, foi estipulado o regime de exercício das responsabilidades parentais dos filhos das partes, CC e DD, nascidos respetivamente em ../../2022 e ../../2015, pelo qual a sua residência está fixada com ambos os pais alternadamente, por períodos de uma semana, de segunda-feira a segunda-feira.
9) A autora encontra-se a habitar na residência dos seus pais, reformados, sita na Rua ..., ..., tendo consigo os dois filhos das partes em semanas alternadas.
10) A requerente exerce a atividade de gestora de recursos humanos ao serviço de A..., S.A., auferindo o salário mensal bruto de € 2.650,00.
11) Em despesas pessoais, domésticas e correntes, incluindo alimentação para os filhos, despende quantia não inferior a € 700,00 mensais, a que acrescem as despesas escolares e de saúde, na proporção de metade do respetivo custo.
12) O requerido exerce a atividade de diretor de marketing ao serviço de B..., S.A., auferindo o salário mensal bruto de € 4.220,00, residindo sozinho com os filhos das partes, em semanas alternada, no prédio identificado em 2).
13) Em despesas pessoais, domésticas e correntes, incluindo alimentação para os filhos, despende quantia não inferior a € 1.100,00 mensais, a que acrescem as despesas escolares e de saúde, na proporção de metade do respetivo custo, e com atividades desportivas do filho mais velho.
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Na sentença recorrida, o tribunal recorrido declarou que, “com interesse para o conhecimento de mérito da causa, não houve factualidade não provada”.
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Nas conclusões recursivas, pode ler-se:
«1ª - A sentença é omissa quanto a factos não provados, sendo que inúmeros alegados pelo Recorrente, que não tendo sido dados como provados, teriam assim de ser descriminados;
2ª - O que viola o disposto nos nºs 3 e 4 do Artº 607 do Código de Processo Civil;
3ª - O que é ilegal e viola o princípio do direito ao recurso que fica cerceado, e que nos termos do Artº 615, nº 1 alínea c) do CPC é sancionado com nulidade, que aqui expressamente se invoca e deve ser declarada».
Nos termos do art. 615º nº 1 al. c) do C.P.C., “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
No tocante à causa de nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do art. 615º do C.P.C., “vem-se entendendo, sem controvérsia, que a oposição entre os fundamentos e a decisão constitui um vício da estrutura da decisão. Radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 2 de junho de 2016, processo 781/11.6TBMTJ.L1.S1).
“A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, anotação ao art. 670º).
Não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que é causa da nulidade da sentença, mas apenas aquela que torne a decisão ininteligível.
À decisão sobre a matéria de facto não é aplicável o regime das nulidades da sentença previsto no artigo 615º nº 1 do C.P.C., mas sim o disposto no art. 662º nº 2 als. c) e d) do C.P.C.
Nos termos do art. 662º nº 2 al. c) do C.P.C., “a Relação deve…, mesmo oficiosamente: anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto”.
Resulta do art. 607º nº 4 do C.P.C., aplicável por força dos arts. 295º e 986º nº 1 do C.P.C., que, “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados”.
“… o que deve ser claro para os destinatários imediatos da decisão – as partes – é a apreensão consistente dos factos que foram julgados provados e não provados e se, nalguns casos, essa tarefa se afigura isenta de dificuldades compreensivas, noutras há-de o julgador fazer uma indicação inequívoca de modo a que a sentença, nessa parte, não deixe margem para dúvidas, que, como se disse, podem criar à parte que discorde do julgamento dificuldades no acesso ao direito de ver reapreciada a prova em sede de recurso para o Tribunal da Relação” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 26 de fevereiro de 2019, no processo 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2).
Na fundamentação da sentença recorrida, o tribunal recorrido declarou que, “com interesse para o conhecimento de mérito da causa, não houve factualidade não provada”.
Resulta claro da sentença recorrida que os factos alegados pelas partes que o tribunal recorrido considerou relevantes para a decisão da causa são apenas os factos que constam da matéria de facto provada.
Improcede, pois, a arguição da nulidade da sentença recorrida.
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Nas conclusões recursivas, o recorrente especificou como incorretamente julgado o ponto 4 da matéria de facto provada.
Tal ponto é do seguinte teor:
“Pelo ora requerido foi então declarado à requerente que continuaria a pagar integralmente as prestações mensais e demais encargos relativos à casa, pelo facto de nela ficar a residir sozinho, até à partilha, o que aquela lhe declarou aceitar.”
No entender do recorrente, deveria ser dado como provado que “pelo ora requerido foi então declarado à requerente que continuaria a pagar integralmente as prestações mensais e demais encargos relativos à casa, pelo facto de nela ficar a residir sozinho, até à partilha, o que aquela lhe declarou aceitar, com a condição da partilha se realizar a breve trecho e em período não superior a 3 ou 4 meses.”
O que o recorrente quer que seja aditado ao ponto 4 da matéria de facto provada vai além do por si alegado na contestação, pois do artigo 19º da contestação, consta apenas que “o pretendido acordo realizado, …, pressupunha uma regularização da partilha, a breve trecho, sem que a Requerente ousasse ter direito a indemnização por acidente de viação sofrido pelo Requerido, ou sequer, que, estando este interessado no imóvel, o mesmo valha cerca de 275.000,00 euros, mas se a interessada for a Requerente, não vale mais de 230.000,00 euros.”.
No corpo da alegação do recorrente, foram transcritos excertos das declarações por si prestadas na audiência final que ficam aquém da factualidade que quer que seja aditada ao ponto 4 da matéria de facto provada, sendo de salientar o seguinte:
“… isto foi sempre no pressuposto que seria algo rápido, não algo que já tem um ano e meio… depois aquilo que foi falado antes de assinar esse papel, não foi cumprido, à posteriori, da assinatura desse documento, porque passado 2, 3, 4 meses no máximo, percebeu-se que o intuito não era resolver as coisas da forma como tinham sido faladas”.
Dos excertos transcritos não há qualquer alusão a condição nem a prazo.
É, pois, de manter o ponto 4 da matéria de facto provada sem o aditamento pretendido pelo recorrente.
No entender do recorrente, a matéria de facto provada deveria ser ampliada, passando a constar da mesma que, “após o acordado no ponto nº 4 dos factos dados como provados, e porque fossem realizadas inúmeras manobras dilatórias pela Recorrida, no propósito de não realizar a partilha no prazo acordado, o Recorrente passou a depositar o montante correspondente a metade do valor dos créditos em dívida”.
Conforme atrás referido, não resulta dos excertos das declarações do recorrente transcritos no corpo da alegação a existência de “prazo acordado”.
Dos excertos das declarações do recorrente transcritos no corpo da alegação é relevante para a ampliação pretendida o seguinte:
“eu paguei só com metade, com a minha obrigação, porque percebi que o objectivo não era obter um desfecho tão célere como possível, como é óbvio; eu próprio já tinha, essa pessoa que nos tratou da venda da casa, e a qual eu consultei com acordo de ambos, para perceber quanto é que podia valer a habitação, essa própria pessoa já tinha um pré-acordo com o Banco 2..., se não me engano, para eu depois poder reestruturar o crédito habitação depois de estar tudo efectuado, ou de estar tudo pendente até ao momento, pois como volto a referir, não foi efectuado mediante a nossa conversa telefónica e portanto, eu a partir de Abril passei o assumir os meus encargos, portanto a minha metade, uma vez que é um crédito à habitação que ainda pertence aos dois.”
Deste excerto não resulta a factualidade que o recorrente quer ver aditada à matéria de facto provada.
Assim, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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Nos termos do art. 662º nº 2 al. c) do C.P.C., “a Relação deve…, mesmo oficiosamente: anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto”.
O ponto 7 da matéria de facto provada é do seguinte teor:
“No âmbito do processo principal, por sentença de 11 de junho de 2024, transitada em julgado, foi declarada a dissolução do casamento entre as partes, por divórcio por mútuo consentimento, nos termos constantes da ata da mesma data, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, homologando os acordos obtidos, com exceção do relativo ao uso da casa de morada de família.”
A redação deste ponto não é clara, porque fica a dúvida se a exceção se refere à homologação se à obtenção de acordos.
Da ata dada por integralmente reproduzida consta o seguinte:
- “Pelas partes foi dito que, quanto ao destino da casa de morada de família, não têm neste momento acordo, por ambas as partes pretenderem ter o seu uso, não se opondo a que seja decretado o divórcio, prosseguindo o incidente próprio para decisão dessa matéria, como neste momento sugerido pelo tribunal.”
Assim, altera-se a redação do ponto 7 da matéria de facto provada que passa a ser a seguinte:
7) No âmbito do processo principal, por sentença de 11 de junho de 2024, transitada em julgado, foi declarada a dissolução do casamento entre as partes, por divórcio por mútuo consentimento, nos termos constantes da ata da mesma data, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, homologando os acordos obtidos, sendo que apenas não foi obtido acordo sobre o destino da casa de morada de família.
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Nos termos do art. 1793º nº 1 do C.C., “pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”.
“Não se trata, efectivamente, de um resultado do ajuste de contas desencadeado pela crise do divórcio, …, mas de uma necessidade provocada pela separação definitiva dos cônjuges, que a lei procura satisfazer com os olhos postos na instituição familiar.
E o primeiro factor que a lei manda naturalmente considerar para o efeito é o da actual necessidade de cada um dos cônjuges, tendo em conta também, se for caso disso, a posição que cada um deles fica a ocupar, depois da dissolução do casamento, em face do agregado familiar.
O segundo factor atendível, dentro da solução flexível adoptada por lei, é o do interesse dos filhos do casal (proximidade do estabelecimento do ensino que frequentam, do local em que trabalham, etc.).
Não há nenhuma ordem rígida de prioridade entre os dois factores ou entre qualquer deles e outras circunstâncias atendíveis” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, anotação ao art. 1793º).
Resulta da matéria de facto provada que, “na sequência da rutura do seu relacionamento conjugal, por acordo dos então cônjuges, no dia 1 de janeiro de 2024, a aqui requerente saiu dessa habitação, levando consigo os dois filhos do casal, passando o requerido a ocupá-la, usá-la e frui-la em exclusivo desde essa data e até à presente data”.
Consta do artigo 43º da contestação que “sempre deve ser deferido ao R. a afectação da casa de morada de família ao mesmo, por só o mesmo ter efectiva necessidade da mesma”, o que significa que o requerido quer manter o uso exclusivo da casa de morada de família.
A requerente concorda com o uso exclusivo da casa pelo requerido, mas, conforme consta dos artigos 42 e 43 da petição inicial, entende que “a utilização pelo Réu da casa de morada de família só se revela oportuna, equilibrada ou justa mantendo-se o pressuposto do pagamento/assunção pelo mesmo, em exclusivo, das mensalidades devidas a título de financiamento bancário, vencidas desde a separação de facto (01.01.2024) e das vincendas até à partilha do imóvel, ainda que assumindo tais pagamentos como rendas pelo uso do referido bem”, “a que deverá acrescer as despesas a que o mesmo dê azo e, ainda, os tributos (IMI) que o referido bem gera pelo respectivo período de ocupação e até à partilha”.
Na fundamentação da sentença recorrida, pode ler-se:
«Como está provado, o requerido está a usar e a fruir a casa exclusivamente e tem condições financeiras para pagar a totalidade das despesas, mormente do mútuo bancário e do uso do imóvel (quotas de condomínio, despesas de fornecimento de água, eletricidade e outras utilidades domésticas), logo é apenas adequado que as pague, assim compensando a autora, mais ainda quando o acordou com esta e quando atuou em conformidade de janeiro a março de 2024.»
Conforme resulta do art. 1411º do C.C., no caso de uso exclusivo da casa de morada de família por um dos ex-cônjuges, pode ser derrogado por acordo o dever de contribuição proporcional para as despesas necessárias à conservação ou à fruição da casa, pondo-as totalmente a cargo de quem beneficia desse uso.
Todavia, não parece que as prestações mensais relativas ao empréstimo bancário para aquisição da casa de morada de família possam ser consideradas despesas necessárias à conservação ou fruição da coisa comum.
Por outro lado, não parece correto recorrer ao acordo referido nos pontos 3 e 4 da matéria de facto provada para fixar o valor da compensação. Trata-se de um acordo não homologado e consta da ata dada por integralmente reproduzida no ponto 7 da matéria de facto provada que “pelas partes foi dito que, quanto ao destino da casa de morada de família, não têm neste momento acordo, por ambas as partes pretenderem ter o seu uso”.
Acresce dizer que não parece que resulte da matéria de facto provada que o requerido “tem condições financeiras para pagar a totalidade das despesas”. Conforme consta da matéria de facto provada, a prestação mensal relativa à casa é no valor de € 1.705,79 e o requerido, “em despesas pessoais, domésticas e correntes, incluindo alimentação para os filhos, despende quantia não inferior a € 1.100,00 mensais, a que acrescem as despesas escolares e de saúde, na proporção de metade do respetivo custo, e com atividades desportivas do filho mais velho”. Auferindo o requerido “o salário mensal bruto de € 4.220,00”, será que o salário líquido é igual ou superior à “totalidade das despesas”?
«… face ao trânsito em julgado da sentença, na parte que decretou o divórcio, e por efeito deste, cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (art. 1688.º do CC), o certo é que, até à partilha, se mantém a chamada comunhão de mão comum ou propriedade colectiva (contitularidade de direitos reais), desaparecida que foi a razão de ser do regime específico instituído para o património comum dos ex-cônjuges, com aplicação à mesma das regras da compropriedade (art. 1404.º do CC).
E, assim, sabendo-se que o “comproprietário”, …, pretende exercer os seus direitos sobre o aludido prédio que foi a casa de morada de família do ex-casal, deles não prescindindo… sendo qualitativamente iguais os direitos dos “consortes” (art. 1403.º, nº 2 do CC) e sendo certo que o uso da “coisa comum” por um dos “comproprietários”, não constitui, em princípio, posse exclusiva ou posse superior à dele (art. 1406.º, nº 2 do mesmo CC), crê--se ter cabimento que aquele que da sua “quota-parte” não usufrui, tenha também direito a um gozo indirecto, que consistirá em perceber, tal como se locação houvesse, compensação pelo valor do uso de tal “quota-parte”» (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 26 de abril de 2012, no processo 33/08.9TMBRG.G1.S1).
“… na fixação da renda devida, deve valorar-se a situação económica de ambos e não apenas do cônjuge a quem for atribuído o direito ao arrendamento.
Não estar a fixação da renda nestes casos sujeita ao valor de mercado, mas sim a uma ponderação equitativa que atenda à situação patrimonial dos ex cônjuges, recomenda que, em primeiro lugar se considere o valor locativo real e atual do imóvel; depois, que em função da propriedade do imóvel se verifique qual o montante, em caso de o bem ser comum, que caberia em termos de proporção a cada um, caso o mesmo fosse arrendado pelo valor do mercado; por fim, as condições que o caso apresente como relevantes, sem perder a noção de, por ter de se atender também à situação patrimonial do ex cônjuge não arrendatário, o beneficio para o arrendatário não poder constituir um prejuízo desproporcionado para aquele outro (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 14 de setembro de 2023, no processo 3646/22.2T8VNG.P1.S1).
As partes não alegaram o valor locativo da casa de morada de família, mas, conforme resulta do art. 986º nº 2 do C.P.C., “o tribunal pode, no entanto, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes”.
“Ou seja, o juiz não está dependente de nenhum ónus de alegação pelos intervenientes, na precisa medida em que pode conhecer oficiosamente os factos, quer por investigação própria, quer na sequência de alegação dos interessados” (www.dgsi.pt Acórdão proferido pelo STJ a 27 de novembro de 2024, no processo 1467/24.7T8VFX.L1.S1).
Nos termos do art. 662º nº 2 al. c) do C.P.C., “a Relação deve…, mesmo oficiosamente: anular a decisão proferida na 1ª instância, … quando considere indispensável a ampliação” da matéria de facto.
Importa, pois, anular a sentença recorrida a fim de ser apurado não apenas o valor locativo da casa de morada de família, mas também o vencimento líquido auferido pela requerente e pelo requerido.
Por força do art. 662º nº 3 al. c) do C.P.C., “a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições”.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em alterar a redação do ponto 7 da matéria de facto provada nos termos acima referidos e em anular a sentença recorrida para ampliação da matéria de facto, devendo os autos baixar à 1ª instância a fim de ser apurado o valor locativo da casa de morada de família e o vencimento líquido auferido pela requerente e pelo requerido.
Custas da apelação pela parte vencida a final.

Porto, 12 de dezembro de 2025
Maria do Céu Silva
Anabela Miranda
Maria da Luz Seabra