PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
APENSOS
PROCESSO URGENTE
RECURSO
EXTEMPORANEIDADE
INADMISSIBILIDADE
Sumário


I – Por mor do estabelecido no artigo 9º Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o carácter urgente do processo de insolvência estende-se a todos os seus apensos, assim se potenciando a celeridade de todos esses processos.
II – A essa luz, a ação apensada ao processo de insolvência, nos termos do artigo 85º do mesmo diploma legal, passa a ter, a partir da apensação, carácter urgente.
III- Por essa razão, por aplicação do disposto no artigo 638º, nº 1, 2ª parte do Código de Processo Civil ex vi do artigo 17º Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, é de quinze dias o prazo para interposição de recurso da sentença prolatada nesses autos.

Texto Integral


Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão - Juiz ...

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I. RELATÓRIO

Na presente ação declarativa sob a forma de processo comum (que foi apensada ao processo de insolvência  de AA por aplicação do disposto no nº 1 do art. 85º do CIRE) instaurada pela Massa Insolvente de AA contra BB e AA, foi proferida sentença, em 24.05.2025, em cujo dispositivo consta: (1) declarar ineficaz em relação à Massa Insolvente de CC o negócio de partilha, de compra e venda e de assunção de dívidas celebrado em 21/4/2021 entre os Réus; (2) declarar que os bens partilhados identificados na escritura de 21/04/2021 – verbas n.ºs 1 a 5 - são bens comuns do casal; (3) determinar que o prédio urbano, composto por casa de dois pavimentos, coberto e logradouro, sito no Lugar ..., Rua ..., ..., da União de Freguesias ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...35, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...04/..., uma vez apreendido para a massa insolvente, lhe seja entregue livre e devoluto de pessoas e bens que não pertençam ao insolvente; (4) ordenar o cancelamento do registo de aquisição com a Ap. ...14 de 2021/04/26.
Não se conformando com a aludida sentença, a Ré, em 08.07.2025, veio dela recorrer.
Pronunciando-se sobre a verificação dos pressupostos formais de recorribilidade, o juiz de 1ª instância, em despacho proferido em 18.09.2025, não admitiu o recurso por considerar que o mesmo foi interposto fora do prazo. Sustentou esse entendimento no pressuposto de que o prazo de que a recorrente dispunha para o efeito seria de 15 dias (e não 30 dias), dada a natureza urgente que o processo reveste por força do disposto no art. 9º do CIRE.
A Ré veio reclamar desse despacho para este Tribunal da Relação, ao abrigo do preceituado no art. 643º do Código de Processo Civil, concluindo que deve ser admitido o recurso por si interposto.

Com o requerimento de reclamação apresentou as seguintes
CONCLUSÕES

a) Os presentes autos configuram uma ação de processo comum, a qual foi apensa ao processo de insolvência por força do disposto no artigo 85º, nº 1 do CIRE.
b) A referência no artigo 9º, nº 1 do CIRE aos apensos do processo de insolvência abrange tão só os apensos típicos do processo elencados no CIRE.
c) À ação de processo comum é aplicável o regime do Código de Processo Civil, sendo com base neste diploma que se deve aferir da sua natureza urgente ou não urgente.
d) O disposto no artigo 9º, nº 1 do CIRE não deve ser aplicado aos presentes autos.
e) A presente ação nunca foi processada como se tratasse de um processo urgente.
f) A ação teve até à prolação da sentença uma pendência de aproximadamente dois anos, nunca foram praticados atos em férias judiciais, foi permitida a suspensão da instância por 30 dias, entre a audiência prévia e a audiência de julgamento decorreu um ano e entre as duas sessões da audiência de julgamento decorreram praticamente dois meses.
g) Perante tais factos, é de concluir que a forma como esta ação foi tratada tem implícito o entendimento de que o processo não era urgente.
h) Como refere o Tribunal da Relação de Coimbra no seu acórdão de 09/01/2017 (proc. n.º 141/12.1TBVZL-D.CI, relator: António Domingos Pires Robalo), in www.dgsi.pt, sendo a ação processada como se não se tratasse de um processo urgente, em várias das suas fases processuais, sem que a questão da urgência fosse suscitada, é razoável e perfeitamente plausível que a recorrente admitisse que o entendimento do tribunal fosse realmente aquele e que tivesse atuado em conformidade.
i) Perante o desenrolar da ação, é perfeitamente legítimo que a R. estivesse convencida de que os presentes autos não tinham natureza urgente,
j) E foi na sequência e em função dessa legítima convicção que a R. definiu a sua atuação processual.
K) Deve assim ser admitido o recurso interposto pela R., por tempestivo.
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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, foi proferida decisão pela relatora julgando improcedente a presente reclamação.
Inconformada com esse ato decisório, veio agora a reclamante apresentar reclamação para a conferência, requerendo que recaia acórdão sobre a matéria que consubstancia objeto da reclamação.   
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Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A factualidade a atender para efeito de decisão da presente reclamação é a que dimana do antecedente relatório.

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III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

A questão que se debate na presente reclamação é a de saber qual, a final, o prazo para interposição do recurso da sentença prolatada em 1ª instância.
Como se notou, o julgador de 1ª instância concluiu que esse prazo é de 15 dias nos termos do preceituado no art. 638º, nº 1, 2ª parte, do Cód. Processo Civil, em virtude de o processo, por mor do disposto no art. 9º do CIRE, revestir natureza urgente.
Esse sentido decisório foi confirmado na decisão singular prolatada no âmbito da presente reclamação em moldes que este coletivo considera não serem merecedores de censura, posto que as questões que nela foram decididas obtiveram solução jurídica que reputamos acertada.
Como assim, renovamos e fazemos nossos os argumentos em que se ancorou a aludida decisão e que se passam a transcrever:
“(…) a presente reclamação tem por objeto o despacho supra transcrito, prolatado em 18.09.2025, que não admitiu o recurso de apelação interposto pela Ré da sentença proferida em 25.5.2025.
Como emerge do art. do 641º Código de Processo Civil, o requerimento de interposição de recurso somente pode ser indeferido se a decisão for insuscetível de recurso, se tiver expirado o prazo para a sua interposição, se ocorrer a falta de legitimidade do recorrente, se esse requerimento não incluir a alegação do recorrente ou esta não contiver conclusões.
No caso a questão a decidir é a de saber se o recurso de apelação interposto pela ora Reclamante foi ou não tempestivamente apresentado.
Apreciando.
Analisando os autos verifica-se que a ação onde foi proferida a sentença de que foi interposto recurso de apelação constitui o apenso G do processo principal de insolvência.
Essa ação foi instaurada tendo como escopo a apreciação da ineficácia em relação à Massa Insolvente do contrato de partilha e de compra e venda celebrado em 23.4.2021, relativamente a bens integrantes da massa insolvente, daí resultando que, podendo o respetivo resultado influenciar o valor da massa, a mesma teria, por força do disposto no art. 85º do CIRE, de correr por apenso ao processo insolvencial [como foi determinado].
Aqui chegados a questão que naturalmente se coloca é a de saber se esse processo declaratório assumirá, ou não, natureza urgente.
Sobre esta matéria rege o art. 9º do CIRE, que no seu nº 1 dispõe que «O processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem carácter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal».
Anotando este preceito, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[1] referem que: “(…) a celeridade dos processos relativos à insolvência de há muito vem sendo considerada um fator decisivo para a sua eficácia, constituindo uma preocupação constante do legislador, traduzida em diversos mecanismos. O mais significativo deles tem consistido na atribuição do carácter de urgência ao processo”.
Analisando a evolução histórica do referido regime, anotam que no Direito anterior ao CPEREF já existiam disposições que estatuíam no sentido da urgência do processo falimentar, mas apenas relativa a uma determinada fase do processo.
Já com a entrada em vigor do CPEREF deu-se mais um importante passo no sentido da urgência processual, “alargando-se o âmbito da urgência a todas as fases dos então processos de recuperação da empresa e de falência, incluindo, na expressão legal, os embargos e os recursos que fossem deduzidos por quem tivesse legitimidade para o efeito [acrescentando que] o texto do n.° 1 do art.° 10.° do CPEREF deixava espaço para a dúvida sobre se a urgência era extensível a todos os apensos dos processos ou, pelo contrário, apenas abrangia aqueles que expressamente referia, a saber, os embargos e, quando devessem ser processados por esse meio, os recursos”.
Face às dúvidas interpretativas que então se geraram, o legislador entendeu por bem atribuir natureza urgente a todos os processos que gravitam na dependência do processo insolvencial.
Isso mesmo é posto em evidência pelos mencionados autores, ao sublinharem que “independentemente de qual devesse ser então a melhor resposta, a questão ficou agora totalmente esclarecida pelo n° 1 do preceito em anotação, no sentido de que tudo o que se relaciona com o processo de insolvência é urgente, aí incluindo todos os incidentes, apensos e recursos (…), sendo que a menção direta que agora se faz aos incidentes, afastando qualquer discussão, tem ainda o efeito de significar que tudo quanto respeita ao processo é urgente, o que, aliás, também se colhe do que estabelece o n.° 5”.
No mesmo sentido milita Luís Menezes Leitão, para quem a estatuição do nº 1 do citado art. 9º não acarreta dúvidas, nomeadamente as que se suscitavam no âmbito da aplicação do CPEREF, sendo “agora seguro afirmar que a urgência processual se estende a todos os incidentes, apensos e recursos”.
Alega a Reclamante que a referência no artigo 9º, nº 1 do CIRE aos apensos do processo de insolvência abrange tão só os apensos típicos do processo elencados no CIRE, que à ação de processo comum é aplicável o regime do Código de Processo Civil, sendo com base neste diploma que se deve aferir da sua natureza urgente ou não urgente.
Mais alega que o disposto no artigo 9º, nº 1 do CIRE não deve ser aplicado aos presentes autos e que a presente ação nunca foi processada como se tratasse de um processo urgente.
Afigura-se não lhe assistir razão.
Com efeito, desenvolvendo-se a ação onde foi proferida a sentença alvo de recurso por apenso ao processo de insolvência, não vemos como ultrapassar a própria letra do nº 1 do art. 9º do CIRE que é expresso no sentido de que os processos que correm por apenso ao processo de insolvência têm, todos eles, caráter urgente.
Mas ainda que a expressão legal não bastasse, também a jurisprudência vem seguindo este entendimento, de que constitui exemplo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de março de 2017[2], onde se afirma que “as ações onde se discutam questões relacionadas com bens compreendidos na massa insolvente, apensas aos autos de insolvência a requerimento do AI, não estão afastadas da aplicação do preceituado no artigo 9º, nº 1 do CIRE (…), o que significa que tais ações assumem carácter urgente.”
Também no mesmo sentido se decidiu no acórdão da Relação do Porto de 21.04.2022[3], onde se sumariou que “I – O carácter urgente do processo de Insolvência estende-se a todos os seus apensos, assim se potenciando a celeridade de todos esses processos, cfr. art.º 9.º do CIRE. II – Tal é aplicável às ações que venham a ser apensas ao processo de insolvência, mesmo que até essa apensação seguissem uma tramitação normal (não urgente). III – Os eventuais atrasos da secretaria na conclusão do processo não justifica qualquer nascimento de qualquer expectativa nas partes de que o processo iria continuar a seguir uma tramitação normal (não urgente)”.
Como se viu, a Ré/Reclamante em abono da sua posição argumentou que a presente ação nunca foi processada como se tratasse de um processo urgente, sendo que a ação teve até à prolação da sentença uma pendência de aproximadamente dois anos, nunca foram praticados atos em férias judiciais, foi permitida a suspensão da instância por 30 dias, entre a audiência prévia e a audiência de julgamento decorreu um ano e entre as duas sessões da audiência de julgamento decorreram praticamente dois meses.
Interrogação que, neste ponto, se coloca é a de saber se a alegada delonga temporal que o processo registou assinalada pela Ré/Reclamante é suficiente e razoavelmente adequada a inverter a exigência de rigor e segurança que emana da explícita caraterização do processo como urgente à luz do regime plasmado no citado art. 9º do CIRE.
Cremos que a resposta tem de ser negativa.
No sentido por nós propugnado convocamos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.7.2014[4], onde se evidencia a clareza e rigor da norma do art. 9º do CIRE, no sentido de que o caráter urgente do processo de insolvência se estende a todos os seus apensos, assim se potenciando a celeridade de todos esses processos. Como aí se refere “a apensação das ações, determinada nos termos do citado art. 85º nº 1, tem por fundamento a conveniência que daí advém para os fins do processo (parte final do preceito); sendo a mesma ordenada, isso significa e pressupõe, portanto, que há conveniência e interesse na apensação (que não é automática), o que dita, logicamente, que haja um correspondente interesse na sua celeridade e que a ação apensada seja processada com a urgência exigida e inerente aos processos relativos à insolvência”, acrescentando, mais adiante, que “a urgência nessa tramitação não está, assim, dependente de um juízo de oportunidade ou de discricionariedade, em função da natureza e objeto da ação apensada, ou de razão que determine ou justifique a excecionalidade da urgência. Esta depende apenas dessa apensação.”
Entendemos, outrossim, que não está aqui em causa qualquer investimento de confiança da Ré/Reclamante em que “o processo não tinha que obedecer à norma do art. 9º do CIRE, por ter seguido todo um trajeto com ela desconforme, designadamente por ação do tribunal, mas um erro da parte na aplicação ou na interpretação da citada norma legal”.
Ora, essa motivação [para além de não demonstrada] não pode valer como forma de legitimação de uma expetativa da parte em que o processo tinha uma tramitação normal, não urgente.
Como assim, tendo a decisão alvo de recurso de apelação sido notificada às partes no dia 26.05.2025 segue-se, pois, que o dies ad quem desse prazo ocorreria no dia 23.06.2025.
Deste modo, tendo a peça recursória sido apresentada no dia 08.07.2025, daí emerge, por conseguinte, que o recurso em causa foi intempestivamente interposto.
Termos em que, sem necessidade de mais alongadas considerações, se indefere a reclamação apresentada, não se admitindo o recurso interposto pela Ré/Reclamante, mantendo-se, pois, a decisão da 1ª instância na qual se decidiu, ao abrigo do disposto no artigo 641º, nº 2, al. a), pelo indeferimento do requerimento de interposição do recurso interposto pela apelante, por o mesmo ser intempestivo”.
Atentas as razões alinhadas na decisão singular e ora transcritas, não se vislumbra razão válida para divergir do sentido decisório nela acolhido relativamente à concreta questão que nela foi objeto de apreciação, sendo de enfatizar que da análise do respetivo iter processual não resulta evidenciado que o ajuizado processo tenha sido tramitado como um processo “não urgente”, sendo que, conforme tem sido sublinhado na casuística[5], os eventuais atrasos da secretaria na conclusão do processo não justifica o nascimento de qualquer expectativa nas partes de que o mesmo segue uma tramitação “normal” e não urgente.
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IV- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em não atender a reclamação, mantendo-se a decisão singular, já que o recurso interposto pela reclamante não é processualmente admissível por ser extemporâneo.
Custas a cargo da reclamante, fixando-se a respetiva taxa de justiça em uma UC.
Notifique.
Guimarães, 17.12.2025

Relatora: Maria Gorete Morais
1º Adjunto: José Alberto Martins Moreira
2º Adjunto: Gonçalo Oliveira Magalhães


[1] In CIRE anotado, Quid Juris, 2009, anot. ao art.º 9º, pág. 97.
[2] Processo nº 616/13.5TJVNF-L.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[3] Processo nº 941/13.5TYVNG-O.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Prolatado no processo nº 2577/05.5TBPMS-P.C3.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr., neste sentido e inter alia, acórdão da Relação do Porto de 21.04.2022 (processo nº 941/13.5TYVNG-O.P1), acessível em www.dgsi.pt.