I - Quando a instrução é requerida pelo assistente, o requerimento para abertura de instrução traduz-se numa acusação alternativa, que irá ser sujeita a comprovação judicial, pelo que todos os factos concretos susceptíveis de integrar os elementos, objectivos e subjectivos, do crime imputado devem constar, sob pena de rejeição da instrução por inadmissibilidade legal.
II - Em termos subjectivos o crime de falsificação de documento exige, para além do dolo nos termos gerais, que o agente actue com a intenção atingir determinado resultado – causar prejuízo a outra pessoa ou obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo -, embora não exija que o objectivo seja alcançado.
III - Não há lugar a convite para aperfeiçoamento do RAI quando o mesmo seja omisso relativamente à narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, porque a faculdade de o assistente apresentar novo requerimento colidiria com a peremptoriedade do prazo previsto no artigo 287.º, n.º 1, do C.P.P. e com os direitos de defesa do arguido.
I-RELATÓRIO
I.1 …, na sequência de despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, veio a assistente … requerer a abertura de instrução, nos termos do requerimento junto aos autos com a refª 9661900 de 12.04.2025, sobre o qual incidiu o despacho proferido, … que, por inadmissibilidade legal, rejeitou o requerimento de abertura de instrução nos termos do disposto no art. 287º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Inconformada com tal decisão, dela vem recorrer a assistente … para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“CONCLUSÕES:
…
V- Resultam efectivamente dos autos indícios suficientes da prática pelo arguido dos ilícitos denunciados, razão porque deveria ter sido acusado, em vez de isentado pelo arquivamento do inquérito.
VI – A decisão que ora se recorre prende-se com o facto da Meritíssima Juiz do Tribunal a quo ter entendido, que relativamente ao requerimento de abertura de instrução deveria conter, além do mais, a narração dos factos imputados ao arguido, preenchedores de qualquer uma das modalidades da acção típica descrita e de dolo do agente e que não tinha sido o caso.
…
VIII - A Assistente requereu articuladamente a abertura da instrução nos autos, no tempo que a lei lhe permite, perante o juiz e tribunal competentes, alegou as razões de facto e de direito, de discordância pela não acusação do arguido e, indicou os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo o tempo, a motivação da sua prática e a indicação das disposições legais aplicáveis, ainda que o tenha feito de forma sucinta.
…
XII- Os factos alegados pela Assistente são suficientemente integradores e preenchem aquele tipo de crime quer objetiva quer subjetivamente.
…
XV- A intenção do arguido está por defeito implícita porque está directamente associada à liberdade humana de dirigir as suas acções.
…
XXVI - No requerimento nenhuma exigência legal faltará para que o torne inábil à concretização daqueles seus pretendidos objectivos.
XXVII – No entanto, caso assim não se entendesse, poderia o Meritíssimo Juiz do Tribunal à quo ter notificado a assistente para a aclaração de algum ponto.
XXVIII – Entende-se que não deve ocorrer a prevalência da justiça formal sobre a justiça material.
…
Efetuada a legal notificação, o Digno Magistrado do Ministério Público respondeu …
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, …
Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
II.1 - Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
…
Face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, a questão a apreciar e a decidir reconduz-se a saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 287.º do Código de Processo Penal.
- A 12.04.2025 pela assistente foi apresentado o seguinte requerimento de abertura de instrução (transcrição):
…
…
Conforme decorre do artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a instrução, que é uma das fases preliminares do processo com carácter facultativo, visa a comprovação judicial do despacho de encerramento do inquérito, ou seja, da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
De acordo com o disposto no artigo 287.º nº 1 do Código de Processo Penal, a abertura de instrução pode ser requerida no prazo de vinte dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento, não estando o requerimento sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal (nº 2 do citado art. 287º do Código de Processo Penal).
Por sua vez, do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal decorre que a acusação contém, sob pena de nulidade:
“ (…)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
(…)
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;
(…)”.
Assim, da conjugação do artigo 283º, nº3 alíneas b) e d) com o artigo 287º, nº2, parte final, ambos do Código de Processo Penal, decorre que o requerimento de abertura de instrução efetuado pelo(a) assistente deverá conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, e a indicação das disposições legais aplicáveis, isto é, todos os factos necessários a servir de suporte a uma eventual decisão de pronúncia, estando vedado ao juiz de instrução pronunciar um arguido por factos não constantes daquele requerimento, sob pena de nulidade da decisão instrutória em causa (artigo 309º do Código de Processo Penal).
Vem sendo entendimento que as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, que o requerimento de abertura de instrução deverá conter – n.º2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal - constituem algo semelhante a uma acusação, que constitui um pressuposto da própria instrução, que fixa os poderes de cognição do juiz e sem o qual este não poderá abrir esta fase processual.
“Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do nº1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e à elaboração da decisão instrutória” [Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal III, pág. 136 e 137].
Nesta matéria, refere ainda Souto Moura [Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 120 e 121], que “Se o assistente requerer a abertura da instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será inexequível”.
A este propósito, também este Tribunal da Relação de Coimbra se pronunciou, por diversas vezes, salientando-se o acórdão de 06.11.2024 [processo nº 76/23.2GCLMG.C1, disponível in www.dgsi.pt], sumariado da seguinte forma: “A lei adjectiva penal impõe que o requerimento de abertura de instrução contenha, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que se pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, e, sendo a instrução requerida pelo assistente, ao respectivo requerimento é ainda aplicável o disposto no art. 283º, n.º 3, als. b) e d), ex-vi art. 287º, 2, ambos do CPP.
2. Significa tal que, no caso de instrução requerida pelo assistente, o respectivo requerimento terá de conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, sempre que possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve, quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada, e a indicação das disposições legais aplicáveis.
3. A falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, fulmina o requerimento de abertura da instrução com a nulidade — arts. 287°, 2, 283°, n° 3, al. b) e 118°, n°1, todos do CPP, pelo que tal requerimento terá de ser rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução.”
A este propósito, salienta-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.12.2023 [processo nº 179/20.5T9STS.P1], disponível in www.dgsi.pt], sumariado da seguinte forma: “I – Embora não sujeito a formalidades especiais o requerimento de abertura de instrução, para além de conter as razões da discordância com o despacho de arquivamento e as diligências instrutórias a realizar, terá (também) que apresentar o núcleo factual que a requerente considera indiciado, ostentado de forma sequenciada e delimitada no tempo e no espaço e finalmente repontada juridicamente, como se de uma acusação se tratasse para que o juiz de instrução criminal, concluída a fase de instrução, faça incidir o seu juízo sindicante sobre a existência de indícios suficientes para – relativamente àqueles factos – submeter os arguidos a julgamento.
II – Na falta de concretização factual, ordenada e inteligível, dos elementos que a requerente considera indiciados, com significância criminal, não pode o juiz de instrução criminal, em recensão livre e sob pena de subversão das suas funções e do princípio do acusatório, coligir esses elementos a partir de alegações profusas de discordância quanto à atuação do Ministério Público., de considerações sobre os meios de prova produzidos em inquérito e da expressão de raciocínios conclusivos ou pressuposições, construindo e ordenando uma história e aditando-lhe elementos concretizadores em falta, nem pode dirigir à assistente um convite ao aperfeiçoamento.
III – É assim de rejeitar, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução que não contém a predita versão alternativa de uma acusação que inexistiu e do qual não constam, de forma substantivada e percetível, os factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos do tipo.”
Assim, quando a instrução é requerida pelo(a) assistente, o requerimento para abertura de instrução traduz-se numa acusação alternativa que irá ser sujeita a comprovação judicial, impondo-se que naquele requerimento o objeto processual seja definido de uma forma suficientemente rigorosa que permita a organização da defesa.
Trata-se de uma exigência imposta pela estrutura acusatória do processo penal, segundo a qual a atividade do tribunal se encontra delimitada pelo objeto fixado na acusação (princípio da vinculação temática), com vista a salvaguardar as garantias de defesa do arguido que, assim, pode preparar a sua defesa de acordo com o mesmo.
Estando o juiz de instrução limitado na pronúncia aos factos que tenham sido descritos na acusação deduzida ou no requerimento do assistente para abertura de instrução – pois o artigo 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal comina com a sanção de nulidade a decisão instrutória na parte em que pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial daqueles - necessário se torna que o assistente alegue, no requerimento de abertura de instrução, todos os factos concretos suscetíveis de integrar os elementos, objetivos e subjetivos, do tipo de crime que entende ter o arguido preenchido com o seu comportamento, pois dele não constando, a sua posterior adição sempre constituirá uma alteração substancial dos factos [art. 1.º, al. f), do Código de Processo Penal], que a lei não permite.
Deste modo, quando se verifica que não foi cumprido o ónus de descrever com clareza a factualidade da qual resulta que o arguido cometeu determinado ilícito criminal, assim delimitando o objeto do processo - permitindo o exercício do direito de defesa por parte daquele e fornecendo ao tribunal os elementos sobre os quais terá de proferir um juízo de suficiência ou insuficiência de indícios de verificação dos pressupostos da punição - estaremos perante um caso de inadmissibilidade legal da instrução, que dará lugar à sua rejeição, nos termos do n.º 3, do artigo 287.º do Código de Processo Penal.
Aqui chegados, analisemos, então, à luz das considerações acabadas de expender, o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente.
Conforme resulta do despacho recorrido, as deficiências apontadas ao requerimento de abertura de instrução reportam-se à não descrição no mesmo de factualidade atinente ao elemento subjetivo do dolo do tipo e do dolo específico do crime de falsificação de documento, entendendo assim o tribunal a quo que os factos ali descritos não constituem crime.
Contrapõe a assistente entendendo que a descrição factual que efetuou ao longo de todo o requerimento é suficiente para que seja declarada aberta a fase da instrução e a final o arguido pronunciado pelo crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo art. 256º, nº 1 al. a), b) e c) do Código Penal.
Vejamos, então se a descrição factual efetuada é suficiente para a integração dos elementos objetivos e subjetivos do crime que a assistente pretende submeter o arguido a julgamento.
Resulta do artigo 256.º, n.º 1, do Código Penal que “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integrem:
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documentos.
d) fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante.
e) usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f) por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito, é punido criminalmente, com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Através da configuração deste tipo de crime pretende-se tutelar o valor da “segurança e confiança no tráfico jurídico, especialmente no tráfico probatório, no que respeita à prova documental” [Cf. Helena Moniz, in “O Crime de falsificação de documentos”, 1993, p. 47 e ss.]
Uma vez que o tipo de crime se esgota na ação do autor, dispensando a produção de um qualquer efeito exterior, o crime é, do ponto de vista da conduta típica e das suas repercussões, um crime formal ou de mera atividade.
Analisando as diversas alíneas da previsão normativa do n. º1 do art. 256º do Código Penal, resulta estarem ali previstas diferentes formas de falsificação dos documentos, designadamente a falsificação material e a falsificação intelectual.
Em termos subjetivos o tipo de crime supõe, para além do dolo nos termos gerais, que o agente atue com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo. [Cf. entre outros o Acórdão do STJ de 31.10.2024, processo nº 38/18.1TRLSB.S1, disponível in www.dgsi.pt]
Neste tipo de crime, pese embora não se exija que seja alcançado o fim pretendido, para o seu preenchimento é necessário que a intenção de atingir um determinado resultado – causar prejuízo a outrem ou obter para si benefício ilegítimo – que predetermina a ação, se verifique.
Com efeito, examinando o RAI apresentado pela assistente não podemos deixar de concluir que o mesmo não satisfaz as exigências processuais mencionadas no artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pois não contem todos os elementos a que alude o artigo 283.º, n.º 3, al. b) e d), do Código de Processo Penal.
Na verdade, a assistente fundamentalmente indica as razões da sua discordância relativamente ao despacho de arquivamento que foi proferido pelo Ministério Público, e de seguida formula o que designa de “Acusação” descrevendo a factualidade que entende sustentar a prolação de despacho de pronúncia.
Analisando esta factualidade verificamos que nela, efetivamente, se omite a descrição dos factos que permitem integrar a conduta no aludido crime de falsificação de documentos.
Na verdade, após a contextualização da atuação do arguido, e da indicação de diligência agendada para 02.09.2022 e do seu adiamento apenas se refere “no entanto o arguido AA para além de não seguir a vontade da participante (referindo-se a não dar continuidade ao processo que corria termos em Portugal) “ainda utilizou uma procuração com poderes especiais que não foi assinada pela participante.”
Acrescentando-se ainda que: “A Assistente face às atitudes do arguido sente-se triste, angustiada, amargurada, o que fez com que tivesse de recorrer a ajuda médica, tendo sido medicada com antidepressivos.
O arguido agiu nas descritas circunstâncias de forma livre, voluntária e consciente com o propósito de causar medo e temor, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
E concluindo que “praticou o arguido AA um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo art.256º, nº1 alíneas a), b) e c) do Código Penal.”.
Como acima referimos, o crime de falsificação de documentos pressupõe para além da descrição da atuação do agente (no caso das alíneas mencionadas pela assistente de fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo; falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integrem ou abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documentos) a descrição da factualidade relativa ao elemento subjetivo do tipo, que, no caso do crime de falsificação de documento exige a descrição de factos que permitam integrar o elemento intelectual, volitivo e emocional do dolo e ainda que demonstrem a específica intenção de causação de prejuízo a outra pessoa ou ao Estado e/ou uma intenção de obtenção de benefício ilegítimo (o referido dolo específico).
Ora, analisando a factualidade descrita no requerimento de abertura de instrução vemos que dela não se extrai que tenha sido o arguido, por si ou por alguém a seu mando, a produzir a procuração com poderes especiais ou a abusar da assinatura da assistente, nada se referindo a este propósito. E, ao contrário do referido pela assistente na conclusão XVI, analisando a factualidade descrita no requerimento de abertura de instrução dela não se retira igualmente que o arguido soubesse que a assistente não tinha subscrito a dita procuração.
Por outro lado, da factualidade descrita não se extrai o exato conteúdo dessa procuração com poderes especiais nem quando, onde e em que circunstâncias a mesma foi utilizada e qual era a intenção do arguido ao fazer esse uso da mesma, e muito concretamente factualidade de onde se pudesse retirar que a falsificação em causa tivesse subjacente a intenção de retirar benefícios que sabia serem ilegítimos, ou de prejudicar a assistente.
Aliás, na factualidade que descreveu a assistente não refere essa mesma intenção, mas antes a de “causar medo e temor”.
É certo que na parte do seu requerimento em que apresenta os argumentos em quem pretende rebater os argumentos que levaram ao arquivamento do processo chegou a mencionar ( ponto 17) que o arguido agiu de forma livre e consciente, com a consciência da ilicitude da sua conduta, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei, mas mesmo assim a quis, com a nítida intenção de prejudicar a assistente”.
Porém, não a transpôs para a descrição factual que efetuou na subsequente delimitação da factualidade a que denominou “acusação”.
Mas, mesmo que se tivesse em conta tal segmento, cremos que a conclusão seria idêntica, pois continua a faltar a descrição factual de onde se pudesse retirar que foi o arguido que elaborou o dito documento, ou que por si ou por alguém a seu mando foi quem apôs a assinatura como sendo a da assistente no mesmo, ou sequer como o usou, e que o fez sabendo que se tratava de um documento falso.
Aliás, o Tribunal Constitucional no acórdão nº 358/04 [disponível in tribunalconstitucional.pt] já se pronunciou sobre a necessidade de uma adequada descrição factual do requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, ali se exarando: “A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objeto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa. Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis”.
Prosseguindo na argumentação ali expendida questiona-se ainda a relevância de uma mera remissão para elementos já constantes dos autos, por hipótese na denúncia efetuada ou noutros documentos constantes dos autos, afirmando-se “será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos? A resposta é negativa”.
Acrescentando-se ainda “verifica-se em face do que se deixa dito que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efetiva do acesso o direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito”. [No mesmo sentido ainda os Acórdãos do TC nº 389/2005, 636/2011 e 175/2013, igualmente disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt].
Na verdade, remetendo-se ao assistente a tarefa de contrariar a presunção de inocência do arguido estabelecida no art. 32º da Constituição da República Portuguesa, esta terá que ser feita de forma objetiva, concreta e minimamente rigorosa, pelo que, um requerimento de abertura de instrução que contenha as razões pelas quais o assistente entende que não deveria ter sido proferido despacho de arquivamento, e que ainda que contenha alguns factos, não inclua os suficientes para integrar todos os elementos do tipo legal de crime, não satisfaz as exigências que o princípio do acusatório e as garantias do direito de defesa do arguido impõem, não pode ser aceite.
Defende ainda a recorrente que se o Mmº juiz de instrução entendia que algum ponto do seu requerimento necessitava de aclaração a deveria ter notificado para o efeito.
Embora colocada a questão sob a perspetiva de “uma aclaração” trata-se efetivamente da possibilidade do convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução. E sobre esta matéria já se debruçou o Acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/2005, publicado no D.R., 1ª Série - A, nº 212, de 04-11-2005, que fixou jurisprudência no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”
Ali se escreveu: “Integrando o requerimento de instrução razões de perseguibilidade penal, aquele requerimento contém uma verdadeira acusação; não há lugar a uma nova acusação; o requerimento funciona como acusação em alternativa, respeitando-se, assim, «formal e materialmente a acusatoriedade do processo», delimitando e condicionando a atividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou não pronúncia - cf. Professor Germano Marques da Silva, op. cit., p. 125.
A falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respetiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP.
A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a perentoriedade da consequência legal desencadeada: o ser manifestamente infundada igual proibição de convite à correção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado”.
Na verdade a faculdade de o assistente apresentar novo requerimento (após o respetivo convite) colide com a perentoriedade do prazo previsto no artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e, consequentemente, atentaria contra os direitos de defesa do arguido.
Escreve-se ainda no citado acórdão de fixação de jurisprudência: «“A possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder repetir, de novo, um tal requerimento para além do prazo legalmente fixado é, sem dúvida, violador das garantias de defesa do arguido ou acusado”, sentenciou o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 27/2001, de 30 de Janeiro, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 23 de Março de 2001.»
Deste modo, não contendo o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente a narração de factos suficientes para que, resultando indiciados, pudessem imputar ao arguido a prática do ilícito criminal ali mencionado, e estando vedado ao JIC endereçar-lhe convite ao aperfeiçoamento, a fase de instrução mostra-se inexequível, por impossibilidade de obtenção do seu objetivo legal, e, por isso, inútil e legalmente inadmissível.
Na verdade, o Código de Processo Penal e os meios de reação nele previstos quanto ao despacho de arquivamento garantem o acesso ao direito e aos tribunais previsto no artigo 20.° n.º 1 da Constituição da República Portuguesa a qualquer cidadão, e a imposição de determinados requisitos resultantes, sobretudo, do principio do acusatório e das garantias de defesa do arguido, que terão de ser cumpridos pelo assistente no RAI que apresente não constituem qualquer violação desse acesso ao direito e aos tribunais ou constitui qualquer violação da função jurisdicional, estabelecida no art. 202º da Constituição da República Portuguesa.
Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 35/2012 [Disponível em hwww.tribunalconstitucional.pt]: “A incompletude ou narração inadequada dos factos que gerariam responsabilidade criminal dos arguidos não pode ser qualificada como uma mera preterição de um formalismo legalmente exigido, pelo que não se pode estabelecer qualquer paralelismo entre a quarta questão de inconstitucionalidade normativa em apreço nos presentes autos e aquelas que foram alvo de juízos de inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso ao recurso em processo penal. Assim, atenta a ampla liberdade do legislador, não se afigura que a opção pela rejeição do requerimento de abertura de instrução corresponda a uma restrição manifestamente desproporcionada do direito de acesso aos tribunais (artigo 20º, n.º 1, da CRP) e do direito de participação do ofendido no processo penal (artigo 32º, n.º 7, da CRP).
…
A assistente deveria ter transposto para o RAI a factualidade que integra objetivamente a ação que imputa ao arguido – como seja descrevendo que o arguido elaborou a dita procuração ou alterou os seus termos falsificando-a, ou descrevendo factualidade de onde se retirasse que abusou da assinatura da assistente para falsificar a dita procuração – e, bem assim, o dolo do tipo deste tipo legal de crime, isto é, os factos que nos reconduzissem ao elemento intelectual do dolo (conhecimento de todos os elementos descritivos e normativos do facto típico) e do elemento volitivo (vontade de realizar o facto típico), acrescendo, a descrição dos elementos relativos à intenção de obter um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo a outra pessoa, que sempre passariam, pelo menos, pela descrição de como a procuração em causa foi utilizada.
Percorrendo toda a factualidade descrita verifica-se que esta não nos permite a integração da conduta do arguido neste tipo de crime que se pretende imputar ao arguido, designadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, e na vontade de praticar os factos com o sentido do correspondente desvalor, o que se reitera não é suscetível de ser integrado, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal, em face da jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015 publicado no DR Iª Série, nº 18 a 27 de janeiro de 2015.
Enquadrando-se esta rejeição do RAI na inadmissibilidade legal da instrução, vemos que esta se mostra adequada e corretamente fundamentada pelo tribunal “a quo” no disposto no art. 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, que remete expressamente para o disposto no art. 283º, nº 3 al. b) do mesmo diploma legal.
E a omissão da factualidade atinente à integração do elemento subjetivo do tipo de crime integra efetivamente a omissão de factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, e por isso é correta a conclusão de que essa omissão gerou a inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no nº 3, do art. 287º do Código de Processo Penal - o que deriva, não só, da já referida estrutura acusatória do processo penal e da consequente vinculação temática do Tribunal, mas também porque não permite a própria defesa do arguido.
Aqui chegados, tendo em conta os considerandos supra expendidos terá de considerar-se improcedente o recurso apresentado pela assistente.
*
Pelo exposto, acordam as juízas da 5ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela assistente …
Custas pela assistente/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC [artigos 515º, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique.
[Texto elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]
As Juízas Desembargadoras
Sandra Ferreira [Relatora]
Paula Carvalho e Sá [1.ª Adjunta, com voto de vencido]
Cristina Pêgo Branco [2.ª Adjunta]
*
Discordo, com o devido respeito, da decisão que confirma a rejeição do requerimento de abertura de instrução (RAI) apresentado pela assistente.
Acompanho, desde logo, o ponto de partida: o crime de falsificação de documento — incluindo a modalidade de uso de documento falsificado — é um crime doloso que exige dolo específico, isto é, a intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo.
A divergência reside na conclusão da decisão maioritária de que tal elemento não teria sido alegado pela assistente em sede de RAI.
A primeira instância sustentou que o RAI nada dizia quanto ao elemento subjetivo específico. O acórdão maioritário agora proferido reconhece, ao invés, que ele está expressamente alegado no ponto 17 do requerimento, mas entende que a sua não repetição na secção intitulada “acusação” justifica, ainda assim, a rejeição.
Não posso acompanhar tal entendimento.
O Código de Processo Penal não impõe uma compartimentação rígida entre “argumentação” e “acusação”, nem exige que o elemento subjetivo conste exclusivamente numa secção final formalmente delimitada. O artigo 287.º, n.º 2, exige apenas uma narração sintética dos factos.
E o dolo específico foi alegado no ponto 17: “O arguido agiu de forma livre e consciente, com a consciência da ilicitude da sua conduta, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei, mas mesmo assim a quis, com a nítida intenção de prejudicar a assistente.”
Trata-se de dolo direto, com consciência da ilicitude e intenção de prejudicar.
Exigir que tal alegação fosse transposta para outra secção do RAI, sob pena de rejeição liminar, constitui um formalismo excessivo sem suporte legal.
Por outro lado, a decisão maioritária também afirma que, mesmo considerando o ponto 17, faltam no RAI factos dos quais se possa inferir que o arguido sabia da falsidade do documento.
Contudo, o RAI contém a seguinte afirmação: “o arguido (…) utilizou uma procuração com poderes especiais que não foi assinada pela participante”.
Ora, se a assistente nunca assinou tal documento e se o arguido o utilizou para a representar contra a sua vontade expressa, o conhecimento da falsidade decorre lógica e necessariamente dos factos descritos.
O direito penal não exige declarações sacramentais (“o arguido sabia…”), mas factos dos quais o conhecimento seja inferível. Esses factos estão alegados.
O entendimento contrário, a meu ver, converte o juízo de admissibilidade num exercício ritualista, desprovido de fundamento normativo.
Ademais, importa notar que a decisão recorrida rejeitou o RAI exclusivamente por suposta falta de alegação do elemento subjetivo específico.
O acórdão maioritário acrescenta, contudo, novos fundamentos que não foram objeto da decisão recorrida nem do recurso: ausência de descrição da autoria material, da forma de aposição da assinatura e das circunstâncias concretas da utilização do documento.
A meu ver, o tribunal ad quem não pode inovar em prejuízo do recorrente.
A ampliação dos fundamentos constitui violação do princípio do contraditório e da limitação temática do recurso.
É certo que a assistente imputou a prática do crime de falsificação e mencionou as alíneas que entendeu relevantes. Não invocou expressamente a alínea e) — uso de documento falso. Mas, como é consabido, a qualificação jurídica feita pela assistente não vincula o tribunal. A rejeição do RAI só é admissível quando a factualidade narrada, mesmo tomada como verdadeira, é absolutamente insuscetível de integrar qualquer crime.
Ora:
· o RAI descreve a utilização de uma procuração falsa;
· indica que a assistente nunca a assinou;
· descreve que o arguido atuou com intenção de prejudicar a assistente.
Mesmo que os factos narrados não bastassem para subsumir o comportamento às modalidades de falsificação material previstas nas alíneas a) a c), são claramente suficientes para permitir, ao menos, a subsunção à alínea e) — uso de documento falsificado. E isso, a meu ver, basta para impedir a rejeição liminar.
A densificação jurídico-penal compete ao tribunal e a investigação compete à instrução; não se pode exigir à assistente a articulação integral de todas as variantes típicas possíveis. Basta a narração factual apta a integrar qualquer delas.
O entendimento maioritário exige, na prática, que o RAI contenha já uma acusação/pronuncia formalmente estruturada, com descrição exaustiva da autoria material, dos modos de execução e de todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo — exigências que pertencem ao momento a jusante, não ao momento prévio que visa justamente permitir a investigação.
É certo que a instrução não serve para reescrever o RAI, mas também não pode ser esvaziada por um padrão de rigor incompatível com a fase em causa.
Em síntese:
É este, com o maior respeito pela decisão maioritária, o sentido do meu voto.
Paula Carvalho e Sá