CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
LIMITE MÍNIMO DE 7.500 €
Sumário

I - Os contribuintes com o dever de auto liquidar e pagar as contribuições devidas pelos seus trabalhadores e membros dos órgãos sociais, deduzidas das respectivas remunerações, devem proceder à entrega de tais contribuições entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele a que as contribuições e as quotizações dizem respeito, à instituição de segurança social competente, juntamente com o da sua própria contribuição.
II - Este contribuinte comete o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social decorridos 90 dias sobre o termo do prazo sem que ocorra a entrega das contribuições deduzidas, tendo sido enviadas as respetivas declarações não acompanhadas do respetivo pagamento, e decorridos mais 30 dias sobre a notificação para efectuar esse pagamento acrescido de juros.
III - A jurisprudência fixada no AFJ 8/2010, que decidiu que a exigência do montante mínimo de 7.500 €, fixado n.º 1 do artigo 105.º do RGIT para o crime de abuso de confiança fiscal, não tem aplicação em relação ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, mantém plena actualidade, não se vislumbrando qualquer razão objectiva para a afastar.
IV - Não é inconstitucional o artigo 107.º, n.º 1, do RGIT, relativo ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, quando interpretado no sentido de que não se aplica a este o limite de 7.500 € previsto no artigo 105.º, n.º 1.
V - O modelo de financiamento do sistema público de Segurança Social assenta nas contribuições efectuadas pelos trabalhadores e entidades empregadoras, tendo sido opção do legislador estabelecer um regime de responsabilização criminal mais intenso no caso dos crimes contra a Segurança Social, assente numa maior ilicitude do facto praticado, na medida em que o comportamento compromete a subsistência financeira do sistema público de Segurança Social, opção que ainda se contém na liberdade conformadora do legislador ordinário.

Texto Integral

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Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:


I-RELATÓRIO

I.1 …, a 12.06.2025, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo [transcrição]:

“VIII – Dispositivo:

Em face do exposto:

A) Julga-se a douta acusação do Ministério Público totalmente procedente, por provada, e, em consequência:

1) Condena-se a arguida …, Lda., pela prática, em coautoria material, com dolo direto, e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, continuado, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, e 30.º, n.º2, todos do Código Penal, e artigos 6.º, n.º1, 7.º, n.º1, e 3, e 107.º, n.º1 e 2, por referência ao artigo 105.º, n.º1, 4, e 7, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, pena de 255 (duzentos e cinquenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que se computa num montante global de €1.275,00€ (mil duzentos e setenta e cinco Euros);

2) Condena-se a arguida …, pela prática, em coautoria material, com dolo direto, e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, continuado, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, e 30.º, n.º2, todos do Código Penal, e artigos 6.º, n.º1, 7.º, n.º1, e 3, e 107.º, n.º1 e 2, por referência ao artigo 105.º, n.º1, 4, e 7, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, pena de 135 (cento e trinta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que se computa num montante global de €675,00 (seiscentos e setenta e cinco Euros);

B) Julga-se o pedido de indemnização civil formulado pela Demandante Instituto da Segurança Social, I.P., deduzido contra as demandadas e arguidas … totalmente procedente por provado e, em consequência:

1) Condenam-se as demandadas a pagar à demandante a quantia total de 7.449, 72€ (sete mil quatrocentos e quarenta e nove Euros e setenta e dois cêntimos), acrescido dos juros de mora que se venceram calculados à taxa em vigor para as dívidas da Segurança Social, desde o 21.º dia do mês seguinte àquele a que as cotizações dizem respeito até efetivo e integral pagamento, sem prejuízo dos eventuais valores já pagos até ao trânsito em julgado da presente sentença nos eventuais processos executivos intentados contra as arguidas para pagamento das cotizações de junho de 2017 a dezembro de 2018;

ii) Comunique à Segurança Social (artigo 50.º, n.º2, do RGIT).”


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I.2 Recurso da decisão

Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a arguida para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:

“CONCLUSÕES:

II. O Tribunal deu como provado os factos n.ºs 5 e 6 da acusação, nomeadamente:

“5. Na qualidade de gerente daquela sociedade, a arguida procedeu aos descontos das contribuições devidas à Segurança Social pelos trabalhadores, nas remunerações efetivamente a estes pagas, não as tendo entregue à Segurança Social, no período e montante a seguir referido: - Relativamente ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, nas remunerações relativas aos meses de junho de 2017 a dezembro de 2018, o montante de 7.750,85€, calculados de acordo com a aplicação da taxa de 11% às remunerações base de incidência efetivamente pagas.

6.Assim, o montante total das contribuições descontadas e retidas pela arguida nas remunerações pagas nos períodos suprarreferidos, soma a quantia de 7.750,85€.”

IV. Todavia, tais factos jamais poderiam ter sido dados como provados, porquanto tais factos foram contrariados pelo próprio Instituto da Segurança Social, porquanto, o ISS quando deduziu o pedido de indemnização civil, juntou aos autos como Doc. n.º 1 um mapa e uma certidão onde consta que à data de 03.10.2024, a empresa … era devedora da quantia de 7.449,72€ … à Segurança Social, referente às cotizações declaradas nas declarações de remunerações entregues à Segurança Social, nos períodos de junho de 2017 a dezembro 2018.

VI. Aliás, o Tribunal a quo, na sentença, acaba por contradizer-se a partir do momento em que dá também como provado o facto 14 da acusação, segundo o qual:

“14. No dia 03.10.2024, a dívida da sociedade arguida perante o Instituto de Segurança Social, relativamente às quotizações descritas em 5, ascendiam a 7.449,72€, acrescida de juros de mora no valor de 2.525,89€, o que se computa no total de 9.975,61€.”

VII. O facto n.º 5 e o facto n.º 14, têm um conteúdo contraditório, pois enquanto que, no facto n.º 5 consta que o valor em dívida da sociedade arguida à Segurança Social é 7.750,85€, no facto n.º 14, consta que o valor em dívida é de 7.449,72€, pelo que, não é compreensível o facto do Tribunal a quo dar como provados dois factos com conteúdo contraditório, o que consubstancia um fundamento de recurso nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.

XII. …, a redação do artigo 105.º do RGIT foi alterada pela Lei 64-A/2008, passando a prever expressamente o limite do valor mínimo (superior a 7.500€) da prestação tributária deduzida, mas não entregue para o crime de abuso de confiança contra a administração tributária, todavia, o art. 107.º do RGIT, permaneceu inalterado.

XIII. O regime de punição dos dois crime é idêntico, tanto é que, os valores constantes do artigo 105.º do RGIT sempre foram considerados para efeitos de aplicação aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, sendo que, caso o legislador pretendesse que assim não fosse, certamente que o teria previsto expressamente com a lei de Lei 64-A/2008.

XIV. Motivo pelo qual, é nosso entendimento que, aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, para este ser criminalmente punível, o valor da contribuição deduzida e comunicada, mas não entregue, sempre terá de ser de valor superior a 7.500€.

XVII. A interpretação feita pelo Tribunal a quo na sentença ora recorrida, na medida em que considera que o crime de abuso de confiança contra a segurança social de valor não superior a € 7.500 é penalmente punível pelo artigo 105.º do RGIT, deve ser considerada inconstitucional por configurar uma clara violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.

XVIII. Razão pela qual deve ser declarada inconstitucional a interpretação feita pelo Tribunal de 1ª Instância do disposto no art. 107.º, n.º 1 conjugado com o disposto no art. 105.º, n.º 1, segundo o qual o crime de abuso de confiança contra a segurança social de valor não superior a € 7.500 é penalmente punível pelo artigo 105.º do RGIT o que a mesma desde já aqui requer expressamente e para todos os legais efeitos.


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Foi admitido o recurso, nos termos do despacho proferido a 03.09.2025 a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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I.3 Resposta ao recurso

Efetuada a legal notificação o Ministério Público respondeu ao recurso …


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I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer …


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I.5. Resposta

Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, veio a recorrente apresentar … resposta …


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I.6. Prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II- FUNDAMENTAÇÃO


II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
® Da contradição insanável entre os factos provados nº 5, 6 e 14 – art. 410º, nº 2 al. b) do Código de Processo Penal.
® Da aplicação ao crime de abuso de confiança social do limite mínimo de 7.500€  previsto no art. 105º, nº 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).
® Da inconstitucionalidade do art. 107º do RGIT  quando interpretado no sentido de que ao crime de abuso de confiança à segurança social  não se aplica o limite mínimo de 7.500€, por violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa.


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II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

“ III – Fundamentação:

III.A - Factos Provados:

Da discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. A sociedade arguida “…, Lda.” é uma sociedade de responsabilidade limitada.

3. A gerência da sociedade arguida foi, desde a sua constituição, exercida pela arguida …

4. A sociedade arguida e a arguida, enquanto gerente desta, estavam obrigados a entregar mensalmente, até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que respeitam as contribuições, os valores das contribuições devidas à Segurança Social, previamente descontados no ato de pagamento das remunerações dos seus trabalhadores.

5. Na qualidade de gerente daquela sociedade, a arguida procedeu aos descontos das contribuições devidas à Segurança Social pelos trabalhadores, nas remunerações efetivamente a estes pagas, não as tendo entregue à Segurança Social, no período e montante a seguir referido:

- Relativamente ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, nas remunerações relativas aos meses de junho de 2017 a dezembro de 2018, o montante de 7.750,85€, calculados de acordo com a aplicação da taxa de 11% às remunerações base de incidência efetivamente pagas.

7. A arguida sabia que deveria ter procedido à entrega das quantias descontadas e retidas nas remunerações pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que dissesse respeito e, ainda assim, não o fez, sendo que também não regularizou a situação nos 90 dias posteriores a esse prazo, apropriando-se das correspondentes quantias.

8. Mais, não procedeu ao pagamento de tais quantias nos trinta dias imediatos após para tal ter sido notificada, nos termos do artigo 105.º, n. º4, alínea b), do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).

14. No dia 03.10.2024, a dívida da sociedade arguida perante o Instituto de Segurança Social, relativamente às quotizações descritas em 5, ascendiam a 7.449,72€, acrescida de juros de mora no valor de 2.525,89€, o que se computa no total de 9.975,61€.

15. A arguida exerce atividade profissional de empregada de limpeza, por conta própria.

16. Pela atividade profissional referida em 14, a arguida aufere, mensalmente, em média, a quantia de 1.050,00€.


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III.B. – Factos Não Provados:

Da discussão da causa, com interesse para a sua decisão de mérito, não advieram como não provados quaisquer factos.


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III.C – Motivação:


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III - Apreciação do recurso

III.1 - Da contradição insanável da fundamentação – art. 410º, nº 2, al. b) do Código de Processo Penal.

            Invoca a recorrente a existência de contradição insanável entre os pontos 5/6 e 14 dos factos provados.

Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “fundamentos do recurso”:

“1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.

2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”

Da análise de tal preceito legal decorre, portanto, que a decisão sobre a matéria de facto é suscetível de ser posta em causa por via da invocação dos apontados vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios decisórios esses que, conforme se referiu supra, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.

Tais vícios terão de resultar da mera leitura do texto decisório, à luz das regras de experiência comum, tendo os mesmos de ser de tal forma evidentes, que serão detetáveis por um homem médio.

O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão» só ocorre quando se verificar incompatibilidade não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Simas Santos e Leal-Henriques [Recursos em Processo Penal, pág. 78] afirmam: «há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente».

Como referimos, este vício consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível” [ Cf. Acórdão do STJ de 18-02-1998, nº convencional JSTJ00034535, in www.dgsi.pt].

Como se refere no acórdão do STJ de 12.03.2009 – processo nº 3173/05-5 [citado  por Simas Santos e Leal Henriques em Recursos Penais, 9ª Edição, p. 80] “A contradição insanável na fundamentação pode ser percetível, antes do mais, na motivação da convicção do julgador que levou a que se desse por provado determinado facto. Mas também pode decorrer dos próprios factos dados como provados e por não provados. Quanto à contradição entre a fundamentação e a decisão resultará ela, em princípio da fundamentação apontar num sentido e a decisão ir noutro”.

Entende a recorrente que ocorre contradição insanável entre os pontos 5/6 e o ponto 14, todos dos factos provados.

É o seguinte o teor de tais factos:

 “5. Na qualidade de gerente daquela sociedade, a arguida procedeu aos descontos das contribuições devidas à Segurança Social pelos trabalhadores, nas remunerações efetivamente a estes pagas, não as tendo entregue à Segurança Social, no período e montante a seguir referido:

- Relativamente ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, nas remunerações relativas aos meses de junho de 2017 a dezembro de 2018, o montante de 7.750,85€, calculados de acordo com a aplicação da taxa de 11% às remunerações base de incidência efetivamente pagas.

6. Assim, o montante total das contribuições descontadas e retidas pela arguida nas remunerações pagas nos períodos suprarreferidos, soma a quantia de 7.750,85€.

14. No dia 03.10.2024, a dívida da sociedade arguida perante o Instituto de Segurança Social, relativamente às quotizações descritas em 5, ascendiam a 7.449,72€, acrescida de juros de mora no valor de 2.525,89€, o que se computa no total de 9.975,61€.

Não cremos, porém, que exista qualquer incongruência entre estes factos.

Na verdade, os pontos 5 e 6 dos factos provados  referem-se aos descontos das contribuições devidas à Segurança Social pelos trabalhadores, nas remunerações relativas aos meses de Junho de 2017 a dezembro de 2018, efetuados pela arguida recorrente enquanto gerente da Sociedade A..., Unipessoal, Lda., e não entregues pela mesma à Segurança Social e que ascenderam a 7.750,85€.

Lendo a motivação da sentença recorrida vemos que é precisamente este o sentido destes pontos da matéria de facto, …

Os pontos 5 e 6 referem-se, pois, aos montantes descontados nas remunerações dos trabalhadores da sociedade arguida no período de junho de 2017 a dezembro de 2018, calculados de acordo com a aplicação da taxa de 11% às remunerações base de incidência efetivamente pagas, e não entregues à Segurança Social que totalizam o montante de 7.750,85€.

Já no ponto 14 o que se descreve é uma realidade complementar e não antagónica. O que ali se refere diz respeito à quantia que à data de 03.10.2024 ainda permanecia em dívida daquelas quotizações que se descreveram em 5.

Em suma, os pontos 5 e 6 da matéria de facto dizem respeito ao momento em que se verificou a não entrega das quotizações relativas aos meses de junho de 2017 a dezembro de 2018, o que surge concretizado nos subsequentes pontos da matéria de facto relativos aos respetivos prazos de pagamento e ao seu incumprimento e bem assim à notificação que foi efetuada, nos termos do artigo 105.º, n. º4, alínea b), do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) tendo-se verificado a falta de pagamento do montante de 7.750,85€.

Já o ponto 14 reporta-se a uma data posterior – 03.10.2024 – e ao montante que a essa data estava em dívida relativo a tais quotizações, e respetivos juros de mora e que serviu para fundamentar o pedido de indemnização civil formulado nessa data, tendo em conta os valores entretanto cobrados, constantes do ofício do Instituto de Segurança Social com a referência 11899923, de 22.05.2025, expressamente mencionado na motivação,  aquando da alusão à prova documental.

Não se consideraram, pois, como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles possa persistir.


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IV - Da aplicação ao crime de abuso de confiança social do limite mínimo de 7.500€  previsto no art. 105º, nº 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) - subsunção jurídica dos factos provados ao crime de abuso de confiança à segurança social.

A Lei n.º15/01, de 05.06 [Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT)], pune pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social as entidades empregadoras que, tendo deduzido o valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, o não entreguem, total ou parcialmente, à segurança social (cfr. art.107º, n.º1 do citado diploma).

Ora, de acordo com o disposto nos art. 42º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (Lei 110/2009 de 16.09.2009 que entrou em vigor a 01.01.2011) as entidades contribuintes são responsáveis pelo pagamento das contribuições e das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço, as quais descontam nas remunerações dos trabalhadores ao seu serviço o valor das quotizações por estes devidas e remetem-no, juntamente com o da sua própria contribuição, à instituição de segurança social competente (cf. art. 61º e ss. relativamente aos membros dos órgãos estatutários)

Sobre os valores pagos pela entidade patronal incidem, pois, percentagens legalmente fixadas, percentagens essas que devem ser descontadas nas remunerações transitoriamente retidas e finalmente entregues pela entidade empregadora, juntamente com a sua própria contribuição.

A lei onera, assim, o contribuinte com o dever de auto liquidar e pagar a contribuição, a ter lugar do dia 10 até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que as contribuições e as quotizações dizem respeito, de acordo com o disposto no art. 43º do citado Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.

Decorridos 90 dias sobre o termo desse prazo sem que ocorra a entrega das contribuições efetivamente deduzidas nas remunerações pagas aos trabalhadores pela entidade empregadora, e tendo sido enviadas as respetivas declarações não acompanhadas do respetivo pagamento e decorridos 30 dias sobre a notificação para efetuar o seu pagamento acrescido de juros, será punível a conduta correspondente ao art. 107º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).

Sucintamente esquematizado o modo de funcionamento do sistema da segurança social, passemos à análise do tipo.

O tipo legal do abuso de confiança à Segurança Social pressupõe, antes do mais, a existência de uma relação jurídica tributária através da qual o agente fica investido num poder de facto efetivo sobre a prestação em causa, poder esse que lhe há de conferir a possibilidade de, omitindo a entrega a que juridicamente se encontra obrigado, dissipar o valor devido na realização de uma finalidade diversa da esperada.

Para o preenchimento da factualidade típica considerada é, pois, necessário que a falta cometida possa ser reconduzida à violação de uma relação de confiança em que o agente se acha comprometido, precisamente pela circunstância de a prestação omitida lhe haver sido entregue para posterior devolução ou para uma utilização previamente definida e determinada.

Disse-se já que, de acordo com a disciplina legalmente prevista, as entidades empregadoras procedem ao desconto, no vencimento bruto dos trabalhadores que mensalmente remuneram, do montante correspondente à percentagem legalmente fixada, montante esse que, estando originariamente afeto à segurança social, passam a deter de forma precária, a título de fieis depositárias. 

É justamente quando a entidade empregadora, tendo recebido validamente a prestação em falta e detendo-a de modo precário, a não entrega de forma voluntária que o crime se tem por consumado.

Em termos subjetivos este tipo de crime admite o dolo em qualquer uma das suas modalidades.

Sendo um "crime omissivo puro, consuma-se com a não entrega dolosa, no tempo devido, à segurança social, das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e corpos sociais", sendo que a "apropriação típica do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, ocorre quando a entidade empregadora deduz uma quantia da remuneração de um seu trabalhador, ou órgão social, com a finalidade de a entregar à Segurança Social e não a entrega, invertendo título da posse dessa quantia, passando a dispor da mesma como se fosse sua, afectando-a a outra finalidade" [Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20.03.2012, disponível in www.dgsi.pt. ] Tal significa que não "é imprescindível a efectiva 'apreensão' material das quantias pelo recorrente para que o tipo criminal se preencha[ Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20.04.2009, igualmente disponível in www.dgsi.pt.]. Vide ainda o AUJ nº 2/2015 de 19.02 [publicado no Diário da República nº 35/2015, Série I de 19.02.2015].

Atenta a qualificação jurídica efetuada da conduta da recorrente como um crime continuado de abuso de confiança à Segurança Social e o disposto no art. 79º, nº 1 do Código Penal, importa analisar a questão suscitada da aplicabilidade do limite de 7.500€ ao crime previsto no art. 107º, do RGIT.

Nesta matéria, importa salientar que o Supremo Tribunal de Justiça através do Acórdão nº 8/2010 [publicado no Diário da República nº 186/2010, série I de 23.09.2010] fixou jurisprudência “no sentido de que a exigência do montante mínimo de (euro) 7500, de que o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma”.
Ali entre o mais se escreveu: “A teleologia da norma do art. 107 nº 1 do RGIT tem evidentemente a ver com a necessidade de se levarem as entidades empregadoras a entregarem as contribuições, devidas e deduzidas nas remunerações dos trabalhadores e membros de órgãos sociais, às instituições de segurança social.
A criminalização da conduta omissiva correspondente constitui uma opção de política criminal não isenta de controvérsia, sobretudo desde o momento em que se omitiu, no enunciado do preceito, a alusão a uma “intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida” (art. 24º do RJIFNA) ou ao elemento “apropriação” (redacção do mesmo preceito dada pelo DL 394/93 de 24 de Novembro), este último, parte do figurino do crime de abuso de confiança “normal”. (16)
A criminalização da simples não entrega dos montantes devidos à Segurança Social, pressupõe, é claro, que da parte do legislador se tenha atribuído dignidade penal ao comportamento, e que a criminalização do mesmo se tenha revelado completamente necessária. O legislador terá portanto colhido, na comunidade, convicções sociais e uma ética social próprias de um certo tipo de Estado-providência.
(…)
Sem se confundirem, os crimes fiscais e contra a segurança social têm evidentemente muitas semelhanças do ponto de vista dogmático, procedendo em relação a ambos, da mesma maneira, o que se referiu já, a propósito, pensando na fiscalidade. Ouçamos Figueiredo Dias e Costa Andrade:
“Resumidamente, no direito penal de justiça é possível referenciar claramente o bem jurídico pondo entre parênteses o desenho normativo da incriminação – v.g., a vida em relação ao homicídio – e portanto como realidade ontológica e normativamente preexistente à descrição legal da conduta proibida. Já no direito penal secundário muitas vezes só a partir da consideração do comportamento proibido é possível identificar e recortar em definitivo o bem jurídico. Aqui, e pelo menos do ponto de vista heurístico-hermenêutico, isto é, na perspectiva do intérprete e aplicador do direito, a determinação do bem jurídico é normalmente um posterius em relação à conformação legal positiva da incriminação” (19)
Arriscamos a afirmação de que no crime do art. 107º nº 1 do RGIT aflora um bem jurídico em que se joga à partida, e sobretudo, o património da Segurança Social (20)
Claro que é também possível ver aí, como desvalor da acção, a atitude de desobediência em relação a um comando que vincula o agente, ou, até, uma postura de rebeldia, perante a política social previdencial que o Estado promove.
A. Lopes Dias diz-nos até que “(…) o art.º 107.º do RGIT vem alterar profundamente o tipo de crime de abuso de confiança em relação à segurança social, em comparação com o art. 27.º-B do RJIFNA, porque o bem jurídico tutelado deixa de ser, directa ou primacialmente, o património, o erário da segurança social, passando a ser a relação de confiança, o especial dever de colaboração das entidades empregadoras para com a administração da segurança social”(21) »
De qualquer modo, a relevância que a eleição do bem jurídico possa ter, no que nos interessa, para efeitos interpretativos, e centrados na teleologia da norma, dependerá da resposta que se der sobre o melhor modo de se protegerem as receitas da Segurança Social. Ora, se são os proventos desta que se querem ver aumentados, é evidente que, se se não estabelecer o limite dos € 7500, mais facilmente se atingirá esse desiderato. Sendo certo que o crime nunca surge, antes de se ter dado a possibilidade ao agente de regularizar a sua situação, nos termos do nº 4 do art. 105º do RGIT. (negrito nosso)
Transcrevemos as considerações tecidas a este propósito e constantes da “Resposta” apresentada pelo Mº Pº nestes autos, pela pena do Procurador-Geral Adjunto AA:
“(…) Por outro lado, não faz sentido afirmar que o legislador considerou que as omissões de entrega das prestações em causa, em montante inferior a 7500 €, não são “susceptíveis de atingir o limiar mínimo de afectação de valores essenciais da comunidade”.
É notório que sucede precisamente o contrário: numa altura em que as dificuldades económicas atiram para o desemprego centenas de milhares de trabalhadores, circunstância que os coloca em situação de carência, a eles e às suas famílias, sendo necessário a intervenção do Estado na atribuição de subsídios para colmatar essas situações de carência, é evidente que a contribuição de quem, no contexto actual, trabalha e desconta para a segurança social é ainda mais importante na medida em que é garantia da própria sustentabilidade do sistema da segurança social que, por força daquelas circunstâncias, vê decrescerem de forma vertiginosa as suas receitas, sendo, pois, maior a necessidade de tutela do bem jurídico em causa.
Aliás, tendo presente que, no nosso país, a maior parte do tecido empresarial é constituído por pequenas e médias empresas, que empregam um reduzido número de trabalhadores, e que muitos desses trabalhadores auferem rendimentos baixos, a descriminalização da falta de entrega de contribuições de valor igual ou inferior a €7500 conduziria a que o bem jurídico tutelado pela norma (artigo 107º do RGIT) ficasse, quase na totalidade, desprovido de tutela e, consequentemente, fosse gravemente afectado o património da segurança social.
Certamente, não foi isto que o legislador quis, ao arrepio de toda a política legislativa seguida nessa área.”
E mais adiante:
“ (…) A descriminalização do crime de abuso de confiança à segurança social, no caso de não entrega de contribuições de valor iguais ou inferior a €7500, viria ao arrepio e seria mesmo paradoxalmente contrária a toda a orientação legislativa seguida nos últimos anos, com vista a assegurar a sustentabilidade do sistema de Segurança Social e dar cumprimento à norma programática do artigo 63º nº 3 da Constituição.(negrito nosso).
E não se diga que procedem também aqui os objectivos de descongestionamento dos processos de natureza bagatelar, que terão estado na base da alteração do nº 1 do artigo 105º do RGIT – cf. VI.1.2.
Efectivamente, as realidades subjacentes são totalmente diferentes, como seriam bem diferentes as consequências da descriminalização do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Desde logo, os dados objectivos disponíveis permitem afirmar com segurança que inexistia, no período em questão, qualquer proliferação de inquéritos por crimes de abuso de confiança contra a segurança social que pudesse fundamentar uma medida dessa natureza.
Efectivamente, como se pode ver do Plano Nacional de Prevenção e Combate à Fraude e Evasão Contritubivas e Prestacionais do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, que abrange o período de 2005 e 2010, o número de inquéritos participados ao Ministério Público pelos Gabinetes de Investigação Criminal da Segurança Social foi de 2468, em 2006 e de 3231, em 2009(22) .
Como é por demais óbvio, tais pendências e participações não apontam, nem de perto, nem de longe, para uma situação de congestionamento que importa debelar pela via da descriminalização das importâncias bagatelares, medida essa que não é minimamente aludida no documento em questão, nem faria o mínimo sentido.
Por outro lado, o perdão de qualquer valor em dívida, ainda que de valor reduzido, esteve sempre arredado das medidas adoptadas pela Segurança Social, no período em questão”.
E ainda:
“(…) Deixando de fora as condutas relativas à falta da entrega das contribuições e quotizações em dívida à segurança social, de montantes iguais ou inferiores a €7500, a amplitude da descriminalização operada em matéria de abuso de confiança contra a Segurança Social seria muito maior e com consequências bem mais graves que a correspondente descriminalização do abuso de confiança fiscal.
Isto porque as declarações a apresentar à Segurança Social são mensais, enquanto que são em regra trimestrais as relativas às prestações tributárias a que se reporta o artigo 105º nº 1 do RGIT.
Assim, atendendo a que os valores a considerar são os que devem constar de cada declaração (artigo 105º nº 7, também aplicável ao abuso de confiança contra a segurança social), a descriminalização operada em matéria de abuso de confiança contra a segurança social abrangeria a larga maioria das contribuições em dívida à Segurança Social.
Em termos práticos, tal corresponderia à quase extinção do crime de abuso de confiança à segurança social (negrito nosso).
E se alguma dúvida houver, quanto a tal conclusão, bastará, para a remover, ter presente que o tecido empresarial é constituído, entre nós, essencialmente por pequenas e médias empresas, que têm ao seu serviço menos de 10 trabalhadores.
Mais concretamente, a percentagem de empresas com menos de 10 trabalhores era de 91,7%, em 1991, e passou para 95,4%, em 2007(23)
Tendo presentes tais números e o valor da remuneração mínima mensal garantida (salário mínimo), auferida por uma parte significativa desses trabalhadores, ou mesmo a remuneração média, que em 2008 era de €843,20(24) , bem como taxa global de 34,75% a aplicar, fácil é verificar que, em mais de 90% dos casos, estamos em face de declarações mensais de valor inferior a €7500, ficando, em todos esses casos, o bem jurídico tutelado pela norma desprovido de tutela, afectando-se assim gravemente o sistema da Segurança Social e a sua sustentabilidade, o que o legislador não pode ter querido.”
4. Em síntese conclusiva deste ponto diremos que, feito o percurso indagatório sobre o espírito do artº 107º nº 1 do RGIT, melhor, sobre se é de concluir haver inequivocamente discrepância entre a letra e o espírito do preceito, temos coerentemente que dizer que não. Voltando à postura assumida inicialmente, partimos da leitura de uma norma que consagra o crime de abuso de confiança contra a segurança social numa previsão que se mostra completa. Essa previsão distancia-se da disciplina equivalente proposta para o crime de abuso de confiança fiscal. Ora o que aconteceu é que se não descobriram argumentos suficientemente fortes para se concluir que o legislador tenha querido igualar, no ponto em apreço, a disciplina dos dois crimes. Tanto mais que, em matéria de limiar a partir do qual pode ser cometido o crime (que é que nos ocupa), na outra infracção paralela que é a de fraude, o legislador distinguiu.
A resistência que nos oferece a literalidade da norma, se fosse de quebrar para nos obrigar a uma interpretação restritiva, levantaria ainda um problema adicional. É que falharia nesse caso o requisito do nº 2 do art. 9º do CC: seria um pensamento legislativo sem um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, ainda que imperfeitamente expresso.”

Entendemos que esta jurisprudência mantém perfeita atualidade não vislumbrando qualquer razão objetiva para a afastar, pois que os pressupostos em que se fundamentou mantêm perfeita atualidade.

Neste sentido pode ver-se o Acórdão do TRP de 05.06.2019 [processo 2493/17.8T9VCD.P1, in www.dgsi.pt] .

E, assim, tendo o tribunal recorrido perfilhado o entendimento expresso neste acórdão de fixação de jurisprudência, não nos merece qualquer censura.

Em face do exposto, não pode merecer provimento, nesta parte, o recurso da arguida.


***


V - Da inconstitucionalidade do art. 107º do RGIT quando interpretado no sentido de que ao crime de abuso de confiança à segurança social  não se aplica o limite mínimo de 7.500€, por violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa.

            Defende a recorrente que a interpretação do art. 107º do RGIT efetuada pelo Tribunal a quo, na medida em que considerou não ser aplicável o referido limite de 7.500€ deve ser considerada inconstitucional por violação do principio da igualdade previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa.

A propósito deste princípio exarou-se o seguinte no acórdão do Tribunal Constitucional nº. 223/95, in DR, II Série, de 27/6/95: "O princípio da igualdade (...) apenas proíbe que as situações da vida semelhantes recebam tratamento diferenciado que se não justifique nas diferenças existentes entre elas. Ou seja, proíbe o arbítrio ou o capricho do legislador, pois que este, no exercício da sua liberdade de conformação, há-de orientar-se sempre por critérios racionais – há-de agir racionalmente, editando normas razoáveis, pois que a lei será Direito se for uma racionalidade".

            Por outro lado, constitui jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional que o princípio da igualdade abrange a proibição de arbítrio, a proibição de discriminações e a obrigação de diferenciação.

            Assim, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes.

            A proibição de discriminações (n.º 2 do citado art. 13º) não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento.

A proibição de discriminações (n.º 2 do citado art. 13º) não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento.

Na verdade, tem sido reiteradamente afirmado pelo Tribunal Constitucional que o que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio.

As diferenciações de tratamento podem ser legítimas quando:

- Se baseiem numa distinção objectiva de situações;

- Não se fundamentem em qualquer dos motivos indicados no n.º 2;

- Tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo;

- Se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objectivo.[7]” – 7 [Ac. da 1ª Secção do TC, de 3/2/99, relator Artur Maurício, in dgsi.pt.]”

     Ora, o Tribunal Constitucional através dos acórdãos nº 279/2011, 283/2013, 707/2014, 121/2018 e 641/2018 [todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt] já se pronunciou no sentido de julgar não inconstitucional o artigo 107.º, n.º 1, do RGIT, relativo ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, quando interpretado no sentido de que não se aplica a este o limite de 7500 € previsto no artigo 105.º, n.º 1, do mesmo diploma.

O Tribunal constitucional nestes arestos efetuou a análise dos tipos de crime em confronto (abuso de confiança fiscal e abuso de confiança à segurança social), e considerando as especificidades do modelo de financiamento do sistema público de Segurança Social, que assenta nas contribuições efetuadas pelos trabalhadores e entidades empregadoras, veio a concluir que foi opção do legislador estabelecer um regime de responsabilização criminal mais intenso no caso dos crimes contra a segurança social, assente não só numa maior ilicitude do facto praticado, na medida em que se trata de um comportamento que compromete a subsistência financeira do sistema público de Segurança Social, que tal opção se contém ainda na liberdade conformadora do legislador ordinário e por isso, inexiste qualquer violação ao principio da igualdade previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa.

Escreveu-se a este propósito no Acórdão nº 641/2018 o seguinte: “Dir-se-á que é impossível negar alguma similitude entre os elementos típicos do artigo 105º, n.º 1, do RGIT e os elementos típicos do artigo 107º, n.º 1, do RGIT. Ambos pressupõem a falta de cumprimento do dever de entrega de quantias retidas a terceiros, fosse relativamente a trabalhadores – retenção de imposto na fonte, para efeitos de IRS, ou retenção de parcela de contribuição devida à segurança social, com consequente dever de posterior entrega ao Estado. Por outro lado, ao contrário do que sucedeu a propósito das normas que foram alvo de apreciação pelos Acórdãos n.º 347/86, n.º 370/94, n.º 958/96, n.º 329/97 e n.º 108/99 (supra citados), relativas a crimes praticados por militares, nem sequer se pode afirmar que o crime em causa seja praticado no exercício de uma função específica e, como tal, exija uma particular característica do respetivo agente. E, mesmo que se admitisse que a função em causa seria a de administrador ou de gerente de pessoas coletiva de natureza comercial, tal apropriação indevida tanto pode ocorrer nos casos previstos no n.º 1 do artigo 105º do RGIT, como nos casos do n.º 1 do artigo 107º do mesmo diploma legal.

Chegados a este ponto, poderia parecer que não existem fundamentos substantivos que justifiquem o tratamento diferenciado daquelas situações. Porém, assim não é. Se analisarmos o regime específico de financiamento da Segurança Social, verificaremos que é legítimo ao legislador ordinário estabelecer normas sancionatórias distintas, em função de objetivos de preservação daquele sistema de financiamento, atentas as suas peculiaridades.

Sendo certo que o n.º 2 do artigo 63º da CRP determina que “incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado”, não é menos verdade que tal sistema foi concebido pelo legislador ordinário como um sistema fortemente contributivo, ou seja, assente nas contribuições suportadas pelos respetivos beneficiários, em função das respetivas remunerações (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2010, p. 817). Por força do artigo 92º da Lei de Bases da Segurança Social (aprovada pela Lei n.º 4/2007 de 16 de Janeiro), as fontes de financiamento do sistema público de Segurança Social são diversificadas, delas constando, designadamente, as quotizações dos trabalhadores beneficiários [alínea a) do referido artigo 92º] e as contribuições das entidades empregadoras [alínea b)], para além das transferências provenientes do Orçamento de Estado [alínea c)].

Assim sendo, o risco de ocorrência de um movimento sistemático de recusa de entrega das contribuições devidas pelos trabalhadores e pelas entidades empregadoras colocaria em causa, de modo evidente, a própria subsistência do sistema de Segurança Social, tal como constitucional e legalmente instituído. Deste modo, pode compreender-se que o legislador ordinário tenha optado por incriminar, de modo mais intenso, condutas que aparentemente se apresentavam como similares, mas que, em função das suas específicas características, se apresentam juridicamente mais desvaliosas.

Ora, parece ter sido essa a opção do legislador. Ou seja, estabelecer um regime de responsabilidade criminal mais intenso, no caso dos crimes cometidos contra a Segurança Social do que no caso dos crimes cometidos contra a Administração Tributária.

Conforme notado por Isabel Marques da Silva (cfr. Regime Geral das Infrações Tributárias, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 109 e 110), no decurso dos trabalhos preparatórios do RGIT, chegou a equacionar-se a conceção de tipos de crime unificados, abrangendo um tipo comum de fraude e de abuso de confiança, tendo tal solução sido, manifestamente, repudiada pelo legislador ordinário. Com efeito, o RGIT procedeu a uma distinção, no Título da Parte III, entre “Crimes tributários comuns” (Capítulo I), “Crimes aduaneiros” (Capítulo II), “Crimes fiscais” (Capítulo III) e “Crimes contra a segurança social” (Capítulo IV). Aliás, a referida Autora chega mesmo a considerar que a fusão dos tipos penais fiscais com os tipos penais relativos à segurança social “além de tecnicamente errada, [implicaria] uma manifestação abusiva da fiscalidade do sistema, absolutamente incompreensível, face aos objetivos e natureza do sistema de segurança social, inscritos na sua Lei de Bases” (cfr. o.c., p.110).

Em suma, o legislador ordinário tomou uma opção legiferante, em função das peculiaridades próprias do modelo de financiamento do sistema público de Segurança Social, que assenta, maioritariamente, nas contribuições suportadas pelos trabalhadores e pelas entidades empregadoras. Consequentemente, o legislador considerou que a diferenciação entre os crimes fiscais e os crimes contra a Segurança Social assenta não só numa maior ilicitude do facto praticado, na medida em que se trata de um comportamento que compromete a subsistência financeira do sistema público de Segurança Social.

Do exposto resulta que não é desproporcionado nem viola o princípio da igualdade que o legislador, ao abrigo da sua margem de liberdade normativa, opte por punir, de modo mais intenso, condutas que envolvam a falta de pagamento de quantias devidas à Segurança Social.”

Nesta medida, resultando a diferença preconizada pelo legislador ordinário nas diferentes especificidades do modelo de financiamento da Segurança social e ponderando, sobretudo, os riscos de ocorrência de “um movimento sistemático de recusa de entrega das contribuições devidas pelos trabalhadores e pelas entidades empregadoras colocaria em causa, de modo evidente, a própria subsistência do sistema de Segurança Social, tal como constitucional e legalmente instituído”, verificamos que a diferenciação entre o crime de abuso de confiança fiscal e o de abuso de confiança à segurança social baseia-se numa distinção objetiva das situações em confronto, tem um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo e revela-se adequada e proporcionada à satisfação desse mesmo objetivo e, por isso, não se vislumbra qualquer violação do princípio da igualdade, estabelecido no art. 13º da Constituição da República Portuguesa, ou do principio da proporcionalidade previsto no art. 18º da mesma Constituição, na interpretação efetuada de que o limite de 7.500€ estabelecido no art. 105º , nº 1 do RGIT não se aplica ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.


***


III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela arguida … e consequentemente em manter a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC [artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e

514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à

Tabela III].

Notifique.

Texto processado pela relatora e revisto pelos seus subscritores  – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal.


Coimbra, 10 de dezembro de  2025

Os Juízes Desembargadores

Sandra Ferreira

António Miguel Veiga

Cristina Pêgo Branco