I - O crime de condução perigosa de veículo tutela a segurança rodoviária e o crime de ofensa à integridade física por negligência tutela a integridade física e a saúde do corpo.
II - Existe uma relação de concurso aparente entre o crime de condução perigosa de veiculo rodoviário agravado e o crime de ofensas à integridade física grave por negligencia quando o ofendido seja o mesmo, sendo o agente, em tal situação, punido pela prática do crime de condução perigosa de veiculo rodoviário agravado, pois esta incriminação contempla a protecção da integridade física, por via da remissão do artigo 294.º, n.º 3, do Código Penal para a agravação prevista no artigo 285.º.
III - No âmbito da preterintencionalidade, a imputação subjectiva negligente do evento agravante ocorre porque, ao levar a cabo o crime fundamental, o agente está perfeitamente esclarecido da conduta que pretende praticar e é essa mesma conduta que ele pretende levar a cabo.
IV - Nos crimes preterintencionais, há um crime fundamental doloso e um evento agravante, consubstanciado por um crime negligente, que foi para além do dolo do crime fundamental, residindo o «cimento agregador dos dois crimes integrantes do crime preterintencional – e que fundamentam esta agravação – … no perigo típico de produção do resultado agravante».
Acordam os Juízes, em Conferência, na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
RELATÓRIO
…, na sequência do despacho final do inquérito, o assistente … requereu abertura de instrução, por discordância com a qualificação jurídica assumida pelo Ministério Publico em sede de acusação, aduzindo as razões pelas quais, em seu entender, face a tal factualidade, deveria também ser imputado ao arguido …, em despacho de pronúncia a proferir, o crime de ofensa à integridade física grave por negligência, nos termos previstos no disposto nos artigos 148º, nº 1 e 3 e 144º do Código Penal, pugnando, assim, que o identificado arguido fosse pronunciado para julgamento pelos dois ilícitos penais.
Realizada a instrução veio a ser proferido despacho de não pronúncia do identificado arguido quanto à prática do crime de ofensa à integridade física grave por negligência, nos termos previstos no disposto nos artigos 148º, nº 1 e 3 e 144º do Código Penal.
Inconformado com tal decisão o assistente … interpôs o presente recurso, lavrando a motivação e apresentando as seguintes conclusões, no seguimento de despacho de convite ao respectivo aperfeiçoamento:
…
C) - Em 23/03/2024, a Excelentíssima Senhora Procuradora … deduziu douta acusação, com a referência: 31132432, contra o arguido …, a qual finalizou nos seguintes termos: “Pelo exposto, com as descritas condutas:- o arguido … cometeu como autor material (art.º 26.º do Código Penal), na forma consumada, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, agravado pelo resultado (artigos 291.º, n.º 1, alínea a), 294.º, n.º3 e 285.º, todos do Código Penal) e ainda com a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, prevista e punida pelo disposto no artigo 69.º, n.º1, al. a), do Código Penal”, cfr. douta acusação pública.
D) - O assistente acompanhou a factualidade descrita na douta acusação pública, mas, não concordou, inteiramente, com a qualificação jurídica ínsita na douta acusação, pelo que, requereu a abertura da instrução, …
F) - Conforme se referiu supra, o ora recorrente não se conforma com a douta decisão instrutória proferida pelo Douto Tribunal a quo, ao não pronunciar o arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelo art. 148.º, n.º 1 e 3, ex vi do artigo 144.º, ambos do Código Penal.
…
I) - Como é sabido, o crime de ofensa à integridade física grave por negligência é previsto e punido pelos arts. 148.º, nºs 1 e 3, ex vi do art. 144.º, do Código Penal.
J) - Esta norma incriminadora visa proteger a integridade física individual, ou seja, protege a própria ofensa a esse bem jurídico, enquanto que a norma do art. 291.º do Código Penal protege o perigo de violação desse bem jurídico.
K) - Cabe referir que a norma ínsita no art. 291.º do Código Penal visa proteger a integridade física em geral e não somente a da vítima concreta.
…
Q) - Por isso, ao contrário do decidido na douta decisão instrutória, há uma relação de concurso efetivo entre o crime de ofensa à integridade física grave por negligência e o crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado.
…
Notificado, nos termos do disposto no artigo 411º do Código do Processo, veio o MINISTÉRIO PÚBLICO pronunciar-se …
O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Coimbra, na sequência da apresentação de novas conclusões, emitiu Parecer …
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código do Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir do recurso apresentado.
Com relevo para a decisão da lide recursal dirigida a este Tribunal se apresenta o despacho recorrido que é do seguinte teor:
O Ministério Público deduziu acusação, em processo comum e com intervenção do tribunal singular, contra:
…
Imputando-lhe a prática como autor material (art.º 26.º do Código Penal), na forma consumada um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, agravado pelo resultado (artigos 291.º, n.º 1, alínea a), 294.º, n.º 3 e 285.º, todos do Código Penal) e ainda com a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, prevista e punida pelo disposto no artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
Aderindo aos factos constantes da acusação pública, veio o assistente … requerer a abertura de instrução, …, referindo, no essencial que a conduta do arguido elencada na acusação pública também se enquadra na prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1 e 3, ex vi do artigo 144.º, ambos do Código Penal.
Ou seja, pretende o assistente, ver o arguido, pronunciado pelos dois crimes, num concurso real de crimes, pelos mesmos factos.
…
Resulta dos factos constantes da acusação pública que a condução do arguido ocasionou a ofensa grave à integridade física da assistente, o que determinará a agravação da pena em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, do crime de condução perigosa, nos termos do art.º 294.º, n.º 3, conjugado com o art.º 285.º e arts. 148º nºs 1 e 3 e 144º al. c), todos do Código Penal.
A relação entre as normas que prevêem crimes de perigo e crimes de dano por negligência tem sido tratada na doutrina e na jurisprudência como um concurso de normas ou concurso aparente de crimes.
…
Importa, pois, concluir que a doutrina e a jurisprudência, reconhecendo dificuldades na articulação entre o crime de condução perigosa agravado pelo resultado ou ofensas à integridade física graves, e os tipos de homicídio negligente e ofensas à integridade física graves por negligência, considera maioritariamente existir uma relação de concurso aparente (subsidiariedade ou consunção), por via da qual o agente apenas será punido pelo crime de condução perigosa agravado, nos termos do art.º 294.º, n.º 1 e 3, conjugado com o art.º 285.º , ambos do CP.
Retomando o caso dos autos, verifica-se que a conduta do arguido preenche o crime de condução perigosa previsto no art.º 291.º, n.º 1, al. b) e n.º 3 do Código Penal, agravado pelas ofensas à integridade física graves, na pessoa da assistente, nos termos do art.º 294.º, n.º 1 e 3, conjugado com o art.º 285.º e arts. 148º nºs 1 e 3 e 144º al. c).
Como se viu, a relação entre este ilícito e as ofensas à integridade física graves por negligência resolve-se através da punição pelo crime de condução perigosa agravado, não havendo lugar à valoração autónoma, em concurso efetivo, do crime de ofensa à integridade física grave por negligência, no que se refere às ofensas provocadas na pessoa da assistente.
Assim, pronunciar o arguido pelos dois ilícitos criminais, como pretendido pelo assistente, a qual teria que passar pela pronúncia em concurso real seria ir contra a jurisprudência e doutrina portuguesa e levaria à prática de um acto inútil, pois o mais normal seria o arguido a ser absolvido do segundo crime em sede de julgamento.
…
*
DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Descendo ao caso dos autos, analisadas que sejam as conclusões apresentadas pelo recorrente …, as questão que se apresenta a decidir é, pois, a seguinte:
. Impugnação do despacho de não pronúncia, por erro de direito, na interpretação e aplicação dos artigos 148º, nºs 1 e 3 ex vi do artigo 144º, ambos do Código Penal.
*
DECISÃO
Estabelece o artigo 286º do Código do Processo Penal, sob a epígrafe de “Finalidade e âmbito da instrução”, para além do seu carácter facultativo, que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.”
Sabemos que o Código do Processo Penal aprovado em 1987 acolheu o modelo processual de matriz essencialmente acusatória, integrado por um princípio de investigação, tal como preconizado por Figueiredo Dias[3], realçando-se entre as suas inovações uma rigorosa delimitação de funções entre o Ministério Público, o Juiz de Instrução e o Juiz de Julgamento ao longo do processo, tendo, ainda, o mérito, a nosso ver, de conciliar a descoberta da verdade e realização da justiça com a protecção dos direitos individuais e a paz jurídica.
Neste modelo, a instrução apresenta-se, assim, como uma fase preliminar do processo, com estrutura acusatória integrada pelo princípio de investigação, judicial, tendo como acto obrigatório e essencial uma audiência informal, oral e contraditória, que visa a comprovação da decisão do Ministério Público de acusar ou de tal se abster (para além das outras previstas na lei), sendo que, face à sua natureza e finalidades, a sua função não é de pré-definição, ou sequer, de determinação da responsabilidade de alguém pela prática de um crime, mas, tão-só, de verificação da razoabilidade da sujeição ou não do arguido a julgamento, perante todos os elementos disponíveis[4].
Tal decorre da estruturação de que foi dotado o processo penal português em três diversas fases:
. A primeira, a do inquérito, a aquela que se inicia com a noticia do crime, liderada pelo Ministério Publico, que é auxiliado por órgãos de polícia criminal, investigando e recolhendo provas sobre a existência de um crime e dos seus agentes, onde, apesar das alterações legislativas que foram sendo introduzidas, domina o principio do segredo de justiça, um encurtado contraditório, estando todos os actos vocacionados para a decisão de acusar ou de arquivar o processo.
…[5] …
. A segunda das fases é a da instrução, que tendo caracter facultativo, visa o controlo judicial da decisão final que advier do inquérito, para efeitos de submissão ou não da causa a julgamento e, porque se tratando de uma fase facultativa, só terá lugar se o arguido ou o assistente, consoante a legitimidade e interesse em agir, a requererem.
. Por fim, a fase de julgamento, a fase por excelência do processo penal, onde é decidida a responsabilidade criminal do arguido.
Esta repartição trifásica do processo, competindo cada fase a uma entidade distinta, é imposta pela estrutura acusatória que Constituição da República consagrou, nos termos do disposto no artigo 32º, nº 5 daquele diploma.
…[6], …
Somos, assim, de concluir que a instrução visa a comprovação das seguintes decisões:
- a da acusação do Ministério Publico, para tanto tendo legitimidade e interesse em agir para a requerer o arguido;
- a da acusação do assistente em procedimento para o qual tenha legitimidade por estarem em causa crimes particulares, para tanto tendo legitimidade e interesse em agir para a requerer o arguido;
- a do arquivamento do Ministério Publico, nos procedimentos por crimes públicos ou semipúblicos, para tanto tendo legitimidade e interesse em agir para a requerer o assistente.
…
Aborda-se, assim, nos presentes autos, a temática relativa à autonomização do crime de ofensa à integridade física por negligência grave, prevenido nos termos do disposto nos artigos 148º, nº 1 e 3 ex do artigo 144º do Código Penal relativamente ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, agravado pela resultado, a que dão corpo os artigos 291º, nº 1, alínea a), 294º, nº 3 e 285º, todos do aludido diploma, ilícito pelo qual se encontra acusado o arguido AA.
É que, inconformado, quer com a posição perfilhada pelo Ministério Publico em sede de despacho final do inquérito, bem como com a decisão prolatada em sede de instrução que sufragou àquela outra, o recorrente … vem defender a existência de concurso real e efectivo entre os dois crimes – o de condução perigosa de veículo rodoviário e o de ofensa à integridade física grave por negligência, na medida que nenhuma das incriminações consome a outra, isto é, nem o crime de ofensa à integridade física grave por negligência consome o crime de condução perigosa de veículo rodoviário nem este consome aquele.
Alinha, outrossim, que os factos constantes dos autos e descritos na douta acusação pública e no requerimento de abertura da instrução indiciam suficientemente que o arguido violou o dever objetivo de cuidado e provocou ofensas à integridade física do assistente, pelo que, tal ofensa constitui um bem jurídico que carece de proteção autónoma em relação à condução perigosa de veículo rodoviário.
Vejamos
Compulsados os autos ressuma que, na sequência do despacho final do inquérito proferido pelo Ministério Publico foi deduzida acusação contra o arguido …, onde lhe é imputada a prática dos seguintes factos:
. No dia 02 de junho de 2023, cerca das 13h00, o arguido … conduzia o veículo ligeiro de mercadorias …, do qual era o condutor, na Avenida …, quando, ao aproximar-se de uma curva à esquerda, no seu sentido de circulação, entrou em despiste;
. A Avenida … situa-se dentro da área urbana … e caracteriza-se por ser uma artéria com dois sentidos de trânsito, dotada de duas vias no sentido ascendente (sentido norte-sul) e uma via no sentido descendente, com marcas separadoras de vias e sentido;
. A Avenida … no local da colisão, configura uma curva à esquerda, com inclinação de 6% (seis por cento), com boa visibilidade em toda a sua largura e extensão, sendo que no mencionado dia e hora existia luz natural, não chovia, a estrada encontrava-se em estado regular de conservação e manutenção, com piso flexível em aglomerado asfáltico, seco e limpo e não se apresentavam obstáculos visuais de qualquer natureza ao arguido;
. Considerando o sentido de marcha por onde seguia o arguido, localizava-se, à data dos factos, do lado direito, uma zona de estaleiro, devidamente fechado com uma cerca/rede, encontrando-se no interior do seu perímetro um veículo pesado de mercadorias que ali exercia funções de grua, … o qual estava parado;
. Ao chegar à referida curva, o arguido, tripulando o veículo acima descrito, despistou-se, embateu no lancil do passeio e de forma contínua na cerca/rede que vedava o estaleiro e, consequentemente, no veículo …, com a parte frontal do lado direito;
. Na viatura conduzida pelo arguido, seguia no lugar da frente à direita do arguido, o ofendido … que, em virtude do acidente, embateu com o corpo na sapata da grua do veículo …, a qual trespassou o veículo conduzido pelo arguido;
. O arguido apenas travou quando ocorreu o embate, imobilizando a viatura junto à vedação do estaleiro tendo, em seguida, verificado que o ofendido se encontrava encarcerado na viatura;
. Tendo em conta as características e dimensão da via, e as condições atmosféricas na altura em que ocorreu o embate, era possível visualizar o início da curva cerca de 110 (cento e dez) metros antes da mesma;
. O arguido conduziu nas descritas circunstâncias a viatura após ter ingerido bebidas alcoólicas, apresentando uma Taxa de Álcool no Sangue (TAS) de, pelo menos, 1,858 g/l;
. Em consequência direta e necessária do embate acima descrito, … sofreu várias lesões, designadamente, múltiplas cicatrizes na cabeça, tronco e membro inferior direito e ainda amputação do membro superior direito pelo terço médio do braço;
. Para … resultou privação de um importante membro (dominante), desfiguração grave e afetação grave da possibilidade de utilizar o corpo e da capacidade de trabalho, o que foi causado direta e necessariamente pela conduta do arguido supra descrita;
. O arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas e tinha noção que a sua TAS era superior a 1,2 g/l, bem sabendo que o seu estado não lhe permitia efetuar uma condução cuidada e prudente e que aquele estado lhe diminuía a capacidade de atenção, reação e destreza e que aquele consumo lhe diminuíam a capacidade de vigilância e reação em relação ao meio envolvente, e influenciavam a sua percepção dos acontecimentos à sua frente, e que desse modo colocava em perigo a segurança de todos os restantes utilizadores da via por onde circulava;
. O arguido assumiu a conduta acima descrita, de forma livre, deliberada e conscientemente, ciente de que a mesma era apta a colocar em crise a integridade física de terceiros, designadamente da pessoa que seguia ao seu lado, o que efetivamente veio a acontecer com o ofendido BB, bem sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punida pela lei penal;
. Ao conduzir naquelas condições, o arguido não procedeu com o mais elementar cuidado e diligência a que a obrigava o normal exercício da condução, tendo concebido a hipótese de, com essa conduta, poder vir a provocar as lesões e sequelas que o ofendido … sofreu efetivamente, mas confiando, levianamente, que tal não viria a concretizar-se;
. O arguido agiu livre e conscientemente, ciente de que a sua conduta era proibida e criminalmente punida pela lei criminal.
Vindo a ser-lhe imputada a prática, como autor material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, agravado pelo resultado, previsto e punido pelos artigos 291º, nº 1, alínea a), 294º, nº 3 e 285º, todos do Código Penal e ainda com a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, prevista e punida pelo disposto no artigo 69º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma legal.
Estipula o artigo 291º do Código Penal, sob a epigrafe “Condução perigosa de veículo rodoviário”, que:
1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:
a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou
b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada e nela realizar actividades não autorizadas, de natureza desportiva ou análoga, que violem as regras previstas na alínea b) do número anterior, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
3 - Se o perigo referido no n.º 1 for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
4 - Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
O bem jurídico protegido pela norma trata-se da circulação rodoviária, mas, ainda, a vida, a integridade física e o património de outrem.[9]
Ressalta da sua enumeração típica a exigência da verificação dos seguintes elementos para que possamos entender preenchido o tipo objectivo:
. que o agente conduza um veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada;
. que este mesmo agente no exercício da condução desrespeite os seus elementares deveres no âmbito da circulação rodoviária e, consequentemente, coloque em perigo bens jurídicos ou que o agente não esteja em condições de conduzir o veículo em segurança, por se encontrar sob a influência de álcool, substancias estupefacientes ou psicotrópicas e/ou produtos com efeito análogo, ou, ainda, por estar acometido de deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; e,
. que da conduta do agente resulte um efectivo perigo para a vida, integridade física ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Razão por que é de concluir, como o faz Paulo Pinto de Albuquerque[10] que “o crime de condução perigosa (nas modalidades previstas nos nºs 1, 3 e 4) é um crime de perigo concreto (quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos) e de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção).”
Não sem que deixe de acrescentar que “A Lei nº 59/2007 acrescentou uma ainda uma nova modalidade de cometimento do crime (nº 2), que consubstancia um crime de perigo abstracto e de mera actividade.
No que atina ao tipo legal do artigo 148º do Código Penal fica prescrito, sob a epigrafe “Ofensa à integridade física por negligencia”, que:
1 - Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - No caso previsto no número anterior, o tribunal pode dispensar de pena quando:
a) O agente for médico no exercício da sua profissão e do acto médico não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 8 dias; ou
b) Da ofensa não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 3 dias.
3 - Se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
4 - O procedimento criminal depende de queixa.
Ressuma, assim, da configuração típica a exigência da reunião dos seguintes pressupostos:
. que o agente assuma um comportamento por acção ou omissão;
. que esse comportamento comporte a violação de um dever objectivo de cuidado;
. que ocorra, consequentemente, a lesão da integridade física de uma pessoa;
. que tal resultado seja a consequência da conduta do agente.
Este tipo considera-se preenchido sempre que ocorra, por acção ou omissão, um comportamento desviante face ao objectivamente devido numa situação de perigo para o bem jurídico penalmente tutelado, necessariamente para, assim, obviar à respectiva violação.
Ademais a conduta será negligente sempre que se encontra a violação, por banda do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre si impendia, lhe era possível cumprir e face ao seu comportamento levou à produção do resultado típico, resultado esse que era previsível e evitável por um outro colocado na sua situação – tendo por referencial o homem médio.
Negligência que, nos termos gizados no artigo 15º da lei penal, pode ser consciente – sempre que o agente prevê a possibilidade de realização do facto mas age sem se conformar com essa realização, nos termos da alínea a) ou inconsciente – quando o agente nem sequer representa a realização do facto – nos termos da alínea b) ou ser mesmo grosseira, caso o agente assuma uma conduta temerária, omissiva das mais elementares regras de cuidado, vinculada, pois, a uma postura particularmente descuidada ou leviana.
Vale tudo por dizer, pois, que aqueles dois ilícitos penais tutelam, efectivamente, bens jurídicos diversos – ao passo que o crime de condução perigosa de veículo rodoviário tutela, na prescrição apontada, a segurança rodoviária, já o ilícito de ofensa à integridade física por negligencia visa acautelar a integridade física e a saúde do corpo.
Contudo não é de esquecer que o arguido … está acusado da prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, nos termos consignados nos artigos 291º, nº 1, 294º, nº 3 e 285º, todos do Código Penal.
Tal incriminação contempla, assim, a protecção da integridade física por via da remissão do artigo 294º, nº 3 para a agravação que fica prevista no aludido artigo 285º.
É que tal norma estabelece que “Se dos crimes previstos nos artigos 272º a 274º, 277º, 280º, ou 282º a 284º resultar morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.”
Razão por que se impõe concluir que a integridade física grave, como ocorre nestes autos suficientemente indiciada, encontra já protecção típica.
Com efeito fazendo uma excursão pela matéria de facto constante do libelo acusatório prespassa que o arguido terá produzido uma conduta dolosa que se subsumirá ao tipo fundamental, o de condução perigosa de condução rodoviária apreendendo-se, ademais, um resultado negligente que o mesmo também contempla e, assim, esgota a tutela penal.
E que, como já deixámos assente, se o circulo de protecção do tipo nuclear do artigo 291º do Código Penal é diverso daquele outro contido no artigo 148º do referido diploma, não menos verdade é que a protecção da ofensa à integridade física grave ocorre, também, por via da aplicabilidade daquele tipo legal sempre que há lugar, como é o caso, à aplicação da norma do artigo 285º do Código Penal.
Consequentemente o argumento aduzido pelo ora recorrente, com vista a sustentar a existência de concurso efectivo de infracções entre o crime de condução perigosa de veículo rodoviário e o de ofensa à integridade física grave por negligência, não merece acolhimento, posto que a opção legislativa é a de prevenir a situação descrita mediante a agravação prevista no tipo legal aludido no artigo 291º.
Outrossim ressalta da matéria factual contida na acusação publica que a conduta típica que teria a virtualidade de preencher os aludidos ilícitos é unívoca e simultânea e sempre cotejando apenas uma vítima, a pessoa do assistente.
Ademais a regra de circulação rodoviária que criou perigo para a integridade física de terceiro é a mesma que consubstancia a violação do dever de cuidado, qual seja a condução estradal sob o efeito do álcool.
Entendimento este concordante com a doutrina.[11]
Num estudo acerca da punição da preterintencionalidade, Alexandra Vilela[12] adianta a reflexão para a preconizada solução legal – “Isto é, o agente tem conhecimento da factualidade típica e, ao ser assim, é natural, é normal, que o agente deva prever que os efeitos do crime podem exceder a sua intenção ao cometê-lo. Por outras palavras ainda, o agente pode ser censurado a título de negligência grosseira pela produção do evento agravante, porque se, num primeiro momento, representou e quis praticar o crime fundamental doloso, em um segundo momento, também deveria ter previsto que, desse seu crime fundamental doloso, poderia surgir um evento típico agravante.
No âmbito da preterintencionalidade, a imputação subjectiva negligente do evento agravante só pode ser levada a cabo, porque ela repousa num lastro de conhecimento e de vontade próprios do dolo, a que se associa ainda a necessidade de representar o perigo específico de produção do evento agravante. Ou seja, o evento agravante só se pode prender definitivamente ao agente, porque, ao levar a cabo o crime fundamental, ele está perfeitamente esclarecido da conduta que pretende praticar e é essa mesma conduta que ele pretende levar a cabo.
Por isso se diz, com Maria Paula Ribeiro de Faria, que aqui (“tipo subjectivo de ilícito doloso”) existe uma “congruência completa entre o lado subjectivo e o lado objectivo do ilícito”. Mas o agente deve, igualmente, estar ciente da perigosidade acrescida que essa mesma conduta representa para a produção do evento agravante. Por outras palavras ainda, o lastro (crime fundamental doloso) onde repousa o evento agravante é denso e forte, porque encerra conhecimento e vontade.
No fundo, o que estamos a pretender afirmar, com Faria Costa, é que, nos crimes preterintencionais, há um crime fundamental doloso e um evento agravante, consubstanciado por um crime negligente, que foi para além do dolo do crime fundamental. Assim, ainda com o autor, verificando-se “estes dois elementos dá-se uma agravação da pena relativa à fusão destes dois crimes, o doloso e o negligente”, sendo ainda certo que o “cimento agregador dos dois crimes integrantes do crime preterintencional – e que fundamentam esta agravação – reside no «perigo típico» de produção do resultado agravante”.
Tal punição logra-se, no caso dos autos, nos termos preconizados pelo Ministério Publico, posto que o legislador português estendeu a punição através da aplicação do tipo legal do artigo 291º do Código Penal, mediante a sua agravação consignada no artigo 294º, nº 3 do citado diploma que previne a aplicação do artigo 285º, ainda do mesmo diploma.”
Lídimo é, assim, que existe uma relação de concurso aparente entre o crime de condução perigosa de veiculo rodoviário agravado, nos termos previstos nos artigos 291º, nº 1, 294º, nº 3 e 285º do Código Penal e o crime de ofensas à integridade física grave por negligencia, nos termos do disposto no artigo 148º, nº 1 e 3 ex vi artigo 144º do Código Penal, sempre que incidam sobre a mesma pessoa, sendo o agente punido pela prática do crime de condução perigosa de veiculo rodoviário agravado, nos termos do artigo 291º, nº 1, 294º, nº 3 e 285º, todos do Código Penal.
Vale tudo por dizer, assim, que o despacho recorrido não merece qualquer critica, havendo, pois, de improceder a lide recursal.
*
DISPOSITIVO
Por todo o exposto, e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação Coimbra em:
- Julgar improcedente o recurso apresentado pelo assistente … e, em consequência, mantêm integralmente a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente, que se fixam em 4 (quatro) UCS de taxa de justiça.
O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela sua relatora, sendo assinado electronicamente pelas signatárias, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2 e 3 do Código do Processo Penal.
Maria José dos Santos de Matos
Rosa Pinto
Isabel Gaio
[1] Vejam-se, a propósito, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 19/10/1995, publicado no D.R. I-A Série de 28/12/1995 e o do mesmo Tribunal de 03/02/1999, publicado no BMJ, 484, 271.
[2] Recursos em Processo Penal, Simas Santos e Leal-Henriques, Rei dos Livros, 7ª edição, 71 a 82.
[3] Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal – O novo Código de Processo Penal (Centro de Estudos Judiciários), Coimbra, Almedina, 1995, p. 34.
[4] Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, página 242, defende que a Instrução no CPP/87 tinha uma dupla finalidade: a de obter a comprovação judicial dos pressupostos jurídico-factuais da acusação, por um lado, e a de controlar judicialmente a decisão processual do Ministério Publico em acusar ou arquivar o inquérito, por outro.
[5] Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, página 53 e 54.
[6] As exigências da investigação no processo penal, página 90.
[7] Acórdãos do STJ de 26/10/2023 e 15/04/2024, respectivamente, proferidos nos Processos nºs 309/22.2GDLLE.S1 e 105/18.1PAACB.S1, disponíveis em www.dgsi.pt
[8] “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 6.ª Edição 2007, página 103.
[9] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição actualizada, UCP, página 1022.
[10] Idem
[11] Paula Ribeiro de Faria in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Ed.ª, 1999, págs. 1090, parte final, e 1091; Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Ed.ª, pág. 740 e Germano Marques da Silva, (cfr. Crimes Rodoviários, 1.ª Ed., p. 25).
[12] Os crimes agravados pelo resultado de «dupla negligencia típica» e a observância do princípio da culpa”, Revista Julgar, Setembro de 2021, página 7 e seguintes.