I - No domínio da prova indirecta, indiciária, circunstancial ou por presunção, tem que se partir de factos indiciários que, analisados segundo os imperativos da lógica e os ditames da experiência comum sobre o normal acontecer das coisas, permitem inferir, sem margem para dúvida, a verificação de outros factos.
II - Na prova indiciária os indícios devem estar devidamente comprovados, por prova directa, devem revestir um elevado grau de gravidade, devem ser precisos, plurais, independentes e variados, e, quando correlacionados, concordando entre si e conduzirem a inferências convergentes ou, excepcionalmente, tratando-se de um único indício deve ser dotado de um poder revelador singular, não podendo ocorrer contra indícios que os neutralizem ou fragilizem.
III - A gravidade do indício está directamente ligada ao seu grau de convencimento.
IV - O indício é preciso quando não é susceptível de outras interpretações, mas, sobretudo, o facto indiciador deve estar amplamente provado.
V - A máxima da experiência é uma regra que traduz aquilo que sucede na maior parte dos casos, isto é, é uma regra extraída de casos semelhantes, originando um juízo de probabilidade e não de certeza.
VI - O princípio da normalidade, fundamento de toda a presunção abstracta, deriva da circunstância de, na dinâmica das forças da natureza e, entre elas, das actividades humanas, existir uma tendência constante para a repetição dos mesmos fenómenos, princípio intimamente ligado com a causalidade.
VII - O princípio da causalidade significa formalmente que a todo o efeito precede uma causa determinada, de tal modo que quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal.
VIII - As inferências lógicas aptas a propiciar a prova indiciária podem, também, consistir em conhecimentos técnicos que fazem parte da cultura média ou leis científicas aceites como válidas sem restrição e em matérias que impliquem especiais competências técnicas, científicas ou artísticas, e que se fundamentam naquelas leis, a margem de probabilidade será cada vez mais reduzida e proporcionalmente inversa à certeza da afirmação científica.
IX - Adquirida a convicção pelo julgador sobre a verificação dos factos essenciais ao preenchimento do tipo legal com base na prova indiciária ou indirecta e nas inferências lógicas que esta propiciou, em sede de recurso o erro sobre a substância de tal juízo presuntivo só é sindicável em caso de manifesto contra senso ou desrazoabilidade.
X - A prova pericial deve ter lugar quando o processo e a futura decisão reclamam conhecimentos especializados que estão para além das possibilidades de constatação e/ou percepção, efectivas ou presumidas, do tribunal, nos campos técnicos, científicos e artísticos, ou quando o apuramento dos factos não é possível de obter de outra forma.
XI - Na análise do caso concreto, se as conclusões propiciadas pelas regras da experiência comum e do normal acontecer colidirem com o que resulta de meios probatórios com valor especial, como é o caso da prova pericial, ou da prova documental autêntica ou autenticada, aquelas regras têm que ceder.
XII - A especial força da prova pericial veda ao juiz a formação da convicção com base nas regras de experiência comum, na sua convicção pessoal ou em qualquer outro critério que não o uso de conhecimentos e argumentos inerentes à área artística, técnica ou científica da perícia.
XIII - Não é possível estabelecer nexo de causalidade entre a morte e a ingestão de óleo de rícino se não foi detectado óleo de rícino ou etanol nos exames toxicológicos concretizados ao cadáver, sendo necessário para se afirmar a necessária correlação que essas substâncias estejam presentes e em quantidade que seja letal.
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. - RELATÓRIO
1. - …, foi realizado julgamento, com intervenção de tribunal coletivo, na sequência do qual foi proferido acórdão que terminou com o seguinte dispositivo [transcrição[1]]:
«Por todo o exposto, este Tribunal Colectivo, em conformidade com as razões e preceitos citados,
a) Absolve o arguido … da prática de 1 crime de Ofensa à integridade física qualificada agravada pelo resultado [artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 ex vi artigo 132.º, n.º 2, alíneas c) e i) e 147.º, n.º 1 do Código Penal];
b) Absolve o Demandado … do pedido de indemnização civil contra si deduzido pela Demandante …
c) Ordena que se proceda ao depósito desta sentença nos termos do disposto no artigo 372º n.º 5 do Código de Processo Penal.
Sem custas criminais.
…
2. - Não se conformando com o assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso, que motivou, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
…
2.ª - O Acórdão recorrido não procedeu a uma correcta avaliação da prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, isto porque os elementos probatórios constantes dos autos e, bem assim, a prova produzida em Audiência, era suficiente para condenar o arguido … pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada agravada pelo resultado, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, ambos do Código Penal, por referência aos artigos 132.º, n.º 2, alíneas c) e i), do mesmo diploma legal, na sua forma consumada, ou caso assim, não se entenda, na sua forma tentada, ou em último caso até, pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, …
3.ª - A douta sentença a quo enferma do vício enunciado no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, na medida em que:
a) - Houve erro na crítica dos factos;
b) - Se valorizou prova contra regras da experiência comum;
e) - Houve um erro de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da sentença. As provas revelam, claramente um sentido e a decisão ilação contrária, logicamente impossível.
…
3. - O arguido, …, apresentou resposta ao recurso, …
4. - Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Coimbra, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, aderindo à motivação do Ministério Público em 1.ª instância, emitiu parecer ….
5. - Cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, veio o arguido responder ao sobredito parecer, pugnando pela manutenção do acórdão proferido na íntegra.
6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, resultou a presente decisão.
1. – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
…[2].
Posto isto, no presente recurso, tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar são:
- O tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de facto?
- O acórdão proferido enferma de vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal?
- O arguido deve ser condenado pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada agravada pelo resultado, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, ambos do Código Penal, por referência aos artigos 132.º, n.º 2, alíneas c) e i), do mesmo diploma legal, na sua forma consumada, ou caso assim, não se entenda, na sua forma tentada, ou em último caso até, pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples?
2. – DECISÃO RECORRIDA
O acórdão alvo de recurso tem o teor que ora se transcreve nas partes relevantes para a apreciação do recurso tendo em perspetiva as preditas questões:
«(…)
II - Fundamentação de Facto
1. Factos Provados
…
a) O arguido AA … integrava, em Abril de 2020, a direcção de associação …
b) Sendo, nessa ocasião, também proprietário de uma ervanária …
c) O arguido … possui, ademais, diversa formação obtida na área da medicina alternativa;
d) BB … residia, em 2020, no ... …
e) Habitação que distava cerca de 230 metros da associação mencionada em a),
f) Entre Setembro de 2017 e Fevereiro de 2020, BB … foi acompanhado em consulta externa de psiquiatria no Hospital …
g) Estando o mesmo BB …diagnosticado com debilidade mental e alcoolismo,
h) Alternando períodos de estabilidade clínica com períodos de agravamento do quadro clínico, acompanhados de alterações do comportamento com agressividade;
…
m) Apesar de tomar medicação para os seus problemas de saúde, nomeadamente para o alcoolismo, BB … mantinha invariáveis hábitos de ingestão de bebidas alcoólicas,
n) Obtendo, por vezes, estas bebidas através da introdução forçada na residência das irmãs ou noutras residências na localidade,
o) Tendo, identicamente e com o mesmo objectivo, forçado ainda a introdução nas instalações da Associação …
p) Partindo, para tanto, os vidros das janelas e dali subtraindo garrafões de vinho do bar da associação que levava para a sua residência e consumia;
q) Os factos descritos em m) a p) eram do conhecimento geral na localidade,
r) Sendo também do conhecimento do arguido …, que conhecia BB … desde o seu nascimento e que, não obstante, mantinha com ele e correspondente família uma relação de amizade;
s) Na noite de 4 para 5 de Abril de 2020, a Associação … foi objecto de introdução nas respectivas instalações mediante arrombamento dos vidros das janelas,
t) Tendo, nessa sequência, sido subtraídos garrafões de vinho;
u) Foi, na sequência da quebra do vidro, colocado um móvel cristaleira no exterior do edifício junto à janela;
v) O arguido … estava convencido de que o autor da entrada forçada descrita em s) e t) era BB …
w) Nessa sequência, por prever que BB … voltaria a introduzir-se nas instalações daquela associação para subtrair bebidas alcoólicas, o arguido … elaborou um plano no sentido de colocar óleo de rícino num garrafão com vinho para que, quando aquele ingerisse o seu conteúdo, fosse acometido de uma diarreia,
x) Substância aquela que o arguido … vendia, aliás, na sua ervanária como laxante para pessoas e para animais;
y) Pretendia o arguido …, com tal conduta, fazer BB …desistir de continuar a invadir a associação para subtrair bebidas alcoólicas;
z) Em data não concretamente apurada mas necessariamente prévia à noite de 6 para 7 de Abril de 2020, o arguido …, em execução do sobredito propósito, colocou no balcão do bar da associação um garrafão com capacidade para 5 litros e contendo cerca de 3 litros de vinho,
aa) Após o que introduziu no garrafão cerca de metade de um recipiente de óleo de rícino da marca Dimor com capacidade para 60ml;
ab) Na noite de 6 para 7 de Abril de 2020, BB … dirigiu-se às instalações da Associação …
ac) Tendo nela ingressado pela janela após afastar o móvel que bloqueava o correspondente acesso,
ad) Mais tendo subtraído o garrafão de vinho que o arguido … tinha deixado em cima do balcão nos termos mencionados em z);
ae) Na sequência de deslocação que CC … concretizou a casa de BB … no período de almoço do dia 7 de Abril de 2020, aquela, ao aperceber-se da presença do garrafão descrito em ad) na residência, deitou fora todo o vinho que se encontrava no correspondente interior,
af) Isto sendo que esse mesmo garrafão ostentava, na ocasião, quantidade não concretamente apurada de vinho mas nunca inferior a 2 litros;
ag) No dia 8 de Abril de 2020, ao início da manhã, BB … deslocou-se a casa da irmã CC …
ah) Tendo solicitado àquela que lhe desse tabaco, que fumou, e, após, regressou a casa sem tomar o pequeno-almoço;
ai) A hora não concretamente apurada do dia 8 de Abril de 2020 mas sempre no período da manhã e com carácter prévio ao almoço, BB … começou a padecer de dores de barriga, vómitos e diarreia,
aj) Tendo, inclusivamente, vomitado na cama;
ak) No dia 8 de Abril de 2020, pelas 13h15m, quando CC … se deslocou a casa de BB … encontrou-o prostrado na cama,
al) Queixando-se aquele de dores de barriga e estando com a sua roupa e a roupa de cama, bem como o chão, com vestígios de vómito e de fezes;
am) Tendo, entretanto, chegado também Elisabete … que vinha fazer a visita diária e que, perante o estado de saúde da BB …, contactou o Instituto Nacional de Emergência Médica;
…
ap) No exame de anatomia patológica forense materializada a BB … por ocasião da autópsia, foi constatada a presença de sinais de
i. Esteatose hepática mista, marcada (55%) e difusa;
ii. Cardiopatia com hipertrofia miocárdica em evolução para dilatação e aterosclerose coronária (placa excêntrica, tipo IV da American Heart Association, reduzindo lumina de 25-50%);
iii. Congestão vascular marcada e difusa dos órgãos estudados (incluindo pulmões e rins);
aq) BB … encontrava-se, nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em ai), medicado com carbamazepina, sertralina e oxazepam;
ar) O óleo de rícino tem uma finalidade farmacológica de resolução de obstipação ocasional cujo efeito comum e previsível se traduz na provocação de diarreias e cujos efeitos menos comuns se traduzem em cólicas abdominais, vómitos, distensão abdominal e tonturas,
as) Sendo considerado como fármaco efectivo e seguro em função de uma dose diária apropriada para adulto do sexo masculino entre 15ml a 60ml;
at) Ao dissimular óleo de rícino num garrafão de vinho, o arguido … actuou de forma livre, voluntária e consciente no desejo que BB … ingerisse o correspondente conteúdo e quis-lhe provocar um desarranjo intestinal;
§ Das Condições Pessoais Reportadas ao Arguido …
…
II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
II.2 - Factos não provados
Não resultou provado, com relevo para a solução da causa, que:
§ Do Libelo Acusatório
…
II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
II.3 - Motivação da matéria de facto
…
Não subsistem, neste sentido, quaisquer hesitações na afirmação que o arguido … desenvolveu a conduta descrita em w) a aa) e at). …
Não se olvida que o arguido … fez uso do direito ao silêncio em julgamento! Sucede que foram validamente lidas em julgamento as declarações por aquele prestadas no âmbito do inquérito. …
Que colocou o óleo de rícino no garrafão de 5 litros de vinho, o qual conteria apenas cerca de 3 litros, com intenção de que quando o BB voltasse a assaltar a associação para levar o vinho, o beber e ficasse com uma diarreia, o que pararia num dia ou dois dias.
…
É certo que tais declarações não valem como confissão qua tale [artigo 357.º, n.º 2 do Código de Processo Penal]. Mas podem e devem ser apreciadas pelo Tribunal ao abrigo do princípio da livre convicção… E as mesmas mostram-se coerentes e consentâneas – ao ponto de se afirmarem, por isso mesmo, credíveis – com os demais elementos de prova juntos aos autos. Designadamente com o relatório de fls. 123 e no qual a Polícia Judiciária, ainda que sem a elaboração de um auto de apreensão formal, documenta a recolha do garrafão existente em casa de BB … e a entrega que lhe foi concretizada pelo arguido … de uma embalagem de óleo de rícino na Associação …… Que narrou, de forma credível, que o próprio AA lhe reconheceu ter colocado óleo de rícino no vinho.
Questão distinta centra-se já na influência que esse mesmo óleo de ricínio teve no óbito de … Resultando evidente dos pontos 9 e 12 da factualidade não provada que o Tribunal concluiu pela inexistência de nexo entre aqueles vectores. Cabendo, pois, explicitar as razões que motivam tal inferência…
3. É certo que o relatório de autópsia sob Ref. 6634054 inscreve, nas suas conclusões, que “é de admitir que a morte de BB ,… possa ter sido devida a ingestão de rícino” [menção que é depois rectificada sob Ref. 90054375 por forma a reflectir a alusão a «óleo de rícino»]. Cabe, no entanto, realçar, no imediato, que se trata, nos termos enunciados, de um juízo traduzido no reconhecimento de uma possibilidade e não na afirmação de uma certeza… Ainda que aquele se ache assumido, ulteriormente e nos esclarecimentos sob Ref. 90054375, como crença da subscritora! A qual expressa, nesta sede, que
…
Mais esclarece que não existem no corpo da vítima sinais físicos de desidratação ou que se possam ser especificamente associados à ingestão de óleo de rícino, o que é resultado do tipo de substância em causa e para o que também contribui a dilação entre o óbito e a concretização da autópsia.
(…)
Questionada porque razão não foi detectada a presença de etanol no sangue da vítima, esclarece que a mesma terá sido eliminada através dos vómitos e diarreia.
(…)
Questionada se a cardiopatia e as esteatose hepática referidas na nona conclusão do relatório de autópsia tornaram a vítima mais vulnerável aos efeitos da ingestão do óleo de rícino, disse que não e que não observou nada no exame ao hábito externo e interno da vítima que apontasse nesse sentido.
Deveremos, pois, deixar registado que não foi pela toxicidade da substância que a perita se pronunciou pela conexão entre a aparente ingestão de óleo de rícino e o fenecimento. Mas antes por concluir pela verificação de um fenómeno de desidratação em decorrência de patologia gastrointestinal grave supostamente motivada por aquela substância.
Tal perspectiva técnica não se mostrou, no entanto, consensual… Tendo sido, desde logo, contrariada pelo documento particular que o arguido … ofereceu na sua contestação sob a epígrafe «Parecer Médico-Legal» [fls. 319]. Renovamos, nesta vertente [e à semelhança do já preconizado no despacho sob Ref. 95578892] que não tratamos de verdadeira prova pericial [até porque as perícias médico-legais são as realizadas pelo INML (artigo 159.º, n.º 1 do Código de Processo Penal)]… Regendo, nesta vertente, os ensinamentos preconizados pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Abril de 2019 [Processo n.º 38/17.9JAFAR.E1.S1] ao estabelecer que
V- Não podem valer como prova pericial, e revestir o valor reforçado que lhe é próprio, as diligências que não tenham observado os formalismos prescritos pelos arts. 151º e seguintes do CPP, não podendo, em especial, ser consideradas perícias, no sentido jurídico-processual do termo, as declarações subscritas por profissionais de determinadas áreas, como seja a medicina, que frequentemente são juntas aos processos pelos sujeitos processuais particulares, tendo em vista a demonstração de factos que lhes aproveitam, elaborados por pessoas da sua escolha.
VI - Situam-se nesse universo de actos os «pareceres médico-legais» carreados para os autos pela defesa do arguido com base nos quais pretende infirmar o juízo probatório afirmativo emitido pelo Tribunal Colectivo com fundamento no relatório da autópsia da ofendida.
Não se trata, por conseguinte, de prova que colha o valor definido no artigo 163.º do Código de Processo Penal. Reconhecemos, ainda assim, que falamos de perspectiva técnica [ainda que privada] oriunda de quem ostenta credenciais na matéria. Sendo o próprio Centro Médico-Legal Prof. J. Pinto da Costa entidade com larga tradição de colaboração com os Tribunais com reconhecido prestígio e reputação!
Mas o relatório de autópsia é também, e sobretudo, contrariado pelas conclusões alcançadas no parecer médico-legal de fls. 435. Este sim a figurar como verdadeira perícia de natureza colegial peticionada ao INML… E que se mostra, aliás, convergente com a perspectiva assumida naquele «relatório particular» de fls. 319.
Importa, pois, salientar que ambos asseveram não ser possível estabelecer um nexo de causalidade entre a morte de BB … e a ingestão de óleo de rícino nos termos descritos no libelo acusatório! Indo antes no sentido de afirmar, na prática, essa exclusão… Conclusão que alcançam com base em diversos vectores:
- Não foi detectado óleo de rícino ou etanol nos exames toxicológicos concretizados ao cadáver, carecendo tais substâncias de estar presentes para se afirmar a necessária correlação;
- Ainda que assim não fosse, as quantidades de óleo de rícino mencionadas na acusação não seriam letais mas antes importariam apenas a aceleração do trânsito do intestino;
- Não aparenta ter ocorrido qualquer desidratação de BB … até em função da inexistência de sinais físicos desta e que, naquela hipótese e atentas as condições de conservação do cadáver, sempre seriam expectáveis;
- A patologia cardíaca e hepática de BB …, em conjugação com o seu alcoolismo crónico e com a medicação tomada, podem ter figurado como causa bastante da sua morte.
Em face do contraste divisado entre os registados juízos técnicos, o Tribunal convocou os subscritores do relatório de autopsia de fls. 319 e do relatório pericial de fls. 435 para o oferecimento de esclarecimentos adicionais em audiência de julgamento.
CC …, como responsável pela autópsia, principiou por defender que a inexistência de vestígios de óleo de rícino ou etanol nos exames efectivados a BB … se mostra explicável. Desde logo porque não foi feita uma pesquisa da primeira substância mas antes pela presença de um seu derivado a traduzir-se na ricinina… E, sobretudo, porque os vestígios de óleo de rícino e do etanol sempre poderiam ter sido expelidos em virtude dos vómitos e diarreias que acometeram …. Chegando mesmo ao ponto de afirmar, a instâncias do Tribunal, que é possível passar de uma TAS de 3,00g/l para um valor nulo apenas em virtude dos vómitos e excreções! Reafirmou, no demais, a sua crença que terá ocorrido uma desidratação decorrente dos vómitos e diarreias enquanto fenómenos correlacionados com a ingestão de óleo de rícino. Pugnando que a inexistência de sinais físicos de desidratação se deve à circunstância de estarmos em face de uma situação de desequilíbrio electrólitico. Em que se acha característica a inexistência de sinais físicos… E hesita CC …, por último, quanto a uma qualquer associação entre a patologia cardíaca e hepática e o fenecimento de BB …. Estabelecendo que o coração deste ainda funcionava e os problemas cardíacos estavam em evolução com coronárias que não se afirmavam em muito mau estado. E ainda que aceitando que os vómitos e diarreia poderão ter derivado de muitos factores, considera que aquela última excreção nunca seria, em qualquer caso, causada por patologia cardíaca.
Já o Perito …, figurando como um dos subscritores de fls. 435, persistiu na afirmação que, a ter o óleo de rícino e álcool influência no óbito, careceriam aquelas substâncias de estar invariavelmente presentes no exame hematológico. Isto pois que não tratamos de substâncias voláteis… Pelo que, tendo o corpo estado guardado nas câmaras do INML, manteria invariavelmente a sua presença. Até porque “estamos a falar de álcool no sangue ao ponto de não ter podido sair de lá (…) O sangue fica no corpo e não é expelido nos vómitos ou diarreias. É, aliás, por isso que colhemos sangue periférico”. E, prossegue, o corpo acusaria a presença do etanol quer a tratar-se do consumo de 3litros de vinho, quer a tratar-se da ingestão de meros 0,5ltros! Tanto assim é, assevera …, que “em face dos elementos que me foram fornecidos, tenho muitas dúvidas que ele tenha sequer consumido óleo de rícino ou vinho”. Estabelecendo que as quantidades referenciadas no libelo acusatório também não ostentariam qualquer perigosidade pois que o óleo de rícino só é tóxico em doses elevadíssimas. A exigir sempre a ingestão de mais de duzentos e muitos mililitros… No que, a falarmos de 60ml, a única consequência daquela substância seria um aumento do trânsito intestinal.
Já quanto à desidratação, insiste … que, a ter ocorrido, existiriam sempre sinais físicos. Quanto mais não fosse, estariam presentes no abdómen ou no humor vítreo. Mas o problema que se constata no relatório é que “não existiu sequer uma preocupação de os pesquisar e identificar”. No que, defende uma vez mais, o quadro conducente ao fenecimento parece estar claramente mais conexionado com as patologias que BB sofria.
4. Como tivemos a oportunidade de realçar anteriormente nos autos [fls. 576], o Tribunal está, naturalmente, legitimado a aderir ao entendimento perfilhado num dado relatório pericial conquanto lhe divise maiores garantias científicas [assim, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de Janeiro de 2023 (Processo n.º 1276/18.2T9CVL.C1)] e as conclusões ali alcançadas colham superior credibilidade ou razoabilidade técnica. Até porque, nos termos referenciados pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Fevereiro de 2018 [Processo n.º 571/15.7PBFAR.E1.S1],
(…)
…
5. Em face do franco contraste de opiniões divisadas, considerou-se, ainda assim, mais avisado concretizar a Consulta Técnico-Científica ao Conselho Médico-Legal [artigo 7.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 166/2012] peticionada pelo Ministério Público. Tendo aquele órgão apresentado a réplica de fls. 598… Note-se que, como o próprio nome da consulta sugere e se depreende do teor das respostas dadas, o Conselho Médico-Legal não avança, em regra, com uma avaliação imediata da situação concreta. Antes oferece um estudo ou uma análise tendencialmente académica e abstracta aos quesitos avançados. Oferecendo, como tal, cânones de sindicância… Mas que reclamam, após, a necessária e inevitável transposição para o caso concreto com todas as suas especificidades. Temos, não obstante, como óbvio que a perspectiva daquele colégio de peritos ostenta, nessa vertente escolástica, um valor híper-reforçado. No que podemos dizer, numa aproximação à réplica do Conselho Médico-Legal, que, como salienta o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de Abril de 2012 [Processo n.º 191/07.0TAACB.C1],
1.- Numa hierarquia de valoração da prova pericial, os pareceres técnico-científicos emitidos pelo
Conselho Médico-Legal, superam o valor do parecer pericial já que aqueles constituem o entendimento definitivo do conselho sobre a questão concretamente colocada.
O Conselho Médico-Legal obriga-nos, como tal, a assumir os seguintes pressupostos fundamentais de sindicância:
A. O óleo de rícino tem uma finalidade farmacológica de resolução de obstipação ocasional cujo efeito comum e previsível se traduz na provocação de diarreias [tendo, como efeitos menos comuns, cólicas abdominais, vómitos, distensão abdominal e tonturas] sendo considerado como efectivo e seguro em função de uma dose diária apropriada para adulto do sexo masculino entre 15ml a 60ml [resposta ao quesito 1];
B. É conjecturável, em abstracto, que a ingestão de vinho misturado com óleo de rícino, em indivíduo com patologia miocárdica prévia, despolete vómitos, diarreia, respiração, ofegante e paragem cardiorrespiratória. Assim como é conjecturável, em abstracto, que esse quadro clínico possa ser independente da toma de óleo de ricínio mas antes secundário a uma cardiopatia como aquela que BB …sofria [resposta ao quesito 15];
C. A presença de óleo de rícino no corpo mostra-se constatável através da pesquisa de ricinina em virtude de esta estar presente, ainda que em pouca quantidades, nas preparações obtidas a partir das sementes da planta Ricinus communis [resposta ao quesito 4];
D. O etanol, sendo absorvido pelo sangue, desaparece por intermédio da sua eliminação pelo organismo a uma taxa de 0,15 gramas/litro de sangue/hora. Não sendo, pois, expurgável através de vómitos e diarreia... No que o etanol decorrente da ingestão de 0,5 litros de vinho por indivíduo com estômago vazio, resultando numa alcoolemia de 1,3 gr/L, tomaria cerca de 9 horas a desaparecer [resposta aos quesitos 6 e 7];
E. Não existem dados científicos que nos permitam definir qual a taxa de metabolização do óleo de rícino pelo corpo [resposta aos quesitos 7 e 9];
F. Os graus de desidratação com magnitude relevante são objectiváveis ao exame físico. E a ocorrência de “congestão vascular marcada e difusa dos órgãos estudados [incluindo pulmões e rins]”, constatada na autópsia, não seria expetável a ter ocorrido desidratação. Isto sendo que esta mesma autópsia também não sugere a verificação de patologia gastrointestinal [resposta aos quesitos 12 e 13];
Estes mesmos vectores obrigam-nos, como tal, a acompanhar o relatório pericial de fls. 435 em grande parte das conclusões alcançadas. O Conselho Médico-Legal admite, é certo, que uma morte se possa dar em função da ingestão de óleo de rícino. Ou, outrotanto, em pura decorrência de um quadro clínico análogo ao ostentado por BB … Mas oferece-nos também outros dados que não se mostram, de todo, compagináveis com a perspectiva exarada no relatório de autópsia de fls. 319!
Por um lado pois que se mostra forçosa a conclusão que, a ter BB … ingerido vinho nas grandezas relatadas no libelo acusatório [ou em quaisquer outras quantidades minimamente assinaláveis] nas horas que antecederam o correspondente óbito, o mesmo evidenciaria inevitavelmente a presença de etanol na autópsia. Por outro porque, a estar presente óleo de rícino no corpo de BB [ao ponto de influir, como tal, no seu fenecimento], teria sobrevindo um resultado positivo por ocasião da pesquisa de ricinina. E, por último, porque parece ser efectivamente de excluir que tenha ocorrido a suposta desidratação [bem como a «patologia gastrointestinal grave»] que a perita DD adivinhava como causa do óbito.
6. Atente-se, ademais, que tais dados se mostram também consentâneos com a prova que veio a ser produzida …
III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
III.1 - Qualificação Jurídico-Penal dos Factos
…
III.2 – Do Tipo Incriminatório Matricial das Ofensas à Integridade Física
…[3].
[4].
É nesta mesma lógica que Miguez Garcia e Cancela Rio[5] explicam que
A lesão da saúde consiste em criar ou intensificar uma situação patológica, enquanto desvio das funções corporais normais. É a perturbação do equilíbrio fisiológico ou psicológica da vítima. Tanto pode tratar-se de uma infecção, capaz de criar um estado de doença, como a criação dum estado de embriaguez ou a ministração de uma droga que provoca no organismo uma alteração desfavorável das funções biológicas (…)
[sublinhado nosso].
Desta forma, mostra-se elemento objectivo do tipo em causa tão somente a ofensa do corpo ou da saúde de outrem.
Já quanto ao tipo subjectivo, temos como exigência da norma incriminatória que o agente actue com dolo em qualquer uma das suas formas. Efectivamente, e não prevendo os transcritos tipos incriminatórios a punição a título de negligência, temos que, por referência ao artigo 13.º do Código Penal, só será punível o comportamento descrito quando praticado de forma dolosa. Desta forma, e atento o artigo 14.º do mesmo diploma legal, para que se dê o preenchimento do tipo subjectivo do crime de Ofensas à integridade física, o agente deverá ter actuado com dolo directo, necessário ou eventual.
Sabemos já que o arguido … verteu óleo de rícino num recipiente com vinho na crença e expectativa que BB … iria consumir a mistura daí derivada. Conduta que desenvolveu com o específico propósito que BB … fosse acometido de uma diarreia. No que se mostra inegável que o arguido … quis contender com a saúde do destinatário da sua actuação!
2. É certo que não podemos dizer que o resultado por aquele visado se veio a produzir... Pois que, não obstante BB … ter actuado nos preciso termos expectados pelo arguido EE, interpôs-se a superveniente intervenção de CC … a deitar fora a totalidade da bebida alcoólica com que se deparou. Sem que se saiba se BB …, previamente a esse acto, chegou ou não a ingerir parte do vinho.
Sucede que a ausência de exauração do crime não carece de significar uma inevitável desresponsabilização do agente… Efectivamente, o artigo 22.º do Código Penal estabelece, sob a epígrafe «Tentativa», que
1 - Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.
2 - São actos de execução:
a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;
b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou
c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.
Estamos em face de conduta claramente enquadrável na categoria de acto de execução para efeitos do preceito transcrito. Pois que a mistura desenvolvida pelo arguido … se mostrava idónea, a ser bebida, a provocar um desarranjo intestinal e, com isso, a interferir com a saúde do destinatário. E os vectores da conduta prévia de BB … conhecidos pelo arguido … permitiam expectar que aquele, ainda que por intermédio de uma actuação ilícita, tomasse posse do sobredito vinho e o ingrerisse. Ao ponto de se mostrar verificada a fattispecie da alínea c) do n.º 2 supra transcrito!
3. Sucede que a tentativa “só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão” [artigo 23.º, n.º 1 do Código Penal]. Tal significa no imediato, que a punibilidade da conduta do arguido EE se mostrará dependente da qualificação passível de ser endereçada à visada conduta exaurida…
Se assim é, não ocorrerá punição da tentativa a estarmos em face de um crime de Ofensa à integridade física simples… Sendo a atuação apenas passível de sancionamento a concluirmos que a actuação desenvolvida se enquadra no contexto traçado no artigo 145.º do Código Penal. Preceito que, sob a égide «Ofensa à integridade física qualificada», recorta os elementos que operam uma qualificação daquele crime em função de uma maior gravidade ou censurabilidade do facto.
Na verdade, resulta daquele artigo que “se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com pena de prisão até 4 anos no caso do artigo 143.º”. Temos, ademais, que, em conformidade com o n.º 2 da mesma norma, será adequado o recurso à enumeração não taxativa de exemplos-padrão que se acha vertida no artigo 132.º do Código Penal para operar a aludida qualificação.
Não nos olvidamos que o libelo acusatório considerou que tal ofensa deveria colher a qualificação centrada nos artigos 145.º, n.º 1, alínea a) e 133.º n.º 2, alínea c) e i) do Código Penal. Isto por considerar que a debilidade mental e alcoolismo de BB … e o carácter dissimulado da actuação do arguido EE acarretam o preenchimento das hipóteses definidas naqueles normativos.
…[6] […
…
…
Figueiredo Dias[7], por seu turno, explica a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à especial perversidade aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas. A especial perversidade supõe, assim, uma atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, que revelam um egoísmo abominável. O acento tónico ou componente da culpa refere-se aqui ao agente.
As circunstâncias enumeradas no n.º 2 do artigo 132º, passíveis de revelar esse “algo de especial”, são, assim, meros indícios… Falamos de indicadores ou referenciais que poderão ser desconsiderados em face de condutas que, embora identificando-se com as mesmas, não revelam, contudo, a exigida especial perversidade ou censurabilidade. Tal poderá suceder por ocorrerem circunstâncias extraordinárias que destaquem claramente a sua ilicitude ou culpa do exemplo padrão [a que não se reconduzem circunstâncias como o bom comportamento anterior, a confissão, o arrependimento, o ressarcimento do dano, etc., que figuram como circunstâncias atenuantes gerais]. Outrotanto, outras circunstâncias não previstas, mas substancialmente análogas, reflectidas no facto ou na personalidade do agente, poderão assumir tal relevância aos olhos do julgador por revelarem aquela especial censurabilidade ou perversidade.
5. Parece-nos, no entanto, que a transposição daquelas hipóteses para o caso sub judice clama por um crivo adicional. Na verdade, quando o n.º 2 do artigo 146.º, n.º 2 do Código Penal remete para as circunstâncias previstas no artigo 132.º do mesmo diploma legal, não pretende operar uma transposição literal e automática dos exemplos padrão mas antes uma conformação dos mesmos ao bem jurídico e à conduta típica agora em causa. O que significa que o preenchimento do conceito se deve fazer não à luz do valor da vida e dos meios tradicionalmente aptos ou idóneos para a violar mas antes em face da integridade física.
Tal noção pode funcionar em dois sentidos… Conduzindo a qualificações que não se dariam se perspectivadas em face do Homicídio! Pense-se, por exemplo, na utilização de objecto particularmente perigoso da alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. Atributo que certamente estará sujeito a uma distinta densificação a estarmos em face de um objecto mobilizado para matar ou, em alternativa, para ofender a integridade física! Isto porque quem mata, mata, por regra, com algum objecto. O que significa que o tipo matricial do homicídio previsto no artigo 131.º do Código Penal traz já ínsita a utilização de um instrumento a incorporar normal potencialidade letal ou mortífera. Mas esse mesmo objecto, se utilizado para ofender a integridade física, pode já revelar uma censurabilidade acrescida até em função da possível intervenção de um particular e expresso propósito de massacrar ou brutalizar o corpo de outrem. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9 de Janeiro de 2017 [Processo n.º 783/12.5GAFAG.G1],
Todavia, importa ter presente que estando em causa o crime de ofensa à integridade física, a especial censurabilidade ou perversidade do agente, para cujo preenchimento o art. 145º, n.º 2, do Código Penal remete para as circunstâncias previstas a propósito do tipo legal de homicídio no n.º 2 do art. 132º do mesmo diploma, terá que ser apreciada em função do bem jurídico aí tutelado – a integridade física – e não do bem jurídico tutelado por este último – a vida. Com efeito, a apetência do meio para ser particularmente perigoso tem de ser aferida e correlacionada com o ato ofensivo ou lesivo da integridade física e não com o ato ofensivo ou lesivo da vida - Cf. acórdão do TRC de 15-01-2003 (processo n.º 3447/02), disponível em http//www.dgsi.pt..
Daí a conclusão de que, se uma arma de fogo ou uma navalha não revelam uma perigosidade muito superior à normal dos meios geralmente utilizados para atentar contra a vida, o certo é que já revelam tal perigosidade relativamente aos meios normalmente usados para ofender a integridade física de outrem, que são geralmente as mãos, os pés, a luta corporal ou a utilização de objetos de uso corrente e não letal.
Mas o exposto funciona também de forma inversa… Divisando-se actuações que clamariam pela qualificação a estar em causa um atentado à vida mas que não justificam semelhante inferência quando perspectivadas em face do corpo ou saúde. Até por uma razão fulcral! É que o bem jurídico integridade física, contrariamente à vida, mostra-se passível de conhecer diferentes graus ou escalas de lesão. Efectivamente, a vida figura como bem que, quando postergado, é suprimido em absoluto! Já a corpo ou saúde podem colher lesões de gradação abissalmente distintas. Desde os prejuízos ou perdas corporais inócuos ou irrelevantes [como um corte de cabelo[8]] até à privação de um membro ou de um órgão, existe todo um leque de grau de lesões distintos do bem jurídico em apreço que podem não colher a mesma resposta do ordenamento jurídico [tanto assim é que o legislador teve o cuidado de tipificar a Ofensa à integridade física grave].
Se assim é, parece-nos que será de exigir um determinado patamar de gravidade da lesão do corpo ou saúde para que se possa afirmar ter o agente actuado com especial censurabilidade. Especialmente nestes casos de mera tentativa… Não chegamos, ainda assim, ao extremo de Paula Ribeiro de Faria[9] que defende que uma tentativa de Ofensa à integridade física qualificada só poderá existir quando a lesão visada se indexe a uma das possibilidades da Ofensa grave do artigo 144.º do Código Penal. Mas mostra-se, ainda assim, óbvio que o acto visado deve estar notado de clara ofensividade. Isto mesmo que se verifique, em termos literais, um dado exemplo padrão… Pense-se no exemplo de escola segundo o qual o homicídio que resulta do desferimento de uma facada pelas costas envolverá inevitavelmente meio insidioso. Pois que tal acto traz consigo uma imagem de perfídia e indefensabilidade derivada de se atingir uma vítima descuidada que justifica uma punição acrescida derivada da qualificação! Ora, este mesmo quadro pode também ser associado a uma palmada no pescoço ou pelas costas. Mas tratamos de actos de ofensividade secundária ou não relevante ao ponto de, pensamos, não ser razoável aí divisar uma particular perversidade do agente.
A questão que se deverá colocar nos autos centra-se, como tal, na indagação se, não obstante o meio insidioso mobilizado, o tipo de lesão ou interferência com o corpo ou saúde visada pelo arguido EE atingiu um limiar bastante de ofensividade que possa justificar a qualificação. Recordemo-nos, para tanto, que aquele, em função do seu conhecimento próximo das características do óleo de rícino, visava produzir aquele que é o efeito comum associado a tal substância e que se traduz no potenciar de uma diarreia.
Não nos parece, pois, que o propósito de provocar um desarranjo intestinal empreste ao acto uma visão de censurabilidade superior àquela que é a própria do tipo incriminatório matricial das Ofensas à integridade física simples. Admitimos que assim não seria, por exemplo, a ter o arguido … mobilizado grandezas muito superiores às divisadas como toma diária ajustada daquela substância [que se cifra, sublinhe-se, em 60ml (alínea as))]. Ou seja, caso tivesse aquele empregue, conjecture-se, 150ml por forma a assegurar que os processos gastrointestinais de BB … fossem mais dolorosos ou prolongados. Ou, outrotanto, vertesse dose próxima da considerada tóxica e que, em face dos juízos técnico-periciais, careceria de traduzir-se em 280ml. Parece-nos que, em tais casos, se justificaria em pleno a qualificação da conduta desenvolvida…
Sucede que não foi esse o propósito e o termo de actuação do arguido …. Atente-se que este diluiu quantidades [30ml em 3litros de vinho] que se contêm claramente nos limiares [60ml] tidos como dose diária segura e apropriada do sobredito fármaco. Ao ponto de o próprio subscritor do relatório pericial de fls. 435 ter assinalado que a única consequência daquele seria o aumento do trânsito intestinal.
Se assim é, não nos parece que se possa pugnar pela qualificação da Ofensa à integridade física tentada. Ao ponto de o acto materializado pelo arguido … não se mostrar punível. Impondo-se, por conseguinte, a sua absolvição nos presentes autos.
(…)»
3. - APRECIAÇÃO DO RECURSO
O Ministério Público, ora recorrente, insurge-se quanto à decisão sobre a matéria de facto ínsita no acórdão alvo de recurso visando:
- A sua modificação, ainda que não o refira explicitamente, com a consequente substituição da decisão de direito por outra que condene o arguido pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada agravada pelo resultado, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, ambos do Código Penal, por referência aos artigos 132.º, n.º 2, alíneas c) e i), do mesmo diploma legal, na sua forma consumada, ou caso assim, não se entenda, na sua forma tentada, ou em último caso até, pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples; ou
- A anulação parcial do julgamento e do acórdão recorrido e o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 426.º, in fine, do Código de Processo Penal.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
A impugnação, em sede de recurso, da decisão sobre a matéria de facto pode assumir duas modalidades: através da arguição de vício de texto previsto no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efetivo da matéria de facto, previsto no artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
Ao enveredar pela primeira das sobreditas modalidades, a discordância do recorrente traduz-se na invocação de vício(s) da sentença recorrida e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; optando pela segunda modalidade, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá especificar.
Como decorrência, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias:
- Uma, de âmbito mais restrito, comummente designado de revista alargada, contemplando os vícios da decisão recorrida previstos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- Outra, mais abrangente, a denominada impugnação ampla a que se reporta o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e que se pode extrair da prova produzida em audiência.
No caso vertente, o recorrente lançou mão de ambos os expedientes processuais, que analisaremos tendo em perspetiva as duas primeiras questões supra enunciadas, coincidentes com as por aquele elencadas.
Apreciemos, pois.
3.1- O tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de facto?
…
O mecanismo adequado para tentar reverter o erro de julgamento em sede de recurso é a denominada impugnação ampla da decisão da matéria de facto, previsto no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, visando uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo e a subsequente modificação da decisão sobre a matéria de facto nos termos consentidos pelo artigo 431º, al. b), do mesmo diploma.
O recurso interposto com esse desiderato poderá ter como fundamento:
- A atribuição, pelo tribunal recorrido, aos meios de prova convocados como suporte da decisão, de conteúdo diverso daquele que efetivamente têm ou daquele que foi realmente produzido em audiência; ou
- A violação de critérios legais de valoração e apreciação da prova (incorporada nos autos ou produzida oralmente em audiência): pela valoração de meios de prova ilegais ou nulos; pela violação de critérios de apreciação da prova vinculada (vg. prova documental e pericial); pela violação de princípios gerais de apreciação da prova, designadamente o princípio da livre apreciação previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal e o princípio in dubio pro reo[10].
Porém, como vem reiteradamente assinalando a doutrina[11] e a jurisprudência[12], nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, antes constituindo um mero remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar.
Por isso, recai sobre o recorrente o ónus de proceder a uma tríplice especificação conforme estipulado no artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal: os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados [al. a)]; as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida [al. b)]; as provas que devem ser renovadas [al. c)].
A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
Por seu turno, a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado[13].
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430º do mesmo diploma).
Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo aquele indicar concretamente as passagens [das gravações] em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, em consonância com o estabelecido nos nºs 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão n.º 3/2012[14], «a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente».
É, assim, possível «distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, atualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do n.º 4 do citado artigo 412º»[15].
Atentando no recurso em apreço, apesar de o recorrente não invocar a impugnação ampla da matéria de facto ou aludir ao normativo legal que a prevê, é manifesto que, visando a reapreciação da prova produzida, ter-se-á de entender que invoca o erro de julgamento atacável por aquela via de impugnação.
Todavia, deparamo-nos com uma contingência inultrapassável – o total incumprimento do ónus de tríplice especificação nos sobreditos moldes.
Com efeito, o recorrente não especifica, desde logo, quais os concretos pontos da matéria de facto que pretende impugnar, em conformidade com o exigido pelo artigo 412º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Penal. Depreende-se da motivação do recurso que terá em vista, pelo menos, o ponto 9 dos factos considerados como não provados – «9. Uma vez na sua residência, BB … ingeriu o conteúdo integral do garrafão descrito em z)» –, que entende que devia ter sido dado como provado. Porém, ainda tendo em conta a argumentação recursiva, divisa-se que se pretenderia que fosse apenas parcialmente provado, uma vez que se alega que o arguido EE colocou óleo de rícino no garrafão quando ele continha cerca de 3 (três) litros de vinho, o qual, posteriormente, tinha quantidade não concretamente apurada de vinho mas nunca inferior a 2 (dois) litros, quando CC …deitou fora todo o vinho que se encontrava no seu interior, pelo que é evidente que foi o falecido BB … que bebeu o vinho que se encontra em falta, na medida em que existe uma divergência entre a quantidade depositada no garrafão entre os referidos dois momentos temporais.
Porém, o recorrente tinha que indicar, de forma clara e inequívoca, os concretos factos individualizados – ainda que por referência ao número ou à alínea sob os quais foram elencados como provados ou não provados, respetivamente – que pretendia impugnar e qual o sentido em que deveriam ser julgados, não podendo o tribunal de recurso efetuar um exercício de “adivinhação” com base na interpretação da alegação expendida por aquele.
Outrossim, o recorrente não indica quais as concretas provas que impõem – não apenas permitem ou aconselham – decisão diversa, em obediência ao estatuído no artigo 412º, n.º 3, al. b), e, tratando-se de provas gravadas, ao preceituado no n.º 4 do mesmo preceito.
Na verdade, o recorrente alega, de modo genérico e conclusivo, que o tribunal a quo «não procedeu a uma correta avaliação da prova (…), isto porque os elementos probatórios constantes dos autos e, bem assim, a prova produzida em audiência de julgamento eram suficientes para condenar o arguido».
…
É certo que, no domínio da prova indireta, indiciária, circunstancial ou por presunção, tem que se partir de factos indiciários que, analisados segundo os imperativos da lógica e os ditames da experiência comum sobre o normal acontecer das coisas, permitem inferir, sem margem para dúvida, a verificação de outros factos. Mas tal não dispensa a indicação dos concretos meios de prova dos quais resultam aqueles factos indiciários.
Com efeito, na senda do que propugna o recorrente, é inquestionável que, mesmo que não haja prova direta de determinados factos, o tribunal não está impedido de formular a sua convicção acerca dos factos em discussão, de acordo com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos, o que nos remete para o âmbito da prova indireta, indiciária, circunstancial ou por presunção, ou seja, a que se refere a factos diversos do tema da prova (prova direta), mas que permite, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto a esse tema.
Conforme sustentava já Cavaleiro de Ferreira[16], “[a] prova indiciária tem suma importância no processo penal; são mais frequentes os casos em que a prova é essencialmente indireta do que aqueles em que se mostra possível uma prova direta”.
Marta Sofia Pinto[17] refere que “a prova indiciária, quando utilizada de forma prudente, pode ser considerada como um meio de prova tão importante e viável como, por exemplo, a prova testemunhal” e que, reunidos certos requisitos, pode “ter força probatória suficiente para ilidir o princípio da presunção de inocência”, defendendo que “pode ser um poderoso instrumento na procura da tão almejada verdade material”.
Por seu turno, Luís Filipe de Sousa[18] salienta que “[t]oda a prova assenta numa inferência e sempre que julgamos presumimos” e, ainda, que “a prova por presunção desempenha, a par dos clássicos meios de prova, duas funções no processo, quais sejam: a de proporcionar ao juiz a convicção suficiente sobre a (in)existência dos factos em apreciação, bem como a de contribuir para esse resultado em concordância com outras provas”.
Também a jurisprudência[19] tem decidido no sentido de que a prova indireta ou indiciária pode e deve assumir o mesmo valor, senão superior, que a prova direta, desde que verificados determinados requisitos. Como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, «[e]ncontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser direta e imediatamente percecionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, "... as provas que não forem proibidas pela lei" (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC). As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indireta, mediante o qual o julgador adquire a perceção de um facto diverso daquele que é objeto direto imediato de prova, sendo exatamente através deste que, uma vez determinado, usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objeto de prova)»[20].
O Tribunal Constitucional já se debruçou sobre a temática, tendo decidido no acórdão n.º 521/2018[21]: “[n]ão julgar inconstitucional, por violação dos princípios da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo penal, consagrados nos n.os 2 e 5 do artigo 32.º da Constituição, o artigo 125.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal”.
Nada obstando, assim, a que o julgador lance mão da prova indiciária e por presunções judiciais, tendo em perspetiva o grau de exigência probatória imanente ao processo penal por força dos princípios basilares da presunção da inocência e do in dubio pro reo constitucionalmente consagrados, impõe-se, porém, um exercício dialético metódico seguindo um desenho que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a aperfeiçoar ao longo dos anos.
José Santos Cabral[22], cujos ensinamentos aqui seguiremos de perto, sustenta que a «prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova direta, ao qual se associa uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum. Este facto indiciante permite a elaboração de um facto-consequência em virtude de uma ligação racional e lógica».
Nas palavras de Susana Aires de Sousa[23], “(…) prova indireta, indiciária, lógica ou por presunção diz respeito a procedimento racional ou lógico em que a partir de um facto provado (o indício) se retira a existência de um outro facto essencial ao objeto do processo.”
Os indícios devem estar devidamente comprovados, por prova direta, devem revestir um elevado grau de gravidade, devem ser precisos, plurais, independentes e variados, mas, quando correlacionados, concordantes entre si e conduzirem a inferências convergentes ou, excecionalmente, tratando-se de um único indício ser dotado de um poder revelador singular, não podendo ocorrer contra indícios que os neutralizem ou fragilizem.
A gravidade do indício está diretamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste às objeções que se lhe opõem e que tem uma elevada carga de persuasão, como sucede quando a máxima da experiência que é formulada expressa uma regra que tem um amplo grau de probabilidade.
Por seu turno, o indício é preciso quando não é suscetível de outras interpretações, mas, sobretudo, o facto indiciador deve estar amplamente provado.
Além disso, os indícios devem ser concordantes, convergindo na direção da mesma conclusão. A concorrência de vários indícios num mesmo sentido, partindo de pontos ou premissas diferentes, aumenta as probabilidades de cada um deles com uma nova probabilidade que resulta da união de todas as outras.
Verificados os enunciados requisitos, o funcionamento da prova indiciária desenvolve-se em três momentos distintos: a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento, faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob apreciação. Assim, em primeiro lugar é necessário que os indícios sejam verificados, precisados e avaliados. Em seguida, tem lugar a sua combinação ou síntese. Esta operação intelectual efetiva-se com a colocação respetiva de cada facto ou circunstância acessórios e a sua coordenação com as demais circunstâncias e factos, dando lugar à reconstrução do facto principal. Esta síntese de factos indicadores constitui a pedra de toque para avaliar a exatidão e o valor dos indícios, assim como também releva para excluir a possibilidade de falsificação dos indícios.
A máxima da experiência é uma regra que traduz aquilo que sucede na maior parte dos casos, isto é, uma regra extraída de casos semelhantes. A experiência permite formular um juízo de relação entre factos, ou seja, é uma inferência que permite a afirmação de que uma determinada categoria de casos é normalmente acompanhada de uma outra categoria de factos. Parte-se do pressuposto de que “em casos semelhantes existe um idêntico comportamento humano” e este relacionamento permite afirmar um facto histórico não com plena certeza, mas como uma possibilidade mais ou menos ampla. Sendo uma regra, não pertencendo, pois, ao mundo dos factos, a máxima da experiência origina um juízo de probabilidade e não de certeza.
O princípio da normalidade torna-se o fundamento de toda a presunção abstrata. Tal normalidade deriva da circunstância de, na dinâmica das forças da natureza e, entre elas, das atividades humanas, existir uma tendência constante para a repetição dos mesmos fenómenos. O referido princípio está intimamente ligado com a causalidade – as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos – e tem justificação na existência de leis mais ou menos imutáveis que regulam de maneira uniforme o desenvolvimento do universo.
O princípio da causalidade significa formalmente que a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal. Por outras palavras, aceite uma causa, normalmente deve produzir-se um determinado efeito e, na inversa, aceite um efeito deve considerar-se como verificada uma determinada causa. Do exposto resulta que o princípio da normalidade, como fundamento que é de toda a presunção abstrata, concede um conhecimento que não é pleno, mas sim provável. Só quando a presunção abstrata se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.
As inferências lógicas aptas a propiciar a prova indiciária podem, também, consistir em conhecimentos técnicos que fazem parte da cultura média ou leis científicas aceites como válidas sem restrição. Em matérias que impliquem especiais competências técnicas, científicas ou artísticas, e que se fundamentam naquelas leis, é evidente que a margem de probabilidade será cada vez mais reduzida e proporcionalmente inversa à certeza da afirmação científica.
Adquirida a convicção pelo julgador sobre a verificação dos factos dos factos essenciais ao preenchimento do tipo legal com base o funcionamento, nos sobreditos moldes, da prova indiciária ou indireta e das inferências lógicas que esta propiciou, em sede de recurso, o erro sobre a substância de tal juízo presuntivo só é sindicável em caso de manifesto contra senso ou desrazoabilidade[24].
Retornando ao caso dos autos, alega o recorrente que tendo resultado como provado que o arguido … colocou óleo de rícino no garrafão quando ele continha cerca de 3 (três) litros de vinho, o qual, posteriormente, tinha quantidade não concretamente apurada de vinho mas nunca inferior a 2 (dois) litros, quando CC … deitou fora todo o vinho que se encontrava no seu interior, é evidente que foi o BB … que bebeu o vinho que se encontra em falta, na medida em que existe uma divergência entre a quantidade depositada no garrafão entre os referidos dois momentos temporais.
É certo que tal raciocínio assenta em factos que foram considerados provados – maxime, sob as alíneas z), ae) e af) – que, conjugados com outros – designadamente, os descritos sob as alíneas g), m), n), o), p), aa), ab), ac) e ad) [não referidos pelo recorrente] –, apontam, segundo as regras da lógica e do normal acontecer, tendo em conta a dependência alcoólica de que padecia BB … e os enraizados hábitos deste de subtrair garrafões de vinho, quer de habitações, quer da Associação …s, que levava para a sua residência e consumia nos moldes descritos na factualidade provada, que o teria feito também no circunstancialismo descrito em z) a ad), ou seja, após ter subtraído o garrafão de vinho no qual o arguido havia misturado óleo de rícino.
Ancorando-se o raciocínio indiciário ou presuntivo em factos tidos como provados pelo tribunal a quo, à primeira vista, tal dispensaria o recorrente de indicar as concretas provas que impunham decisão diversa quanto ao(s) ponto(s) de facto impugnado(s) – que não foram indicados, relembre-se.
Porém, uma análise mais aprofundada logo evidencia que assim não é, pois o recorrente omite outros factos que resultaram comprovados por prova pericial – que tem valor probatório especial e se constitui como limite ao princípio da livre apreciação da prova – que neutralizam ou contrariam, até, aqueles indícios – nomeadamente, a ausência de vestígios de óleo de rícino e de etanol no corpo de BB …por ocasião dos exames hematológicos concretizados mediante colheita de sangue periférico ao cadáver daquele – e obstaculizam a inferência que aquele almeja.
Como ensina Paulo de Sousa Mendes[25], o juiz terá sempre que «averiguar em que medida os factos concretos e individualizados do caso, confirmam ou infirmam aquelas inferências gerais, típicas e abstractas (…) As regras da experiência, os critérios gerais, não serão aqui mais do que índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas apenas isso – é assim em geral, em regra, mas sê-lo-á realmente no caso a julgar?»
Atente-se, ainda, nas conclusões por aquele autor firmadas: «as regras da experiência servem para produzir prova de primeira aparência, na medida em que desencadeiam presunções judiciais simples, naturais, de homem, de facto ou de experiência, que são aquelas que não são estabelecidas pela lei, mas se baseiam apenas na experiência de vida». «Então, elas ficam sujeitas à livre apreciação do juiz». São «argumentos que ajudam a explicar o caso particular como instância daquilo que é normal acontecer, já se sabendo, porém, que o caso particular pode ficar fora do caso típico. O juiz não pode, pois, confiar nas regras da experiência mais do que na própria averiguação do real concreto, sob pena de voltar, de forma encapotada, ao velho sistema da prova legal, o qual se baseava, afinal de contas, em meras ficções de prova. Em última análise, a prova é particularística, sempre».
Na análise do caso concreto, se as conclusões propiciadas pelas regras da experiência comum e do normal acontecer colidirem com o que resulta de meios probatórios com valor especial, como é o caso da prova pericial (artigo 163º) ou da prova documental autêntica ou autenticada (artigo 169º), aquelas têm que ceder.
Com efeito, decorre do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, que, sem ser arbitrária ou discricionária, é livre a forma como o tribunal atinge a sua convicção, embora, como já ensinava Cavaleiro de Ferreira[26], aquela esteja sempre vinculada aos princípios em que se consubstanciam o direito probatório e as normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório.
Ora, em face do preceituado no artigo 151º do Código de Processo Penal, constitui uma das regras do direito probatório que “quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” tem lugar a prova pericial, regulada, em termos gerais, nos artigos 151º a 163º do Código de Processo Penal.
Germano Marques da Silva define a perícia como a atividade de perceção ou apreciação dos factos probandos efetuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.[27]
Assim, a prova pericial deve ter lugar quando o processo e a futura decisão reclamam conhecimentos especializados que estão para além das possibilidades de constatação e/ou perceção, efetivas ou presumidas, do tribunal, nos campos técnicos, científicos e artísticos. Ou seja, quando o tribunal se depara com questões que exigem o referido “plus” de tais conhecimentos é suposto que seja coadjuvado por quem reúna os conhecimentos e credibilidade necessários para apreender, com conhecimento e neutralidade, em linguagem comum, a referida complexidade e emitir um juízo especializado[28].
Pode também ser essencial no apuramento de factos que não é possível obter de outra forma, sendo a própria lei que exige a realização de perícia, designadamente, os previstos nos artigos 166.º, n.º 2 (documento cifrado) e 351.º, n. º 1 (imputabilidade) do Código de Processo Penal, e do artigo 18.º da Lei n.º 45/2004 (autópsia médico-legal).
O valor da prova pericial é acrescido em relação aos outros meios probatórios na medida em que “[o] juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador», o qual, se dele divergir, deve fundamentar a sua discordância (artigo 163.º, n.ºs 1 e 2). Ou seja, o julgador pode divergir da prova pericial, mas, para o fazer, tem de fundamentar a divergência, estribando-se numa crítica pericial da mesma natureza (científica, técnica ou artística, consoante o caso)[29].
A regra do artigo 163.º do Código de Processo Penal é, pois, compatível com a livre apreciação probatória, apenas se erigindo como norma que qualifica essa apreciação probatória, na medida em que permite ao juiz divergir com argumentos qualificados na área técnica, científica ou artística em causa, apenas lhe estando vedada uma livre apreciação com apelo a «regras de experiência comum», à sua convicção pessoal ou a qualquer outro critério que não o uso de conhecimentos e argumentos inerentes à área artística, técnica ou científica da perícia[30].
Posto isto, atenta a especificidade dos factos em apreciação nos autos, e dos conhecimentos médicos e farmacológicos – teóricos e práticos – que demandam, a prova pericial assume um papel absolutamente indispensável, nomeadamente, para averiguar quais os efeitos da ingestão do óleo de rícino e a (in)existência de nexo de causalidade entre a ação do arguido e o fenecimento de BB ….
Daí que, na economia probatória do presente processo, o relatório de autópsia médico legal e respetiva retificação [a fls. 75 e 247, respetivamente] e o parecer do Conselho Médico Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP [a fls. 435 e seguintes], concretizado no âmbito da Consulta Técnico-Científica ao Conselho Médico-Legal prevista no artigo 7º, n.º 1, al. b), do DL n.º 166/2012, requerida pelo Ministério Público, bem como os esclarecimentos prestados pelos seus subscritores, assumam um papel nevrálgico e insubstituível.
O tribunal a quo analisou, de forma detalhada e minuciosa, todos os meios de prova relevantes para dilucidar as questões cruciais do thema decidendum e, deparando-se com incongruências no relatório de autópsia, explicou profusamente em que medida acolheu os preditos elementos de prova [e, ainda, o parecer médico legal junto pelo arguido, a fls. 319 e seguintes, que não constitui prova pericial, como bem assinalou]. Entre o mais, explicitou por que razões divergiu do juízo ínsito no relatório de autópsia quanto à ingestão pelo BB de vinho contendo óleo de rícino misturado e à apontada causa de morte daquele, apoiando-se, sobretudo, no sobredito parecer emanado do referido órgão colegial.
Veja-se, a este propósito, os seguintes excertos da motivação da decisão sobre a matéria de facto:
«(…)
Mas o relatório de autópsia é também, e sobretudo, contrariado pelas conclusões alcançadas no parecer médico-legal de fls. 435. Este sim a figurar como verdadeira perícia de natureza colegial peticionada ao INML… E que se mostra, aliás, convergente com a perspectiva assumida naquele «relatório particular» de fls. 319.
Importa, pois, salientar que ambos asseveram não ser possível estabelecer um nexo de causalidade entre a morte de BB … e a ingestão de óleo de rícino nos termos descritos no libelo acusatório! Indo antes no sentido de afirmar, na prática, essa exclusão… Conclusão que alcançam com base em diversos vectores:
- Não foi detectado óleo de rícino ou etanol nos exames toxicológicos concretizados ao cadáver, carecendo tais substâncias de estar presentes para se afirmar a necessária correlação;
- Ainda que assim não fosse, as quantidades de óleo de rícino mencionadas na acusação não seriam letais mas antes importariam apenas a aceleração do trânsito do intestino;
- Não aparenta ter ocorrido qualquer desidratação de BB … até em função da inexistência de sinais físicos desta e que, naquela hipótese e atentas as condições de conservação do cadáver, sempre seriam expectáveis;
- A patologia cardíaca e hepática de BB …, em conjugação com o seu alcoolismo crónico e com a medicação tomada, podem ter figurado como causa bastante da sua morte.
(…)
O Conselho Médico-Legal obriga-nos, como tal, a assumir os seguintes pressupostos fundamentais de sindicância:
A. O óleo de rícino tem uma finalidade farmacológica de resolução de obstipação ocasional cujo efeito comum e previsível se traduz na provocação de diarreias [tendo, como efeitos menos comuns, cólicas abdominais, vómitos, distensão abdominal e tonturas] sendo considerado como efectivo e seguro em função de uma dose diária apropriada para adulto do sexo masculino entre 15ml a 60ml [resposta ao quesito 1];
B. É conjecturável, em abstracto, que a ingestão de vinho misturado com óleo de rícino, em indivíduo com patologia miocárdica prévia, despolete vómitos, diarreia, respiração, ofegante e paragem cardiorrespiratória. Assim como é conjecturável, em abstracto, que esse quadro clínico possa ser independente da toma de óleo de ricínio mas antes secundário a uma cardiopatia como aquela que BB sofria [resposta ao quesito 15];
C. A presença de óleo de rícino no corpo mostra-se constatável através da pesquisa de ricinina em virtude de esta estar presente, ainda que em pouca quantidades, nas preparações obtidas a partir das sementes da planta Ricinus communis [resposta ao quesito 4];
D. O etanol, sendo absorvido pelo sangue, desaparece por intermédio da sua eliminação pelo organismo a uma taxa de 0,15 gramas/litro de sangue/hora. Não sendo, pois, expurgável através de vómitos e diarreia... No que o etanol decorrente da ingestão de 0,5 litros de vinho por indivíduo com estômago vazio, resultando numa alcoolemia de 1,3 gr/L, tomaria cerca de 9 horas a desaparecer [resposta aos quesitos 6 e 7];
E. Não existem dados científicos que nos permitam definir qual a taxa de metabolização do óleo de rícino pelo corpo [resposta aos quesitos 7 e 9];
F. Os graus de desidratação com magnitude relevante são objectiváveis ao exame físico. E a ocorrência de “congestão vascular marcada e difusa dos órgãos estudados [incluindo pulmões e rins]”, constatada na autópsia, não seria expetável a ter ocorrido desidratação. Isto sendo que esta mesma autópsia também não sugere a verificação de patologia gastrointestinal [resposta aos quesitos 12 e 13];
Estes mesmos vectores obrigam-nos, como tal, a acompanhar o relatório pericial de fls. 435 em grande parte das conclusões alcançadas. O Conselho Médico-Legal admite, é certo, que uma morte se possa dar em função da ingestão de óleo de rícino. Ou, outrotanto, em pura decorrência de um quadro clínico análogo ao ostentado por BB … Mas oferece-nos também outros dados que não se mostram, de todo, compagináveis com a perspectiva exarada no relatório de autópsia de fls. 319!
Por um lado pois que se mostra forçosa a conclusão que, a ter BB … ingerido vinho nas grandezas relatadas no libelo acusatório [ou em quaisquer outras quantidades minimamente assinaláveis] nas horas que antecederam o correspondente óbito, o mesmo evidenciaria inevitavelmente a presença de etanol na autópsia. Por outro porque, a estar presente óleo de rícino no corpo de BB … [ao ponto de influir, como tal, no seu fenecimento], teria sobrevindo um resultado positivo por ocasião da pesquisa de ricinina. E, por último, porque parece ser efectivamente de excluir que tenha ocorrido a suposta desidratação [bem como a «patologia gastrointestinal grave»] que a perita … adivinhava como causa do óbito.
6. Atente-se, ademais, que tais dados se mostram também consentâneos com a prova que veio a ser produzida em audiência de discussão e julgamento. Pois que CC …, assumindo em tal vertente uma narração claramente credível, veio a reconhecer, em julgamento, que, pela hora de almoço do dia que antecedeu o óbito de BB, mandou fora a totalidade do vinho do garrafão que o irmão lhe confidenciou ter subtraído na noite anterior da Associação … nos termos descritos em ab) a ad). Ou seja, do preciso garrafão onde o arguido … havia inserido o óleo de rícino! Como era, aliás, seu timbre [“quando eu via vinho em casa dele, mandava sempre fora”]…
No que é, no imediato, possível extrair um dado fundamental daquelas declarações… A de que BB … não consumiu e não teve qualquer contacto com vinho misturado com óleo de rícino nas 24 horas que antecederam o seu falecimento. Ao ponto daquela substância dificilmente puder acarretar uma qualquer alteração gastrointestinal ocorrida no dia 8 de Maio de 2020!
Mais… É que CC …, não obstante alguma incapacidade de precisão nessa matéria [compreensível quando se atente que decorreram mais de 5 anos sobre os factos], acabou por estabelecer que o sobredito garrafão, quando foi por si despejado, deveria ter um pouco menos que metade da sua capacidade! O que significa, paralelamente, que BB …, mesmo no dia 7 de Abril de 2020, nunca teria ingerido as quantidades propaladas no libelo acusatório. Mostrando-se inclusivamente cogitável, atenta a falta de rigor divisada a CC …e a existir alguma natural variação nas quantidades objecto de recordação pelos intervenientes [ao ponto, por exemplo, de o garrafão conter um pouco menos que os 3litros propalados pelo arguido … ou de ter sido despejado um pouco mais de metade daquele depósito], a hipótese de BB … não ter sequer ingerido vinho com óleo de rícino. Ou tê-lo, pelo menos, feito em quantidades bem mais negligenciáveis do que as narradas na acusação e a cifrarem-se entre 5ml e 10ml diluídos, respectivamente, entre 0,5l ou 1l de vinho! Fazendo-o, repete-se, numa janela temporal que antecedeu em mais de 24 horas o correspondente óbito…
(…)
Ou seja, se os dados colhidos na autópsia já não nos permitiriam afirmar um qualquer nexo de causalidade entre o óleo de rícino e o óbito de BB …, temos que a prova produzida em julgamento, tal como supra descrito, põe mesmo em causa a noção se aquele chegou a ingerir aquela substância. Ou obriga, pelo menos, a suscitar a possibilidade de o ter materializado em quantidades bem mais inócuas do que as assacadas no despacho de acusação [as quais já se continham, não obstante, nas grandezas correspondentes à dose diária apropriada].»
Porém, o recorrente não indica quaisquer razões, com a mesma valia probatória, para afastar o incontornável facto de não terem sido encontrados os referidos vestígios de etanol e de rícina no corpo de BB …, limitando-se a apelar, como vimos, às regras da experiência comum, que in casu são afastadas pela prova pericial nos termos explanados pelo tribunal a quo.
Na verdade, o recorrente, ignorando completamente a rígida disciplina imperativamente imposta pelo artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, empreende um exercício livre de crítica à decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto – não efetuou, sequer, a indispensável especificação dos factos que pretende impugnar, nem indicou as provas e o específico conteúdo probatório que, do seu ponto de vista, impunham decisão diversa da fundamentadamente adotada pelo tribunal a quo.
A situação descrita configura, salvo melhor opinião, incumprimento do ónus de especificação legalmente exigida previsto no artigo 412º, n.ºs 3, als. a) e b), e 4, do Código de Processo Penal, nos termos supra assinalados, insuscetível de correção ou aperfeiçoamento, razão pela qual não se convidou o recorrente para o efeito.
Efetivamente, como vem sendo entendimento pacífico da jurisprudência, apenas nas situações em que as sobreditas especificações não são vertidas nas conclusões, mas constam da motivação do recurso, pode haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento. Não contendo também o corpo das motivações as preditas especificações legalmente exigidas, não estamos apenas perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas antes de deficiência substancial da motivação ou de insuficiência do próprio recurso, insuscetível de aperfeiçoamento, com a consequência de o mesmo, nessa parte assim afetada, não poder ser conhecido.
Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça tem decidido no sentido de que o convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois se o recorrente, no corpo da motivação do recurso, se absteve do cumprimento do ónus de especificação, que não é meramente formal, antes tendo implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciando as especificações, então o convite à correção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a perentoriedade do prazo de apresentação do recurso[31].
No mesmo sentido se vem pronunciado também o Tribunal Constitucional, ao entender não haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento quando estejam em causa omissões que afetem a motivação do recurso e não apenas as conclusões[32].
Também os Tribunais da Relação vêm entendendo em sentido idêntico[33].
Estamos, assim, perante uma real e efetiva impossibilidade de o Tribunal da Relação efetuar uma reapreciação autónoma da prova, atentos os específicos contornos, supra delineados, desta via de impugnação da matéria de facto.
3.2- O acórdão proferido enferma de vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal?
O Ministério Público envereda, ainda, pela via de arguição de vício da decisão recorrida, concretamente, o erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal.
Após discorrer, em termos teóricos, a respeito do sobredito vício decisório, sustenta o seguinte:
«(…) em face do exposto e regressando aos autos verifica-se, claramente, que deveria ter sido igualmente dado como provado que:
“13. O arguido … actuou com a intenção concretizada de provocar dores abdominais e vómitos a BB …
--- A crítica dos factos, o juízo sobre a verificação da matéria de facto aceitável, a conclusão logicamente aceitável, as regras da experiência comum, o sentido que as provas revelam, assim como a decisão logicamente possível,
Seriam as de que:
- O arguido … praticou, efectivamente, 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada agravada pelo resultado, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, ambos do Código Penal, por referência aos artigos 132.º, n.º 2, alíneas c) e i), do mesmo diploma legal, na sua forma consumada, ou caso assim, não se entenda, na sua forma tentada, ou em último caso até, 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, sendo certo que CC …na qualidade de irmã do falecido BB …disse expressamente desejar a instauração de procedimento criminal contra o arguido.
Assim, ao ter decidido de forma diversa, resulta da douta sentença a existência dos assinalados erros de apreciação da prova, notórios e perceptíveis a um cidadão de média formação, nela se tendo violado o disposto nos artigos 127.º, 365.º, n.º 3 e 410.º, n.º 2, alínea c), todos do Código de Processo Penal.»
Vejamos.
Estatui o artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal que, «[m]esmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.»
Os elencados vícios constituem defeitos estruturais e intrínsecos da decisão, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte patenteada pelo respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando, por isso, excluída a possibilidade de consideração de outros elementos extrínsecos ou exógenos, ainda que constem do processo, emergentes de prova constituída ou advinda do próprio julgamento[34].
No âmbito da análise dos vícios decisórios, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto, o tribunal de recurso não aprecia a matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova –, limitando a sua atuação, num exercício de exegese hermenêutica, à deteção dos vícios que a decisão recorrida evidencia e, não sendo possível saná-los, determina a remessa do processo para novo julgamento [total ou parcial], em consonância com o preceituado no artigo 426º do Código de Processo Penal.
A matéria de facto que padeça dos sobreditos vícios está «(…) ostensivamente divorciada da realidade das coisas, quer por ser insuficiente, quer por ser contraditória, quer por erroneamente apreciada»[35], razão pela qual, ainda que não sejam invocados, são de conhecimento oficioso – cfr. acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95[36].
O erro notório na apreciação da prova existe quando se dá como provada (ou não provada) uma realidade que, à luz do conhecimento e das regras da experiência (presunções naturais) ou das máximas do conhecimento especializado, manifestamente, na apreciação do comum dos observadores, não podia ter acontecido (ou tinha de ter acontecido). É um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura da decisão. Erro tão crasso que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer especial exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica, ou excluindo dela, algum facto essencial com o qual, ou sem o qual, o julgado não faz sentido. Constitui «erro notório na apreciação da prova», por exemplo, a violação de regras sobre a prova vinculada, ou o erro sobre factos históricos de conhecimento geral, ou a ofensa de leis da natureza ou da lógica ou de conhecimentos criminológicos e vitimológicos comuns (neste sentido, Simas Santos e Leal-Henriques, in CPP anotado, notas ao artigo e P.P. Albuquerque, in Comentário do C.P.P., notas ao artigo).
Portanto, se os factos descritos na sentença e considerados provados e não provados se apresentam, aos olhos de um observador dotado de mediana inteligência e experiência da vida, contraditórios ou de verificação impossível, no contexto daquela descrição, e a respetiva análise crítica alcançada pelo juiz não obedece a claros princípios de racionalidade, então haverá erro notório na apreciação da prova, o que também sucederá se violar regras de prova vinculada ou conhecimentos comuns inquestionáveis.
Na invocação deste vício da sentença, importa que o recorrente desmonte o erro de forma a evidenciar a sua notoriedade, sem invocação de elementos exteriores. O vício é puramente de raciocínio do Juiz e puramente endógeno da sentença. Obviamente, nada tem a ver com eventual desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido proferida pelo recorrente. Se a sentença é clara, encontrando-se todas as premissas concatenadas e concordantes entre si, sem vislumbre de contradições ou discrepâncias ou ilegalidades probatórias, assente num raciocínio lógico corretamente explanado, então não há erro notório na apreciação da prova[37].
…
Retornando ao caso dos autos, concatenando a motivação do recurso e as respetivas conclusões ressalta à vista que o recorrente não explicita em que consiste o apontado erro notório na apreciação da prova ao dar-se como não provada a alegação contida no ponto 13 dos factos não provados.
Percorrendo a alegação recursiva, verifica-se que o recorrente se limita a referir, de forma genérica e ambígua, que a «crítica dos factos, o juízo sobre a verificação da matéria de facto aceitável, a conclusão logicamente aceitável, as regras da experiência comum, o sentido que as provas revelam» impunham decisão contrária.
O recorrente não concretiza quais as regras da lógica, do normal acontecer, da natureza ou da ciência, ou de conhecimento comum foram desconsideradas pelo tribunal a quo ou que regras de prova vinculada foram violadas e, muito menos, o faz por referência ao texto da decisão recorrida, como devia, nos termos supra explanados, pois, tratando-se de vício do acórdão este tem que ser auto suficiente para a sua demonstração.
Na verdade, para além de considerações teóricas, abstratas e conclusivas, o recorrente nenhum argumento objetivo avança para demonstrar a existência do vício que invoca no caso concreto, revelando-se a alegação recursiva absolutamente estéril.
Pese embora a vacuidade da alegação, afigura-se-nos que o recorrente incorre numa confusão que é muito comum – convoca o erro notório na apreciação da prova quando, na realidade, pretende demonstrar o erro de julgamento, por errada valoração dos meios probatórios.
Trata-se de problemáticas distintas e que se inscrevem em momentos sucessivos – o erro de julgamento na fase de raciocínio sobre a valoração da prova e o erro notório na apreciação da prova na fase de exposição escrita desse raciocínio na sentença – e que são atacáveis, em sede de recurso, por mecanismos processuais diversos – o erro de julgamento através da impugnação ampla da matéria de facto, prevista no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, e o erro notório na apreciação da prova, através da revista alargada, prevista no artigo 410º, n.º 2, e, concretamente, na al. c).
Como impressivamente se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 01.06.2022[38] a respeito da reiterada confusão, na prática recursiva, sobre o âmbito dos vícios decisórios previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, «apesar de tudo o que tem sido dito e redito pacificamente na jurisprudência e na doutrina, continua a ignorar-se o melhor desses ensinamentos e a trazer aos recursos sempre o mesmo tipo de argumentação quanto à tipificação desses vícios. Confunde-se sistematicamente o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b) - (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) - com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) - com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.»
Acresce que da simples leitura do acórdão recorrido emerge, de forma cristalina, que não padece do apontado vício, pois a motivação mostra-se coerente e consistente, respeitadora das regras sobre a prova vinculada, tendo o tribunal a quo fundamentado exaustivamente, apoiando-se em prova de igual valor, a sua divergência quanto ao relatório da autópsia, e consentânea com as regras da lógica e da experiência comum, na parte não excluída pela prova pericial, não se detetando qualquer implausibilidade ou insustentabilidade intrínseca.
Com relevo para o ponto 13 dos factos consignados como não provados – “13. O arguido … actuou com a intenção concretizada de provocar dores abdominais e vómitos a BB ….” –, no qual o recorrente coloca o enfoque do erro notório da apreciação da prova, recorde-se que o tribunal a quo, além do mais, exarou o seguinte:
«O Conselho Médico-Legal obriga-nos, como tal, a assumir os seguintes pressupostos fundamentais de sindicância:
A. O óleo de rícino tem uma finalidade farmacológica de resolução de obstipação ocasional cujo efeito comum e previsível se traduz na provocação de diarreias [tendo, como efeitos menos comuns, cólicas abdominais, vómitos, distensão abdominal e tonturas] sendo considerado como efectivo e seguro em função de uma dose diária apropriada para adulto do sexo masculino entre 15ml a 60ml [resposta ao quesito 1];
(…)».
Assim, e uma vez que, conforme foi considerado pelo tribunal a quo e não é discutido pelo recorrente, foi misturada em, aproximadamente, 3 litros de vinho uma quantidade de, aproximadamente, 30 ml, apenas, de óleo de rícino, a intenção do arguido, com diversa formação na área da medicina alternativa e proprietário de um estabelecimento de ervanária, não poderia ser outra que não aquela de provocar o efeito comum e previsível apontado – diarreia.
Ademais, como deflui da restante motivação da decisão, a prova produzida «põe mesmo em causa a noção se aquele [BB] chegou a ingerir aquela substância», razão pela qual, ainda que que a intenção do arguido fosse causar dores abdominais e vómitos, não resultou demonstrada a sua concretização.
Não se divisa, pois, nem o invocado vício decisório, nem qualquer outro, pois não se detetam quaisquer omissões factuais relevantes, factos inconciliáveis, juízos entre si incompatíveis, ilógicos, valoração de prova proibida, preterição de prova vinculada ou desconsideração das regras da experiência comum, quando aquelas e estas se impunham.
A fundamentação factual patenteia uma criteriosa seleção da facticidade pertinente para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções possíveis, harmónica e coerente, e uma análise cuidada, detalhada, lógica e racional dos diferentes meios de prova.
Inexiste, pois, motivo para o reenvio do processo para novo julgamento, conforme subsidiariamente visado pelo recorrente.
Improcede, assim, também esta questão.
3.3 - O arguido deve ser condenado pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada agravada pelo resultado, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, ambos do Código Penal, por referência aos artigos 132.º, n.º 2, alíneas c) e i), do mesmo diploma legal, na sua forma consumada, ou caso assim, não se entenda, na sua forma tentada, ou em último caso até, pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples?
Pese embora a formulação do pedido final se mostre algo confusa, afigura-se-nos suficientemente claro que o recorrente faz radicar a pretensão de condenação do arguido na alteração da matéria de facto – quer pela via da impugnação ampla da mesma, quer pela via de invocação do vício decisório de erro notório na apreciação da prova –, pela qual pugnou, mas que não logrou alcançar.
Note-se, ademais, que o recorrente expressamente indica como questões a resolver [apenas] as referentes à impugnação da matéria de facto pelas duas apontadas vias, não assacando qualquer erro à decisão de direito, nomeadamente, no item da subsunção legal dos factos que resultaram efetivamente provados.
Ora, no acórdão, no capítulo da fundamentação de direito [III], a respeito da qualificação jurídico-penal dos factos [III.1], o tribunal a quo analisou a factualidade provada tendo em perspetiva o crime de que o arguido vinha acusado – crime de ofensa à integridade física qualificada agravada pelo resultado, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, ex vi do artigo 132.º, n.º 2, alíneas c) e i), e 147.º, n.º 1, do Código Penal – tendo concluído que não se produziu prova que BB[39] tenha sequer ingerido vinho com óleo de rícino ali misturado pelo arguido ou que tal substância tenha assumido qualquer influência no sobrevir da morte daquele e, como tal, pelos motivos ali explanados, não incorreu na prática do sobredito crime, na forma consumada.
Não obstante, não deixou o tribunal a quo de ponderar se a conduta adotada pelo arguido – descrita, nomeadamente, nas alíneas w) a aa) e at) – não é passível de consubstanciar uma tentativa de ofensa da integridade física de BB.
Porém, em face do disposto no artigo 23º, n.º 1, do Código Penal, que estatui que “[s]alvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão”, e uma vez que o artigo 143º, n.º 1, do mesmo diploma, prevê uma punição com pena de prisão até três anos para o crime de ofensa à integridade física simples, não está expressamente prevista a punibilidade da tentativa neste tipo legal matricial.
Com base nessa premissa, uma vez que a punibilidade da conduta do arguido depende de ser suscetível de integrar o tipo qualificado, sopesou o tribunal a quo se se mostram preenchidas, in casu, as circunstâncias qualificativas previstas no artigo 132º[40], n.º 2, als. c) e i), ex vi do disposto no artigo 145º, n.º 1, al. a), tendo concluído pela negativa.
E, como decorrência, concluiu o tribunal a quo que a conduta do arguido não é punível, não suscitando a análise e ponderação efetuadas qualquer reparo a este tribunal ad quem.
De resto, o recorrente sustenta que, ao ter-se decidido como se decidiu, violou-se no acórdão recorrido o disposto nos artigos 14.º, 26.º, 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, todos do Código Penal, sem que por qualquer forma critique a interpretação que pelo tribunal a quo foi feita de tais normativos e avance qual a que devia ser adotada. Isto porque, como antes dissemos, o que o recorrente preconiza é que mediante a modificação da matéria de facto que, na sua perspetiva se impunha, deveria ocorrer a condenação nos moldes por si propugnados, sob pena de violação das referidas normas legais.
Todavia, conforme supra analisámos, não houve lugar à alteração da matéria de facto, que se mostra definitivamente fixada, pelo que se mostra inelutavelmente prejudicada a almejada condenação do arguido ancorada na pretendida modificação.
Ante o exposto, soçobra, por completo, o recurso interposto pelo Ministério Público.
Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar o recurso interposto pelo Ministério Público totalmente improcedente e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido.
Sem custas, atenta a isenção de que goza o recorrente [artigos 522º do Código de Processo Penal e 4º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas Processuais].
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(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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Coimbra, 10 de dezembro de 2025
Isabel Gaio Ferreira de Castro
[Relatora]
Ana Paula Grandvaux
[1.ª Adjunta]
Maria José Matos
[2.ª Adjunta]
[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.
[2] Neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336.
[3] Nélson Hungria, apud Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2.º Volume, Rei dos Livros, 2.ª Edição, 1996, página 136
[4] José Hurtado Pozo, Droit pénal, I, 3ª edição, Zurich, 1997, página 107
[5] Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, in Código Penal – Parte Geral e Especial, 2015, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, página 598
[6] Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, in Código Penal – Parte Geral e Especial, 2015, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, página 528.
[7] Jorge de Figueiredo Dias, idem, página 37
[8] Paula Ribeiro de Faria, idem, página 206.
[9] Paula Ribeiro de Faria, idem, página 254. Em sentido contrário, Paulo Pinto de Albuquerque, idem, página 618
[10] Cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.03.2014, processo 811/12.4JACBR.C1, acessível em http://www.dgsi.pt
[11] Cfr., entre outros, Damião Cunha, «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37; Paulo Saragoça da Matta, «A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença - Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais», pág. 253.
[12] Vide, neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2005 e de 09-03-2006, acessíveis em www.dgsi.pt
[13] Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.07.2017, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[14] In D.R. n.º 77, Série I, de 18-04-2012
[15] Cfr. citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.07.2017
[16] Ob. e loc. citados
[17] In “Prova Indiciária no Processo Penal”, Revista do Ministério Público, n.º 128, págs. 185 e 221-222
[18] Vide “Prova por Presunção no Direito Civil”, Almedina, 2012, págs. 20 e 21
[19] A título exemplificativo, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06/10/2010, de 27/06/2012, de 22/01/2013; da Relação de Lisboa de 15/11/2011, de 03/07/2012 e de 04/07/2012; da Relação do Porto de 28/01/2009, de 29/06/2011 e de 23/11/2013; da Relação de Coimbra de 13/12/2011, de 21/03/2012 e de 09/05/2012; da Relação de Guimarães de 22/02/2011, de 18/03/2013 e de 22/10/2013 e da Relação de Évora de 26/06/2012, de 04/06/2013 e de 19/11/2013 – apud acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 22.10.2019, no processo 1182/13.7PBFAR.E1.
[20] Relatado pelo Conselheiro Soares Ramos, Proc. n.º 86/08.0GBPRD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[21] Disponível em tribunalconstitucional.pt
[22] In “Prova Indiciária e as Novas Formas de Criminalidade”, Revista Julgar, n.º 17, pág. 13
[23] In “Prova indireta e dever acrescido de fundamentação da sentença” – Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2020
[24] Cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.11.2020, acessível em http://www.dgsi.pt
[25] Vide “A prova penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias”, III, pág. 1002
[26] In Curso de processo Penal, 1986, 1º Vol., pág. 211
[27] In “Curso de Processo Penal”, II, 3ª Edição, 2002, Verbo, pág. 197.
[28] Neste sentido, cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.06.2019, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[29] Neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2002, pág. 198
[30] Cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.05.2014, cujo sumário está disponível em disponível para consulta em http://pgdlisboa.pt
[31] Cfr. acórdãos do STJ de 31-10-2007 (processo n.º 07P3218), de 03-12-2009 (processo n.º 760/04.0TAEVR.E1.S1), de 28-10-2009 (processo n.º 121/07.9PBPTM.E1.S1), de 10-01-2007 (processo n.º 3518/06), de 04-01-2007 (processo n.º 4093/06) e de 04-10-2006 (processo n.º 812/06), disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[32] Vide, entre outros, o acórdão n.º 140/2004, disponível em http://www.tribunalconstitcional.pt
[33] A título exemplificativo, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.04.2020 e do Tribunal da Relação de Évora de 09.01.2018, disponíveis para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[34] Neste sentido, cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15.ª edição, página 822; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, Editorial Verbo, página 339; e Leal-Henriques e Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, Rei dos Livros, página 77.
[35] Cfr. Conselheiro Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, págs. 1356.
[36] Publicado no DR, I-A, de 28 de dezembro de 1995
[37] Cfr. Fernando Gama Lobo, in Código de Processo Penal Anotado, 4ª ed., 957/8
[38] Prolatado no processo 218/21.2GCCVL.C1, acessível em http://www.dgsi.pt.
[39] Refere-se no acórdão, por patente lapso de escrita, «o arguido EE»
[40] Por patente lapso de processamento de texto, no acórdão, escreveu-se 133º.