I - A convicção “para lá da dúvida razoável” e a “dúvida razoável”, legitimadora do princípio in dubio pro reo, limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova de apreciação vinculada e da livre apreciação dos restantes.
II - Não opera a agravante da alínea a) do artigo 24.º do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, consistente na entrega de estupefacientes a menores, se não se provar que os arguidos sabiam que alguns dos consumidores a quem entregaram produtos estupefacientes, ou a quem estes se destinavam, tinham idade inferior a 18 anos.
III - A circunstância de não ter ficado demonstrada a exacta quantidade de estupefaciente transacionado ou entregue pelos arguidos não significa a irrelevância dessas condutas, em termos de responsabilização criminal, mas esta situação e, por outro lado, o indeterminado número de vezes em que tais condutas ocorreram devem ser valorizados na compreensão mais consentânea com o princípio in dubio pro reo, ou seja, na assumpção do significado menos gravoso para os arguidos.
I. Relatório
1. …, foram submetidos a julgamento os arguidos AA … e BB …, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos arts. 21.º e 24.º, al. a), ambos do DL n.º 15/93, de 22-01, por referência à Tabela I-C a ele anexa.
2. Realizado o julgamento[1], foi proferido acórdão no qual foi decidido, para além do mais (transcrição):
«-absolver os arguidos AA … e BB … da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21º, n.º1 e 24º, als. a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-C anexa a tal diploma;
- condenar o arguido AA … pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º alínea a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-C, anexa a tal diploma, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão, cujo remanescente, caso se verifiquem os necessários requisitos materiais para tanto, será cumprido em regime de regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão remanescente, sem prejuízo das ausências autorizadas, que no caso vertente se justificam para a frequência de programas de ressocialização ou para formação profissional/estudos a que o condenado comprovadamente frequente, além dos tratamentos médicos. Mais se determina subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, nomeadamente: sujeitar-se à continuação de tratamento médico; não contactar, receber ou alojar pessoas associadas ao consumo e tráfico de estupefacientes e não ter em seu poder objetos aptos à prática de crimes (nomeadamente daquele por cuja prática foi condenado nestes autos);
- condenar o arguido BB … pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º, al. a), do D.L. n.º15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-C, anexa a tal diploma, na pena de 2 (dois) anos de prisão, que se suspende na sua execução por 2 (dois) anos, subordinada a regime de prova, a definir pela DGRSP, para posterior homologação pelo Tribunal. Esta suspensão da execução da pena de prisão fica condicionada a um apertado regime de prova para acautelar as finalidades da punição e a conveniência da sua sensibilização (até agora infrutífera) para a cessação de consumo de estupefacientes, com a continuação do competente tratamento, e à proibição de frequentar lugares associados ao tráfico de estupefacientes (como a pastelaria Guarda 2003), ter consigo objetos que facilitem ou permitam a prática de crimes (maxime aquele em causa nos autos) e frequentar a proximidade de quaisquer escolas; (…)»
3. Inconformado com esta decisão, interpôs o Ministério Público o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
…
2ª- Face à matéria de facto dada como provada, assente na prova referida no acórdão recorrido, impõe-se a condenação dos arguidos pelo crime porque foram acusados, de tráfico de produtos estupefacientes agravado, p. e p. pelos artºs 21º e 24º-a), ambos do DL 15/93, de 22-1;
…
4ª- Da conjugação da prova produzida, testemunhal e documental, merece, pois, censura a desqualificação do crime porque os arguidos se encontravam acusados e foram condenados;
5ª- Já que tal prova reconduz, inelutavelmente, ao preenchimento pelos arguidos dos elementos objectivos do tipo de crime agravado porque foram acusados e o correspondente elemento subjectivo;
…
7ª- A que acresce que, no caso em apreço, a ilicitude dos factos dados como provados não se mostra consideravelmente diminuída;
8ª- Os arguidos, durante um período de tempo de mais de um ano, dedicaram-se na residência, na via pública e em locais frequentados por menores estudantes, à venda e cedência a estes e outros consumidores, num total de, pelos menos, vinte e oito, de produtos estupefacientes;
9ª- Nunca desconhecendo que se tratavam, os primeiros, de indivíduos estudantes e de menoridade;
…
12ª- Ao contrário do que doutamente é entendido no acórdão recorrido, não entendemos nós que a ilicitude resultante da factualidade dada como provada nos remeta, muito menos cabalmente, para um contexto de tráfico de menor gravidade;
13ª- E, ao contrário do doutamente entendido no acórdão em tese, não é relevante que não tenham sido os arguidos que tenham introduzido os menores no consumo de estupefacientes;
14ª- Já que se poderá entender, como se entende, que foram estes que deram continuidade, potenciaram, maximizaram, o mesmo consumo;
…
18ª- O acórdão recorrido, ao absolver os arguidos da prática do crime de tráfico de produtos estupefacientes na sua forma agravada e condenando-os pela prática do crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade, não interpretou correctamente o disposto nos artºs 21º, 24º-a) e 25º, todos do DL 15/93, de 22-º1;
…
4. Admitido o recurso, o arguido AA … apresentou resposta, …
5. Também o arguido BB … respondeu ao recurso, …
6. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer …
7. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.
8. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
1. Delimitação do objecto do recurso
…
In casu, de acordo com as suas conclusões, o recorrente insurge-se, em primeiro lugar, contra a decisão proferida sobre a matéria de facto provada, considerando que foi incorrectamente julgada.
Discorda, por outro lado, da qualificação jurídica dos factos, sustentando que os arguidos deviam ter sido condenados pela prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado que lhes vinha imputado na acusação.
Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta do acórdão recorrido.
«II. Factos provados
Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:
Da acusação,
1. Pelo menos desde janeiro de 2022, que os arguidos AA … e BB … se dedicam, habitual e reiteradamente, ao fornecimento, mediante contrapartidas monetárias, de canábis e haxixe, a um número total ainda não determinado de consumidores, alguns deles maiores de 16 e menores de dezoito anos, …
2. Os arguidos … adquirem canábis a terceiros, tendo em vista a posterior distribuição de tais substâncias, aos consumidores das mesmas, a preço superior.
3. Após se abastecerem de tais substâncias, os arguidos … dirigem-se às respetivas residências, …, e repartem o haxixe e canábis em doses individuais.
4. Tais produtos estupefacientes são depois entregues em doses individuais, mediante contrapartidas monetárias, pelos arguidos …, junto das respetivas residências de ambos e junto de cafés na cidade …, a consumidores do concelho …, que se deslocam junto das residências daqueles, mediante encontros previamente combinados com aqueles, por contactos telefónicos realizados para os telemóveis dos mesmos.
5. Concretamente, no exercício da referida atividade, o arguido AA entregou, pelo menos, a:
i. …, com 16 anos de idade, no período compreendido entre abril e junho de 2023, cerca de, pelo menos, 12 vezes, resina de haxixe, para consumo da mesma, em quantidades de uma ou duas gramas de cada vez, mediante a contrapartida monetária de 10 ou 20 euros, de cada vez;
ii. …, com 17 anos de idade, no período compreendido entre finais de 2022 e janeiro e julho de 2023, cerca de, pelo menos, 10, resina de haxixe, para consumo do mesmo, em quantidades de uma grama de cada vez, mediante a contrapartida monetária de 10 euros, de cada vez;
iii. …, com 16 anos de idade, no período compreendido entre janeiro de 2022 e julho de 2023, cerca de, pelo menos, 5 a 6 vezes, resina de haxixe, para consumo do mesmo, em quantidades de uma ou duas gramas de cada vez, mediante a contrapartida monetária de 10 ou 20 euros, de cada vez;
iv. …, com 17 anos de idade, durante o ano de 2023, cerca de, pelo menos, 3 ou 4 vezes, resina de haxixe para consumo deste e de CC, em quantidade de 1 grama de cada vez, mediante contrapartida monetária de 10 euros, de cada vez;
v. …, durante o ano de 2023, pelo menos uma vez, haxixe, em quantidades não apuradas, para consumo deste, mediante a contrapartida monetária de 10 euros;
vi. …, no período compreendido entre outubro de 2022 e julho de 2023, pelo menos dez vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante a contrapartida monetária de, pelo menos, 10 euros, de cada vez;
vii. … no período de pouco mais de dois meses de 2023, 2 ou 3 vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades compreendidas entre 0,5 a 2 gramas, mediante contrapartidas monetárias compreendidas entre 5 a 20 euros;
viii. …, durante o ano 2023, pelo menos por três vezes, resina de haxixe, para consumo desta, em quantidades compreendidas entre 1 a 2 gramas;
ix. …, no período compreendido entre março e junho de 2023, 4 vezes por mês, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades compreendidas entre 1 a 2 gramas, mediante contrapartidas monetárias compreendidas entre 10 a 20 euros;
x. …, durante o ano 2023, pelo menos 3 ou 4 vezes, resina de haxixe, para consumo desta, em quantidades de 5 gramas de cada vez, mediante a contrapartida monetária de 40 euros, de cada vez;
xi. …, no período compreendido entre fevereiro e junho de 2023, pelo menos 3 ou 4 vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante a contrapartida monetária de 10 euros de cada vez;
xii. …, no decorrer do mês de fevereiro de 2023, comprou pelo menos por 3 vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante a contrapartida monetária de 10 euros, de cada vez;
xiii. …, durante o ano de 2023, por duas vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante a contrapartida monetária de 10 euros, de cada vez;
xiv. …, no período compreendido entre abril e junho de 2023, por duas vezes, resina de haxixe, para consumo desta, em quantidades não apuradas, mediante a contrapartida monetária de 15 euros de cada vez;
xv. …, no decorrer de 2023, pelo menos duas vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante contrapartidas monetárias compreendidas entre 5 a 10 euros;
xvi. …, durante os anos de 2022 e 2023, cerca de 10 vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante contrapartida monetária de 5 ou 10 euros, de cada vez;
xvii. …, durante os anos de 2022 e 2023, pelo menos duas vezes por semana (num total de 30 a 40 vezes), resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante contrapartidas monetárias compreendidas entre 5 a 10 euros;
xviii. …, durante o ano de 2023, pelo menos por dez vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante a contrapartida monetária de 10 euros, de cada vez;
xix. …, durante o ano de 2023, pelo menos por 3 vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante contrapartidas monetárias compreendidas entre 10 a 20 euros;
xx. …, durante o ano de 2023, por cerca de três vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante a contrapartida monetária de 10 euros de cada vez;
xxi. …, no período compreendido entre novembro de 2022 e o início do ano de 2023, pelo menos por 3 vezes, resina de haxixe, sem contrapartida monetária;
xxii. …, durante os anos de 2022 e 2023, por várias vezes, em número não concretamente apurado, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante contrapartidas monetárias compreendidas entre 10 a 20 euros, de cada vez.
6. Concretamente, no exercício da referida atividade, o arguido BB … entregou, pelo menos, a:
i. …, com 17 anos, no período compreendido entre janeiro e julho de 2023, numa ocasião, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidade de 2 gramas;
ii. …, com 16 anos, no período compreendido entre janeiro de 2022 e julho de 2023, pelo menos por 2 ou 3 vezes, erva, para consumo deste, em quantidade de uma grama de cada vez, mediante a contrapartida monetária de 10 euros, de cada vez;
iii. …, durante o ano de 2023, pelo menos por uma vez, haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante a contrapartida monetária de 10 euros;
iv. …, durante o ano de 2023, pelo menos duas vezes, canábis, sem contrapartida monetária;
v. …, no período compreendido entre janeiro e julho de 2023, pelo menos por cinco vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades não apuradas, mediante contrapartidas monetárias compreendidas entre 10 a 20 euros, de cada vez;
vi. …, no período compreendido entre janeiro de 2022 e 27 junho de 2023, pelo menos 5 vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades de uma grama, de cada vez, mediante a contrapartida monetária de 10 euros, de cada vez;
vii. …, durante o ano 2023, pelo menos por duas vezes, 0,5 gramas de resina de haxixe, sem contrapartida monetária;
viii. …, durante o ano de 2022, por duas vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades de uma grama de cada vez, mediante contrapartida monetária de 10 euros, de cada vez;
jix. …, durante os anos de 2022 e 2023, pelo menos por 4 vezes, resina de haxixe, para consumo deste, em quantidades de uma grama de cada vez, mediante contrapartidas monetárias compreendidas entre 10 a 20 euros, de cada vez.
7. No dia 18.07.2023, pelas 15.05 horas, o arguido AA … detinha na sua residência, …, o seguinte:
* no quarto utilizado por si:
i. No chão, no interior de uma bolsa, canábis (resina) com o peso bruto de 74,46 gramas e líquido de 71,633 gramas, com o grau de pureza de 37,5% (THC), suficiente para 537 doses individuais diárias de consumo;
ii. Numa gaveta da mesa de cabeceira, resíduos de canábis (resina), uma faca contendo resíduos de canábis (resina) e um canivete contendo vestígios de canábis (resina);
iii. No roupeiro, um computador portátil de marca ACER;
* No quarto utilizado pelo irmão do arguido AA:
i. Numa gaveta da mesinha de cabeceira, canábis (resina) com o peso bruto de 2,4 gramas, e líquido de 2,098 gramas, com o grau de pureza de 0,9€ (THC), suficiente para menos de uma dose individual diária de consumo.
8. Na mesma data e local, o arguido AA … detinha consigo o seguinte:
i. numa bolsa a tiracolo, 60€ (sessenta euros) em notas de 20€ do Banco Central Europeu;
ii. um Telemóvel de marca Xiaomi modelo Redmi, com o cartão SIM número …
iii. canábis (resina) com o peso bruto de 2,4 gramas e líquido de 2,267 gramas, com o grau de pureza de 37,5% (THC), suficiente para 17 doses individuais diárias de consumo.
9. No mesmo dia 18.07.2023, pelas 15h00, o arguido BB … detinha na sua residência, …, o seguinte:
* no quarto por si utilizado:
i. numa gaveta da mesinha de cabeceira, uma faca com vestígios de canábis (resina) na lâmina;
ii. um pedaço de canábis (resina) com o peso bruto de 25,6 gramas e líquido de 24,475 gramas, com o grau de pureza de 38,2% (THC), suficiente para 186 doses individuais diárias de consumo;
iii. um pedaço de canábis (resina) com o peso bruto de 2,2 gramas e líquido de 1,140 gramas, com o grau de pureza de 17,1% (THC), suficiente para 3 doses individuais diárias de consumo;
iv. um rolo de película aderente, utilizada pelo arguido para acondicionamento de estupefacientes;
v. um pedaço de canábis com o peso bruto de 0,7 gramas e líquido de 0,310 gramas, com o grau de pureza de 14% (THC), suficiente para menos de uma dose individual diária de consumo.
* na sala:
i. um telemóvel de marca Oppo, com o cartão SIM número ...62.
10. Os arguidos … quiseram agir da forma descrita, conhecendo a natureza e características dos produtos estupefacientes que comercializam, com o propósito concretizado de os entregar a terceiros, consumidores de tais substâncias, seus clientes, mediante a entrega de contrapartidas monetárias, assim auferindo vantagens económicas, o que representaram.
11. Aos arguidos … não é conhecida qualquer atividade remunerada, para além da descrita, dedicando-se os mesmos, de modo habitual e reiterada, à entrega a terceiros de produtos estupefacientes, como forma de obter quantias monetárias, que destinam ao seu consumo de estupefacientes e outras despesas.
12. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Da perda a favor do Estado,
13. Os objetos apreendidos nos autos, designadamente facas, canivetes e película aderente, destinavam-se à manipulação, corte e embalamento do produto estupefaciente.
14. As quantias monetárias apreendidas nos autos foram obtidas pelos arguidos no exercício da atividade de venda de produtos estupefacientes, através da venda de produto estupefaciente a consumidores seus clientes.
15. Os telemóveis apreendidos aos arguidos foram adquiridos com o dinheiro que os arguidos retiravam da venda do produto estupefaciente e eram utilizados para marcar os encontros e negociar preços e quantidades com os consumidores.
Das condições pessoais dos arguidos,
…
…
No que se refere à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, cumpre, antes de mais, referir:
Em sede de recurso para o Tribunal da Relação, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: quer por arguição dos vícios a que faz referência o art. 410.º, n.º 2, do CPP (a que se convencionou chamar “revista alargada”), quer pela impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
No primeiro caso, os mencionados vícios decisórios têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum – sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo – visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova registada e produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º s 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
De acordo com este normativo, sempre que pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve especificar:
- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
- as provas que devem ser renovadas;
A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação individualizada dos factos que constam da decisão recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
Por seu turno, a especificação das “concretas provas” corresponde à indicação do conteúdo específico de meio de prova ou de obtenção da prova, com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretende, dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410.º do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cf. art. 430.º do CP).
E o n.º 4 do art. 412.º estabelece que «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação», acrescentando o seu n.º 6 que «no caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.»
Como se lê no Ac. do STJ de 12-06-2008, Proc. n.º 4375/07 - 3.ª[4], esta possibilidade de sindicância da matéria de facto sofre quatro tipos de limitações:
«- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;
- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.»
No caso, o recorrente indica (na motivação e subsequentes conclusões) o ponto de facto que considera incorrectamente julgado: a al. ae)[5] da matéria de facto dada como não provada, do seguinte teor:
…[6].
Ora, como é sabido, sendo o recurso um meio de impugnação e de correcção de uma decisão judicial, à luz dos elementos de que a mesma dispunha, e não um meio de obter uma decisão nova, sobre questões não submetidas à apreciação da primeira instância ou com base em novos elementos de prova, é manifesto que não poderá ser tido em conta o escrito que o recorrente apresentou com o seu recurso, com vista a, em sede de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, demonstrar determinado facto que foi dado como não provado na decisão recorrida.
Na verdade, como se lê no Acórdão do STJ de 21-02-2006, proferido no Proc. n.º 260/06 - 5.ª[7]:
«De acordo com o disposto no art. 165.º do CPP, os documentos para serem operativos no julgamento penal a que se dirigem, devem ser juntos no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, devem sê-lo até ao encerramento da audiência em 1.ª instância (n.º 1 - não sendo assim aplicável a disciplina constante no n.º 1 do art. 524.º do CPC).
O julgamento do recurso, em que nem sequer é pedida renovação da prova, deve ser feito perante as provas e documentos tempestiva e legitimamente produzidas e apresentados na audiência em 1.ª instância e antes do seu encerramento.
Proferido o acórdão na 1.ª instância ficou imediatamente esgotado o poder jurisdicional do tribunal de 1.ª instância quanto à matéria da causa (n.º 1 do art. 666.º do CPC) e o tribunal superior não pode conhecer de questão nova não abordada na decisão recorrida, uma vez que os recursos se destinam exclusivamente ao reexame das questões decididas na decisão recorrida, e no domínio penal, à luz dos documentos juntos até ao encerramento da audiência em 1.ª instância.
A estipulação daquele termo final constitui um corolário do chamado princípio da imediação da prova: se todas as provas em que assenta a convicção do tribunal devem ser produzidas e examinadas em audiência, necessário se torna concluir que só relevam as apresentadas até então, sendo que a audiência que marca o termo final de apresentação de documentos há-de ser aquela em que seja produzida prova relevante à fixação da matéria de facto.»[8]
Não podendo ser considerado o mencionado documento e não vindo invocados quaisquer outros elementos estranhos ao texto da decisão, a reapreciação da matéria de facto por parte deste tribunal de recurso terá de conter-se na análise da coerência intrínseca do texto produzido, designadamente em busca dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410.º do CPP (sendo certo que nenhum vem concretamente identificado).
Vejamos, pois.
Como já acima referimos, os vícios decisórios a que se refere o n.º 2 do art. 410.º do CPP têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum – sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo – visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, escreve Tolda Pinto[9], «existe quando, através dos factos dados como provados, não sejam lógicamente admissíveis as ilações do tribunal “a quo”, não estando, porém, definitivamente excluída a possibilidade de as tirar. Esta, porém, não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, a qual resulta da livre convicção do julgador e das regras da experiência».
A insuficiência da matéria de facto provada para prolação da respectiva decisão verifica-se quando há lacuna, deficiência ou omissão no apuramento e investigação daquela matéria.
Este vício supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permitem integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime ou contra-ordenação, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena.
…
Este vício influencia e repercute-se na decisão proferida a qual, por isso, não poderá ser a “decisão justa que devia ter sido proferida”, no dizer do Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 13-05-1998[10].
Com tal vício se não confunde uma errada subsunção dos factos (devida e totalmente apurados) ao direito, pois que então, estamos perante um erro de julgamento.
E só existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando o tribunal deixe de investigar, podendo fazê-lo, toda a matéria de facto relevante, de tal forma que os factos declarados provados não permitam, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador[11].
O vício em apreço existe quando se verifica uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito[12], quando existe uma carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis, e que impede que sobre a matéria da causa seja proferida uma decisão segura; a “insuficiência” relevante não pode ser considerada apenas em relação a uma concreta decisão que esteja em causa, devendo atender-se, para aferir a carência factual para uma decisão segura, ao quadro das várias soluções plausíveis da questão de direito[13].
Como de forma cristalina explica o Senhor Conselheiro Pereira Madeira[14], a fórmula «insuficiência da matéria de facto para a decisão» «não se refere ou especifica o tipo de decisão «decisão condenatória» ou «decisão absolutória». A formulação legal é abrangente «para a decisão» e compreende toda e qualquer que seja a natureza da decisão. Assim para ser «insuficiente para a decisão» a matéria de facto apurada no seu conjunto há-de ser incapaz de a suportar em abstracto, isto, é, seja ela condenatória ou absolutória. Quando se afirma, como se vê fazer muitas vezes, que a matéria de facto provada é insuficiente para a condenação proferida pelo tribunal, não se está a proceder à invocação deste vício, antes, em suma, a afirmar que o tribunal errou na aplicação do direito aos factos provados, o que nada tem a ver com vícios da matéria de facto. Na verdade, sob esta perspectiva, a matéria de facto seria sempre «insuficiente»: pois, em caso de absolvição era seria «insuficiente» para a condenação…e, em caso de condenação, sê-lo-ia para a absolvição…».
Quanto ao vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP), dir-se-á que «para se verificar contradição insanável da fundamentação, têm de constar do texto da decisão recorrida, sobre a mesma questão, posições antagónicas e inconciliáveis, como por exemplo dar o mesmo facto como provado e como não provado, em situações que não possam ser ultrapassadas pelo tribunal de recurso»[15].
«A contradição da fundamentação ou entre esta e a decisão só importa a verificação do vício quando não seja sanável pelo tribunal ad quem. Isto é, quando seja insanável. Na verdade, tratando-se, por exemplo, de um erro no assentamento da matéria de facto, ou mesmo da respectiva fundamentação de facto, um erro perceptível pela simples leitura do texto da decisão, não poderá falar-se em vício de contradição, o qual só existirá se eliminado o erro pelo expediente previsto no artigo 380º do CPP, correcção a que o próprio tribunal de recurso pode e deve proceder (nº 2 do mesmo artigo), a contradição persistir, então, sim, sendo insanável.
A contradição tanto pode emergir entre factos contraditoriamente provados entre si, como entre estes e os não provados (p. ex. «provado que matou», «não provado que matou»), como finalmente entre a fundamentação (em sentido amplo, abrangendo a fundamentação de facto e também a de direito) e a decisão. É exemplo deste último tipo de contradição, a circunstância de a sentença se espraiar em considerações tendentes à irresponsabilidade penal do arguido e a decisão final concluir, sem mais explicações, por uma condenação penal.»[16]
Em suma, o vício a que alude a al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP verifica-se «quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal»[17].
Por fim, como é jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça[18], o erro notório na apreciação da prova, como os demais vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, deve resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência, e tem de ser de tal modo evidente que uma pessoa de mediana compreensão o possa descortinar[19].
E existe quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos. Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis[20].
«Tem que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio e não configura um erro claro e patente o entendimento que possa traduzir-se numa leitura possível, aceitável, razoável, da prova produzida», lê-se no Ac. do STJ de 24-01-2008, Proc. n.º 4085/06 - 5.ª[21].
Por outro lado, o erro notório na apreciação da prova não pode ser confundido com a insuficiência de prova para a decisão proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova – art. 127.º do CPP.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo Tribunal, sendo irrelevante, na ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção alcançada pelo recorrente sobre os factos[22].
Para avaliar se a decisão padece de qualquer dos vícios enunciados nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 410.º do CPP, há que apreciar, por um lado, a matéria de facto e, por outro, a respectiva fundamentação (os fundamentos da convicção), designadamente a natureza das provas produzidas e os processos intelectuais que conduziram o Tribunal a determinadas conclusões.
No que respeita a este último aspecto, relevam, para além dos meios de prova directos, como sejam os documentos, depoimentos, exames periciais, etc., os procedimentos lógicos de prova indirecta: as presunções.
«A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c).»[23]
Impõem-se ainda algumas considerações no que respeita ao princípio da livre apreciação da prova.
«A liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e controlo. (…) A livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. (…) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto, capaz de impor-se aos outros»[24].
«Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis – como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos actos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extractos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.
A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..
A imediação vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.»[25]
Por outro lado, é um dado assente que a gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência permite o controlo e a fiscalização, pelo tribunal superior, da conformidade da decisão com as afirmações produzidas em audiência, mas não substitui a plenitude da comunicação que se estabelece na audiência pública com a discussão dos outros meios de prova, a oralidade e a imediação, no confronto dialéctico dos depoentes por parte dos vários sujeitos processuais, no exercício permanente do contraditório[26].
Daí que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1.ª instância naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja, quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 374.º, n.º 2 do CPP[27].
Exigindo-se a convicção do julgador sobre a prática dos factos da acusação para além da dúvida razoável e radicando o princípio in dubio pro reo na mesma dúvida razoável, este situa-se no âmago da livre apreciação da prova, constituindo como que o “fio da navalha” onde se move a missão de julgar. Convicção “para lá da dúvida razoável” e “dúvida razoável” legitimadora do princípio in dubio pro reo limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova de apreciação vinculada e da livre apreciação dos restantes em conformidade com o critério do art. 127.º do CPP, sujeitos ambos à mesma exigência de legalidade da prova e da sua apreciação motivada e crítica, da objectividade, racionalidade e razoabilidade dessa apreciação.
No mesmo sentido podem ver-se diversos autores, designadamente Rodrigues Bastos[28], que refere que ao juiz «…não é permitido julgar só pela impressão que as provas oferecidas pelos litigantes produziram no seu espírito, mas antes se lhe exige que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se expressará na correspondente motivação», Cavaleiro de Ferreira[29], que escreve que «o julgador é livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no direito probatório», e ainda Germano Marques da Silva[30]: «O juízo sobre a valoração da prova faz-se em diversos níveis. Num primeiro dependente da imediação, nele intervindo elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo intervindo as declarações e induções que realiza o julgador a partir de factos probatórios, que hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios de experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”».
De entre abundante jurisprudência quanto a tal matéria, quer das Relações quer do Supremo Tribunal de Justiça, cita-se apenas, pela sua particular clareza, o proferido por este último Tribunal em 23-04-2009, no âmbito do Proc. n.º 114/09 - 5.ª[31]: «(…) a avaliação da decisão é a resposta, enquanto remédio jurídico, para incorrecções e ilegalidades concretamente assinaladas. Não um novo apuramento global do acontecido, ou a reapreciação do objecto do processo, porque a garantia do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, antes visando, apenas, a detecção e correcção de pontuais, concretos, e em regra excepcionais, erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da dita matéria de facto.
Quanto ao julgamento de facto pela Relação, uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova, e outra é detectar-se no processo de formação da convicção desse julgador, erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório.
Ora, ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no art. 127.º do CPP, ou seja, assenta (fora das excepções relativas a prova legal que não interessam ao caso), na livre convicção do julgador e nas regras da experiência. Por outro lado, também não pode esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá, e o julgamento da Relação não permite. Basta pensar, naquilo que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir.
Serve para dizer, que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado.»
Importará, ainda, sublinhar que o Tribunal a quo, ao apreciar a prova (o que tem de fazer de uma forma lógica e racional, sempre segundo as regras da experiência comum), deve fazer uma análise dos elementos disponíveis, de forma conjugada e crítica, nada impedindo que, nessa conjugação, atribua crédito a parte de determinado depoimento mas já não estribe a sua convicção noutra parte do mesmo.
Por outro lado, também nada obsta a que a convicção do Tribunal se funde num único depoimento, desde que o mesmo ofereça credibilidade bastante.
Nas sábias palavras de Bacon: «os testemunhos não se contam, pesam-se»[32], não vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio testis unus, testis nullus.
E não é decisivo para se poder concluir pela realidade dos factos descritos na acusação ou na pronúncia que haja provas directas do seu cometimento pelo arguido, designadamente que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticá-los ou que o próprio arguido os assuma expressamente.
Condição necessária, mas também suficiente, é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa, dentro do que é lógico e normal, de que os factos se passaram da forma ali narrada.
Ou seja, dentro do quadro probatório global a apreciar existem, para além da prova directa, «os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções[33].
Analisado o acórdão recorrido, quanto aos factos (provados e não provados) e sua motivação, verifica-se que o Tribunal formou a sua convicção na apreciação conjugada e crítica dos elementos periciais e documentais juntos aos autos … e dos depoimentos das testemunhas … explicando em que medida foram ou não valorados e por que motivos lhe mereceram, ou não, credibilidade.
Da leitura dessa decisão, concretamente da fundamentação da convicção formada (já acima transcrita), constata-se ter sido seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão incongruente, arbitrária ou violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas disponíveis, tendo a convicção expressa pelo tribunal suporte razoável nas mesmas.
A fundamentação da decisão recorrida, no exame crítico da prova, explica, de forma detalhada – exaustiva até, e com cristalina clareza – os motivos pelos quais os elementos de prova foram, conjugadamente, valorados no sentido em que o foram, sendo perfeitamente inteligível o itinerário cognoscitivo que conduziu o tribunal, que beneficiou da oralidade e da imediação, à convicção alcançada, com suporte na regra estabelecida no art. 127.º do CPP, não se mostrando violado qualquer princípio, norma legal ou regra da experiência na apreciação da matéria de facto, não merecendo, por isso, qualquer reparo a formação dessa convicção.
O recorrente indica o ponto ae) da matéria de facto não provada como tendo sido incorrectamente julgado.
Não assaca ao acórdão recorrido qualquer dos vícios a que aludem as três alíneas do n.º 2 do art. 410.º do CPP, sendo, aliás, evidente, perante os termos da motivação de recurso e das respectivas conclusões, em que faz apelo a um elemento estranho ao texto da decisão (que, como já explicámos, não pode ser tido em conta), que a sua impugnação se prende, não com o texto da decisão, mas com a forma como o Tribunal apreciou e valorou a prova.
Limita-se a apontar o que, em seu entender, é um erro do Tribunal na avaliação dos diversos elementos de prova relativamente àquele ponto da matéria de facto não provada, que se relaciona com a percepção da (menor)idade de alguns dos consumidores por parte dos arguidos, pois que o Tribunal recorrido devia ter considerado que os arguidos estariam cientes dessa menoridade, já que a mesma, na sua perspectiva, seria evidente pela observação dos respectivos rostos.
Mas essa sua conclusão não colhe qualquer apoio no texto da decisão, resultando, pelo contrário, da exaustiva fundamentação da convicção que de uma apreciação, conjugada e crítica, dos elementos de prova disponíveis nos autos não foi possível concluir pela sustentação da conclusão de que «os arguidos AA e BB estavam cientes que entregavam os produtos estupefacientes, nos termos acima descritos, por vezes, a indivíduos menores de dezoito anos».
Na verdade, tal como aí se explica, a negação dos arguidos de que tivessem esse conhecimento não foi infirmada por qualquer elemento de prova, designadamente pelos depoimentos das testemunhas que aquando da sua interacção com os arguidos, adquirindo-lhes produto estupefaciente, tinham menos de dezoito anos de idade, a saber, DD, EE, FF, CC e GG (o CC não terá interagido com nenhum deles, conforme resulta do ponto 5.iv. dos factos provados e da fundamentação da convicção do Tribunal, sendo também somente desta que decorre a sua idade – cf. fls. 29 do acórdão).
Nem a inquirição e observação directa da aparência física das mesmas, por parte do próprio Tribunal, o levou a assim concluir, à luz das regras da experiência comum, como vem sublinhado: «Com efeito, tendo sido inquiridos (como veremos) alguns destes intervenientes que, à data, eram ainda menores, e mesmo tendo em conta o hiato decurso desde então até ao momento em que se realizou a audiência de julgamento, entendemos inexistirem elementos nos autos que apontem, de forma absolutamente segura, para o conhecimento efetivo e real das idades dos sobreditos interlocutores dos arguidos.
Por este motivo o Tribunal não pôde concluir, com o grau de certeza e sustentação necessário a um juízo probatório desta natureza, que os arguidos soubessem que alguns daqueles consumidores fossem menores de idade, assim vertendo no juízo probatório tal conclusão.»
Pese embora o esforço argumentativo do recorrente – que, naturalmente, espelha a sua interpretação, necessariamente subjectiva, da prova –, a avaliação dos seus diversos elementos levada a cabo pelo Tribunal recorrido, nos termos constantes do texto decisório, não nos merece reparo, nada nele evidenciando que o facto a que o recorrente alude devesse ter sido dado como provado.
Em suma, é perfeitamente perceptível o percurso lógico que levou o Tribunal recorrido, que beneficiou da oralidade e da imediação, a, na ausência de prova bastante, dar como não provado o facto constante da alínea ae) do elenco dos factos não provados.
E as suas conclusões não são ilógicas ou inaceitáveis, não se podendo afirmar que um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, facilmente se dê conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou de que foram desrespeitadas regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.
A decisão mostra-se coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para sustentar uma segura solução de direito.
Não ocorre, pois, qualquer dos vícios elencados no n.º 2 do art. 410.º do CPP, que, de resto, não vem invocado.
…
Sustenta que a prova produzida conduz ao preenchimento dos elementos típicos do crime de tráfico de estupefacientes agravado pelo qual foram acusados, p. e p. pelos arts. 21.º, n.º 1, e 24.º, al. a), ambos do DL n.º 15/93, de 22-01, e que os factos não devem ser subsumidos ao tráfico de menor gravidade, uma vez que a tal obsta o preenchimento daquela agravante e que «a ilicitude dos factos dados como provados não se mostra consideravelmente diminuída», já que os arguidos, «durante um período de tempo de mais de um ano, dedicaram-se na residência, na via pública e em locais frequentados por menores estudantes, à venda e cedência a estes e outros consumidores, num total de, pelos menos, vinte e oito, de produtos estupefacientes», nunca «desconhecendo que se tratavam, os primeiros, de indivíduos estudantes e de menoridade».
…
Diremos, antes de mais, que, não tendo a pretensão do recorrente de ver alterada a matéria de facto merecido acolhimento por parte deste Tribunal, a apreciação da correcção da qualificação jurídica terá de fazer-se à luz da factualidade fixada pelo Tribunal a quo.
A essa luz, e tendo resultado não provado (al. ae) que os arguidos estivessem cientes da circunstância de alguns dos consumidores a quem entregaram produtos estupefacientes (ou a quem estes se destinavam) terem idade inferior a dezoito anos, é manifesto que não pode ter-se por verificada a agravante prevista na al. a) do art. 24.º do DL n.º 15/93, de 22-01.
Não tem, pois, cabimento a invocação, por parte do recorrente, do acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Coimbra em 22-05-2024, no Proc. n.º 240/21.9JAGRD.C1 (relatado pela Exma. Senhora Desembargadora Ana Carolina Cardoso, que aqui tem a qualidade de 1.ª adjunta e que nos facultou o acesso ao texto do acórdão, inédito), no qual, mostrando-se preenchida, para além do mais, a mencionada circunstância agravante, se concluía que as circunstâncias agravantes «são incompatíveis com uma diminuição da ilicitude considerável, conforme exigido pelo tipo privilegiado do crime de tráfico de estupefacientes», já que tal questão não chega a colocar-se nos presentes autos.
Arredado o preenchimento da mencionada agravante, resta analisar se bem andou o Tribunal recorrido ao considerar que a matéria factual apurada configura um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22-01, ou se, pelo contrário, deveria ter por verificada a previsão do tipo base do art. 21.º, n.º 1, daquele diploma.
Constitui jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça que «a tipificação do art. 25.º parece ter o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor, na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza (de elevada gravidade considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e a frequência desta), encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do art. 21.º do mesmo diploma e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no art. 25.º»[34].
Como já no Ac. do STJ de 16-03-2005[35] se escrevia, «o tipo legal de crime de tráfico de menor gravidade responde a um sentimento de proporcionalidade, equidade e justiça retributiva, que não encontra acolhimento no tipo legal de base, descrito do art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, posto que aquele foi pensado para situações de facto representativas de um minus penalmente relevante, em que a ilicitude, o grau de demérito da acção, se mostra consideravelmente esbatido, quando comparativamente com a exigida na matriz de base, funcionando como válvula de segurança do sistema, este distinguindo entre as diferentes modalidades de tráfico, consoante a sua gravidade objectiva e subjectiva, partindo do tráfico simples para o agravado, intercalando o de menor gravidade e o próprio do consumidor.
São factos-índice dessa ilicitude consideravelmente diminuída, à luz do art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, que os enuncia expressa e exemplificativamente, os meios usados, a modalidade, a circunstância da acção e a qualidade ou quantidade das plantas ou substâncias ou preparações.
Os meios e a modalidade usados no tráfico respeitam à organização posta em prática para execução da acção, à sua maior ou menor sofisticação, à aptidão para alcançar o resultado proibido, à dimensão real deste, à sua idoneidade para a lesão dos bens ou valores jurídicos postos em crise, tanto mais grave quanto é a quantidade e a natureza dos estupefacientes, escalonada gradativamente nas tabelas em anexo ao DL 15/93, de 22-01, devendo proceder-se à valoração global de todos estes elementos, afastando-se a preponderância de uns sobre os outros, para o alcance do grau muito reduzido de desvalor da acção»[36].
Ou seja, «nos termos do art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, o tráfico de estupefacientes tem-se por atenuado quando de uma avaliação complexiva dos factos resulte uma imagem global esbatida quanto à sua gravidade, tendo como termo de comparação a vulgar actividade de tráfico, o tráfico comum.
Relevam para o efeito todas as componentes do quadro de facto, nomeadamente, qualidade da droga, tendo em conta a sua perniciosidade potencial em termos de saúde dos consumidores, a quantidade, a reiteração, o tempo de permanência ou duração da actividade traficante, os motivos da conduta, os antecedentes criminais e as condições pessoais do agente, nomeadamente as sócio-económicas»[37].
Atentando na conduta do arguido AA … dada como provada (cf. ponto 5), constata-se que num período situado entre 2022 e Julho de 2023, vendeu canabis e haxixe, a um total de vinte e dois consumidores, em número de transacções, quantidades e valores nem sempre concretamente apurados, referindo-se quanto a várias dessas transacções a contrapartida monetária de 10,00€ de cada vez, situando-se o valor das vendas, maioritariamente entre valores de 5,00€ a 20,00€, ao que acresce a apreensão levada a cabo na sua residência em 18-07-2023, de canabis resina, com o peso líquido de 71,633 gramas, com o grau de pureza de 37,5% (THC), suficiente para 537 doses individuais diárias de consumo, canabis resina com o peso líquido de 2,098 gramas, com o grau de pureza de 0,9€ (THC), suficiente para menos de uma dose individual diária de consumo, e ainda a canabis (resina) com o peso líquido de 2,267 gramas, com o grau de pureza de 37,5% (THC), suficiente para 17 doses individuais diárias de consumo, que detinha numa bolsa a tiracolo (pontos 7 e 8 dos factos provados).
No que respeita ao arguido BB …, a sua apurada conduta (cf. ponto 6 dos factos provados) desenvolveu-se no mesmo período de tempo, situado entre 2022 e Julho de 2023, em que entregou “erva”, canabis e haxixe, a um total de nove consumidores, em número de vezes, quantidades e valores nem sempre concretamente apurados, referindo-se quanto a várias dessas transacções a contrapartida monetária de 10,00€ de cada vez, situando-se o valor das vendas (porque algumas das entregas não tiveram contrapartida monetária – cf. os pontos iv. e vi. do ponto 6.) em 10,00€ ou 20,00€, ao que acresce a apreensão levada a cabo na sua residência, em 18-07-2023, de um pedaço de canabis (resina) com o peso líquido de 24,475 gramas, com o grau de pureza de 38,2% (THC), suficiente para 186 doses individuais diárias de consumo, um pedaço de canabis (resina) com o peso líquido de 1,140 gramas, com o grau de pureza de 17,1% (THC), suficiente para 3 doses individuais diárias de consumo, e um pedaço de canabis com o peso líquido de 0,310 gramas, com o grau de pureza de 14% (THC), suficiente para menos de uma dose individual diária de consumo (ponto 9 dos factos provados).
À data dos factos ambos os arguidos mantinham a sua dependência do consumo de estupefacientes.
O arguido AA … não exercia profissão ou actividade lícita remunerada, sendo certo que padece de uma incapacidade permanente que dificulta significativamente a sua integração laboral, bem como de uma situação de ausência de documentação que obsta a que possa beneficiar de quaisquer apoios estatais.
Aquando da sua reclusão à ordem dos presentes autos, deu continuidade ao acompanhamento por parte do CRI, integrado no programa de metadona (em redução) que já anteriormente seguia, e mantém o apoio familiar.
Por seu turno, o arguido BB … antes de ter ficado em prisão preventiva à ordem destes autos trabalhava na Junta de Freguesia … como cantoneiro e vivia com a companheira e cinco filhos, todos menores de idade, ligação familiar que se mantém.
Em termos de “imagem global do facto”, a apurada actividade de tráfico desenvolvida por cada um dos arguidos, atenta a sua relativamente reduzida dimensão e projecção (por referência ao tipo-base, naturalmente) – sendo certo que, embora o facto de não ter ficado demonstrada a exacta quantidade de estupefaciente transacionado ou entregue não signifique a irrelevância dessas condutas em termos de responsabilização criminal, os diversos actos em que não vêm indicadas essas concretas quantidades e, por outro lado, o indeterminado número de vezes em que ocorreram, devem ser valorizados na compreensão mais consentânea com o princípio in dubio pro reo, ou seja, na assunção do significado menos gravoso para os arguidos –, aliada aos meios rudimentares utilizados, com venda directa aos consumidores finais, através de contacto de rua, numa reduzida área geográfica, em pequenas doses e sem qualquer sofisticação, à natureza do produto estupefaciente em causa, e ao facto de ambos os arguidos serem eles próprios consumidores das mesmas substâncias, utilizando em larga medida os proventos obtidos para a satisfação do seu vício, não vai além do comummente denominado tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22-01.
Tem sido este o entendimento da jurisprudência do STJ em casos idênticos - e até em outros de ilicitude mais acentuada –, sendo seu exemplo os acórdãos de 22-01-2004, de 10-02-2005, de 11-10-2005, de 24-05-2011, de 21-09-2011, de 05-01-2012, de 12-04-2012, e de 12-03-2014, proferidos, respectivamente, nos Procs. n.ºs 162/04 - 5, 4739/04 - 5, 898/05 - 5, 179/09.6S4LSB.L1.S1 - 5, 556/08.0GCVIS.C1.S1 - 5, 3399/10.7TASXL.L1.S1 - 5, 106/07.5PCPRT.P1.S1 - 5, e 189/12.6GAANS.S1 - 3[38], para além do, já acima referenciado, proferido em 23-11-2011 no Proc. n.º 127/09.3PEFUN.S1 - 5[39]. E, mais recentemente, os acórdãos do mesmo Tribunal de 23-11-2023, Proc. n.º 42/20.0PESTB.S1 - 5, e de 17-10-2024, Proc. n.º 410/23.5T9RGR.L1.S1 - 5[40].
Acompanhamos, assim, o entendimento do Tribunal recorrido quando considera que a conduta de cada um dos arguidos se subsume à previsão do art. 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22-01, não merecendo reparo a qualificação jurídico-penal operada no acórdão condenatório.
Por todo o exposto, é de julgar o recurso totalmente improcedente.
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a decisão recorrida.
Sem tributação.
Notifique.
[1] No decurso do qual foi comunicada aos arguidos uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, bem como da respectiva qualificação jurídica, nos termos do art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, nada tendo sido requerido.
[2] 1 Importa reter, a respeito de autos de notícia e de denúncia, acompanhando o decidido no Ac. da R. do Porto de 3.12.2014 (Proc. n.º 53/13.1GCETR.P1, in www.dgsi.pt), que “O auto de denúncia constitui prova documental, que atesta que esta foi realizada nas circunstâncias de tempo e lugar nele exaradas, pela pessoa ali identificada e com a indicação dos factos ali narrados, mas não constitui meio de prova da ocorrência desses mesmos factos”. Apenas nesta medida foram, pois, considerados tais elementos.
[3] 2 Enquanto a marijuana ou “erva” é preparada a partir das folhas secas, flores e pequenos troncos da planta, o haxixe prepara-se prensando a resina da planta fêmea e transforma-se numa barra de cor castanha, com o nome coloquial de "chamom".
[4] In www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[5] Assim correctamente identificado nas conclusões do recurso, apesar de na sua motivação vir erradamente indicado como «ac)».
[6] Já que, segundo a análise que efectuámos dos autos, neles o mesmo não se encontra, sendo certo que não foi indicado como elemento de prova, designadamente na acusação.
[7] In www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[8] No mesmo sentido, entre outros, cf. também os Acs. do STJ de 20-02-2008, Proc. n.º 4838/07 - 3.ª, ibidem
, e de 05-12-2012, Proc. n.º 704/10.0PVLSB.L1.S1 - 3.ª, in www.dgsi.pt.
[9] In A Tramitação Processual Penal, 2.ª Ed., pág. 1035.
[10] In CJ, Acs. do STJ, Ano VI, tomo 2, pág. 199.
[11] Cf. Ac. do STJ de 24-11-1998, in BMJ 481.º/350.
[12] Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 2.ª Ed., págs. 339-340.
[13] Cf. o acórdão do STJ de 19-11-2008, Proc. n.º 3453/08 - 3.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos), aludindo aos acórdãos do mesmo Tribunal de 24-05-2006, Proc. n.º 816/06, e de 24-04-2006, Proc. n.º 363/06.
[14] In Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, págs. 1357-1358.
[15] Cf. Ac. do STJ de 22-05-1996, Proc. n.º 306/96, in www.dgsi.pt.
[16] Cf. o comentário do Senhor Conselheiro Pereira Madeira no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, págs. 1358-1359. E, no mesmo sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, 2000, págs. 340-341.
[17] Cf. Acs. do STJ de 06-10-1999 e de 13-10-1999, in Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2.ª Ed., pág. 1058.
[18] Cf., designadamente, Acs. do STJ de 15-02-2007, Proc. n.º 3174/06 - 5.ª, de 14-03-2007, Proc. n.º 617/07 - 3.ª, de 23-05-2007, Proc. n.º 1405/07 - 3.ª, de 11-07-2007, Proc. n.º 1416/07 - 3.ª, e de 27-07-2007, Proc. n.º 2057/07 - 3.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[19] Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2.ª Ed., pág. 341, precisa que o requisito da notoriedade se afere «pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.» No mesmo sentido se pronuncia o Senhor Conselheiro Pereira Madeira, em anotação ao Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1359: «Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta. Porém, a ser assim, com um alcance tão restrito, o preceito acabaria por perder grande parte do seu interesse prático, acabando afinal por deixar encobertas, situações de erro clamoroso, ainda que porventura não acessíveis ao cidadão comum. Impor-se-á, assim, uma leitura algo mais abrangente que não acoberte situações de julgamento erróneo não inteiramente escancaradas à observação do homem comum, todavia, que numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente aplicada. Certo que o erro tem que ser «notório». Mas basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das percepções do homem comum – e sopesado à luz das regras da experiência. (…)»
[20] Cf. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 6.ª edição, págs. 67 e ss.
[21] Ibidem.
[22] «A divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal é irrelevante, de acordo com jurisprudência há muito firmada – cf. Acs. do STJ de 19-09-1990, BMJ 399.º/260; de 21-06-1995, BMJ 448.º/278 (a versão do recorrente sobre a valoração da prova não integra o vício do erro notório); de 01-10-1997, Proc. n.º 876/97 - 3.ª; de 08-10-1997, Proc. n.º 874/97 - 3.ª; de 06-11-1997, Procs. n.ºs 666/97 e 122/97, de 18-12-1997, Procs. n.ºs 47325 e 930/97, Sumários de acórdãos do STJ, Vol. II, págs. 156, 158, 216 e 220; de 24-03-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247; de 19-01-2000, Proc. n.º 871/99 - 3.ª; e de 06-12-2000, Proc. n.º 733/00. Ou, como se dizia no Ac. de 18-12-1997, Proc. n.º 701/97, Sumários, ibidem, pág. 220, a convicção do tribunal não pode ser tida por errada apenas porque as partes, eventualmente, valoram a prova de modo diverso.» - cf. Ac. do STJ de 04-12-2008, Proc. n.º 2507/08 - 3.ª, ibidem. E mais recentemente no acórdão do STJ de 01-07-2020, Proc. n.º 39/11.0GAPNF.P1.S2 - 3.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de acórdãos), no qual se reafirma que «a prova é apreciada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade que julga, conforme art. 127.º, do CPP, e não de acordo com a apreciação que dela fazem os destinatários da decisão.»
[23] Cf. Acs. do STJ de 17-03-2004, Proc. n.º 2612/03 - 3.ª, e de 23-02-2011, Proc. n.º 241/08.2GAMTR.P1.S2 -3.ª, ambos in www.dgsi.pt.
[24] Cf. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, vol. I, pág. 202.
[25] Cf. Ac. do TC n.º 198/2004, de 24-03-2004, in www.tribunalconstitucional.pt.
[26] Cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, págs. 233-234.
[27] Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, págs. 126-127, que, por sua vez, cita o Prof. Figueiredo Dias.
[28] In Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 221.
[29] In Curso de Processo Penal, vol. I, Reimpressão da Universidade Católica.
[30] In Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, págs. 126-127.
[31] In www.dgsi.pt.
[32] Psicologia do Testemunho, in Scientia Iuridica, pág. 337.
[33] Como se refere no Ac. do STJ de 11-11-2004, proferido no Proc. n.º 3182/04 - 5.ª, in www.dgsi.pt, «O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção.»
[34] Cf. Ac. do STJ de 22-01-04, Proc. n.º 162/04 - 5, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[35] Proc. n.º 4318/04 - 3, ibidem.
[36] Isto é, «não bastará a presença de uma circunstância fortemente atenuativa para considerar preenchido aquele conceito, quando as restantes com incidência são de sentido contrário, do mesmo modo que um conjunto de circunstâncias fortemente atenuativas não poderá ser postergado, sem mais, pela presença de uma circunstância grave» - cf. Ac. do STJ de 02-06-2004, Proc. n.º 148/04 - 3, ibidem.
[37] Cf. Ac. do STJ de 29-03-2007, Proc. n.º 662/07 - 5, ibidem.
[38] Todos in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de acórdãos).
[39] In www.dgsi.pt.
[40] Ibidem.