CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
DESISTÊNCIA
CRIME DE REALIZAÇÃO INSTANTÂNEA
Sumário

I - A relevância da desistência na tentativa, como causa de não punibilidade do acto, encontra o seu fundamento no arrependimento activo, numa reconsideração livre e espontânea, que é feita antes de findar a execução dos actos criminosos ou antes da consumação do crime
II - O crime de desobediência é «um crime de realização instantânea … consuma-se no momento em que o agente não obedece a uma ordem legítima da autoridade … no caso, quando o arguido finalmente aceitou realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, o crime já estava consumado, e não havia forma de impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime».

Texto Integral

*

Acordam, em conferência, na 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I–RELATÓRIO

1. …, foi mediante sentença datada de 09.06.2025, designadamente, decidido:

a) Condenar o arguido …, como autor material e na  forma consumada, de 1 (um) crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 348.º, n.º 1, alínea a), e 69.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal, e pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do Código da Estrada, na pena de doze meses de prisão.

b) Suspender a execução da pena de prisão de dozes meses, pelo período de vinte e quatro meses, sujeita regime de prova (artigo 50.º, n.º 1 e 2 e 53.º, n.º 1, do Código Penal).

c) Condenar o arguido … na pena acessória de  proibição de conduzir veículos a motor pelo prazo de dozes meses, nos termos dos artigos 348.º, n.º 1, alínea a), e 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal).

2. Inconformado recorreu o arguido extraindo da motivação de recurso as seguintes conclusões:


«1.ª

O arguido não praticou qualquer ilícito criminal.



Desde logo porque nunca se recusou a cumprir com quaisquer procedimentos de recolha de prova ordenados pelos OPC,


Mas também porque – e aí a prova é abundante – quando já no posto da GNR percebeu que poderia incorrer em ilícito criminal, pediu insistentemente para que lhe deixassem fazer o teste de sopro no “balão”.



Ou seja, ainda que seja verdade – e se dê/considere como provado – que o arguido se recusou a “soprar” num primeiro momento, sempre se arrependeu, e requereu que fosse submetido ao teste em questão, ainda em tempo útil.


Quando dizemos tempo útil, referimo-nos a 5/10 minutos que demorou do local onde foi abordado até ao posto da GNR ...…


12ª

Cremos que a posição de recusa adotada pelos OPC é reprovável e que não tem acolhimento na lei nem na moral - imoral é de certeza – apenas com a desculpa do “já tinha desobedecido”.

13ª

Relembre-se que se ao arguido lhe é exigida a actuação do homem médio, do bonus pater familias, exige-se uma conduta especialmente ponderada a quem ocupa lugares de interesse público, como forças de segurança ou de defesa, ou ainda a quem for titular de cargos em órgãos de soberania, conduta essa que não foi mantida/defendida/preservada/sustentada (upheld) pelos Srs. Militares.

14º

A sua conduta, com breves excepções, foi essencialmente de provocação em vez de pacificação,

15º

De confronto em vez de esclarecimento.

16º

Acima de tudo, não podiam os Sr. Militares negar a realização da prova por ar expirado ao arguido sem terem a certeza que o mesmo compreendia completamente o sentido e o alcance da cominação, o que não aconteceu.


18º

Recorde-se que também de acordo com a prova transcrita, o arguido achava que estava a ser detido por ter sido mal-educado com os Srs. Guardas.

19º

No entanto esta recusa manteve-se com o fundamento de que “já tinha desobedecido”.


21º

Também não estão verificados os elementos subjectivos, por duas razões:

- Mesmo na versão aceite pela sentença, o arguido não se recusou a fazer um teste à Taxa de Álcool no Sangue, recusou-se a fazer um certo tipo de teste, pedindo para fazer outro, pelo que não se pode dizer que o arguido “representou e quis” não ser sujeito a um teste à TAS.

- Para além disso, a partir de determinado momento (o momento em que se apercebe das consequências de uma sua recusa em realizar o teste por ar expirado), aceita também fazer este, tendo inclusive pedido expressamente para o fazer.


22ª

Daí que não se possa, de forma séria, aceitar que estejam presentes os elementos subjectivos do tipo legal de crime de desobediência à ordem de ser submetido à fiscalização à TAS.

23ª

A respeito da desistência da tentativa, sempre se diga que o comportamento do arguido encontra abrigo nesta previsão legal.

24ª

O arguido quis voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, conforme artigo 24º, nº1 do C. P..

3. Notificado, na resposta que apresentou, o Ministério Público concluiu …

Assim, por tudo o exposto, não se concorda com o Recorrente, motivo pelo qual, deve o presente Recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida».

4. Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto emitiu parecer

5. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP.

6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.


II. Fundamentação

1. Questões a decidir

No caso em apreço, atendendo às conclusões das motivações dos recursos, são as seguintes as QUESTÕES a resolver:

1- Da sindicância da matéria de facto;

2- Do enquadramento jurídico-penal.

2. Sentença recorrida (transcrita na parte ora relevante)


«II. Fundamentação de factos

Factos provados


1. No dia 13/03/2025, pelas 19:15h, na Rua …o arguido conduzia o veículo … tendo sido sujeito a uma fiscalização rodoviária por militares da GNR, os quais se encontravam devidamente uniformizados e no desempenho das suas funções.

2. Durante a fiscalização foi o arguido questionado se teria ingerido bebidas alcoólicas, nesse momento o mesmo disse aos militares da GNR o seguinte: “não sopro, se quiserem tirem-me sangue, eu sou doente não faço testes”.

3. Já no exterior do veículo o arguido, disse várias vezes “não sopro”.

4. Foi explicado ao arguido, várias vezes, que os condutores devem submeter-se às provas estabelecidas para deteção do estado de influenciado pelo álcool e que da sua recusa, o mesmo seria punido pela prática de um crime de desobediência.

5. O arguido recusou a ser submetido ao exame de pesquisa de álcool em analisador qualitativo, …

Mais se provou que:

8. Posteriormente a ter sido dada voz de detenção ao arguido, e após ter sido elaborado o expediente, o arguido disponibilizou-se para fazer o teste de ar expirado.

15. O arguido tem averbadas no seu Certificado de Registo Criminal, as seguintes condenações:

II.2 Factos não provados

Com interesse para a boa decisão da causa não resultaram não provados quaisquer factos.

II.3 Convicção do Tribunal

A convicção deste Tribunal, relativamente à matéria de facto provada, resultou da adequada análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, a saber, declarações do arguido e o depoimento das testemunhas …

Ora, em face dos depoimentos das testemunhas, e da forma como o foram, não restou dúvidas que o arguido sempre se recusou fazer o teste qualitativo, ainda que se tivesse disponibilizado a fazer o quantitativo, e que lhe foi de inúmeras vezes explicado que teria de realizar o teste, sob pena de estar a praticar um crime de desobediência, não correspondendo à verdade que lhe tenha sido recusada a possibilidade de fazer teste de despistagem ao álcool, embora se tenha apurado que o arguido chegou a disponibilizar-se para fazer o teste qualitativo, mas já depois de lhe ter sido dada voz de prisão pela prática do crime de desobediência, e de elaborado o competente expediente.

Assim, não mereceu credibilidade a versão no arguido nestes concretos pontos, sendo certo que, nenhum interesse teriam os senhores militares em vir trazer uma versão não verdadeira dos acontecimentos, versão essa que decorre de depoimentos absolutamente coincidentes, coesos, detalhados e contextualizados.

O arguido sabia que tinha obrigação de se sujeitar ao teste qualitativo, e que não dando cumprimento ao que lhe estava a ser determinado pelos militares da GNR praticava um crime de desobediência, pois que já teve uma situação idêntica, da qual decorreu a sua condenação pela prática de um crime de desobediência.

Ademais, o arguido é titular de carta de condução, tendo, nessa qualidade, que conhecer as regras constantes do Código da Estrada, as quais impõem a realização de exame de pesquisa de álcool no sangue ao condutor, quer seja ou não seja interveniente em acidente de viação, tanto mais que o mesmo já foi submetido em data pretérita a exame de pesquisa de álcool no sangue, …

Por outro lado, foi o arguido advertido pelos militares da GNR …

Resulta também das regras da experiência, em conjugação com os demais factos objectivos provados nos autos, que, ao actuar do descrito modo, a intenção do arguido não pode ter sido outra que não a de incumprir a determinação que lhe foi dirigida, da qual ficou perfeitamente ciente, que lhe foi regularmente comunicada e que sabia legítima, porquanto proveniente de autoridade com competência para a emitir e legalmente prevista, tendo decido não obedecer a essa ordem, apesar de ser conhecedor das consequências de tal omissão, querendo, assim, faltar à obediência devida a essa ordem e incorrer na prática de crime de desobediência.


II. 4 Da aplicação do Direito aos factos

II.4.1 Do Crime


Assim, ponderando a factualidade apurada, verifica-se que, na altura em que foi fiscalizado por agente de autoridade, foi determinado ao arguido, por militar da GNR, que se submetesse a exame de pesquisa de álcool no ar expirado. Apesar de ciente da legalidade de tal imposição, a qual lhe foi regularmente comunicada, bem como sabendo que se tratava de uma ordem provinda de autoridade competente para a emitir e de ter ficado a conhecer as consequências inerentes ao não acatamento de tal ordem, o arguido recusou efectuar exame de pesquisa de álcool no ar expirado.

Os factos apurados traduzem, assim, uma conduta que consubstancia inequivocamente a falta de obediência a uma ordem legítima, emanada de autoridade com competência para a emitir, vindo legalmente cominado (no art.º 152.º, n.º 3, do Código da Estrada) o não acatamento dessa determinação com crime de desobediência, tendo essa imposição sido regularmente comunicada ao arguido e tendo este ficado ciente da mesma e das consequências do seu não acatamento.

A circunstância de o arguido se ter disponibilizado para se sujeitar ao teste ao sangue, recusando-se a fazer o teste qualitativo de ar expirado, não faz com que o arguido não tenha praticado o crime de desobediência, porquanto, como se vem anotando em jurisprudência abundante, não cabe ao condutor escolher o meio de detecção de álcool no sangue, …

Quanto à aventada não consumação do crime, diga-se que o crime em causa se consuma quando o arguido recusa sujeitar-se ao teste de pesquisa de álcool após ter recebido ordem legítima para o efeito, …


3. conhecendo o recurso

Insurgindo-se contra a sentença condenatória, o arguido recorrente deduz (1.) sindicância da matéria de facto pretendendo a modificação da factualidade provada e decorrente (2.) alteração do enquadramento jurídico-penal, pugnando a final pela sua absolvição.

Apreciemos as questões a resolver.

1. Da sindicância da matéria de facto

Como é sabido, as relações «conhecem de facto e de direito» (art.º 428.º, n.º 1 do CPP), assim se concretizando a garantia do duplo grau de jurisdição na matéria de facto.

A sindicância à matéria de facto pode ser deduzida ao abrigo do disposto no art.º 410.º n.º 2 do CPP, ou nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do mesmo diploma legal, ou seja, fazendo uso da denominada impugnação ampla da matéria de facto.

Ora, se os erros vício previstos nos art.º 410.º n.º 2 do CPP se examinam através da análise do texto da sentença recorrida, já o erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto[1].

No caso, a sindicância do recorrente respalda-se, designadamente, em prova gravada, pelo que excede o texto da decisão recorrida, apelando ao conteúdo do que foi dito, mas que não teria sido devidamente ponderado, remetendo, portanto, para o regime previsto no art.º 412.º do CPP, a que se convencionou chamar de impugnação ampla da matéria de facto.

Este erro resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Tal erro pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi (art.º 412.º n.º 3 do CPP).

A intromissão da Relação no domínio factual, nos termos do art.º 412.º cinge-se a uma intervenção cirúrgica e não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

Ora, neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (de impugnação ampla), se o Tribunal da Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo[2].

Acontece, ainda que, sob pena de inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos acusam ou dos que esperam a decisão, a crítica à convicção do tribunal a quo, assente na imediação e oralidade e sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência (art.º 127.º do CPP) não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.

«Acreditar ou não num depoente ou acreditar num depoente e não acreditar noutro é uma questão de convicção. Essencial é que a explicação do tribunal porque é que acredita naquele e já não acredita no outro seja racional e tenha lógica. E quem está numa posição privilegiada para avaliar essa credibilidade é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova»[3].

Sem olvidar que a convicção do tribunal é formada não só através dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, não menos importante, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, ansiedade, serenidade, olhares, postura corporal, tom de voz, coerência de raciocínio e de atitude, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, de tais declarações e depoimento.

Por isso se diz que o juízo de credibilidade (das provas oralmente produzidas) depende logicamente do carácter, da postura e da integridade moral de quem as presta e não sendo tais qualidades apreensíveis mediante leitura, exame e análise das peças processuais onde as mesmas se encontram documentadas, nem o sendo do mesmo modo, pela audição de prova oral que se encontre gravada, mas sim através do contacto com as pessoas, é notório e evidente que o tribunal superior, salvo algumas exceções, adotará o juízo valorativo formulado pelo e no tribunal a quo; esta linha orientadora de pensamento encontra eco e está hoje traduzida de forma duradoura na jurisprudência dos tribunais superiores.

Acresce que o juiz não é um mero depositário de depoimentos. A atividade judicatória na valoração das declarações  dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de fatores que tem a ver, designadamente, com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, as coincidências, as contradições, a linguagem gestual.

O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».

Por essa razão se diz que, se a decisão factual do Tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção (declarações, depoimentos, acareações) – assente que obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Para que obtenha sucesso, não basta, ao recorrente que pretenda fazer uma «revisão» da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção «era possível».

Exige-se-lhe que «imponha» uma outra convicção (n.º 3 al. b) do art.º 412.º do CPP).

É imperativo que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma manifesta violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais.

Daí que o erro de julgamento da matéria de facto, tal como resulta do artigo 412º, nº 3, do CPP, reporta-se, normalmente, a situações como as seguintes:

- O Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;

- Ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;

- Prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;

- Prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;

- e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.

Daí que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efetuado pelo julgador da 1.ª instância naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja, quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art.º 374.º, n.º 2 do CPP[4].

Dito isto.

Impugna o recorrente os factos provados sob os pontos 4.º, 5.º e 6.º cujo o teor é respetivamente o seguinte:

Especifica o recorrente o depoimento da testemunha ….

Ainda no entender do recorrente, o facto provado sob o ponto 7.º com o teor

Por fim, impugna o recorrente o facto provado sob o ponto 8.º, com o teor … especificando as declarações por si prestadas em audiência de julgamento e os depoimentos das testemunhas …

Procedemos à audição integral da prova pessoal produzida, e constatamos que a fundamentação supra transcrita retrata, de forma fiel, o que se passou na audiência de julgamento e o que cada um dos intervenientes ali relatou, e que, por despiciendo nos abstemos de repetir.

Em convicção autonomamente formulada nesta instância de recurso, lendo a motivação da decisão fáctica constante da sentença em crise, no seu confronto com os argumentos explanados na motivação do recurso, verificamos, sem margem para hesitações, que os elementos probatórios produzidos impunham uma decisão inteiramente conforme com a que foi proferida em primeira instância.

No caso sub judice, este tribunal de recurso, como, aliás, qualquer cidadão de média formação e de são entendimento, subscreve, com total segurança, os factos dados como provados na decisão recorrida.

Não colhem, assim, as críticas que são feitas pelo arguido recorrente quanto a tal análise e ponderação da prova.

Realça-se que para que este Tribunal de Recurso pudesse proceder à pretendida alteração da decisão fáctica tomada na sentença revidenda, era necessário que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não apenas aconselhasse, ou permitisse, ou consentisse, uma tal alteração, mas, isso sim, impusesse essa alteração da decisão a que o tribunal recorrido chegou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto (cfr. o disposto no artigo 412º nº 3, al. b) do CPP).

Ora, não só nenhum dos elementos de prova invocados pelo recorrente impõe decisão diversa da recorrida, como, ao invés, a prova produzida avaliada de modo global e complexivo, não poderia deixar de conduzir a outra decisão que não fosse considerar como provada (e não provada) a factualidade vertida na sentença em crise nos exatos termos em que ali se fez constar.

A motivação da sentença recorrida contém o raciocínio dedutivo que justifica a opção relativamente aos factos provados e não encontramos erro de racionalidade ou a violação das regras normais de experiência comum, nem fundamento que nos faça divergir da decisão recorrida e nos imponha uma decisão diferente.

Tão-pouco se se descortina que a sentença enferme de insuficiência da matéria de facto provado, de erro notório na apreciação da prova, ou de contradição insanável na fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, nos termos do art.º 410.º n.º 2 do CPP, vícios estes, que embora não invocados são de conhecimento oficioso.

Constata-se que a factualidade provada permite uma decisão conscienciosa no que respeita ao enquadramento típico e às consequências jurídico-penais a extrair, não contendo a decisão da matéria de facto contrários às regras da experiência comum, nem erro que seja patente para qualquer cidadão; inexistindo por outro lado, qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo que a decisão de facto é bastante para a decisão de direito. É consonante, logicamente interligada e inteligível para qualquer cidadão comum a factualidade apurada e a respetiva motivação da convicção do tribunal.

No fundo, o que o recorrente questiona é a livre convicção do Tribunal recorrido, pretendendo ver a convicção formada pelo Tribunal substituída pela convicção que eles próprios entendem que deveria ter sido a retirada da prova produzida.

No entanto, é o Tribunal a entidade competente para apreciar a prova segundo as regras da experiência e a livre convicção (art.º 127.º do CPP).

Ao tribunal de recurso cabe aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.

Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.

Tudo considerado, não merece censura a decisão da matéria de facto, que se mostra consolidada nos termos definidos em primeira instância.

2- Do enquadramento jurídico-penal

No entender do recorrente, «não praticou qualquer ilícito criminal», …

Conclui o recorrente que:

- O seu comportamento foi conforme à atuação do homem médio, do bonus pater familias, e que sempre estaria a tempo de se retratar, de se arrepender, e de fazer o teste em questão;

- A recusa dos senhores militares (de confrontação e não de pacificação e ainda que fosse verdade tudo o que relataram) e sem terem a certeza que o arguido compreendia completamente o sentido e o alcance da cominação, não foi especialmente ponderada, como é exigível a quem ocupa lugares de interesse público.

Em primeiro lugar, importa salientar que a alteração da factualidade provada pugnada pelo recorrente não obteve acolhimento neste Tribunal da Relação, encontrando-se a matéria de facto consolidada nos termos definidos em primeira instância.

O juízo subsuntivo do Tribunal a quo – que por evidente desnecessidade nos abstemos de novamente reproduzir- não nos merece qualquer censura, encontrando-se presentes todos os elementos objetivos e subjetivos do crime pelo qual o arguido foi condenado.

Alega o recorrente que «quis voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, conforme artigo 24º, nº1 do C. P».

Dispõe o n.º 1 do art.º 24.º 1 que:

«A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou, não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime».

A relevância da desistência na tentativa, como causa de não punibilidade do ato, encontra o seu fundamento no arrependimento ativo, numa reconsideração livre e espontânea que é feita antes de findar a execução dos atos criminosos ou antes da consumação do crime[5].

Ora, tal como ressaltado no Parecer do Digno Procurador Geral Adjunto «o bem jurídico protegido no crime de desobediência é autoridade funcional do Estado. A sua função é proteger o interesse do Estado e da comunidade em que as ordens e mandados legítimos, regularmente comunicados e emanados pelas autoridades ou funcionários competentes, sejam acatados». Trata-se de «um crime de realização instantânea, isto é, consuma-se no momento em que o agente não obedece a uma ordem legítima da autoridade». «Pelo que, no caso, quando o arguido finalmente aceitou realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, o crime já estava consumado, e não havia forma de impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime».

Verificando-se todos os elementos objetivos e subjetivos do crime em causa e inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, nem de não punibilidade do ato, não nos merece censura a condenação do arguido pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 348.º, n.º 1, alínea a), Código Penal, e pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do Código da Estrada.


III. DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.

Custas criminais pelo arguido recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC´s (513.º do CPP e tabela III anexa ao RCP);

Coimbra, 10.12.2025

(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária, sendo ainda revisto pela segunda e pela terceira signatárias – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09)

 


Alexandra Guiné

(Juíza Desembargadora relatora)

Paula Cristina R.N. Carvalho e Sá

(Juíza Desembargadora 1.º adjunta)

Maria da Conceição Barata Miranda

(Juíza Desembargadora 2.ª adjunta)


[1] Cf. Ac. do TRL datado de 27.04.2022, proc. 342/19.1PBLRS.L1-3 (rel. Des. Florbela Sebastião e Silva), disponível, como os demais a que nos referiremos no presente Acórdão em www.dgsi.pt.

[2] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 06.11.2017, proc. 3671/13.4 TDLSB.G1 (rel. ex.ma Des. Des. Ausenda Gonçalves)

[3]  Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 27.06.2006, processo 2849/05-1 (rel. ex.mo Des. Martinho Cardoso).

[4] - Cf. Ac. do Tribunal da Relação de Évora, datado de 03.10.2006, processo 1103/06-1 (rel. Des. Alberto Borges).

[5] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 20.11.2003, processo 03P3225, rel. Ex.mo Cons. Simas Santos.