I - Para a declaração de perda dos objectos do crime a lei não exige a consumação de um crime, nem a condenação por parte do tribunal, bastando à declaração a ocorrência de um facto ilícito típico ou a possibilidade da sua ocorrência.
II - A declaração de perda pode ocorrer mesmo quando se verifica uma causa impeditiva de responsabilidade criminal, como é o caso de factos ilícitos típicos perpetrados por inimputáveis, e quando se verificam causas de extinção da responsabilidade criminal, como, por exemplo, a morte do agente.
III - O arquivamento de um inquérito, esgotado o prazo da suspensão provisória do processo, o despacho de não pronúncia e, mesmo, uma sentença absolutória podem gerar uma declaração de perda de instrumentos apreendidos.
IV - Conquanto não partindo de uma condenação, os factos típicos que estejam na base do despacho de suspensão provisória do processo revelam o comportamento do arguido e a consequente necessidade, ou não, da declaração de perda de objectos.
V - De um ponto de vista objectivo as armas de fogo podem pôr em xeque a segurança das pessoas, e nas mãos do agente de um crime de violência doméstica podem fazer temer uma prática ilícita futura congénere à já perpetrada.
VI - Em tal situação a declaração de perda é o modo necessário e adequado a evitar que, pelo menos através daqueles específicos objectos, possa o recorrente praticar factos ilícitos típicos.
VII - A restrição ao direito de propriedade imposta pela declaração de perda e os danos daí advindos surgem como proporcionados à perigosidade dos objectos em causa e à gravidade dos factos ilícitos cometidos, isto é, aos concretos contornos do quadro de violência doméstica protagonizado sobre a ofendida e à inestimável valia dos bens de natureza pessoal que se teve em vista proteger preventivamente com aquela declaração de perda.
Acordam, em conferência, os Juízes da Relação de Coimbra:
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O Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, …
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Nesta Relação, o Ministério Público apôs apenas o seu visto.
Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º/n.º 2 do Código de Processo Penal (C.P.P.), nada mais sendo referido nos autos.
Colhidos os necessários vistos, foram os autos à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º/n.º 3-b) C.P.P..
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II. FUNDAMENTAÇÃO
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A este propósito, parece-nos que, no caso presente, o recorrente faz assentar os motivos da sua discordância relativamente à decisão recorrida em dois núcleos argumentativos essenciais:
- por um lado, o de que os objectos apreendidos e declarados perdidos a favor do Estado não estão destinados à prática de factos ilícitos típicos, nada indiciando que tenham sido utilizados para a prática de qualquer crime, no âmbito do processo em causa ou fora dele;
- depois, o da (des)necessidade, (des)adequação e (des)proporcionalidade da referida decisão, ao decretar a perda a favor do Estado das armas de fogo e dos cartuchos ao recorrente pertencentes.
O teor da decisão recorrida é o seguinte (conforme a transcrição ora exposta):
«Nos presentes autos encontram-se apreendidas armas de fogo e munições, melhor identificadas no auto de apreensão de fls. 144 e ss..
O Ministério Público promoveu que se declarassem tais objectos perdidos a favor do Estado.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do art. 109º/n.º 1 (…)» C.P. «(…) “são declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática”.
O instituto da perda dos instrumentos do crime visa acautelar interesses preventivos, …
…
Assim, existem dois requisitos para que os objectos sejam perdidos a favor do Estado: que os objectos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico e a perigosidade desses objectos.
No que tange ao requisito da destinação dos objectos para prática de um crime é necessário referir que não é exigível a consumação do facto ilícito e que também não depende da existência de culpa …
Daqui decorre que a perda de instrumentos e produtos não depende da verificação de um crime, bastando-se com a existência de um facto ilícito típico, …
No caso, o arguido encontra-se indiciado de ter proferido a expressão dirigida à ofendida “dás-me cabo da minha vida, mas eu dou-te um tiro nos cornos e dou cabo da tua”, o que remete para a utilização de armas de fogo e indicia a mesma na ameaça que velou à ofendida, com o propósito de, pelo menos, ofender a integridade física desta. Com esta conduta, o arguido propôs-se a praticar, contra a ofendida, factos que preenchem o tipo objectivo e subjectivo do crime de violência doméstica, usando para o efeito uma arma de fogo, o que coloca em perigo a segurança da ofendida e implica um sério risco de tal objecto ser utilizado para o cometimento de novos ilícitos.
Refira-se que tal entendimento não contende o facto de o arguido ser titular de licença de uso e porte de arma, pois sopesando os interesses em confronto – o direito de propriedade do arguido e o direito à segurança da ofendida –, a perda de armas afigura-se como medida proporcional, uma vez que, em concreto, se apresenta como a solução que melhor defende a tutela de direitos fundamentais a que o sistema penal se destina e que não pode ser desvirtuada pelo direito, que assiste ao proprietário, de não ser privado da propriedade e do uso inerente, sendo a gravidade dos factos consentânea com essa perda …
Por conseguinte, ponderando todo o supra exposto, em face da natureza dos objectos apreendidos e identificados no auto de apreensão de fls. 144 e ss., declaram-se os mesmos perdidos a favor do Estado.
Notifique.
D.N.».
Apreciemos, então, as questões que constituem o tema do presente recurso.
Mas, para o fazermos de um modo mais circunstanciado e capaz, impõe-se assinalar, ainda, os aspectos a seguir enumerados.
Desde logo, os objectos sobre os quais incidiu a declaração de perda traduzem-se em três armas de caça, de calibre 12., dotadas dos respectivos livretes, dez cartuchos carregados com projéctil único de calibre 12., e ainda outros 28 cartuchos carregados com múltiplos projécteis de calibre 12., todos apreendidos, em 22 de Janeiro de 2024, no âmbito do inquérito acima identificado (cfr. cópia do auto de apreensão em causa).
As referidas armas e os ditos cartuchos são propriedade do arguido e ora recorrente e estão documentadas, sendo ele titular de licença de uso e porte de arma.
Por despacho de 31 de Janeiro de 2024, foi proferido despacho que determinou a suspensão provisória do processo, nos termos do art. 281º C.P.P., pelo período de 12 meses, mediante a cominação de diversas injunções, …
Esteve em questão, no processo, a imputação ao ora recorrente da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º/n.os 1 e 2 C.P., mediante a prática, além do mais, dos seguintes factos:
…
19. Em data apurada do ano de 2020, no interior da residência em comum, após nova discussão e por a ofendida se sentir humilhada e desvalorizada, disse ao arguido que pretendia sair de casa, nesse instante o arguido dirigiu-se à ofendida e disse-lhe: “dás-me cabo da minha vida, mas eu dou-te um tiro nos cornos e dou cabo da tua”.
…
Decorrido o período de suspensão provisória do processo, tendo o Ministério Público entendido estarem reunidas as condições para tal (designadamente, o cumprimento das injunções que haviam sido impostas ao arguido e o não conhecimento do cometimento de qualquer crime ou da pendência de qualquer outro processo criminal sobre ele incidente, relativo ao período em questão), decretou o arquivamento dos autos, nos termos do n.º 3 do art. 282º C.P.P..
Primeira questão:
Da destinação ou não dos objectos apreendidos e declarados perdidos a favor do Estado à prática de factos ilícitos típicos.
…
Nos termos do n.º 1 do art. 109º C.P., «são declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática».
Desde sempre foi sendo entendido que, neste domínio específico da perda de instrumentos do crime, rectius, instrumentos do facto ilícito típico (os denominados instrumenta sceleris) – e fixemo-nos agora nesta temática, porquanto mais directamente convocada para o nosso caso –, a sua justificação mais côngrua tinha que ver com «(…) objectivos de diversa índole. Objectivos, por um lado, de retribuição, ligados à ideia irracional de apagar todos os resquícios ou concretizações do ilícito, do “não-direito”. Finalidades, por outro lado, de prevenção geral, visando demonstrar a efectividade do aforismo segundo o qual “o crime não compensa”. E finalidades, ainda (…), de prevenção especial. No sentido de obviar ao perigo de repetição criminosa resultante de os instrumentos serem em si mesmos aptos para tal, ou de permanecerem na mão de elementos com particular propensão para o crime ou que, pelo menos, já haviam demonstrado serem capazes de os utilizar para fins criminosos» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Lisboa, 1993, págs. 613 e 614).
…
Os referidos objectivos parecem ter que ver, sobretudo, com a (compreensível) ânsia, por parte do legislador, de prevenir a prática de (novos) factos ilícitos típicos que, digamo-lo assim, é razoável e crível antever como (bastante) provável, em função da perigosidade dos mesmos, caso continuassem os objectos em causa na disponibilidade do agente (realçando tal intuito preventivo, cfr., por exemplo, os Acs. Rel. Évora de 26/2/2013 e Rel. Coimbra de 20/11/2024 e 11/12/2024, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Com efeito, como escreveu o Prof. Jorge de Figueiredo Dias, «(…) nem todos os objectos que constituam instrumentos (…) do facto (…)» deverão «(…) ser declarados perdidos, mas apenas aqueles que, “pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos crimes”; numa fórmula mais simples (…), aqueles instrumentos (…) que, atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e co-natural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e deva por isso considerar-se, nesta acepção, objectos perigosos» (“Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime” citado, pág. 621, referido ao então vigente art. 107º/n.º 1 C.P., nesta parte, e quanto aos inerentes princípios orientadores em matéria de instrumenta sceleris, substancialmente homólogo ao actual art. 109º/n.º 1 C.P., ressalvada, todavia, a relevantíssima diferença assumida pelo legislador, a partir da Revisão de 1995, de substituir a referência ao “cometimento de um crime” pela “prática de um facto ilícito típico” e o que isso passou a significar em termos de maior abrangência de aplicação da lei).
A própria norma do n.º 1 do art. 109º C.P. nos fornece a definição de “instrumentos de facto ilícito típico”, a saber «(…) todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática».
Por seu turno, a nota da perigosidade resultará da natureza intrínseca do instrumento ou das circunstâncias do caso – no qual a própria referência ao agente e suas características de actuação será também relevante –, impondo, pois, da parte do intérprete uma atenta perscrutação de tais factores de iluminação em cada situação com que se veja confrontado, até porquanto começará precisamente por aí – a par, evidentemente, da conclusão de se tratar de um instrumento de facto ilícito típico, na acepção descrita pela lei – a sustentação de uma decisão sobre o destino a dar sobre esse mesmo objecto (a propósito, cfr. Ac. Rel. Coimbra de 5/5/2020, disponível em www.dgsi.pt).
No nosso caso, entende o recorrente que as armas e os cartuchos apreendidos e declarados perdidos a favor do Estado não estiveram nunca destinados à prática de factos ilícitos típicos, tratando-se de objectos essenciais à prática da caça e, nessa medida, objectos socialmente tolerados, pois que, além do mais, usados para fins recreativos, em momento algum sendo mencionado ou sugeridos nos autos ter o recorrente pegado e apontado alguma das referidas armas à ofendida; a tudo acrescendo, por fim, deter ele licença de uso e porte de arma, estando também as armas devidamente a coberto de contrato(s) de seguro.
Parecendo, pois, que, para o recorrente, o critério pensado pela lei quanto àquilo que deve ser um “instrumento de facto ilícito típico” estará ancorado em uma afectação rígida e ex ante definida pelo próprio agente quanto à finalidade – como que exclusiva – da utilização do objecto em causa.
…
Importa que se diga, antes do mais, que não exige a lei, para a declaração de perda, a consumação de um crime, bastando-se com o pressuposto de um facto ilícito típico que ocorreu ou poderia ocorrer (prescindindo-se, pois, dos requisitos relativos à culpa do agente), não sendo consequentemente necessário que se verifique uma condenação formal por parte de um tribunal (n.º 1 do art. 109º C.P.); podendo até dar-se a declaração de perda mesmo em casos nos quais se verifica uma causa impeditiva de actuação da responsabilidade criminal (pensemos nos factos ilícitos típicos perpetrados por inimputáveis – arts. 19º e 20º C.P.) ou em que se verificam causas de extinção da responsabilidade criminal (como, por exemplo, a morte do agente – cfr. n.º 2 do art. 109º e art. 127º, ambos C.P.).
Por seu turno, para os específicos fins que ora nos ocupam, a forma de aferição da existência de um facto ilícito típico pode verdadeiramente revelar-se por uma via algo diversa da que inere a uma decisão judicial, ou seja, da que supõe, de algum modo, a actividade judicativo-decisória própria de um tribunal.
Os aspectos a que acabamos de fazer menção mostram-se particularmente relevantes na situação sub judicio, pois que, como sabemos, o conjunto de factos assacáveis ao arguido, objectivamente integradores da prática de um crime de violência doméstica, foram tomados em conta e assim mesmo considerados, não por efeito de uma condenação judicial mas sim de uma decisão de suspensão provisória do processo, nos termos e ao abrigo do art. 281º C.P.P..
… as injunções e regras de conduta impostas pelo regime da suspensão provisória do processo «(…) representam a inflicção de um mal que só tem lugar por causa da conduta do arguido e das consequências que ela desencadeou. O que equivale a afirmar que as injunções e regras de conduta figuram como “equivalentes funcionais” de uma sanção penal: só assim se explica que se espere delas a realização do mesmo interesse público, por via de regra e em alternativa, satisfeito através da aplicação de uma pena», embora, haja que o notar, precisamente porquanto não existe na suspensão provisória um julgamento típico do procedimento normal da justiça penal, «(…) as injunções e regras de conduta ocorrem pondo-se em parêntesis a questão da comprovação da culpa» [Prof. Manuel da Costa Andrade, “Consenso e oportunidade (reflexões a propósito da suspensão provisória do processo e do processo sumaríssimo)” citado, págs. 353 e 354].
Portanto, o enfoque do nosso problema, conquanto não partindo de uma condenação penal tout court, atenderá, ainda assim, à factualidade típica que esteve na base do despacho de suspensão provisória do processo e às características que tal factualidade desvela em termos de comportamento do arguido, agora por referência à questão da possibilidade de perda ou não dos instrumentos objecto do despacho recorrido.
É que, como se decidiu no Ac. Rel. Coimbra de 4/11/2015, o arquivamento de um inquérito, esgotado o prazo da suspensão provisória do processo, pode gerar uma declaração de perda de instrumentos apreendidos, desde que reunidos os inerentes pressupostos, tal como pode também o mesmo suceder em caso de despacho de não pronúncia e, mesmo, de sentença absolutória (aresto disponível em www.dgsi.pt).
Aliás, no sentido acabado de mencionar concorre a redacção do n.º 1-e) do art. 268º C.P.P., ao referir, ipsis verbis, que compete ao juiz de instrução «declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, com expressa menção das disposições legais aplicadas, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos arts. 277º, 280º e 282º».
Tendo, então, presente o conjunto de factos acima descrito, vejamos.
Convém estar consciente de que o crime de violência doméstica poderá revestir um sem-número de variantes, desde as mais brutais agressões físicas e sexuais (espancamentos, pontapés, estrangulamentos, queimaduras, agressões com objectos, esfaqueamentos, actos sexuais considerados degradantes e não consentidos pela vítima) até às mais subtis ameaças e atitudes de agressão psicológica em geral (insultos, verberações destinadas ao amesquinhamento e ao desprezo da vítima), passando por violações e limitações da liberdade de movimentos ou do acesso da vítima a recursos de vária ordem (financeira, por exemplo).
…
Já há pouco notámos ser convicção do recorrente a de que, na hipótese decidenda, inexiste possibilidade alguma de se terem os objectos em causa – armas de fogo e cartuchos – por destinados, segundo o critério da lei, à prática de facto ilícito típico, pois que, para além de os deter o arguido para a prática da caça, não aconteceu, por exemplo, haver ele proferido a expressão “mato-te” enquanto apontava uma arma à ofendida.
Bom, para além das diversas agressões físicas (bofetadas, puxões de cabelos, empurrões), injúrias (como a de, por exemplo, lhe dizer que como mulher “não valia uma merda”) e ameaças de morte a ela dirigidas, recorde-se que no ano de 2020, no interior da residência em comum, após nova discussão e se sentir (mais do que compreensivelmente, dir-se-á…) humilhada e desvalorizada, declarou a ofendida ao arguido que pretendia sair de casa, instante em que este último se lhe dirigiu e afirmou “dás-me cabo da minha vida, mas eu dou-te um tiro nos cornos e dou cabo da tua”.
Para o recorrente, como se percebe, “tudo” mudaria se, por exemplo, este último comportamento fosse acompanhado da exibição de uma arma de fogo à ofendida…
Ora, não sufragamos semelhante entendimento, por três razões essenciais.
Em primeiro lugar, porque aquilo a que se reporta o recorrente (exibição ou não de uma arma de fogo no contexto de ameaça há pouco descrito) não tem que ver, na opinião deste Tribunal de recurso, com uma diferença de natureza, mas tão-somente com uma simples diferença de grau (dentro da mesma natureza, compreenda-se…).
Expliquemos: a ameaça de morte – ainda para mais “especificada” mediante a promessa de “um tiro nos cornos” (sic.) – não poderia ser mais clara e óbvia do que foi, quer nos referentes intencionais de que partiu, quer nos efeitos que visou, em um clima relacional prolongado de subjugação, violência física e verbal como aquele de que os autos nos dão conta.
Sobretudo porquanto – segundo ponto – os envolvidos na referida relação, no qual surgiu a expressiva ameaça, eram marido e mulher, com tudo o que a sua vivência em comum permitiu (naturalmente) a cada um deles conhecer do temperamento, personalidade e hábitos do outro cônjuge. Como, por exemplo, a circunstância de saber a ofendida que o recorrente detinha armas de fogo, dado ser adepto do acto venatório…
Daí que a pergunta tenha de surgir: que diferença – em termos de natureza do comportamento – poderemos nós surpreender pelo facto de, no momento em que lhe prometia “um tiro nos cornos”, não haver o recorrente apontado uma arma à visada? Tê-la-á feito crer “menos” na genuinidade da “promessa”?
Conquanto se admita que o “susto” momentâneo possa ter sido menor (em menor grau, portanto…), o conteúdo da referida “promessa” foi, do mesmo modo, bastante claro, intimidatório e amesquinhador para a saúde psíquica e emocional da ofendida, pois que ciente estava ela de tudo o que ao longo de anos a foi envolvendo em termos do seu (violento) relacionamento conjugal…
Pelo que – e é a terceira razão – assumir a ideia de uma “utilização” puramente corpórea do instrumento (que, no limite dos limites de semelhante raciocínio, só poderia verdadeiramente ocorrer, na hipótese das armas de fogo, se houvesse um disparo, pois que é essa a função de tal tipo de armas…), enquanto única via de inclusão no âmbito de abrangência de uma norma com as características do art. 109º C.P., constituiria, na óptica deste Tribunal, negar uma interpretação teleologicamente orientada do conteúdo dessa mesma norma e, a montante, do próprio âmbito intencional do preceito incriminatório operativo in casu (art. 152º C.P.) e da realidade humana que pretende tutelar.
Daí que, considerando o tipo legal em questão (violência doméstica), entende-se existir uma evidente ligação da(s) arma(s) em causa ao facto ilícito típico assacável ao arguido.
Depois, é para nós incontroversa a perigosidade inata aos objectos em questão.
Seja de um ponto de vista objectivo (as armas de fogo, quer para a prática do acto venatório legalmente permitido, quer para lograrem um alvejamento ilícito, servem, como já sugerimos – e perdoe-se-nos a expressão chã –, para disparar…, ou seja, para levar à violenta e rápida impulsão e ao impacto e à subsequente explosão dos projécteis expelidos, com todas as deletérias consequências que a realidade da vida nos confirma), seja de acordo com uma visão atenta às circunstâncias do caso sub judicio (no qual a visada, além de sofrer diversas agressões físicas e verbais, ameaças de morte de variado jaez, ficou também ciente de que levaria “um tiro nos cornos”…), não há como negar a possibilidade de colocarem os aludidos objectos em xeque a segurança das pessoas (e, maxime, a segurança da ofendida), mostrando-se também vocacionados, nas mãos do recorrente, e no sentido já atrás exposto, para uma prática ilícita (criminosa, lato sensu) futura congénere (pelo menos) à já perpetrada (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime” citado, págs. 621 a 623).
Como se sumariou no Ac. Rel. Coimbra de 18/3/2015, com o qual concordamos inteiramente, «a titularidade de licença de uso e porte de arma não tem a virtualidade de, pela simples razão de existir, afastar a declaração de perdimento a favor do Estado do objecto atinente. (…) Para o efeito referido, relevante é a perigosidade, reportada ao objecto em causa e às concretas circunstâncias do caso. (…) Revelando-se a prática de um crime de violência doméstica, por referência, inter alia, aos seguintes factos: (…) o arguido consome bebidas alcoólicas e, quando o faz, fica mais agressivo e violento; (…) pese embora tal situação tenha piorado nos últimos anos, desde o início do casamento que o arguido começou a ter um comportamento agressivo para com a ofendida, molestando-a fisicamente, discutindo frequentemente com a mesma, controlando o que ela fazia, ameaçando-a e injuriando-a; (…) nesta sequência, e por um número indeterminado de vezes, em circunstâncias de tempo e lugar não concretamente apuradas, o arguido molestou fisicamente a ofendida, desferindo-lhe murros e pontapés, puxando-lhe os cabelos e constrangendo-lhe a zona do pescoço com as mãos, ameaçou-a de morte, dizendo-lhe que tinha duas armas e que lhe dava um tiro (...), existe sério risco de o arguido utilizar as armas apreendidas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos de idêntica natureza e, consequentemente, é adequada a declaração de perda desses objectos» (aresto disponível em www.dgsi.pt).
Destarte, improcede, pois, a primeira questão suscitada pelo recorrente.
Segunda questão:
Da eventual desnecessidade, desadequação e desproporcionalidade da decisão de perda a favor do Estado das armas de fogo e dos cartuchos ao recorrente pertencentes.
Segundo cremos, o ponto agora em discussão poderá resumir-se a esta pergunta: interpretou ou não o Tribunal a quo correctamente os princípios e objectivos ínsitos ao art. 109º C.P., à luz da metódica constitucional da proporcionalidade?
Nas palavras dos Profs. Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, «o princípio da proporcionalidade (também chamado “princípio da proibição do excesso”)», com primacial assento no art. 18º/n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), «desdobra-se em três subprincípios: a) princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); b) princípio da exigibilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa “justa medida”, impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos. Em qualquer caso, há um limite absoluto para a restrição de “direitos, liberdades e garantias”, que consiste no respeito do “conteúdo essencial” dos respectivos preceitos (…)» (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, 4ª edição revista, Coimbra, 2007, págs. 392 e 393).
Antes do mais, parece-nos útil não perder de vista o que acima já dissemos quanto ao principal sentido orientador de uma declaração de perda de instrumenta sceleris, a saber, o de prevenir a prática de crimes mediante a utilização (em sentido lato) dos instrumentos em causa.
Portanto, e assumindo nós tratar-se a mencionada declaração de perda de instrumentos de um acto de natureza penal, temos também como incontornável que o juízo de necessidade da emissão de uma tal declaração deverá ser sempre orientado pela ideia de ultima ratio que se afigura como apanágio da intervenção penal em qualquer Estado de Direito de cariz não iliberal.
Por isso, e descendo de novo ao caso concreto, perguntemos: em todo o contexto em que o recorrente actuou, a forma como actuou e por que actuou, não se mostrará necessário confiscar-lhe as armas e os cartuchos apreendidos, em face dos fins preventivos já assinalados?
Parece-nos que a resposta se antolha relativamente óbvia: a dita declaração de perda é o modo necessário (e no quantum necessário) – e, neste específico sentido, adequado – a evitar que, pelo menos através daqueles específicos objectos, possa o recorrente praticar (novos) factos ilícitos típicos postergadores de bens jurídicos penalmente protegidos de inegável valia, como o são a saúde e a integridade pessoal da ofendida.
O que nos remete para a questão da proporcionalidade (em sentido estrito) da decisão recorrida.
De acordo com a tese do recurso, se perspectivarmos os interesses em confronto, chegaremos à conclusão de que inexiste diminuição ou violação do direito de defesa da ofendida que justifique a interferência e limitação no direito de propriedade do recorrente sobre os objectos em causa (e na capacidade de realização pessoal que a utilização de tais objectos no exercício da caça lhe proporcionam), atento até o prejuízo de cariz pecuniário, inerente ao valor global das armas, computado em cerca de € 3.000, por essa via a ele causado.
Será assim?
Crê-se que a primeira parte da equação ficou já resolvida a partir do momento em que percebemos ser actuante a necessidade de prevenção da prática de futuros ilícitos típicos por parte do recorrente, desde logo, e como ainda agora dissemos, em relação à ofendida, visada que foi, ao longo dos anos, por uma acrimónia particularmente grave e expressiva, em cujo âmbito a violência das ameaças de morte – designadamente por meio de “um tiro nos cornos” – constituiu tudo menos um pormenor. Chamando-se, aliás, a atenção para a circunstância – também ela bastante relevante – de uma das regras e injunções impostas ao recorrente durante o período de vigência da suspensão provisória do processo haver sido – e muito bem, a nosso ver – precisamente a de não deter ou adquirir ele qualquer arma…
A segunda parte da equação colocada pelo recorrente toca, todavia, o problema de saber se a gravidade dos factos ilícitos típicos justificará, ainda assim, a concreta consequência determinada pelo despacho, atentos até os prejuízos de cariz pecuniário por aquele alegados.
No sentido da necessidade da ponderação acabada de referir, afirma, em tese, o Prof. António Vaz de Castro que «não bastará (…) que exista uma situação de perigo provocada pelo objecto nas mãos do agente, devendo haver um justo equilíbrio entre a restrição ao direito de propriedade (cfr. art. 62º C.R.P.) e a aplicação da perda de instrumentos. Mesmo que os pressupostos de aplicação (…) se vejam preenchidos, se a perda não for proporcional à gravidade do facto ilícito e à perigosidade criminal do objecto não se deverá aplicar esta consequência, assim se reforçando a ideia de que a gravidade do facto é um limite à aplicação desta consequência, tal como acontece em relação às medidas de segurança criminais» [“A Identificação da Natureza Penal de uma Consequência Jurídica no Direito Português” citado, pág. 397; já a propósito das exigências de proporcionalidade no domínio da perda de vantagens clássica, que não vê aparentada a uma medida de segurança, mas mais como um tertium genus dentro das reacções penais, Prof. Pedro Caeiro, “Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia (em especial, os procedimentos de confisco in rem e a criminalização do enriquecimento ‘ilícito’)”, “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 21 (2011), N.º 2, págs. 306 a 308].
…
Ora, retornando ao caso presente, não temos quaisquer dúvidas em afirmar que a restrição ao direito de propriedade do recorrente imposta pela declaração de perda e os danos (de cariz anímico e pecuniário) a ele daí advindos surgem em termos proporcionados à (evidente) perigosidade dos objectos em causa e à (não menos patente) gravidade dos factos ilícitos cometidos (o mesmo é dizer, aos concretos contornos do quadro de violência doméstica protagonizado pelo recorrente) sobre a ofendida e à inestimável valia dos bens de natureza pessoal que (sobretudo polarizados nesta mesma ofendida – arts. 24º e 25º C.R.P.) se teve em vista proteger preventivamente com aquela declaração de perda.
Não se divisando, pois, qualquer problema de desnecessidade, desadequação e desproporcionalidade da decisão recorrida, soçobrará, também por esta via, a argumentação exposta no recurso.
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III. DECISÃO
Por todo o exposto:
- Acordam os Juízes desta Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo …, mantendo a decisão recorrida.
Notifique.
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(Revi, e está conforme)
D.S.
António Miguel Veiga (Juiz Desembargador Relator)
Paula Carvalho e Sá (Juíza Desembargadora Adjunta)
Paulo Registo (Juiz Desembargador Adjunto)