RECUSA DE DEPOR
UNIÃO DE FACTO
ENTEADA
RELAÇÃO DE AFINIDADE
COMPARTICIPAÇÃO CRIMINOSA
COMPARTICIPAÇÃO ENTRE ARGUIDO NÃO PARENTE NEM AFIM E ARGUIDO PARENTE OU AFIM
NULIDADE DA DECISÃO
ANULAÇÃO DO JULGAMENTO
Sumário

I - O artigo 134.º do C.P.P. consagra o privilégio familiar como derrogação ao dever de testemunhar, quer se entenda que a recusa de depor reside na protecção do arguido enquanto manifestação do princípio nemo tenetur, quer na protecção da busca da verdade, quer na protecção da testemunha perante um conflito de consciência ou de interesses, quer na protecção de relações familiares.
II - A advertência sobre a possibilidade de recusa de depor deve ser realizada qualquer que seja a fase em que o processo se encontre e a sua falta é cominada com nulidade.
III - A união de facto não constitui um vínculo de afinidade definido por lei, abrangida pelo n.º 1 do artigo 134.º do C.P.P.
IV - Não existindo a relação de conjugalidade exigida por lei entre o arguido e a mãe da menor, esta não é «afim até ao segundo grau» do arguido, pelo que não há que efectuar a advertência da possibilidade de recusa de depor com tal fundamento.
V - Em caso de pluralidade de coarguidos é admissível a recusa de depor quando a responsabilidade do arguido, não parente ou afim, for extensiva a arguido parente ou afim, como ocorre no caso de comparticipação, ou quando intercede uma relação de conexão de comissão por vários agentes de diversos crimes em que uns são causa ou efeito de outros.
VI - Tendo o arguido e a mãe da menor sido acusados em coautoria, a valoração do depoimento da menor, obtido com a omissão da advertência prevista no artigo 134.º, n.º 2, do C.P.P. relativamente ao arguido e aos factos praticados em coautoria, configura proibição de valoração da prova, que impede a sua utilização.
VII - A prática de tal nulidade determina a anulação do julgamento.
VIII - A superação desta nulidade basta-se com a repetição da audição da testemunha, esclarecida previamente de que o seu depoimento anterior não serviu como prova e de que não é obrigada a prestar depoimento relativamente aos factos praticados pelo coarguido em coautoria com a sua mãe, e apenas quanto a estes
IX - Se necessário o tribunal deverá dar cumprimento ao disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do C.P.P., caso venha a entender, relativamente a determinados factos, que o arguido deixa de ser coautor para passar a ser autor.

Texto Integral

            Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra

I.

No processo comum com intervenção do tribunal coletivo que, com o nº 1894/24.0T9CBR, corre termos pelo juízo central criminal de Coimbra foi proferida a seguinte decisão (transcrição):

            - Condena-se o arguido …, como autor material de dois crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, p. e p. nos arts. 171º/n.º 3-c) e 177º/n.º 1-b) C.P., na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão para cada um deles;

- … como autor material de cinquenta crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma consumada, p. e p. nos arts. 171º/n.º 2 e 177º/n.º 1-b) C.P., na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão para cada um deles;

- … como autor material de setenta e três crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma consumada, p. e p. no art. 172º/n.º 1-b) C.P., na pena de 3 (três) anos de prisão para cada um deles;

- Operando-se o cúmulo jurídico pertinente, de acordo com os critérios dos arts. 30º/n.º 1 e 77º/n.os 1 e 2 C.P. (tomando-se em conta, em conjunto, os factos e a personalidade revelada pelo mesmo), condena-se o arguido … na pena única de 10 (dez) anos de prisão;

- Condena-se o mesmo arguido … na pena acessória de proibição do exercício de profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 10 (dez) anos;

- … na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores (seja de que tipo for), pelo período de 10 (dez) anos;

- … na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 10 (dez) anos;

- Absolve-se o arguido … do demais por que vinha acusado nos presentes autos;

- Absolve-se a arguida … dos crimes por que vinha acusada nos presentes autos;

- Condena-se o arguido … nas custas (presente parte-crime) do processo, com 4 U.C. de taxa de justiça.


*

            Inconformado com a sua condenação recorreu o arguido para este tribunal da Relação concluindo o seu recurso do seguinte modo (transcrição):

B2. Em sede de depoimento para memória futura, a menor não foi advertida, nos termos do artigo 134.º, n.º 1, al. a) e 2 do Código de Processo Penal, de que se podia recusar a depor na qualidade de enteada do arguido, aqui recorrente, fazendo-a crer que tinha a obrigatoriedade de prestar declarações no que ao arguido atine.

B3. Com efeito: à data dos factos, a mãe da menor vivia com o arguido, aqui recorrente, em condições análogas às dos cônjuges e, portanto, em situação de união de facto – o que resulta provado nos autos.

B4. A omissão da advertência do direito a recusar-se a depor, na qualidade de enteada, consubstancia uma proibição de valoração da prova resultante da perturbação da liberdade da vontade da menor pela utilização de meios enganosos. No mais, e sem prescindir, resultante de intromissão na vida privada sem o consentimento da menor – artigo 126.º, n.º 1, 2, al. a) e 3 do Código de Processo Penal.

B5. É nula, não podendo ser utilizada, a prova decorrente do depoimento para memória futura prestado pela menor …, por constituir prova proibida.

B6. E, em consequência da nulidade do depoimento da menor, deve o acórdão condenatório ser declarado nulo, devendo o arguido, aqui recorrente, ser absolvido de todos os crimes que lhe são imputados dada a falta de prova produzida.

B7. Por outro lado, e no que concerne à fixação da quantia compensatória, não foi feita prova da existência de graves danos à menor quer à data dos factos quer mesmo futuramente (cfr. ponto 56 dos factos provados).

B10. Por fim, o Tribunal a quo violou, ainda, os artigos 1º e 18º, n.º 2, ambos da CRP e 70º e ss. do Código Penal, ao fixar a pena de prisão nos 10 (dez) anos.


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Também inconformado com a absolvição da arguida recorreu o Ministério Público tendo concluindo o recurso nos seguintes termos (transcrição):

3- A decisão tomada em matéria de facto enferma de erro de julgamento, já que a prova produzida permitia e impunha que fosse dada por provada outra factualidade descrita na acusação deduzida, contra ambos arguidos, no que respeita à arguida …

Ao recurso do arguido respondeu o Ministério Público defendendo a sua improcedência.


*

Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº do CPP.

*

Após os vistos, foram os autos à conferência.

*

II.

Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que são as conclusões dos recursos que delimitam a apreciação a fazer por este tribunal - sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - e que analisada cada uma das sínteses conclusivas temos a aferir:

- No recurso do arguido:

- nulidade da prova decorrente do depoimento para memória futura da menor por incumprimento da advertência prevista no artigo 134º, nº 1 a) do CPP, com consequente nulidade do acórdão e absolvição do arguido.

- excessiva fixação de indemnização;

- excessiva pena imposta e redução para pena não superior a 5 anos e suspensa na sua execução com regime de prova.

                                                           *

No recurso do Ministério Público:

- erro na apreciação da prova;

- nulidade do acórdão (artigo 379º, nº 1 alínea a) do CPP);

- aplicação à arguida de pena semelhante à do coarguido.

É o seguinte o teor do acórdão proferido (transcrição):

(…)

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


*

Após a audiência de julgamento, entende o Tribunal provados os seguintes factos (que se pretendem expurgados, na respectiva enunciação, de matéria conclusiva ou manifestamente espúria e irrelevante), com atinência para a decisão a proferir:

1 – … nasceu em ../../2008, é filha de … e da arguida …

2 – a arguida … viveu em condições análogas às dos cônjuges com o arguido … desde Junho de 2015 até Abril de 2023;

4 – com eles coabitavam dois filhos do arguido…, e a referida menor …

5 – por decisão proferida no processo n.º 1102/08...., …, a … AA passou a residir em regime de acolhimento institucional, …, sendo autorizada a ir a casa da sua mãe e ora arguida … aos fins-de-semana e nos períodos de férias;

6 – desde 2015 até 16 Abril de 2023, a … foi, por diversas ocasiões, à noite, obrigada a assistir enquanto o arguido …mantinha relações sexuais com a arguida …, nomeadamente com introdução do pénis na vagina desta;

7 – anos mais tarde, antes do inicio da sua menarca, a menor passou também a praticar actos sexuais com o arguido …, o qual penetrava com o seu pénis ou dedos a vagina da …, bem como introduzia o seu pénis na boca desta e lambia-lhe a vagina e, simultaneamente, o arguido mantinha actos sexuais com a arguida;

8 – para o efeito, o arguido ou a arguida chamava a menor para o quarto do casal;

9 – já no interior do quarto, a arguida fechava a porta à chave;

10 – por seu turno, o arguido dizia à … que tinha de ver e fazer o que ele dissesse, pois era uma forma de a mãe agradecer tudo o que ele tinha feito por elas e pelo dinheiro que lhes dava, mais lhe dizendo que se o não fizesse ele abandonaria a mãe;

11 – após, a menor deitava-se na cama, onde os arguidos já se encontravam nus, e despia o pijama, sob ordens daqueles;

12 – a seguir, o arguido mantinha relações sexuais de cópula com a arguida ao mesmo tempo que apalpava os seios da menor, introduzia os seus dedos na vagina desta, dava-lhe beijos com a língua na boca e nas mamas;

13 – muitas vezes, o arguido interrompia o acto sexual com a arguida e, sem se limpar, introduzia o seu pénis na boca da menor e após introduzia-o novamente na vagina da arguida e aí ejaculava.

14 – neste momento, ambos diziam à menor … para olhar para eles;

15 – outras vezes, o arguido introduzia o seu pénis na vagina da menor e aí ejaculava enquanto apalpava as mamas à arguida;

16 – a partir do momento da institucionalização …, quando a … vinha a casa, nomeadamente ao fim-de-semana ou nos períodos de férias, os arguidos … mantiveram diariamente as mesmas práticas sexuais com aquela menor e acima descritas;

17 – tal sucedeu nos seguintes períodos:

18 – o arguido …, fazendo-se acompanhar pela menor …, comprava preservativos e dava-lhos, para ela os guardar na mala da escola;

19 – pelo menos em 2023, durante o dia, na ausência da arguida, o arguido … praticou com a menor …, no quarto do casal, actos de natureza sexual, inicialmente ordenando-lhe que lhe fizesse sexo oral, o que aquela fazia, após ejaculando na sua vagina, ao mesmo tempo que lhe dizia que não gostava da mãe mas de si;

20 – por vezes, no final de tais práticas, o arguido dava dinheiro à menor;

21 – aconteceu igualmente, nos mesmos dias, à noite, o arguido voltar a praticar os referidos actos sexuais com a …, já na presença da arguida;

22 – entre 2016 e 2020, a … apresentava um desenvolvimento cognitivo abaixo da média para o seu nível etário, facto do conhecimento do arguido;

23 – ao agir da forma que vem sendo descrita, actuou sempre o arguido … relativamente à …, livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de satisfazer os seus propósitos libidinosos;


*

           

Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da presente causa.


*

O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica, ponderada e maturada do conjunto dos elementos probatórios produzidos, …

*

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

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*


Apreciação do recurso.

Recurso interposto pelo arguido BB.

A primeira questão invocada pelo recorrente e que, no seu entender, gera a nulidade do acórdão tem a ver com o facto de a menor … não ter sido advertida, aquando do seu depoimento para memória futura, nos termos do artigo 134º, nº 1, a) e 2 do CPP, “na qualidade de enteada do arguido”, à semelhança do que aconteceu relativamente à sua mãe.

Entende o recorrente que pelo facto de o arguido, à data dos factos, viver com a mãe da menor em condições análogas às dos cônjuges, portanto, em união de facto, determinaria que a menor devesse ter sido advertida da possibilidade de não prestar depoimento também relativamente a ele.

Invoca a favor do seu entendimento o Ac. RE de 05.06.2016 proferido no processo 476/16.4GFSTB.E1 …

Vejamos então se lhe assiste razão.

Dispõe o artigo 134º do CPP com a epígrafe “recusa de depoimento”.

1.Podem recusar-se a depor como testemunhas:

a) Os descendentes (…);

            b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
             c) (…)

2 - A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento.

 

            Como se disse no processo 39/22.5GDCTB.C1 in www.dgsi.pt, trata-se de uma norma que consagra o privilégio familiar como derrogação ao dever de testemunhar. Quer se entenda que a fundamentação da recusa a depor se encontra na proteção do arguido enquanto manifestação do princípio nemo tenetur, quer na proteção da busca da verdade, quer na proteção da testemunha perante um conflito de consciência ou de interesses, quer na proteção de relações familiares (cfr. Cruz Bucho in A recusa do depoimento de familiares do arguido: o privilégio familiar em processo penal (notas de estudo acessível in www.trg.pt)), o certo é que ela projeta o entendimento expresso por Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, Coimbra 1988 – 9, pag. 22 segundo o qual “não obstante a descoberta da verdade material ser uma finalidade do processo penal não pode ela ser admitida a todo o custo, antes havendo que exigir da decisão que ela tenha sido lograda de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se veem envolvidas.”

            A advertência deve ser realizada qualquer que seja a fase em que o processo se encontre e a sua falta é, nos termos da lei, cominada com nulidade. A natureza desta nulidade não é pacífica, nem na doutrina, nem na jurisprudência.

            Seguindo as referências doutrinais e jurisprudenciais referidas por Cruz Bucho (ob. cit., pag. 153, 154), na doutrina é entendida, por uns, como uma verdadeira proibição de prova (cfr., neste sentido, Costa Andrade in Sobre as proibições de prova em processo penal, página 203: “A lei portuguesa prescreve a sanção da nulidade para a omissão do esclarecimento fazendo, por isso, impender sobre o depoimento a correspondente proibição de valoração”,  e em “Bruscamente no verão passado, a reforma do Código de Processo Penal, Coimbra Editora, 2009, 134; também Medina de Seiça: “a omissão de tal esclarecimento configura, como ensina Costa Andrade uma verdadeira proibição de produção de prova a convocar, atenta a sanção prevista, a correspondente “proibição de prova”” in Revista Portuguesa da Ciência Criminal, ano 6 , fascículo 3º, pág. 493, nota 38; ainda André Lamas Leite in Revista da Faculdade de Direito da UP, ano 1, 2004, pág. 17, nota 25; e Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição, 375) e, por outros, como uma nulidade dependente de arguição e sanável se não for arguida antes que o depoimento esteja terminado (Costa Pimenta in Cód. Processo Penal Anotado, 557, Maia Gonçalves in CPP 13ª edição, Coimbra 2002, 354; Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, II, 1ª edição 2011, 130 e 207; Leal Henriques – Simas Santos e Santos Cabral in António Henriques Gaspar e outros CPP Comentado, 533); na jurisprudência, “até meados de 2008 sempre se considerou, de modo uniforme que a omissão da advertência constituía uma nulidade sanável que, de acordo com o estatuído no art. 120º, nº 3 alínea a) do CPP devia ser arguida até à conclusão do depoimento”, até que “ao nível das Relações, o ponto de ruptura dá-se com o Ac.RE de 03/06/2008 proferido no processo 1991/07-1, depois seguido pelo Ac.RC de 25/05/2014 proferido no proc. 313/10.3TACNT – A.C1 e pelo Ac.RP de 22/10/2014 proferido no proc 315/13.0GCLMG.P1 que considerou que a nulidade concretizada no artigo 134º, nº 2 do CPP consubstancia uma proibição de prova”. O Supremo Tribunal de Justiça no Ac. de 11/02/2015 proferido no proc. 182/13.1PAVFX.C1 refere-se à omissão de advertência nos seguintes termos: “considerando que o que está em causa é a proteção de um direito à reserva da vida privada e familiar, facilmente acabamos por subsumir o caso no âmbito do art. 126, nº 3 do CPP e considerar que estamos perante um método proibido de prova a impor a nulidade”.

            As consequências de se estar perante uma proibição de produção ou de valoração de prova, ou uma nulidade sanável por falta de invocação da omissão até final do depoimento, são bem distintas, como se percebe, pelo que se impõe uma opção clara por uma das linhas de entendimento.

            Ensina a Professora Maria João Antunes in Direito Processual Penal, 2ª edição, Almedina, 175 que há que distinguir a proibição de prova das meras regras de produção da prova. Enquanto que a proibição de prova é a prescrição de um limite à descoberta da verdade – na forma de proibição de temas de prova (art 137º do CPP), de proibição de métodos de prova (art 126 do CPP), de proibição de meios de prova (art 134º nº 2 do CPP) e de proibição de leitura de protocolos (art 356º do CPP) - as regras de produção da prova “visam apenas disciplinar o procedimento exterior de realização da prova na diversidade dos seus meios e métodos”, dando como exemplo o artigo 341º do CPP. 

            Esta opinião vai de encontro ao que o Professor Figueiredo Dias expôs in Revisitação de algumas ideias-mestras da teoria das proibições de prova em processo penal (também à luz da jurisprudência constitucional portuguesa) - RLJ, ano 146, nº 4000, pag. 3 e ss. Ensina o insigne Professor, - depois de sublinhar a necessidade de distinguir entre proibições de prova autênticas e simples regras processuais probatórias -, que “ Diferentemente se passam as coisas com as consequências processuais de uma autêntica proibição de prova. Tais proibições constam de normas jurídicas cuja violação afeta a prova como tal, por mais que esta possa revelar-se adequada à investigação da verdade e corresponda, em pura realidade histórica, efetivamente a esta. Podendo o caráter proibido da própria prova advir – embora hoje proliferem outras e mais numerosas classificações – de três pontos de vista essenciais: 1) proibição de obter prova sobre determinado acontecimento ( proibição de tema de prova, p.ex. sobre objeto de segredo de Estado, art. 137 e 138, 2) proibição de utilização de um certo meio de prova ( proibição de meio de prova, p.ex. em caso de testemunho de um descendente, quando este o recuse: art. 134º) enquanto o esclarecimento da verdade é admissível através de outro meio de prova; 3) proibição de certo método de criação de um meio de prova ( proibição de método de prova, p.ex. interrogatório com uso de tortura, art. 126 nº 1) que implique uma violação tal de direitos fundamentais essenciais da pessoa que, por força dela, conduza a que a prova seja inadmissível para o processo. A consequência, em definitivo, da violação de uma qualquer das espécies indicadas de proibição de prova será a da recusa de valoração no processo da prova alcançada.

            Certo é que, como também afirma o mesmo Autor, na prática o intérprete e o aplicador não podem eximir-se a determinar se a violação deve afetar a validade da prova como tal: se sim, existirá uma proibição de prova; se não, o caso deverá reentrar na categoria das simples regras processuais probatórias e, para tanto, não pode o aplicador deixar de levar a cabo uma ponderação de valores conflituantes, para se decidir em princípio em favor da valoração que deva reputar-se preferível por dominante.

            Ora, tendo em conta os interesses subjacentes à razão de ser de uma norma como a do art. 134 do CPP, que são, globalmente, a proteção da testemunha perante conflito de interesses ou de consciência (ter de optar por dizer a verdade incriminando o familiar ou ter de mentir para o proteger), a proteção das relações familiares (da confiança e solidariedade familiar), a proteção da busca da verdade (pelo entendimento de que os familiares têm tendência a mentir em julgamento), a proteção do arguido enquanto manifestação do principio nemo tenetur (pelo benefício que possa advir para o arguido), não se configura razoável qualificar a omissão da advertência do nº 2 do art. 134º do CPP, como uma simples regra processual probatória, ou como uma nulidade dependente de arguição até final do depoimento. Na ponderação dos interesses conflituantes, quer a letra, quer o espírito da lei, impelem a que se considere que estamos perante uma proibição de valoração da prova. Aliás, como ensina Maria João Antunes, in ob. cit, 176, referindo o entendimento de Costa Andrade  à semelhança do que ocorre com o dever de informação e advertência sobre o direito ao silêncio que assiste ao arguido quanto aos factos que lhe são imputados (artigo 58º, nº 2 e 4( atual nº 5); 61º, nº 1, alíneas d) e h). 141º, nº 4, 143º, nº 2 e 343º, nº 1 do CPP): também aqui a omissão do esclarecimento e advertência deve desencadear a sanção da proibição de valoração, como decorre do nº 5 (atual nº 6) do artigo 58º do CPP ao prescrever que relativamente à omissão ou violação das formalidades quanto à constituição de arguido, as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova, apesar de à proibição da valoração da prova obtida sem cumprimento daquele dever de informação e advertência não se juntar a cominação da nulidade.

            …

O recorrente afirma que a menor era sua enteada, porque vivia maritalmente com a mãe dela.

Já vimos que o artigo 134º do CPP visa proteger, além do mais, as relações de parentesco e de afinidade. Que não há qualquer parentesco entre a menor e o arguido não há dúvida, porque o parentesco, nos termos do artigo 1578º do Código Civil é “o vínculo que une duas pessoas, em consequência de uma delas descender da outra ou de ambas procederem de um progenitor comum”. No caso não há este vínculo, pelo que pode dizer-se que entre arguido e menor não há qualquer laço de parentesco.

E poderá falar-se de afinidade? O artigo 1584º do Código Civil define a afinidade como “o vínculo que liga cada um dos cônjuges aos parentes do outro”. Ora, na situação em apreço não tendo o arguido e a mãe da vítima sido casados não poderá falar-se de cônjuges pelo que não foi constituído, formalmente, um vínculo entre o arguido e a menor, filha, portanto parente, da ex companheira.

Mas poderá objetar-se, na linha do expendido pelo recorrente, que a união de facto é atualmente equiparada ao casamento, pelo que deveria ser-lhe reconhecida a qualidade de enteada e, nessa medida, afim do arguido?

A resposta é negativa. É certo que a união de facto confere direitos semelhantes aos do casamento, mas tal ocorre, essencialmente, em questões de natureza patrimonial ou material (habitação, fiscalidade, trabalho, proteção social…), mas já não em questões de outra natureza, como por exemplo o direito ao uso de apelido do outro, ou de natureza afetiva.

É também certo que em linguagem comum um enteado é um filho de uma relação anterior do cônjuge ou companheiro(a), sendo que no caso, o arguido seria padrasto da menor e ela sua enteada, mas tal não basta para que em face do que dispõe o artigo 134º, nº 1 do CPP se considere que com a união de facto se constituiu um vinculo de afinidade definido por lei. Diferente seria se o arguido e a mãe da menor se tivessem casado, caso em que a lei reconhecia a relação de afinidade que o recorrente reclama.

Não existindo a relação de conjugalidade exigida por lei entre o arguido e a mãe da menor, não se pode afirmar ser esta “afim até ao segundo grau” do arguido e, portanto, não havia lugar à advertência a que alude o artigo 134º do CPP, pelo que, sob este ponto de vista, nenhuma nulidade foi cometida.

Mas há uma outra perspetiva da questão que deve ser ponderada.

Como resulta da acusação os arguidos foram acusados em coautoria. Tem entendido a doutrina e a jurisprudência que nas situações de comparticipação, a recusa a prestar depoimento pode abranger os coarguidos.

Efetivamente, desde sempre - já era assim expressamente no Código de Processo Penal de 1929, no art. 216 § 1º- vem sendo defendido o entendimento de que nas situações de pluralidade de coarguidos no mesmo processo é admissível a recusa quando a responsabilidade do arguido (não parente ou afim) for extensiva ao parente ou afim, como ocorre no caso de comparticipação, ou quando intercede uma relação de conexão de comissão por vários agentes de diversos crimes em que uns são causa ou efeito de outros, isto é, quando entre as infrações existe um nexo sequencial. Veja-se o decidido no Ac. STJ de 23.06.2022, proferido no processo 288/18.0T9VPV.L1.S1; nos Ac. RG de 10.09.2024, proferido no processo 674/20.6GAEPS.G1 e de 30.06.2014, proferido no processo 272/11.5IDBRG.G1); veja-se também o estudo já citado de autoria de Cruz Bucho, pág. 128 e ss, referindo o Ac. STJ de 17.01.1996, as posições de Medina de Seiça, Pinto de Albuquerque, Maia Gonçalves e Santos Cabral, concluindo que “ a extensão do privilégio relativamente a arguidos não familiares da testemunha está, assim, dependente da circunstância de os factos objeto do depoimento contenderem com a imputação do arguido familiar”, o que sucede no caso de comparticipação, para além de entender que as razões determinantes do privilégio são também de aplicar nos casos das alíneas d) e e) do nº 1 do art. 24. 

Como se disse os arguidos foram acusados da prática dos crimes em causa, em coautoria.

Resulta das declarações para memória futura (fls. 258 e v.) que a menor foi “advertida nos termos do art. 134º nº 1 a) do Cód. de Processo Penal, em relação à arguida …, na qualidade de filha, disse não querer prestar declarações, nada a impedindo de dizer a verdade.

O Mmº Juiz de Direito advertiu a ofendida de que faltando à verdade ou omitindo factos de que tivesse conhecimento, no que concerne ao arguido, …, poderia incorrer em responsabilidade penal. Facto de que ficou ciente.

Prestou juramento legal e prestou as suas declarações, relativamente ao arguido … (…)

Como é dito no acórdão do STJ de 23.06.2022 atrás já referido, aplicável à situação em apreço “medindo deficientemente, por erro de interpretação, o alcance da recusa prevista no art. 134.º, n.º 1, al. a), do CPP, no sentido de dela excluir o que respeitasse ao recorrente (…), o tribunal induziu em erro a ofendida sobre a sua obrigação de depor acerca das condutas daquele, colhendo-lhe o pertinente depoimento. Mais do que isso, e como claramente decorre da economia da fundamentação da convicção probatória, valorou tal depoimento – na sua articulação, naturalmente, com as demais provas produzidas – não só relativamente aos factos imputados ao arguido (…)mas também aos à arguida (…), tudo concorrendo no sentido de definição da culpabilidadedesta.
XI - Incorreu, assim, o tribunal no uso de método proibido de prova, nos termos do art. 126.º, n.
os 1 e 2, al. a), do CPP, perturbando a liberdade de vontade ou de decisão da testemunha de depor em audiência através de meios enganosos, o que implica a interdição da valoração do seu depoimento na formação do juízo probatório no que possa interessar à definição da responsabilidade da arguida (…).
XII - Mas tal interdição opera igualmente no que possa respeitar à definição da responsabilidade do próprio arguido (…), que a proibição de prova, de mais a mais absoluta, na classificação do art. 126.º do CP, tem «eficácia erga omnes, quer dizer o seu manto protetor projeta-se para além da pessoa diretamente afetada pela violação da proibição e por sobre todos quantos, indiretamente ainda, sejam tocados pela mancha de danosidade resultante», sendo proibida a valoração da prova resultante de depoimento obtido sob engano, quer na parte em que afecte, incriminando-o, o arguido familiar da testemunha, quer na parte em que afecte, incriminando-o, terceiro.
XIII - Atenta a natureza do vício em presença – uma verdadeira proibição prova, onde o que realmente releva é o desvalor do resultado, e não uma singela nulidade, quiçá relativa, sempre estará afastada uma qualquer ideia de sanação, que se trata de realidade de conhecimento oficioso, a todo o tempo e insanável, pelo que haverá que anular a decisão, ordenando-se a sua repetição pelo tribunal recorrido sem a consideração da prova inquinada.

No caso que nos ocupa, não obstante a arguida, mãe da ofendida, ter sido absolvida, nem por isso o entendimento expresso perde acuidade na situação sub iudice, tanto mais quanto se percebe que alguns factos respeitante à arguida vieram a ser julgados provados a partir do depoimento da filha, como se verá quando se analisar o recurso do Ministério Público.

Aqui chegados é, pois, possível afirmar que a valoração da prova obtida com a omissão da advertência prevista no artigo 134º, nº 2 do CPP à ofendida também relativamente ao arguido e aos factos praticados em coautoria e apenas a estes, configura uma proibição de valoração da prova, que impede a sua utilização, porque viciada e determina, consequentemente, a anulação do julgamento, uma vez que nela se fundou a convicção do tribunal e toda a restante prova foi produzida depois de ter sido invalidamente obtida.

Ocorre, contudo, que nada impede que a superação da referida ilegalidade possa passar pela via da repetição, sem vícios, da produção da prova ( Cfr. Costa Andrade in Sobre as proibições de, Coimbra Editora, 1992, pag.110 nota 73), isto é, deverá a testemunha voltar a ser ouvida, esclarecendo-a previamente de que o seu depoimento anterior não serviu como prova e de que não é obrigada a prestar depoimento relativamente aos factos praticados pelo coarguido em coautoria com a mãe da ofendida, mas apenas a estes. Se necessário o tribunal deverá dar cumprimento ao disposto no art. 358 nº 1 e 3 do CPP, caso venha a ser entendido, relativamente a determinados factos, que o arguido deixa de ser coautor, para passar a ser autor.

Esta solução é a que mais se coaduna com a salvaguarda dos valores conflituantes e foi também a encontrada pelo Acórdão RE de 03/06/2008 - citado no acórdão da mesma Relação de 13/07/2017 proferido no processo 1508/15.9T9BJA.E1, embora com entendimento de que se está perante uma nulidade dependente de arguição -: “embora se verifique a apontada proibição de produção de prova e consequente proibição de valoração da mesma tal não significa a pura e simples exclusão da prova respetiva do conjunto de provas, antes implica que se declarem nulos e de nenhum valor probatório os depoimentos e todos os atos subsequentes incluindo o acórdão condenatório, repetindo-se os depoimentos (antes) viciados se as testemunhas, depois de devidamente advertidos, aceitarem prestá-los”.

            A solução a que se chegou prejudica o conhecimento das demais questões do recurso do arguido.

                                                           *

Recurso do Ministério Público.


*

III.

DECISÃO.

Em face do exposto decide-se anular o acórdão proferido e determinar a baixa dos autos à primeira instância para que outro venha a ser elaborado, após o cumprimento do art. 134º do CPP relativamente à ofendida, quanto aos factos imputados ao coarguido em coautoria com sua mãe e que proceda ao exame crítico de toda a prova produzida nos autos, expurgada da que se mostre inadmissível.

Sem custas.

Notifique.


Coimbra, 19 de dezembro de 2025

Maria Teresa Coimbra

Cândida Martinho

Maria José dos Santos de Matos