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QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
INCIDENTE
Sumário
I. O sigilo bancário deve ceder perante o dever de cooperação na descoberta da verdade material, com vista à satisfação do interesse público da administração e da realização da justiça. II. Justifica-se a quebra de sigilo bancário, limitando o levantamento ao estritamente necessário, para obtenção da informação quanto à titularidade da conta beneficiária de depósito de cheque resultante da venda de imóvel propriedade da insolvente, em defesa dos interesse dos credores e boa administração da justiça.
Texto Integral
Fazendo uso da faculdade concedida pelo artigo 656º do CPC, por se tratar de processo urgente e se nos afigurar simples a questão a decidir, profere-se:
DECISÃO SUMÁRIA
1. Na presente acção de impugnação da resolução do contrato de compra e venda em benefício da massa insolvente que MC e MG, casados sob o regime da comunhão geral de bens, intentaram contra MASSA INSOLVENTE DE SC, representada pela Senhora Administradora Judicial, que corre por apenso ao processo de insolvência com o nº 2607/22.6T8FNC, veio a Requerida, a 26/05/2025 (requerimento com a refª 6320666), requerer que se oficiasse ao BANCO BPI, S.A. para informar em que conta bancária e nome foi depositado o cheque da compra e venda do imóvel identificado nos autos, celebrada em 10/03/2022, e cuja resolução foi operada pela Administradora da Insolvência, em 27/01/2023.
Tal requerimento foi deferido e levantado o sigilo bancário por despacho proferido em 01/07/2025 (refª 57434696).
Por ofício datado de 04/07/2025, o BANCO BPI, S.A., recusou-se a prestar tal informação, invocando, para tanto, que esta estava abrangida pelo dever de segredo bancário, previsto nos artigos 78º e ss. do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL nº 298/92, de 31 de Dezembro, sugerindo que se suscitasse ao Tribunal da Relação o incidente de quebra do sigilo bancário.
Foi então proferido despacho, com data de 15/09/2025 (refª 57678894), que declarou aberto o incidente de quebra de sigilo bancário e determinou a remessa dos autos a esta Relação a fim de decidir da eventual quebra do segredo em causa.
2. Cumpre, assim, apurar se se justifica a quebra do sigilo bancário no caso dos autos.
3. Com relevância para a decisão, encontram-se provados os factos vertidos no relatório que antecede e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
4. Tendo em conta a recusa legítima do BANCO BPI, S.A. em prestar informações sobre sigilo, nos termos do artigo 80º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL nº 298/92, de 31 de Dezembro, foi remetido o presente incidente para apreciação por este Tribunal da Relação, por ser o competente, nos termos dos artigos 417º, nº 4 do Código de Processo Civil (CPC) e 135º, nº 3 do Código de Processo Penal (CPP).
4.1. Com efeito, determina o nº 1 do artigo 417º do CPC (aplicável ao processo de insolvência e apensos por força do disposto no artigo 17º, nº 1 do CIRE) que “todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”.
Segundo esta norma, o dever de colaboração[1], não obriga apenas as partes, mas também terceiros, “designadamente quando a sua colaboração se revele necessária para averiguar factos relevantes para a apreciação do litígio”.[2] E, caso se recusem a colaborar, poderão ser sancionados com multa, sem prejuízo do uso dos meios coercitivos que forem possíveis, nomeadamente a apreensão de documentos que o terceiro não ceda de forma voluntária (artigo 433º do CPC) ou obrigando que a testemunha compareça sob custódia (artigo 508º, nº 4 do CPC).
Contudo, o mesmo preceito estabelece limites ao dever de colaboração, que fundamentam a recusa legítima (artigo 417º, nº 3 do CPC). Por um lado, temos o limite absoluto do respeito pelos direitos fundamentais – o direito à integridade pessoal, o direito de reserva da vida privada e familiar e o direito à inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das comunicações (artigos 25º, nº 1, 26º, nº 1 e 34º, nº 1 da Constituição Portuguesa) – e por outro, o respeito pelo direito ou dever de sigilo (sigilo profissional e religioso, sigilo dos funcionários públicos e segredo de estado), que salva a possibilidade de escusa em caso de colisão de deveres.[3]
No que respeita ao sigilo bancário – que é o que nos ocupa agora – dispõe-se no artigo 78º do RGICSF que todos os intervenientes nas instituições de crédito, mesmo que a título ocasional, estão sujeitos a segredo, que abrange, designadamente, os nomes dos clientes, as contas de depósito, e os seus movimentos e outras operações bancárias, não cessando esse dever com o termo das funções. Por outro lado, no artigo 79º desse diploma acrescenta-se que “os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente” e que, fora desse caso, “os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados: a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições; b) À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições; c) Ao Fundo de Garantia de Depósitos, no âmbito das suas atribuições; d) Nos termos previstos na lei penal e de processo penal;e) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.”
A colisão entre o dever de colaboração processual (que se impões tanto às partes como a terceiros) e o dever de sigilo bancário é uma questão frequentemente enfrentada nos tribunais, exigindo uma ponderação casuística entre os valores constitucionais e legais opostos. Enquanto o dever de colaboração impõe a todas as pessoas – partes ou terceiros – a obrigação de prestar colaboração para a descoberta da verdade e administração da justiça, o dever de sigilo bancário, resulta, em regra, da protecção do direito à reserva da vida privada e da confiança no sistema bancário.[4]
Mas, apesar de visar a tutela dos interesses das instituições bancárias, bem como os direitos de reserva dos seus clientes, o dever de sigilo bancário não constitui um direito absoluto, podendo ceder perante ordem judicial fundamentada, nomeadamente quando estejam em causa interesses públicos relevantes, como o apuramento da verdade material em processos judiciais, designadamente de insolvência, em que está em causa a protecção do interesse dos credores e a adequada administração da massa insolvente.[5] Aliás, a jurisprudência em geral vem entendendo que quando está em causa um elemento de prova indispensável ou fundamental para a descoberta da verdade, o sigilo bancário deve ceder perante o dever de cooperação na descoberta da verdade material.[6]
Sendo assim, o segredo bancário pode ceder, a título excepcional, perante a necessidade de colaboração para a realização da justiça e descoberta da verdade material, sempre que: i) a informação visada seja imprescindível à prova dos factos; ii) não existam outros meios de obtenção dessa prova; iii) seja feita uma ponderação rigorosa do princípio da proporcionalidade, ou seja, o interesse na administração da justiça deve, manifestamente, prevalecer sobre o direito à reserva e confiança bancária, na situação concreta.[7]
Desta feita, no âmbito deste incidente de levantamento ou quebra de sigilo bancário, incumbe ao Tribunal da Relação averiguar se a recusa de colaboração fundada no sigilo bancário é legítima, ou “se poderá justificar-se a quebra de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, parametrizado pela imprescindibilidade do depoimento/informação para a descoberta da verdade e pela necessidade de proteção de bens jurídicos”.[8]
Concluindo-se pela ilegitimidade da recusa, o juiz pode ordenar que a colaboração (por ex., remessa de extractos, identificação de titularidade de contas) seja prestada, notificando a entidade bancária para o efeito e sujeitando a sua resistência às cominações legais.
4.2. Conforme o despacho da 1ª instância que determinou o levantamento do sigilo bancário, datado de 01/07/2025, nos presentes autos está em causa “a apreciação de uma venda efectuada pela insolvente de um bem imóvel e destino dado ao dinheiro recebido, o qual ainda não se logrou apreender”, pretendendo-se com a informação solicitada ao banco “a identificação da conta em que foi depositado o cheque que titula o preço da venda do imóvel e identificar quem efectivamente recebeu esse montante”.
Com efeito, se com o processo de insolvência se visa a satisfação dos credores pela forma mais eficiente possível (artigo 1º, nº 1 do CIRE), implicando a liquidação do património do devedor ou a sua reestruturação, consoante o plano aprovado e sabendo que a massa insolvente inclui todos os bens, direitos e rendimentos do insolvente, sendo a identificação exacta desse património fulcral para o trabalho do administrador de insolvência e para a actuação dos credores, sem dúvida que o conhecimento da situação patrimonial do insolvente é absolutamente essencial à finalidade do processo de insolvência, pois permite identificar, apreender e gerir a massa insolvente, que é o conjunto dos bens e direitos afectos ao pagamento dos credores. Só através do apuramento e publicidade da real situação patrimonial do insolvente é possível proteger eficazmente os direitos dos credores, impedir dissipações e adoptar decisões informadas sobre a liquidação ou recuperação. O tribunal e o administrador de insolvência dependem deste conhecimento para apurar responsabilidades, qualificar a insolvência e responsabilizar, quando admissível, os órgãos sociais ou o próprio devedor por eventuais ilegalidades ou dissipações patrimoniais.
Assim, o conhecimento exacto da situação patrimonial do insolvente está no centro da finalidade do processo de insolvência – satisfazer, de forma equitativa e eficiente, os créditos dos credores, através da correcta apreensão, gestão e liquidação do activo do devedor.
Daí que a informação pretendida seja imprescindível à prova dos factos relevantes para a causa.
Ora, o meio de prova típico para obter a identificação da conta bancária em que um cheque foi depositado é a solicitação ao banco, através das autoridades judiciárias, de elementos documentais provenientes do sistema informático da instituição — nomeadamente o movimento de depósito associado ao cheque e os dados bancários do titular da conta de crédito onde ocorreu o depósito.[9] É, pois, exigível documento oficial, extraído do sistema informático ou do arquivo do banco. O cheque propriamente dito, juntamente com o movimento de depósito, pode corroborar a ligação entre as partes e ilustrar a identificação da conta, mas só através dos registos bancários se obtém prova cabal. Portanto, para identificar a conta bancária onde um cheque foi depositado, o meio de prova adequado é a documentação oficial fornecida pela instituição bancária, proveniente dos registos informáticos ou extratos bancários da operação.
Desta feita, só por recurso à informação detida pela instituição bancária é possível identificar, com segurança, o titular da conta creditada por depósito de cheque proveniente de venda do imóvel integrante da massa insolvente, e, assim, averiguar se tal operação correspondeu a legítima satisfação de direitos de crédito ou a possível desvio de património da insolvente, em prejuízo dos credores.
Cremos, pois, ter ficado demonstrado que a informação visada é imprescindível à prova dos factos relevantes para a causa e que não existem outros meios de obtenção dessa prova.
Por fim, como já se decidiu nesta Relação, no Acórdão de 23/09/2021 (proc. 1172/21.6T8AMD.L1-2), disponível em www.direitoemdia.pt, “feita uma rigorosa ponderação dos interesses conflituantes aqui em causa, assume clara preponderância o dever de cooperação para que tais desideratos sejam alcançados, não se mostrando desproporcional a restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos decorrente da quebra do sigilo bancário nos moldes referidos (cf. art. 18.º, n.º 2, da CRP).” Na verdade, a não ser satisfeito o solicitado pela Requerida Massa Insolvente, poderá ficar por apurar um facto indispensável para a cabal identificação do património da insolvente, à data da declaração de insolvência, dificultando a liquidação, e, consequentemente, a satisfação do interesse dos credores, sendo certo que a informação pretendida apenas se destina à identificação da conta bancária em que foi depositado o cheque em apreço e da pessoa que o recebeu, não servindo, pois quaisquer propósitos de devassa da vida económica e financeira dessa pessoa.
Em síntese, justifica-se a quebra de sigilo bancário, limitando o levantamento ao estritamente necessário para obtenção da informação quanto à titularidade da conta beneficiária do depósito do cheque resultante da venda do imóvel, em defesa dos interesse dos credores e boa administração da justiça.
5. Em face do exposto, decide-se dispensar o BANCO BPI, S.A. do sigilo bancário a que está sujeito para prestação da informação solicitada pelo tribunal a quo, de identificação da conta bancária e respectivo titular em que foi depositado o cheque da compra e venda do imóvel identificado nos autos (cheque sacado da conta Santander nº …931, com o nº …498, à ordem de SC, com data de emissão de 08/03/2022, no valor de 127.704,00 €) celebrada em 10/03/2022, e cuja resolução foi operada pela Administradora da Insolvência, em 27/01/2023.
As custas do presente incidente recaem a final sobre os responsáveis pelas custas da acção.
Lisboa, 20 de Novembro de 2025
Nuno Teixeira
_________________________________________________ [1] O dever de colaboração “impende sobre os diversos intervenientes processuais (magistrados, mandatários, partes ou terceiros para tanto judicialmente convocados ou instados) de prestarem a sua cooperação ativa no sentido da obtenção, com celeridade e eficácia, da justa composição do litígio (art. 7º, nº 1 do CPC)” – cfr. FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, volume I, 4ª Edição, Coimbra, 2025, pág. 117. [2] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição, Coimbra, 2025, pág. 606. [3] Cfr. FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Ob. Cit., pp. 118-119. [4] Cfr. TRL, Ac. de 06/07/2021 (proc. 139/21.9T8LSB-A.L1-7), disponível em www.dgsi.pt/jtrl. [5] Cfr. neste sentido, TRL, Ac. de 09/01/2023 (proc. 10485/20.3T8SNT-G.L1-1) e TRG, Ac. 12/01/2017 (proc. 304/13.2TBPTL-U.G1), disponíveis, respectivamente, em www.dgsi.pt/jtrl e www.dgsi.pt/jtrg. [6] Neste sentido ver TRP, Ac. de 07/03/2022 (proc. 1720/20.9T8PRD-A.P1), TRG, Ac. de 25/11/2021 (proc. 3739/20.0T8BRG-A.G1), TRL, Ac. de 06/07/2021 (proc. 139/21.9T8LSB-A.L1-7), já citado, TRG, Ac. de 24/10/2019 (proc. 4881/18.3T8GMR.G1) e TRC, Ac. de 10/04/2015 (proc. 561/08.6TBTND-A.C1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. [7] ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, em Código de Processo Civil Anotado, volume I, pág. 608, referem que esta ponderação “se rege necessariamente pelo princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade (artigo 18º, nº 2 da CRP), o qual se desdobra nos subprincípios da adequação ou da idoneidade, da exigibilidade ou da necessidade e da justa medida ou da proporcionalidade em sentido estrito” e que tal ponderação concreta deve ser efectuada “entre o direito à prova da parte onerada com o ónus da prova e a finalidade e âmbito de proteção da regra que determina o sigilo, aquilatando se, no caso, o apuramento da verdade dos factos deve prevalecer sobre o dever de sigilo (princípio da prevalência do interesse preponderante)”.
Na jurisprudência, ver TRL, o Ac. de 06/07/2021, já citado, bem como os Acs. de 24/04/2025 (proc. 10868/23.7T8LSB-A.L1-6) e de 12/09/2025 (proc. 13389/22.1T8LSB-A.L1-1), e ainda TRC, Ac. de 08/10/2024 (proc. 8426/23.5T8VNG-A.C1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. [8] ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume I, pág 609. [9] Cfr. TRP, Ac. de 26/06/2025 (proc. 3483/23.7T8VFR-A.P1), disponível em www.dgsi.pt/jtrp.