INSOLVÊNCIA
FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO
PATRIMÓNIO AUTÓNOMO
CRÉDITOS SUBORDINADOS
DIREITO DE RETENÇÃO
Sumário

Sumário:
I- Os Fundos de Investimento Imobiliário, como patrimónios autónomos que são, estão sujeitos ao processo de insolvência regulado no CIRE, o que não se afigura incompatível com o regime especial que os regula. É o que resulta do consagrado no art.º 2.º n.º 1 al. a) e 2 do CIRE e dos diversos diplomas que têm vindo a regular a atividade desses Fundos.
II- E a entidade gestora que os gere, independentemente da terminologia usada, deve ser considerada administradora, nos termos consignados no n.º 3 do art.º 49.º do CIRE, para efeitos de qualificação do seu crédito como subordinado (art.º 48.º al. a) do mesmo diploma legal), pois que o que verdadeiramente ali importa são as funções concretamente desenvolvidas na aludida gestão.
III- A simples constatação do vínculo ou da situação de que depende a qualificação como pessoa especialmente relacionada com o devedor, enquadrada nos arts.º 48.º e 49.º do CIRE, é suficiente para desencadear os efeitos ali previstos, com a qualificação dos créditos reclamados como subordinados, o que não pode ser afastado pela discussão da alegada boa fé do credor e de que aquela relação não condicionou, de forma alguma, o nascimento do aludido crédito, nele não interferindo ou condicionando.
IV- E assim sendo, por essa via, deve também ser considerado pessoa especialmente relacionada com o devedor o credor que detém 100% do capital social da sociedade gestora do Fundo, agora por via do consagrado na al. b) dos n.ºs 2 e 3 do aludido art.º 49.º do CIRE, em face da situação de domínio ali espelhada, sendo consequentemente classificados, também como créditos subordinados, os reclamados pelo credor que domina a sociedade gestora.
V- A classificação de um crédito como subordinado, nos termos dos arts.º 48º al. a), e 49.º, n.º 1, als. a) a c), do CIRE, basta-se com aquela relação especial, tal como definida pelo legislador, não se encontrando sujeita a qualquer período temporal limitativo, pois que o mesmo não decorre nem tem o mínimo assento na letra da lei.
VI- Não pode ser discutido em sede de recurso da sentença de verificação e graduação de créditos, o montante do crédito e as circunstâncias que fundam a sua proveniência, quando a impugnação da lista do art.º 129.º do CIRE, não mereceu qualquer resposta, nos termos permitidos pelo art.º 131.º do CIRE.
VII- Estando alegado pela credora a existência de um contrato de empreitada celebrado com o insolvente, e que por força do não pagamento devido, a obra objeto daquele contrato foi suspensa e retida pelo empreiteiro, factos não contrariados por falta de resposta à impugnação deduzida, devem os mesmos ser julgados provados por força dessa falta de resposta.
VIII- O empreiteiro goza do direito de retenção sobre a obra em construção ou já construída, para garantia das despesas efetuadas na coisa, incluindo o próprio preço devido pelo cumprimento do contrato de empreitada, nos termos gerais do art.º 754.º do Código Civil.
IX- Não obsta ao exercício de tal direito o facto da obra não se encontrar concluída e ter sido suspensa, não podendo ser objeto de recurso a discussão de novas questões, relacionadas com o abandono de obra por parte do empreiteiro ou o valor do crédito por este reclamado, e que não foram objeto de discussão no momento processual que seria o adequado.
X- Tanto mais que a suspensão dos trabalhos e retirada dos trabalhadores e instrumentos de obra, não significa, por si só, um efetivo abandono de obra que impeça a sua retenção.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I-/ Relatório:
1. MGE- FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO, gerido e representado pela GNB- SOCIEDADE GESTORA DE FUNDOS DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO, S.A., foi declarado insolvente por sentença proferida a 15-05-2017 e transitada em julgado a 05-06-2017.
2. Foi fixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos.
3. Findo o prazo da reclamação, o Administrador da Insolvência juntou aos autos, a 30-10-2017, lista de credores reconhecidos, nos termos do art.º 129.º do CIRE, reconhecendo os seguintes créditos:
✓ Autoridade Tributária e Aduaneira - € 7.618,49 (garantido/IMI)
✓ Autoridade Tributária e Aduaneira - € 238,57 (comum)
✓ Autoridade Tributária e Aduaneira - € 997,07 (privilegiado/IRS)
✓ AA – Gestão e Inovação Turística, S.A. - € 10.670.000,00 (comum, sob condição)
✓ Condomínio do Edifício … - € 2.387,92 (comum)
✓ GNB – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A. - € 457.889,75 (comum)
Novo Banco, S.A. - € 15.895.935,05 (garantido/hipoteca)
✓ Securitas – Serviços e Tecnologia de Segurança, S.A. - € 811,80 (comum)
✓ Sociedade de Construções GG, Lda. - € 650.000,00 (comum)
4. Foram deduzidas impugnações, e dentro das mesmas, com interesse para o recurso dos autos, constam:
1) A sociedade AA - Gestão e Inovação Turística, S.A., deduziu impugnação por requerimento de 09-11-2017, requerendo que o crédito reconhecido ao Novo Banco, S.A., seja reduzido para o montante de €11.566.563,42 e reconhecido com natureza subordinada, por via da alínea a) do artigo 48.º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 49.º, ambos do CIRE.
Por requerimento de 23-11-2017, o Novo Banco, S.A. respondeu a esta impugnação, alegando ser credor da totalidade que lhe foi reconhecida, não tendo sido demonstrado qualquer pagamento, bem como refutando a existência de uma relação especial com o insolvente, por ser incapaz de influenciar a gestão do Fundo ou de aceder a informação privilegiada, devendo, como tal, manter-se reconhecido como garantido o aludido crédito, no montante de €15.895.935,05.
2) A Sociedade de Construções GG, Lda. deduziu a sua impugnação por requerimento de 09-11-2017, requerendo que o seu crédito, no montante de €650.000,00, seja reconhecido e graduado como crédito garantido por direito de retenção e privilegiado, com preferência sobre o credor hipotecário.
Alegou, para tanto, que celebrou com o insolvente um contrato de empreitada, que tinha como objeto a construção de 14 apartamentos, 2 lojas e estacionamentos para as frações, no lote 9 da Urbanização sita em Ferreiras, Albufeira, tendo executado a construção até à fase dos acabamentos, no valor de €750.000,00. Como o insolvente apenas pagou €100.000,00, a impugnante não deu continuidade à obra, suspendendo e retendo a obra, vedando-a e colocando placas informativas de que a obra tinha sido suspensa e se encontrava retida por conta do empreiteiro.
Não houve resposta.
5. Os autos principais prosseguiram para liquidação do ativo, tendo sido apreendidos (cfr. autos de apreensão e certidões prediais juntos ao Apenso C) participações sociais e diversos imóveis, encontrando-se registadas hipotecas a favor do Recorrente sobre os prédios apreendidos, com registos entre 2006 a 2012.
6. Foi proferido despacho saneador-sentença, em 04/01/2025, que apreciou as impugnações deduzidas, verificou e reconheceu créditos, graduando-os, tudo nos termos que aqui se sintetizam:
«A. Julgo parcialmente procedentes as impugnações dos créditos do Novo Banco, S.A. e da GNB – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A. formuladas pela AA – Gestão e Inovação Turística, S.A. e, consequentemente, julgo verificados os créditos nos montantes reconhecidos a estes credores pelo Sr. Administrador de Insolvência, mas com natureza subordinada nos termos da alínea a) do artigo 48º do CIRE.
B. Julgo procedente a impugnação de créditos formulada pela Sociedade de Construções GG, Lda. e, consequentemente, julgo verificado o crédito desta sociedade no montante de €650.000,00, garantido por direito de retenção sobre a verba 164.
C. Julgo procedentes as impugnações do crédito da AA – Gestão e Inovação Turística, S.A. formuladas pelo Novo Banco, S.A. e pela GNB – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A. e, consequentemente, julgo não verificado o crédito da indicada credora impugnada AA.
D. Julgo parcialmente procedente a impugnação formulada pelo Novo Banco, S.A. a 25-02-2022, reconhecendo mostrar-se registada uma hipoteca a seu favor sobre as frações B, C, H e J do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de …. com o nº … e inscrito na matriz sob o artigo …, mas mantendo a qualificação do seu crédito como subordinado.
E. Julgo verificados os seguintes créditos sobre o insolvente MGE- FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO:
✓ Autoridade Tributária e Aduaneira - € 7.618,49 (garantido/IMI)
✓ Autoridade Tributária e Aduaneira - € 238,57 (comum)
✓ Autoridade Tributária e Aduaneira - € 997,07 (privilegiado/IRS)
✓ Condomínio do Edifício … - € 2.387,92 (comum)
✓ GNB – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A. - € 457.889,75 (subordinado/relação especial)
✓ Novo Banco, S.A. - € 15.895.935,05 (subordinado/relação especial)
✓ Securitas – Serviços e Tecnologia de Segurança, S.A. - € 811,80 (comum)
✓ Sociedade de Construções GG, Lda. - € 650.000,00 (garantido/direito retenção)
F. Graduo os créditos sobre o insolvente MGE- FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO para serem pagos da seguinte forma (…)».
7. Inconformado, o Novo Banco apresentou apelação nos autos, em 26/05/2023, que, após convite de sintetização, terminou com as conclusões que aqui se resumem nos seguintes termos:
«1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. (…), na parte em que classificou o crédito do aqui Recorrente como subordinado/relação especial e, ainda, na parte em que classificou o crédito da “sociedade de Construções GG, Lda.” como garantido/ direito de retenção.
2. Entendeu o Tribunal a quo que a GNB, enquanto entidade gestora do Fundo Insolvente, exerce funções de administração, nos termos e para os efeitos previstos do disposto no n.º 3 do artigo 49.º do CIRE e, como tal, seria uma pessoa especialmente relacionada com o Fundo Insolvente, para efeitos de classificação do respetivo crédito como subordinado, nos termos do artigo 48.º, alínea a) do mesmo Código, com o que o Recorrente não se conforma.
3. Com efeito, a GNB, enquanto sociedade gestora do Fundo Insolvente, possuía absoluta autonomia na prossecução da sua atividade e estava sujeita a um forte conjunto regulamentar (artigos 72.º-A a 74.º do RGOIC), sujeitando-se, em caso de incumprimento, a um regime sancionatório particularmente gravoso (artigos 255.º a 279.º do RGOIC e, bem assim, arts.º 28.º, 64.º e 65.º do Decreto-Lei n.º 27/2023, de 28/04).
4. Inexistia, assim, ao contrário do que sucede nas sociedades comerciais e/ou noutros patrimónios autónomos, qualquer possibilidade de influência/contaminação entre a GNB e o Fundo Insolvente, tanto mais que os “administradores” visados pelos artigos 6.º e 49.º do CIRE são os designados pelas sociedades comerciais com funções específicas de gestão interna, encontrando-se, por essa mesma razão, sujeitos a influências dos respetivos sócios/acionistas – cfr. artigos 55.º, 64.º, 72.º e 73.º do Código das Sociedades Comerciais - ao passo que nos organismos de investimento coletivo, como é o caso do Fundo Insolvente, de que a GNB é a sociedade gestora, não se encontra previsto um órgão de administração próprio, sendo uma entidade gestora externa encarregada da gestão do mesmo.
5. O vínculo jurídico estabelecido entre a entidade gestora e o Fundo é enquadrável na figura do contrato de gestão de carteiras e não na de administração (de direito ou de facto) prevista nos artigos 6.º e 49.º do CIRE (cfr. ainda, analogicamente, o artigo 110.º, n.º 4 do CIRE), pelo que a relação existente entre a GNB e o Fundo Insolvente não se subsume na relação de administração prevista nos artigos 49.º, n.º 3 e 6.º do CIRE e, consequentemente, para efeitos do CIRE, a GNB não é uma entidade especialmente relacionada como Fundo Insolvente, não podendo o crédito da GNB ser classificado como crédito subordinado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 48.º, alínea a) do CIRE.
6. Não sendo a GNB pessoa especialmente relacionada com o Fundo insolvente, a relação de domínio entre o Novo Banco e a GNB, em que o Tribunal a quo sustenta a classificação do crédito do Recorrente como subordinado, não tem a potencialidade de gerar essa consequência.
7. Mas mesmo que assim não se entendesse, não se pode retirar que a classificação dos créditos como subordinados, para além de poder ocorrer por via da relação de domínio ou de grupo existente entre um credor e o insolvente, possa também ocorrer por via dessa mesma relação de grupo existente entre um credor e a pessoa especialmente relacionada com o insolvente, o que não decorre da alínea b) do n.º 2 do artigo 49.º do CIRE.
8. Não se pode apenas atentar no facto de o Novo Banco deter a 100% a GNB, sendo que o importante é analisar o tipo de relação existente, sendo certo que tanto à GNB, na sua atividade de administração, como ao Fundo aqui Insolvente, estava vedada a possibilidade de receber instruções de qualquer outra pessoas/entidade que não fossem os participantes do Fundo.
9. A escolha da GNB, enquanto entidade gestora do Fundo agora insolvente, foi efetuada pelos participantes do mesmo e não pelo aqui Recorrente e, a qualquer momento, estes podiam substituir a sociedade gestora, nomeando outra.
10. Acresce que, a quase totalidade do crédito do Novo Banco, S.A. nasceu da celebração de um contrato de mútuo, garantido por hipoteca, sobre o património imobiliário do Fundo Insolvente, celebrado em 2006, balizado por isso, por contratos claros e escorreitos, não se vendo qualquer informação privilegiada a que o Novo Banco pudesse aceder, que lhe desse qualquer tipo de vantagem sobre os demais credores, uma vez que os parâmetros essenciais da constituição daqueles créditos, e suas garantias, ficaram definidos mais de 10 anos antes da declaração de insolvência, e não sofreram quaisquer alterações.
11. A relação de domínio entre a GNB e o Novo Banco não criou qualquer superioridade informativa deste em relação aos demais credores, que justifique a aplicação do regime da subordinação, como forma de proteção do princípio “par conditio creditorum”, previsto no artigo 194.º do CIRE, não sendo tal relação de domínio equiparável às situações de domínio ou de grupo previstas nas sociedades comerciais, sendo estas últimas relações que o legislador visa acautelar na classificação de créditos subordinados prevista nos artigos 48.º e 49.º do CIRE.
12. A sentença recorrida violou, no mínimo, o disposto nos artigos nos artigos 48.º, 49.º e 194.º do CIRE e os artigos 13.º e 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
13. O próprio CIRE, no seu artigo 2.º, n.º 1, v.g. alíneas a) e h) e, n.º 2, alínea b), in fine, separa e distingue “patrimónios autónomos” de “organismos de investimento coletivo” tratando-os como realidades distintas, pelo que o CIRE só será aplicável aos organismos de investimento coletivo quando expressamente indicado e na medida em que a sua aplicação não colida com os regimes especialíssimos a que estão sujeitos – não é o caso do n.º 3 do artigo 49.º do CIRE - que, por conseguinte, não lhe é aplicável.
14. E da GNB ter poderes de gestão, “administração” e representação do Fundo, não resulta, automaticamente, que os mesmos sejam equiparáveis aos dos administradores de patrimónios autónomos, desde logo à luz do artigo 65.º, n.º 1 do RGOIC, trata-se de uma gestão externa ao Fundo (heterogestão), exercida a título profissional e norteada pelo princípio da independência; cfr. ainda art.ºs 28.º e ss, 64.º e 65.º do Decreto-lei 27/2023.
15. Nos organismos de investimento coletivo, ao contrário do que sucede nas sociedades comerciais ou nos patrimónios autónomos tout court (artigos 55.º, 64.º, 72.º e 73.º do CSC), não se encontra previsto nenhum órgão de administração próprio, existindo total separação de poderes e deveres entre os Participantes e a entidade gestora, cuja atuação não sofre influências, quer externas, quer internas, dos Participantes.
16. É, pois, evidente, em face deste principio de independência, que não se verificam os pressupostos dos artigos 49.º, n.º 3, 48.º, a) e 47.º, n.º 4, alínea b) parte final: não há informação privilegiada que comprometa o ressarcimento de outros credores do Fundo, não há uma especial relação com o Fundo, não há promiscuidade entre o Fundo e a entidade gestora, que recebeu um mandato dos participantes, com obrigatoriedade permanente de reporte às entidades supervisoras, informações que ficam disponíveis para consulta e escrutínio público, por qualquer interessado, com garantia da total transparência, independência e idoneidade da gestão.
17. A sentença recorrida desconsidera o princípio da independência subjacente à heterogestão profissional dos fundos – a vingar tal tese, é ditada a sentença de morte dos organismos de investimento coletivo e das sociedades profissionais que, sob apertadíssimas regras de supervisão, os gerem – pelo que, deve ser revogada a classificação do crédito do Recorrente e, consequentemente, ser o mesmo graduado como crédito garantido.
18. Já a propósito da natureza do crédito da “Sociedade de Construções GG, Lda.”, pese embora o crédito da referida credora não tenha sido objeto de resposta à impugnação, impunha-se ao Tribunal a quo, antes de proceder à verificação e graduação desse crédito, analisar se dispunha no processo de elementos que pudessem justificar uma decisão conforme à impugnação deduzida ou àquela que foi tomada na lista de créditos definitivos prevista no artigo 129.º, n.º 1 do CIRE.
19. Dos autos resulta que a obra estava abandonada desde pelo menos 2011, conforme decorre da vistoria realizada pela Câmara Municipal de Albufeira, no dia 27/05/2021, onde foi levantado o auto nº 33/2021, tendo o Sr. Administrador de Insolvência sido notificado por carta datada de 19/08/2021 para proceder a intervenções na aludida obra.
20. Cumprindo, assim, aditar os seguintes factos à matéria de facto dada como provada (cfr. art.º 640.º do CPC), a qual, na verdade, é omissa quanto à factualidade subjacente ao crédito da Impugnante:
«- No dia 27 de maio de 2021, foi efetuada a vistoria prevista pelo n.º 1 do art.º 90.º do decreto-lei n.º 555/99 de 16 de dezembro, da qual resultou o Auto de vistoria n.º 33/2021, ao prédio sito em lote 9, Vale Serves, freguesia de Ferreiras, com a descrição predial n.º ….., da Conservatória do Registo Predial de …...
- A comissão de vistorias, no auto de vistoria n.º 33/2021, verificou e consequentemente determinou o seguinte: (…)».
21. Do que decorre demonstrada a total e recuada falta de posse da Impugnante quanto ao Lote 9, à data da reclamação de créditos, não lhe cabendo, por conseguinte, o direito de retenção».
8. Em contra-alegações nos autos, as Recorridas AA e GG, pugnaram pela manutenção da decisão recorrida e improcedência da apelação, argumentando esta última que o Recorrente veio juntar com as suas alegações documentos que se julgam inadmissíveis nesta fase processual, mas que, de qualquer forma, jamais poderiam pôr em causa ou modificar os factos por si alegados.
9. Admitido que foi o recurso interposto, remetidos os autos a este Tribunal da Relação, apresentadas novas conclusões em face do convite feito ao apelante e colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
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II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, tal como decorre dos arts.º 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam assim à apreciação deste Tribunal consistem em:
(i) Aferir da natureza do crédito reclamado pelo Recorrente Novo Banco, apreciando se o mesmo deve manter-se como subordinado, como classificado na sentença recorrida;
(ii) Aferir da natureza do crédito reclamado pela Sociedade GG, apreciando se o mesmo deve manter-se como garantido por direito de retenção, como classificado na sentença recorrida.
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III-/ Fundamentação de facto:
Com relevo para a decisão do recurso intentado nos autos importa a atividade processual acima relatada.
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IV-/ Enquadramento jurídico:
Em resumo, com o presente recurso, insurge-se o apelante contra a qualificação dada na decisão recorrida, quer ao seu crédito, ali classificado como «subordinado/relação especial», quer ao crédito da Sociedade de Construções GG, Lda., ali classificado como «garantido/por direito de retenção».
Apreciando então, separadamente, cada um dos créditos em causa.
Do crédito do Novo Banco:
No que concerne ao crédito do Novo Banco, no valor de €15.895.935,05, foi considerado pelo tribunal recorrido que o insolvente Fundo Imobiliário, “assume a natureza de património autónomo”, gerido e representado pela GNB - Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, SA, pertencente ao Grupo Novo Banco, razão pela qual considerou ser esta sociedade gestora pessoa especialmente relacionada com o insolvente, na qualidade de sua administradora, e, consequentemente, encontrando-se numa relação de grupo com o Novo Banco, S.A., considerou, nos termos da alínea b) do n.º 2 do art.º 49.º do CIRE, quer aquela entidade gestora quer o banco pessoas especialmente relacionadas com o insolvente com base no regime decorrente do n.º 3 do aludido art.º 49.º. Por ser assim, e apelando a tais normativos, qualificou o aludido crédito como subordinado.
Argumenta o apelante, assim se insurgindo contra esta classificação, que assim não é, pois, defende em súmula:
(i) Que o Fundo Insolvente não deve ser considerado um "património autónomo" para os efeitos do CIRE, tanto mais que o mesmo distingue e não assimila “patrimónios autónomos” e “organismos de investimento coletivo”;
(ii) Que a GNB, enquanto sociedade gestora, não exerce funções de administração, mas sim de gestão profissional e independente, não sendo assim subsumível ao conceito de “administração” previsto art.º 49.º do CIRE, normativo que colide com os regimes especialíssimos a que estão sujeitos os organismos de investimento coletivo e por isso não lhes é aplicável;
(iii) Que mesmo a entender-se que aquele preceito tem aplicação aos autos, e que a GNB é pessoa especialmente relacionada com o Fundo insolvente, não se pode retirar que o Recorrente o seja, por aplicação da alínea b) do n.º 2 do artigo 49.º do CIRE, que não tem aplicação quando em causa está uma relação de grupo entre um credor e a pessoa especialmente relacionada com o insolvente;
(iv) Que mesmo que assim não se entendesse, o que verdadeiramente importaria era então aferir o tipo de relação existente entre o Fundo e o Recorrente, sem esquecer que o que está em causa é uma gestão externa ao Fundo (heterogestão), exercida a título profissional e norteada pelo princípio da independência;
(v) Que os créditos do Recorrente, nascidos 10 anos antes da declaração de insolvência, sem que tivessem sofrido quaisquer alterações, são acontecimentos de tal forma distantes no tempo que têm de ser encarados como completamente independentes entre si, sem qualquer correlação, conotação, afinidade ou implicação recíproca.
Vejamos então.
(i) Para apreciarmos a argumentação assim expendida pelo Recorrente, e começando pelo primeiro dos seus argumentos – no que respeita à existência ou não de um património autónomo – estando em causa nos autos um Fundo de Investimento Imobiliário (foi declarado insolvente o MGE- Fundo de Investimento Imobiliário Fechado), principiaremos a nossa análise por atentar que este tipo de fundos estavam regulados no Regime Jurídico dos Fundos de Investimento Imobiliário (doravante RJFII), constante do DL 60/2002, republicado pelo DL n.º 71/2010, de 18/06 (retificada pela Declaração de Retificação n.º 24/2010, de 17/08) sendo aí expressamente qualificados como patrimónios autónomos (logo no seu art.º 2.º, n.º 2), cuja administração, como decorria do art.º 6.º n.º 1, daquele RJFII, era exercida por uma sociedade gestora de fundos de investimento imobiliário.
Com a transposição de diretivas europeias, tal regime foi revogado pela Lei 16/2015 de 24/02 (doravante RGOIC), regime que veio igualmente a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 27/2023, de 28 de abril (doravante RGA, entretanto atualizado pelo DL 89/2024, de 18/11) aprovando o regime da gestão de ativos, que mantiverem tal qualificação como se infere dos arts.º 2.º al. u), e 3.º b) e 12.º, respetivamente, daqueles aludidos diplomas legais.
No caso presente, o Fundo, constituído em 07/09/2006, era gerido e representado pela sociedade GNB, sociedade que se encontra integrada na Holding GNB – Gestão de Ativos, SGPS, S.A., a qual, por sua vez, é detida pelo Novo Banco, S.A. a 100%, conforme resulta dos números 5 e 6 do art.º 2.º do Regulamento de Gestão do Fundo MGE, à data da declaração da sua insolvência (https://www.apfipp.pt/media/r3ahqqxb/a547802-frg0033350891020170515.pdf). Regulamento de onde se retira também, sem margem para dúvidas - n.º 3 do art.º 1.º - que o Fundo é um património autónomo, pertencente, no regime especial de comunhão, a uma pluralidade de pessoas, singulares ou coletivas, designadas participantes, que não respondem, em caso algum, pelas dívidas destes ou da sua Entidade Gestora, Depositário, Entidades Colocadoras ou de outros organismos de investimento coletivo, respondendo o seu património apenas pelas dívidas do Fundo e regulado pela RGOIC.
Donde, dúvidas não há, o insolvente é um património autónomo.
Contudo e ainda assim, argumenta o Recorrente que não o é para efeitos do CIRE.
Nesta matéria, regula o art.º 2.º daquele diploma legal, que sob a epígrafe, “Sujeitos Passivos da declaração de Insolvência”, estabelece «1. Podem ser objeto de processo de insolvência: (….) h) Quaisquer outros patrimónios autónomos. 2. Excetuam-se do disposto no número anterior: (….) b) As empresas de seguros, as instituições de crédito, as sociedades financeiras, as empresas de investimento que prestem serviços que impliquem a detenção de fundos ou de valores mobiliários de terceiros e os organismos de investimento coletivo, na medida em que a sujeição a processo de insolvência seja incompatível com os regimes especiais previstos para tais entidades”. (sublinhado nosso).
Daqui infere o Recorrente, como vimos, que o CIRE não faz subsumir os fundos que constituam organismos de investimento coletivo, como, alega, o é o fundo insolvente, na noção de património autónomo.
Será assim?
Sobre esta separação entre “patrimónios autónomos” e “organismos de investimento coletivo”, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, Sociedade Editora, página 78), em anotação ao convocado art.º 2.º, dizem que «(…) 4. O modo como ficou elaborado o texto do n.º 1 permite, só por si, firmar a conclusão segura do carácter taxativo do leque de entidades e figuras que a lei sujeita à insolvência. Esta ideia surge, aliás, reforçada pelo n.º 2, ao excecionar do âmbito de aplicação do número anterior que, não fora a ressalva, em princípio lá caberiam», alertando, contudo, mais adiante, que a exclusão, por regra, dos organismos de investimento coletivo do regime comum da insolvência obedece a exigências da legislação da União Europeia, mas «Isto não quer dizer, é claro, que as entidades em questão estejam imunes à hipótese de se encontrarem impossibilitadas de satisfazer pontualmente as suas obrigações. O que se passa é que, então, há regimes especiais legalmente fixados que proveem à situação. Ora, o significado da alínea b) do n.º 2 é, pois, o de que será em função do que resultar desses regimes especiais que poderá ou não aproveitar-se alguma coisa do regime comum da insolvência e do processo respetivo, os quais, não são nunca diretamente aplicáveis (…)».
Como se verifica, do normativo em análise resulta que as normas constantes do CIRE só não se aplicam a estas entidades financeiras se os regimes especiais que as regulam possam, de alguma forma, ser incompatíveis com a aplicação das regras do processo insolvencial previsto no CIRE.
E, por ser assim, um organismo de investimento, enquanto património autónomo que é, como vimos já (e, por isso mesmo, abrangido pela alínea h) do n.º 1 do art.º 2.º) está igualmente sujeito ao processo de insolvência, de que pode ser sujeito passivo, tanto mais que nenhum normativo existe que, por si só, possa sustentar essa não aplicação, por incompatibilidade de regimes. E tanto assim é que o art.º 162.º A.º do RGOIC, em vigor à data da insolvência, admitia a sujeição do organismo de investimento coletivo a processo especial de revitalização ou a processo de insolvência (o que, de resto, foi também consagrado nos arts.º 247.º al. e), 249.º n.º 1 al. b) e 251.º do RGA, que remete agora expressamente para o CIRE).
Ainda que se compreenda que a especificidade deste tipo de organismos, e sua orgânica, pudesse de alguma forma reclamar uma diferenciação legal, adequada às suas especificidades e dos seus investidores, certo é que, como vemos, aquela aplicação não foi afastada pelo nosso legislador (admitindo-se que possa não ter sido essa a intenção do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, do Conselho, de 29/05, relativo aos processos de insolvência, e bem assim do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/05, que o veio substituir, ao consagrar no n.º 2 do art.º 1 daqueles Regulamentos que os mesmos não são aplicáveis aos processos de insolvência relativos a organismos de investimento coletivo).
Por ser assim, e sem mais, são aplicáveis as regras do processo de insolvência decorrentes do CIRE ao caso dos autos, não se evidenciando qualquer incompatibilidade de regimes que, à partida, o impeça (ver também, neste sentido, o Acórdão da RL de 03/12/2015, relatado por Sacarrão Martins, no proc. 7543/14.7T8SNT.L1-8, publicado em www.dgsi.pt).
Donde, concluímos, então, falecendo a argumentação do Recorrente, temos por assente que o Fundo Insolvente é um património autónomo e, não sendo incompatível o regime que o regula com os normativos do CIRE, impõe-se a aplicação deste diploma legal à situação dos autos.
(ii) Entrando agora na segunda linha de argumentação, vemos que o Recorrente, defende, em suma, que os administradores a que alude o art.º 49.º do CIRE são os designados pelas sociedades comerciais com funções específicas de gestão interna, encontrando-se, por essa mesma razão, sujeitos a influências dos respetivos sócios/acionistas (arts.º 55.º, 64.º, 72.º e 73.º do Código das Sociedades Comerciais), enquanto o vínculo jurídico estabelecido entre a entidade gestora e o Fundo é enquadrável na figura do contrato de gestão de carteiras e não na de administração (de direito ou de facto), argumentando que a gestão altamente profissionalizada de um Fundo por uma entidade gestora não se confunde com a gestão/administração de uma sociedade comercial pelos seus gerentes/administradores, de facto ou de direito (arts.º 10.º, 106.º e 107.º do RGA, que reforçam tal conceito e, analogicamente, art.º 110.º, n.º 4 do CIRE).
De modo algum podemos acompanhar tal raciocínio.
Senão vejamos.
Em primeiro lugar, estamos em crer que independentemente da terminologia usada (gestora ou administradora), o que verdadeiramente interessa para o preceito legal em análise são as funções concretamente desenvolvidas, e para esse efeito, dúvidas não há, a GNB, enquanto gestora do Fundo, era sua “administradora”. E tanto assim é que o próprio Regulamento que gere o Fundo, diz, expressamente, no seu art.º 2.º, que à GNB compete a «administração, gestão e representação daquele».
Apelando novamente às palavras de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (obra citada, pág. 303), em anotação ao art.º 49.º do CIRE, e especificamente ao n.º 2 al. c), vemos que ali dizem que «…. o substantivo “administradores” é “utilizado no sentido e com o alcance que decorrem do art.º 6º do Código e, por isso, envolvendo todos os que, com relação à pessoa coletiva insolvente que se considera, exerciam, à data do início do processo de insolvência, ou exerceram, em qualquer momento no decurso dos dois anos anteriores, funções de gestão, independentemente da denominação do órgão respetivo».
Decorrendo, por sua vez, do art.º 6.º n.º 1 al. a) e 2 do CIRE que são considerados administradores aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente, sendo responsáveis legais as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário.
Ora, no que diz respeito aos Organismos de Investimento Coletivo, de acordo com o então estatuído no RGOIC, arts.º 65.º e 66.º, verificamos que o organismo de investimento coletivo heterogerido é gerido a título profissional por uma entidade gestora elegível nos termos do artigo 71.º-A e que a entidade gestora responde pelos danos causados aos participantes em virtude do incumprimento ou cumprimento defeituoso dos deveres que lhe sejam impostos por lei, por regulamento ou pelos documentos constitutivos, presumindo-se, em qualquer caso, a sua culpa, e, além disso, no exercício das suas funções, compete-lhe, em termos gerais, gerir o investimento, praticando os atos e operações necessários à boa concretização da política de investimento, incluindo a gestão do património, administrar o organismo de investimento coletivo e comercializar as unidades de participação sob gestão; competindo-lhes ainda, e também, outras relevantes funções, tais como a decisão de dissolução e a assunção de funções de liquidatária (arts.º 42.º e 43.º do RGOIC).
Donde, e como vemos, ainda que com a designação formal de “entidade gestora”, as funções que assim desenvolve conduzem necessariamente à expressão “administrador” contida no n.º 3 do aludido art.º 49.º que nele acolhe essa abrangência.
E a forma de gestão assim regulamentada não se afasta completamente, como pretende o Recorrente, da exercida em sede das sociedades comerciais.
Vejamos porquê.
É um facto que a sociedade gestora possui absoluta autonomia na prossecução da sua atividade, que deve nortear pelos interesses dos participantes enquanto investidores, resultando do art.º 15.º do RGOIC, que «A entidade responsável pela gestão, o depositário e as entidades comercializadoras de um organismo de investimento coletivo agem de modo independente e no exclusivo interesse dos participantes», e art.º 71.º-B do mesmo diploma legal que «1. As SGOIC têm por objeto principal e exclusivo o exercício profissional da atividade de gestão de organismos de investimento coletivo, nos termos previstos no art.º 66.º (…)», estando sujeitas a forte regulamentação (arts.º 72.º-A a 74.º do RGOIC), e a um gravoso regime sancionatório (arts.º 255.º a 279.º do RGOIC) em caso de incumprimento. Do conjunto normativo a que estão sujeitas as entidades gestoras resulta, pois, um cuidado na prevenção de situações de potenciais conflitos de interesses e influências entre a sociedade gestora e o Fundo pela mesma gerido, tal como o espelham os arts.º 147.º e 221.º e sgs. do RGOIC.
A opção pelo investimento coletivo, que visa, no seu essencial, rentabilizar os montantes investidos por parte dos participantes, tem subjacente um regime que conduz à designação de uma entidade externa (sociedade gestora), devidamente autorizada para o efeito, que concentra em si poderes de gestão dos ativos e representação do Fundo, devendo, no exercício desse poder decisório de gestão, atuar no exclusivo interesse dos participantes. Devendo fazê-lo de acordo com padrões reforçados de conduta, nomeadamente de honestidade, cuidado, diligência e competência, ficando obrigada a dar prevalência aos interesses dos participantes.
Não obstante, e ainda assim, não vemos que tal regime de gestão e responsabilidade divirja de forma total e absoluta do regime de administração das sociedades comerciais, pois que o CSC dita também inúmeras obrigações e deveres aos seus gerentes/administradores, exigindo-lhes competência técnica e conhecimentos de um “gestor criterioso e ordenado”, exigindo-lhes uma atuação cuidada e leal, sempre no interesse da sociedade, dos seus sócios e outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores, exigindo-lhes a elaboração de relatórios de gestão, que prestem contas, etc. E, no final, são também eles responsáveis pelos danos que, com preterição dos deveres legais ou contratuais (contrato de administração), possam causar (art.º 72.º do CSC).
Tratam-se, pois, de regimes de responsabilidade com algumas semelhanças, o que implica que a GNB, enquanto gestora do Fundo, tenha, no seu essencial, e também, os mesmos deveres de cuidado e de lealdade dos administradores das sociedades, consagrados no art.º 64.º do CSC (veja-se, neste sentido, em idêntica situação, o acórdão da RL de 28/02/2023, proferido no proc. 9304/20.5T8LSB-A.L1-1, relatado por Pedro Brighton, que aqui seguimos também, disponível na dgsi, onde, de forma muito clara, concluiu que «Trata-se, pois, de regimes de responsabilidade perante a sociedade muito similares, semelhança esta que deriva do facto de estarmos perante figuras de gestão»).
O facto de aquela gestão ser obrigatoriamente externa e fortemente controlada, não permite menosprezar o facto de, também os gerentes e administradores das sociedade comerciais estarem sujeitos a deveres estreitos de cuidado e lealdade, observando limites legais na sua atuação, obrigando-os a agir, sempre, no interesse da sociedade, com exclusão dos seus interesses pessoais, sob pena de serem fortemente penalizados, caso, com a sua gestão, causem danos à sociedade por força dessa atuação desconforme.
Concluímos, pois, que a GNB, enquanto gestora do Fundo, era sua “administradora”, sendo assim abrangida pelo n.º 3 do art.º 49.º do CIRE, que expressamente prevê que nos casos em que a insolvência respeite apenas a um património autónomo são consideradas pessoas especialmente relacionadas os respetivos titulares e «administradores».
(iii) Avançando na sua argumentação, vemos então que o Recorrente defende que, ainda assim, não pode ser considerado “pessoa especialmente relacionada com o devedor”, à luz do consagrado no art.º 49.º do CIRE.
Vejamos, pois.
Regula o art.º 48.º al. a) do CIRE, convocado pela decisão recorrida para a classificação dos créditos aqui em causa, que se consideram subordinados «sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência, os créditos que preencham os seguintes requisitos : a) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva constituição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência».
Por sua vez, o art.º 49º n.º 2, als. b) e c) e 3 do mesmo diploma legal, que «são exclusivamente considerados especialmente relacionados com o devedor pessoa coletiva : (…) b) As pessoas que, se for o caso, tenham estado com a sociedade insolvente em relação de domínio ou de grupo, nos termos do artigo 21º do Código dos Valores Mobiliários, em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência; c) Os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (…) 3- Nos casos em que a insolvência respeite apenas a um património autónomo são consideradas pessoas especialmente relacionadas os respetivos titulares e administradores, bem como as que estejam ligadas a estes por alguma das formas previstas nos números anteriores, e ainda, tratando-se de herança jacente, as ligadas ao autor da sucessão por alguma das formas previstas no n.º 1, na data da abertura da sucessão ou nos dois anos anteriores. (…)».
De salientar ainda que o disposto no art.º 21º do Código dos Valores Mobiliários (mencionado no art.º 49.º n.º 2, al. b) do C.I.R.E.), regula em que casos se considera existir uma relação de domínio.
Diz-se na decisão recorrida que, detendo o Novo Banco, a 100%, a GNB, não restam dúvidas relativamente ao domínio da mesma, o que obriga a considerar o Recorrente como pessoa especialmente relacionada com o insolvente.
Com efeito, do n.º 3 do citado art.º 49.º do CIRE resulta, como vimos, que nos casos de insolvência de um património autónomo são consideradas pessoas especialmente relacionadas os respetivos titulares e administradores, bem como as que estejam ligadas a estes por alguma das formas previstas nos números anteriores. A referência aqui feita é expressa, para os “números anteriores”, e não apenas para o n.º 1, como pretende o Recorrente. E, assim sendo, como é, temos que, por um lado, a GNB, sendo administradora do Fundo, é, por ser assim, e desde logo, abrangida pelo normativo em análise; por outro lado, o Recorrente, dada a relação de domínio existente, por ser detentor a 100% da GNB (o que, de resto, o mesmo não contesta), é igualmente abrangido pelo mesmo normativo, agora por via da al. b) do n.º 2 do aludido preceito legal.
Donde, e sem mais, sendo pessoa especialmente relacionada, deve, à partida, ver o seu crédito classificado, como o foi, como subordinado.
(iv) Não obstante, e continuando, defende ainda o Recorrente que, mesmo a considerar-se a aplicação da al. b) do n.º 2 do art.º 49.º do CIRE, ainda assim, o seu crédito jamais poderia ser classificado como subordinado, pois para esse efeito, o que importa, verdadeiramente, é aferir o tipo de relação existente entre as duas entidades em causa, reiterando que à GNB, na sua atividade de administração de Fundos de Investimento, e ao Fundo aqui Insolvente, está vedada a possibilidade de receberem instruções de qualquer outra pessoas/entidade que não sejam os participantes do Fundo. Donde, alega então, não resultando demonstrado que a GNB forneceu ao Novo Banco, direta ou indiretamente, qualquer informação privilegiada sobre a situação do Fundo Insolvente, que o colocasse numa situação de superioridade face aos demais credores, e não sendo alegada qualquer violação do dever de independência na defesa dos interesses dos participantes, jamais poderia concluir-se como na decisão recorrida. Ademais, alega ainda, a escolha da GNB, enquanto entidade gestora do Fundo agora insolvente, foi efetuada pelos participantes do mesmo e não pelo aqui Recorrente, exercendo sempre a GNB a sua atividade de gestão com total autonomia e sem qualquer tipo de ingerência por parte do Novo Banco.
Apreciando.
A classificação de determinados créditos como subordinados tem na lei um pressuposto penalizador, determinado por razões relacionadas com a qualidade do seu titular e circunstâncias inerente à constituição dos créditos, que justifica, digamos assim, um tratamento menos favorável a este tipo de credores, que só obterão pagamento após serem totalmente satisfeitas todas as demais categorias precedentes (art.º 177.º, n.º 1, do CIRE). Efeito penalizador que, nos autos, se assume bastante gravoso dado que o Recorrente é credor beneficiário de diversas hipotecas sobre os imóveis aprendidos para a Massa.
Tem sido discutida na doutrina e na jurisprudência a questão de saber se a constatação do vínculo ou situação pessoal expresso no aludido art.º 49.º do CIRE constitui uma presunção iuris tantum ou iuris et de iure de uma relação especial com o devedor.
Nos dizeres de Carvalho Fernandes e João Labareda (obra citada, pág. 234), «A simples constatação do vínculo ou da situação de que é feita depender a qualificação como pessoa especialmente relacionada com o devedor basta para que ela opere e desencadeie os seus efeitos; por assim ser, não pode, em circunstância alguma, o atingido afastá-los com a alegação e prova de que esse vínculo ou situação em nada determinou ou condicionou o relacionamento com o devedor ou mesmo com a demonstração que desse relacionamento resultaram – ou até resultaram só – benefícios para o devedor», dizendo Alexandre Soveral Martins (Um Curso de Direito de Insolvência, Vol. I, 4ª edição, Almedina, pág. 405), sobre esta questão que «Pensamos que ali não encontramos presunções legais, mas sim normas imperativas».
Donde forçoso se impõe concluir que, presunções ou normas imperativas, certo é que, no presente caso, verificadas e integradas as als. b) e c) dos n.ºs 2 e 3 do art.º 49.º do CIRE, imediata e necessariamente se concluiu pela existência de uma especial relação com o devedor, que não pode depois ser afastada pelo Recorrente com a alegação de que estava de boa fé e que aquela relação não condicionou, de forma alguma, o nascimento do aludido crédito, obrigando a uma demonstração efetiva de uma situação de informação privilegiada ou uma concreta violação do dever de independência. De resto, tal constatação resulta de forma algo linear do ponto 25 do diploma preambular que institui o CIRE, onde se consignou que «A categoria dos créditos subordinados abrange ainda, em particular, aqueles cujos titulares sejam ‘pessoas especialmente relacionadas com o devedor’ (seja ele pessoa singular ou coletiva, ou património autónomo), as quais são criteriosamente indicadas no artigo 49.º do diploma. Não se afigura desproporcionada, situando-nos na perspetiva de tais pessoas, a sujeição dos seus créditos ao regime de subordinação, face à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, relativamente aos demais credores. O combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, de parentesco, especial proximidade, dependência ou outras, para praticar atos prejudicais aos credores é prosseguido no âmbito da resolução de atos em benefício da massa insolvente, pois presume-se aí a má fé das pessoas especialmente relacionadas com o devedor que hajam participado ou tenham retirado proveito de atos deste, ainda que a relação especial não existisse à data do ato».
Neste sentido, convocamos também os acórdãos do STJ de 23/05/2019, relatado por Graça Amaral, no proc. 1517/14.5T8STS-B.P1.S1; de 10/11/2020, relatado por Ana Paula Boularot, no proc. 4542/19.6T8VNG-B.P1.S1; e, por fim, o de 26/01/2021, relatado por Henrique Araújo, no proc. 908/19.0T8OAZ-B.P1.P1.S1, todos eles no sentido da interpretação assim defendida.
Por ser assim, como é, a relação de domínio existente, à data da constituição dos créditos reclamados os autos, entre Recorrente e sociedade gestora do insolvente, e que não pode agora ser questionada ou discutida no sentido de se fazer crer que em nada interferiu naquela constituição de créditos, impõe que o Recorrente seja considerado «pessoa especialmente relacionada» para fins de classificar os seus invocados créditos como subordinados, por imperativo legal.
(v) Por último, e como vimos, defende ainda o Recorrente, que os seus créditos nasceram 10 anos antes (2006) da declaração de insolvência (2017), sendo assim acontecimentos de tal forma distantes no tempo que têm de ser encarados como completamente independentes entre si.
Tal tese, a vingar, obrigaria, em bom rigor, a uma interpretação restritiva do estatuído na al. a) do art.º 48.º e o art.º 49.º do CIRE, de forma a abranger na sua previsão apenas os casos em que se pudesse estabelecer um qualquer nexo temporal entre o nascimento do crédito e a insolvência do devedor. Argumenta o Recorrente que o elemento racional ou teleológico subjacente à interpretação daquelas normas e o seu regime particularmente penalizador visa evitar o injusto favorecimento dos credores que, por via da especial relação/superioridade informativa que mantêm com o Insolvente, possam, com a sua conduta, violar o princípio da igualdade dos credores e as finalidades dos processos de insolvência.
Ora, apelando novamente aos acórdãos do STJ acima citados, estamos em crer que, na verdade, da letra da lei resulta, como única condição, para a classificação como subordinados de créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, o facto de essa relação com o devedor já existir aquando da constituição daqueles créditos.
É certo que aquela interpretação restrita foi já defendida em anterior acórdão do STJ (de 06/12/2016, relatado por José Rainho, disponível na dgsi), no que teve aceitação em alguma doutrina, desde, logo, Catarina Serra (Lições de Direito e Insolvência, 3ª edição Almedina, pág. 79/80) que aceita uma “interpretação corretiva da noção legal de pessoa especialmente relacionada”.
Não obstante, e como se retira de forma expressa do acórdão de 23/05/2019, tal interpretação não se afigura defensável à luz do art.º 9.º do CC, tendo por base a letra da lei. Ali se defende e argumenta que «… a lei mostra-se clara ao consignar que a simples constatação do vínculo (…) faz operar a qualificação de pessoa especialmente relacionada com o devedor, não podendo ser afastada com a demonstração da irrelevância (ou até do benefício) do vínculo (presunção inilidível). Assentou, pois, a lei em certas razões objetivas que entendeu que deveriam ser individualizadas e, nessa medida, indicou-as criteriosamente no artigo 49º. Por outro lado, nos casos em que a lei entendeu dar relevância ao aspeto temporal na relação com o devedor insolvente para efeitos de qualificação de pessoas especialmente relacionadas com este, expressamente o indicou (alínea d) do nº 1, no caso do devedor/pessoa singular; alíneas a) a d) do n.º 2, relativamente ao devedor/pessoa coletiva). Assim, a conceptualização da categoria dos créditos subordinados prevista nos artigos 48º (…) e 49º, nº 1, alíneas a) a c), ambos do CIRE, basta-se na relação especial definida pelo legislador, não se encontrando sujeita a qualquer período temporal limitativo. Entendemos, por isso, que o equívoco de uma interpretação restritiva assente no elemento teleológico (para além de não comportar um mínimo de correspondência no seu texto) é o de confinar a finalidade do comando legal à perspetiva da data da constituição do crédito (relativamente ao início da situação insolvencial do devedor) sendo que, cremos, a ênfase da lógica da lei situa-se, sobretudo, na prossecução da finalidade do processo de insolvência (a satisfação dos credores) em todas as suas várias fases, particularmente, na de pagamento; daí que, nesta ótica, se mostre irrelevante na caracterização da especial relação com o devedor (…) uma apreciação do nexo temporal entre a constituição do crédito e uma futura condição insolvencial».
Donde, e também por aqui, subscrevendo tal raciocínio, falece a argumentação do Recorrente.
Ademais, o legislador de 2022 (DL 9/2022), sabedor desta polémica, nela não interferiu, não consignando na lei qualquer limite temporal entre a constituição daqueles créditos e a declaração de insolvência, bastando-se com o facto de essa relação existir aquando da constituição dos reclamados créditos. Não vemos, pois, até pela incerteza e insegurança jurídica que daí decorreria, que se possa alcançar a visada interpretação restritiva dos normativos em análise, que, de resto, não tem na letra da lei uma qualquer correspondência.
Concluímos, pois, que os créditos aqui em causa não perdem a natureza de créditos subordinados em função do lapso de tempo que separou a sua constituição do momento em que se iniciou o processo de insolvência.
Por conseguinte, falece a primeira pretensão recursiva do Recorrente, mantendo-se a decisão em crise na parte em que desconsiderou a garantia hipotecária dos seus aludidos créditos, classificando-os como subordinados.
*
Do Crédito da Sociedade de Construções GG, Lda.​:
Em segundo lugar, insurge-se o Recorrente contra a classificação do crédito da credora GG, crédito que, na decisão recorrida, foi reconhecido, pelo valor de €650.000,00, como garantido por direito de retenção.
O Novo Banco contesta essa decisão, afirmando que não há provas suficientes de que a sociedade GG tenha posse sobre o imóvel, alegando que, “é dos autos”, uma vistoria realizada pela Câmara Municipal de …. em 2021, onde se constatou que o imóvel estava abandonado e em péssimas condições, concluindo assim que o crédito da sociedade deveria ser classificado como comum, e não garantido.
Impugna ainda, no que a esta credora concerne, a matéria de facto considerada na decisão recorrida, anotando que à mesma devem ser aditados dois factos (à luz do art.º 640.º do CPC), pois que, na verdade, alega, a matéria de facto dada como provada é omissa quanto à factualidade subjacente ao aludido crédito.
Pede, pois que sejam aditados:
«G- No dia 27 de maio de 2021, foi efetuada a vistoria prevista pelo n.º 1 do art.º 90.º do decreto-lei n.º 555/99 de 16 de dezembro, da qual resultou o Auto de vistoria n.º 33/2021, ao prédio sito em lote 9, Vale Serves, freguesia de …., com a descrição predial n.º …, freguesia de …, da Conservatória do Registo Predial de ….
H- A comissão de vistorias, no auto de vistoria n.º 33/2021, verificou que as obras de urbanização do edifício e consequentemente determinou o seguinte: (…)».
Vejamos então.
No que concerne ao crédito aqui em causa, em boa verdade, o Tribunal a quo não proferiu qualquer decisão expressa de fixação de matéria de facto, provada ou não provada, sobre a impugnação deduzida pela GG, dando apenas por assente a matéria por aquela alegada em sede de articulação processual, que depois juridicamente enquadrou.
Da fundamentação jurídica relativa a tal crédito, retira-se então, que foi entendido pelo tribunal a quo que a factualidade alegada pela impugnante se encontrava provada (ainda que não procedesse devidamente à sua inserção na decisão fática), sustentando a mesma o direito de retenção invocado. Com efeito, pode ler-se na decisão recorrida que «A Sociedade de Construções GG, Lda. deduziu a sua impugnação por requerimento de 09-11-2017 (Refª 16874504), requerendo que o seu crédito no montante de €650.000,00, seja reconhecido e graduado como crédito garantido por direito de retenção e privilegiado, com preferência sobre o credor hipotecário. Alegou, para tanto, que celebrou com a insolvente um contrato de empreitada que tinha como objeto a construção de 14 apartamentos, 2 lojas e estacionamentos para as frações no lote 9 da Urbanização sita em Ferreiras, Albufeira, tendo executado a construção até à fase dos acabamentos no valor de €750.000,00. Como a insolvente apenas pagou €100.000,00 a impugnante não deu continuidade à obra, retendo a mesma, nomeadamente, vedando a mesma e colocando placas informativas de que a obra tinha sido suspensa e se encontrava retida por conta do empreiteiro.
Não foi apresentada qualquer resposta a esta impugnação. Ora, os factos alegados pela impugnante sustentam a conclusão de que a mesma é beneficiária do direito de retenção sobre as frações que identifica, factualidade, aliás que não foi contestada por qualquer outro credor ou interessado, e que resulta da prova documental – registos fotográficos – que instrui a sua impugnação».
Daqui resulta, pois, que não tendo sido apresentada qualquer resposta à impugnação que a Credora Impugnante deduzira à lista de créditos apresentada pelo AI, que quantificou tal crédito em €650.000,00 e qualificou o mesmo como “comum”, o tribunal recorrido não fez daí derivar (o que seria indevido) o efeito cominatório pleno da procedência da impugnação, antes considerando os factos alegados para a apreciação que fez, por, na verdade, não terem sido postos em causa por nenhum credor, nem pelo AI, e terem assento nos registos fotográficos juntos aos autos, daí concluindo e enquadrando juridicamente o crédito daquela impugnante.
Como é sabido, sendo pacifico na jurisprudência do STJ, a falta de resposta à impugnação à lista de créditos não pode levar à procedência automática da pretensão impugnatória (efeito cominatório pleno), devendo o tribunal atentar nos factos alegados que possam estar provados - desde logo, por confissão, em face da falta de contestação à impugnação - e desde que a prova dos mesmos não exija ou reclame prova específica. Veja-se, a título de exemplo, o acórdão de 05/04/2022, proferido no processo n.º 2115/19.2T8STS-E.P1.S1, relatado por José Rainho, e acessível em www.dgsi.pt, assim sumariado, em parte «I- A falta de resposta à impugnação à lista de créditos (CIRE) não pode levar à procedência automática da pretensão impugnatória (efeito cominatório pleno). II- Ao invés, competirá ao tribunal verificar que factos é que estão provados, nomeadamente por confissão ficta decorrente da não contestação da impugnação e por documentos, aplicando-lhes depois o direito que for devido. III- Se o que levou o acórdão recorrido a considerar procedente a impugnação do credor impugnante foi a circunstância de os factos articulados pelo credor (e tidos por confessados por ausência de resposta à impugnação) e de os documentos constantes do processo levarem à conclusão de que o crédito existia, então não há que falar em decisão fundada em indevido efeito cominatório pleno.
Foi o que fez o tribunal a quo, ainda que se limitando a fazer referência a tais factos na apreciação jurídica da pretensão da impugnante, quando, em bom rigor, os mesmos deveriam estar insertos na factualidade provada.
Por ser assim, e à luz do art.º 662º n.º 1 do CPC, tendo em conta os factos relevantemente alegados que não foram impugnados e os documentos juntos e aceites (registos fotográficos), importa proceder à fixação da matéria de facto provada sobre a questão aqui em recurso.
Tenha-se assim em atenção que a sociedade GG, na impugnação que apresentou quanto à quantificação e qualificação do seu crédito na lista apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência, alegou:
(i) a celebração de um contrato de empreitada com o Insolvente para a construção de 14 apartamentos, 2 lojas e estacionamentos para as frações;
(ii) que executou a construção até à fase dos acabamentos no valor de €750.000,00;
(iii) que o Insolvente apenas pagou €100.000,00, encontrando-se em dívida €650.000,00;
(iv) que suspendeu a obra, retendo-a e vedando-a, com a informação que a obra estava suspensa por conta do empreiteiro.
Pois bem, toda essa factualidade, pode e deve ser julgada provada, por efeitos de não resposta à impugnação deduzida.
Com efeito, recorrendo às regras do processo comum de declaração, e desde logo aos arts.º 574.º e 567.º n.º 1 do CPC, atento o disposto no art.º 17.º do CIRE, verificamos que devem considerar-se confessados os factos articulados pelo autor, quando o réu, regularmente citado, não os contesta, podendo dar-se por admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.
Donde, a alegação tardia do Novo Banco, em sede de recurso, de que não foi feita prova da existência do contrato de empreitada, das despesas tidas com a execução da obra, dos pagamentos realizados e da posse da credora, não colhe.
Em primeiro lugar, porque o crédito e sua sustentação foi devidamente alegado pela credora GG na impugnação que fez à lista do art.º 129.º do CIRE, no que não teve qualquer resposta, não podendo em sede de recurso da sentença de verificação e graduação de créditos ser agora discutido o montante do crédito reclamado (que, aliás, foi reconhecido pelo AI na lista apresentada nos autos, pelo valor reclamado, ainda que qualificado como comum) e circunstâncias que o rodearam, sem que tivesse sido dada oportuna resposta à impugnação.
A factualidade alegada, e confessada por falta de resposta, pode e deve ser dada por provada, o que aqui se decide fazer, aditando os mencionados factos à factualidade a ter-se em atenção para a questão a resolver.
Já no que respeita aos “factos” que o Recorrente pretende aditar, não vemos onde os documentos que os comprovam - e que, em bom rigor, foram “insertos em articulado de recurso” - estão juntos nem tal é identificado pelo Recorrente em alegações. Na verdade, analisados os autos, pela consulta eletrónica a que procedemos, não vemos quando e por quem foram juntos tais documentos, e tanto assim é que, em contra-alegações, a recorrida GG argumenta que se tratam de documentos juntos apenas em recurso. Na verdade, com as alegações de recurso não foram juntos quaisquer documentos, pelo que, das duas uma, ou existem e estão nos autos, o que não logramos comprovar, ou apenas foram mencionados e insertos em sede de articulado de recurso.
Seja como for, não esqueçamos, na sentença deve o juiz declarar os factos que julga provados e não provados, sinalizando cada um dos factos essenciais (nucleares ou complementares) que foram alegados no processo por cada uma das partes, de forma a cobrir todas as soluções plausíveis de direito, podendo ainda, e se tanto se mostrar necessário, apelar a factos complementares e concretizadores (ver, o que aqui seguimos de perto, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, págs. 741/744). Para além desses factos, essenciais e nucleares, por individualizadores do direito que se pretende, temos ainda (ver, novamente, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, obra citada, págs. 29/31), os factos complementares (constitutivos do direito ou das exceções, embora não identificadores do mesmo), os factos concretizadores (de anteriores afirmações de pendor mais genérico que tenham sido feitas), e os factos instrumentais (que são aqueles que permitem a afirmação, por indução, de outros factos de cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da exceção).
Donde, ao nível dos “factos” não vemos nenhuma matéria que tenha sido previamente alegada e não levada à factualidade, provada e não provada, a considerar na decisão recorrida que cumpra retificar, sendo certo que os documentos a que alude o Recorrente devem servir para fazer prova de determinados factos, e não para constituírem eles próprios os factos a considerar na decisão a proferir.
Donde, e sem mais, improcede o pedido de aditamento preconizado pelo Recorrente em apelação.
Não obstante, e anda assim, considerando a factualidade acima aditada, a qual, em bom rigor, foi já considerada pela 1ª Instância na decisão que proferiu, importa agora aferir se o crédito da credora GG está garantido por direito de retenção.
Vejamos então.
O direito de retenção, em moldes globais, é a faculdade atribuída ao devedor que está na posse de uma coisa de recusar a sua entrega, retardando-a, como meio de constranger o credor a cumprir uma obrigação em que se acha constituído para com ele. Consiste, pois, em simultâneo, num direito legal de garantia e num meio de coerção (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7ª ed., Almedina, Coimbra, 2001, p. 578).
E tal direito é, de um modo genérico, reconhecido ao empreiteiro que tenha crédito sobre o dono da obra, e por causa desse crédito, que deve, para o invocar validamente, alegar e demostrar que detém licitamente a coisa que estava obrigado a entregar e que tem um crédito que resulta de despesas realizadas por causa dessa mesma coisa ou de danos por ela causados. Através do exercício desse direito (regulado e previsto no capítulo relativo às garantias especiais das obrigações), garante assim a satisfação do seu crédito, retendo a obra e não entregando a mesma.
Com efeito, dúvidas não há, por força de um contrato de empreitada, definido no art.º 1207.º do CC, ambas as partes ficam sujeitas a direitos, deveres e obrigações. O dono da obra tem direito a que, no prazo acordado, lhe seja entregue a obra realizada nos moldes convencionados, devendo pagar o preço acordado no ato de aceitação da obra (1211.º n.º 2 do CC), e o empreiteiro, por seu lado, tem a obrigação de realizar a obra, em conformidade com o convencionado e sem vícios (art.º 1208.º do CC).
No caso dos autos, resulta que a credora empreiteira, conforme alegou, reteve a obra, objeto da empreitada, para garantia do pagamento dos valores que lhe eram devidos. Nada foi impugnado, contestado ou contraditado nos autos contra esta alegação, deduzida que foi em sede de impugnação da lista de créditos pela credora GG, o que, como vimos, nos permite assentar tal factualidade.
Alega, porém, o Recorrente que a obra foi abandonada (o que foi constatado por auto de vistoria, ali se propondo a remoção dos residios e detritos existentes, drenagem de águas, vedação de todo o perímetro da edificação e aterro e a notificação do AI para tomar as medidas assim preconizadas, o que foi feito por carta de 19/08/2021) e que isso obsta ao invocado direito de retenção.
Não cremos que assim seja.
Em primeiro lugar, por tal questão ser nova nos autos, não tendo sido, em momento prévio a este recurso, discutido o agora invocado abandono de obra. Ora, como é consabido, os recursos, são, por natureza, meios de impugnação de decisões judiciais, que apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo incidir sobre questões novas, com exceção, naturalmente daquelas questões cujo conhecimento oficioso se impõe ao tribunal (ver, nesse sentido, acórdão STJ de 27/05/25, relatado por Teresa Albuquerque, no proc. 3914/20.8T8GMR.G1.S1).
Por estas razões, não só não cabe no objeto deste recurso a discussão do crédito pelo montante verificado, que se encontra definitivamente fixado desde que reconhecido pelo AI, na lista do art.º 129.º do CIRE, sem que o montante reconhecido tenha sido objeto de qualquer impugnação, como também não cabe a discussão do alegado abandono de obra até então não trazido aos autos.
Em segundo lugar, porque o abandono de obra por banda do empreiteiro tem de ser demonstrado, ou seja, deve resultar de um comportamento que implique ou signifique uma efetiva renúncia ao cumprimento integral da sua prestação. Não é o caso quando a sociedade empreiteira alega que suspendeu os trabalhos e a obra em curso, devido ao não pagamento da mesma por parte do insolvente, sem esquecer que tal obra foi executada até à fase dos acabamentos, num valor de €750.000,00, de que o Insolvente apenas pagou €100.000,00.
Tal comportamento da empreiteira, que suspende a obra e que informa que a mesma fica suspensa, retendo-a, não é assim indicador de um comportamento de abandono de obra. E nada mais foi trazido aos autos que possa inverter esta factualidade. É um facto que a recusa por parte do empreiteiro em continuar a obra pode evidenciar um desinteresse na manutenção do contrato, que poderá, no limite, levar a um incumprimento do mesmo. Mas nos autos, o que foi alegado - e não oportunamente impugnado - não permite concluir por um efetivo abandono de obra. Ainda que se possa admitir que, em vistoria, aquele prédio se revelasse “abandonado” nem por isso podemos concluir, por si só, que afastado fica o direito do retentor, que vedou a obra e suspendeu os trabalhos por força do não pagamento dos mesmos, tanto mais que nada foi oportunamente invocado, como vimos, que contrariasse essa alegação. No acórdão do STJ de 12/10/2023, publicado na dgsi, relatado por Fernando Batista, no proc. 1823/19.2T8FNC.L1.S1, pode ler-se, com interesse para a temática aqui em causa que «(….) III. Porém, se o empreiteiro (ou o subempreiteiro) tiver uma conduta reveladora de uma intenção firme e definitiva de não cumprir a obrigação contratual de concluir a respetiva obra, está‑se perante uma situação de incumprimento definitivo a si imputável, podendo, então, o dono a obra (ou o empreiteiro, na subempreitada) resolver o contrato e exigir uma indemnização, sem necessidade de recorrer a prévia interpelação admonitória. IV. Uma atitude suscetível de revelar aquela intenção firme e definitiva de não cumprir a obrigação contratual de concluir a obra é o abandono da obra; sendo, porém, que o abandono da obra, só por si, não só não significa impossibilidade de prestação, como, também, suspender ou parar uma obra não é o mesmo que abandoná‑la, correspondendo às diversas situações efeitos jurídicos diferentes».
É certo que pouco materialidade fáctica sobre o contrato de empreitada, seus contornos, prazos e moldes de pagamento do preço foi carreado para os autos. No entanto, nada na factualidade apurada nos permite concluir pelo efetivo abandono de obra. Na verdade, pelo contrário. Alegado o contrato, o preço, o montante pago e o valor em falta, reconhecido, aliás, na lista de credores pela totalidade reclamada, e alegando a impugnante empreiteira a retenção da obra pelo não pagamento, nenhum articulado foi apresentado nos autos que colocasse verdadeiramente em crise a detenção da empreiteira relativamente à obra em construção, nem qualquer abandono da obra, nem mesmo sobre o valor do crédito que lhe foi reconhecido. Por ser assim, e como se consignou no acórdão do STJ de 12/12/2023, proferido no proc. 1024/13.3TBSCR-A.L1.S1, relatado por Luís Espirito Santo, também publicado na dgsi, «Não pode assim haver espaço ou oportunidade na fase recursiva para a alegação de novas questões que não foram objeto de discussão no momento processual adequado (como se as alegações de recurso se destinassem a debater factualidade aceite, aliás pacificamente, em sede de articulados – neste caso de impugnação à relação de créditos apresentada pelo administrador da insolvência). O que significa que a exigência da demonstração da detenção ou posse do empreiteiro relativamente à obra teria de haver sido atempadamente suscitada aquando da impugnação do reconhecimento do seu crédito, com a alegação, pela parte interessada, dos factos tidos por relevantes. Não o tendo sido – mormente por parte da credora veio a ceder o seu crédito à ora recorrente –, tal discussão não pode agora ser realizada no âmbito do presente recurso de revista, competindo aceitar o reconhecimento do crédito da credora empreiteira Primos feito pelo administrador da insolvência e daí retirar as inerentes consequências.
(…) Obviamente que o crédito da empreiteira existe – e foi nessa medida, de forma inequívoca, reconhecido pelo administrador de insolvência, sem impugnação em contrário – ainda que a obra não haja sido concluída por aquela ou ainda que não tenha tido lugar a venda das respetivas frações autónomas (…)».
Acompanha-se, pois, a decisão recorrida quando diz que «Ora, em conformidade com a factualidade alegada por esta impugnante e que se considera demonstrada, a mesma é credora da insolvente no âmbito de contrato de empreitada que teve por objeto a construção dos imóveis retidos, tendo a impugnante posse dos mesmos, com obra inacabada. (….). Termos em que julgo procedente a impugnação apresentada por Sociedade de Construções GG, Lda., reconhecendo à mesma um crédito no montante de €650.000,00, garantido por direito de retenção (…)».
Deste modo, impõe-se, pois, a improcedência do recurso interposto também nesta parte.
***
V-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam as Juízas desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a presente apelação, assim confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 25/11/2025
Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro
Isabel Brás Fonseca