DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
REQUISITOS
BLOQUEIO DE VALORES ESCRITURAIS
VALOR PROBATÓRIO
Sumário

Sumário[1]
1 –  São requisitos/pressupostos legais da deserção da instância: i) que o processo aguarde impulso processual das partes; ii) que a falta de impulso decorra de negligência das partes; iii) que essa falta de impulso ocorra há mais de seis meses.
2 –  A declaração, ou certificado de bloqueio, atesta o bloqueio e a respetiva função que é de gerar segurança no circuito transmissivo dos valores mobiliários. Consiste num registo em conta que tem o efeito de tornar temporariamente intransmissível determinado direito ou a titularidade de um valor mobiliário (art. 72º do CVM).
3 –  O bloqueio não se confunde com o certificado de registo previsto no art. 78º do CVM, que faz prova da «existência do registo da titularidade dos valores mobiliários a que respeita e dos direitos de usufruto, de penhor, e de quaisquer outras situações jurídicas que especifique, com referência à data em que foi emitido ou pelo prazo nele mencionado.»
4 –  A falta de junção dos certificados previsos no art. 78º do CVM apenas releva no domínio da prova da titularidade dos valores mobiliários. É assim, um documento probatório, que, quanto muito, poderá determinar a não prova da atual titularidade dos valores mobiliários invocados pelos impugnantes e não é um documento de que a lei faça depender o prosseguimento da impugnação, única circunstância em que a falta de um documento ordenado juntar corresponderia a falta de impulso processual.
5 - A reclamação de créditos em processo de insolvência de pessoa coletiva - que se extinguirá após o encerramento do processo -, e que já não poderá ser exercido após decorridos todos os prazos perentórios para o efeito, não corresponde ao exercício de um direito inerente aos valores mobiliários que implique o bloqueio dos mesmos nos termos da al. a) do nº1 do art. 72º do CVM, nomeadamente quando a reclamação tem por fundamento a responsabilidade do intermediário financeiro ou responsabilidade extracontratual pela prática de factos ilícitos, reclamando-se a verificação de crédito correspondente ao ressarcimento de prejuízos já sofridos.
6 - A falta de elementos/documentos relativos a meios probatórios ordenados juntar não acarreta o não prosseguimento dos autos e a deserção da instância, mas antes o seu prosseguimento e, com grande probabilidade, a prolação de uma decisão de mérito valorativa dessa falta, em função da repartição do ónus da prova.
____________________________________________________
[1] Da responsabilidade da relatora – art. 663º nº7 do CPC.

Texto Integral

Acordam os juízes da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório
Por sentença de 21/07/2016, transitada em julgado, foi determinado o prosseguimento da liquidação judicial de Banco Espírito Santo, SA.
A Comissão Liquidatária do Banco Espírito Santo, SA (doravante BES) veio, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 129º do CIRE, apresentar relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos.
P1 e P2 impugnaram a lista de credores reconhecidos, alegando indevida exclusão do crédito por si reclamado, de € 43.200,00, relativo a Credit Linked Notes que adquiriu e que tinham por entidade de referência a Portugal Telecom International Finance BV (PTIF), cujo reembolso não foi possível devido à conduta do Banco Espírito Santo, SA no esquema fraudulento que levou à compra de passivos financeiros por parte da PT SGPS.
Juntaram nota de compra dos valores em causa, com data de 30/08/2013, emitida pelo Deutsch Bank.
P3 veio impugnar a lista de credores reconhecidos, alegando indevida exclusão do crédito por si reclamado, de € 54.076,71, relativo a Credit Linked Notes que adquiriu e que tinham por entidade de referência a Portugal Telecom International Finance BV (PTIF), cujo reembolso não foi possível devido à conduta do Banco Espírito Santo, SA no esquema fraudulento que levou à compra de passivos financeiros por parte da PT SGPS.
Juntou declaração de titularidade datada de 24/11/2017, nos termos da qual o Deutsch Bank Ag declarou que, até 03/08/2016 se encontravam depositados 50 obrigações NT DB Rendimento Portugal Telecom (ISIN:XS0947870506), valor nominal de Eur 1.000,00, adquirida em 17/09/2013 por P3.
Farbert Trading Limited, P4 e P5 impugnaram a lista de credores reconhecidos, alegando indevida exclusão dos créditos por si reclamados, de € 250.000,00 e respetivos juros, relativo a investimentos efetuados pelo seu gestor de conta na Sucursal Financeira Exterior da Madeira do Banco Espírito Santo contra as suas orientações.
Juntaram extrato patrimonial do Novo Banco, extraído em 13/02/2019.
Em 15/02/2023 foi proferido o seguinte despacho:
“Notifique os credores impugnantes que sejam titulares de valores mobiliários escriturais para virem juntar aos autos, no prazo de 10 dias, os respectivos certificados de bloqueio nos termos dos artigos 72.º e 78.º, do Código dos Valores Mobiliários.”
Em 02/03/2023 foi proferido o seguinte despacho:
“Requerimento da Comissão Liquidatária do Banco Espírito Santo, S.A., de 1 de Março de 2023, relativamente aos certificados de bloqueio (e por inerência todos os requerimentos apresentados pelos credores impugnantes relativamente a esta questão).
Atentas questões suscitadas:
I - Determina-se o seguinte:
a) Defere-se o prazo requerido de sessenta (60) dias para a Comissão Liquidatária proceder à emissão dos certificados com a menção de bloqueio a todos os impugnantes titulares de valores mobiliários escriturais por si emitidos;
b) Os certificados de bloqueio terão uma validade de 30 dias após a sua emissão;
II – Esclarece-se o seguinte:
a) Só estão obrigados a vir juntar aos autos os referidos certificados os credores impugnantes cujas impugnações não tenham sido objecto de extinção;
b) A Comissão Liquidatária só poderá emitir os certificados referentes a valores mobiliários emitidos pelo Banco Espírito Santo, S.A.;
c) Os pedidos de emissão de certificados de bloqueio dirigidos à Comissão Liquidatária deverão estar obrigatoriamente instruídos com todos os elementos de identificação dos respectivos titulares e sempre que possível com os dados relativos aos valores mobiliários subscritos por aqueles;
d) Os credores impugnantes que sejam titulares de valores mobiliários deverão comunicar aos autos a transmissão dos referidos valores sempre que os transmitirem a terceiros.
*
Notifique.”
Em 14/07/2025 foi apresentado requerimento por P6 e outros, credores impugnantes, expondo as dificuldades na obtenção de certificados de bloqueio e requerendo a prorrogação do prazo para junção dos documentos em falta por mais 60 dias.
Em 15/07/2025 foi proferido o seguinte despacho:
“IV – Por despacho datado de 15 de Fevereiro de 2023 (e posteriormente objecto de esclarecimento em 2 de Março de 2023) foram os impugnantes notificados para virem juntar os certificados de bloqueio referentes aos instrumentos financeiros que adquiriram e que justificaram, numa primeira fase, as suas reclamações de crédito e posteriormente as impugnações à lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos.
Os impugnantes:
- FARBER TRADING LIMITED, P4 e P5 (vol. 414);
- A (vol. 193);
- B (vol. 862);
- C (vol. 864);
- D (vol. 865);
- P1 e P2 (vol. 867);
- P3 (vol. 869);
- E (vol. 879),
Até à presente data não juntaram os mencionados certificados, estando manifestamente ultrapassado o prazo previsto no artigo 281.º do Código de Processo Civil.
Assim e ao abrigo dos princípios da cooperação e da boa fé processual, deverão os referidos impugnantes virem juntar o referido documento no prazo de dez dias, sob pena de ser imediatamente julgada a extinta a instância nos termos do citado preceito legal.”
Em 24/07/2025 foi apresentado requerimento por P6 e outros, credores impugnantes, reiterando o exposto em 14/07/2025, referindo que não vislumbram de que forma a não junção do certificado de bloqueio compromete a boa decisão da causa ou sequer a sua tramitação regular e que a ausência de junção do certificado de bloqueio, nos presentes autos, não constitui, em rigor, uma omissão de impulso processual nos termos e para os efeitos do artigo 281.º do Código de Processo Civil, mas sim a falta de um meio de prova documental cuja relevância deve ser aferida na apreciação do mérito da causa, caso o Tribunal assim o entenda, requerendo, que se notifique o Novo Banco S.A. para juntar os certificados de bloqueio de todos os credores impugnantes.
Em 01/09/2025 foi proferido o seguinte despacho:
“VIII – Impugnações de:
- FARBER TRADING LIMITED, P4 e P5 (vol. 414);
- A (vol. 862);
- B (vol. 864);
- C(vol. 865);
- P1 e P2 (vol. 867);
- P3 (vol. 869);
- D (vol. 879) e
- E (vol. 1593):
Por despacho datado de 15 de Fevereiro de 2023 (e posteriormente objecto de esclarecimento em 2 de Março de 2023) foram os aludidos impugnantes notificados para virem juntar os certificados de bloqueio referentes aos instrumentos financeiros que adquiriram e que justificaram, numa primeira fase, as suas reclamações de crédito e posteriormente as impugnações à lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos.
Em virtude de até ao dia 15 de Julho de 2025 não terem junto os indicados certificados e estando manifestamente ultrapassado o prazo previsto no artigo 281.º do Código de Processo Civil, os referidos impugnantes foram notificados para virem, no prazo de dez dias, juntar os documentos em questão, sob pena de ser imediatamente julgada a extinta a instância nos termos do citado preceito legal.
Regularmente notificados, até à presente data os impugnantes em questão não juntaram os referidos certificados de bloqueio, nem justificaram essa omissão.
Pelo exposto, julgo deserta a instância nos termos do artigo 281.º, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.”
Inconformados apelaram Farber Trading Limited, P4, P5, P1, P2 e P3, pedindo a revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento dos autos para apreciação das impugnações deduzidas pelos recorrentes, formulando as seguintes conclusões:
“I. Vem o presente recurso de apelação interposto do despacho do Tribunal a quo proferido a 01.09.2025, com a referência Citius 447930417, por via do qual foi ordenada a deserção da instância dos Apelantes por não ter sido junto o certificado de bloqueio, dentro do prazo concedido para o efeito.
II. Tal decisão assenta na interpretação do artigo 281.º do Código de Processo Civil, que exige, para a deserção da instância, a verificação de inércia processual superior a seis meses, imputável por negligência às partes.
III. No caso dos autos, inexiste qualquer paralisação do processo por mais de seis meses, tendo os Apelantes apresentado requerimentos sucessivos e justificado de forma fundamentada a dificuldade de obtenção do documento em causa.
IV. O certificado de bloqueio, cuja ausência motivou a decisão recorrida, é um documento cuja emissão depende exclusivamente de terceiros – nomeadamente o Novo Banco, S.A. - e está fora do controlo direto e imediato dos Apelantes.
V. A conduta do Novo Banco, S.A. tem sido irregular e não uniforme, com disparidades evidentes na emissão dos certificados, conforme reportado pelos Apelantes, situação essa agravada pelo facto de muitos se encontrarem emigrados e impedidos de tratar presencialmente do assunto.
VI. O Tribunal a quo, tendo considerado tal documento essencial, poderia - e deveria tê-lo requisitado diretamente à entidade bancária, ao abrigo do artigo 429.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
VII. Ao invés, optou por aplicar a sanção mais gravosa possível — a deserção da instância — sem antes esgotar os mecanismos legais disponíveis, violando os princípios basilares das disposições legais existentes em Portugal, nomeadamente a própria Constituição da República Portuguesa.
VIII. A imposição de tal consequência extrema, face a uma omissão documental meramente formal e objetivamente justificada, compromete o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva.
IX. A jurisprudência maioritária tem vindo a distinguir claramente entre omissão de impulso processual (que pode justificar deserção) e falta de prova documental (que apenas se repercute na decisão de mérito), pelo que a aplicação do artigo 281.º CPC à presente situação é incorreta.
X. Ao declarar deserta a instância com base na falta de um documento bancário, cuja não obtenção foi justificada pelos Apelantes, o Tribunal a quo impôs uma consequência processual ilegítima e desproporcional, ferindo os princípios estruturantes do processo civil e os direitos fundamentais dos Apelantes.
XI. Assim, andou mal o Tribunal a quo ao ordenar a deserção da instância dos Apelantes.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido por despacho de 17/10/2025 (ref.ª 449438874).
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
*
2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso[2]. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas, a única questão a apreciar é a de se estão reunidos os pressupostos para a deserção da instância relativamente às impugnações à lista de credores apresentadas pelos recorrentes, nos termos do nº1 do art. 281º do CPC.
*
3. Fundamentos de facto:
Os factos com relevância para a decisão do incidente são os constantes do relatório.
*
4. Fundamentos de direito
O presente apenso de verificação e graduação de créditos foi instaurado por apenso a um processo de liquidação de instituição de crédito, o qual se rege pelas regras do Decreto-Lei n.º 199/2006 de 25/10, na sua versão atual[3], nos termos de cujo art. 8º nº1, em tudo o que não esteja previsto neste diploma, se aplicam as normas do CIRE.
Por sua vez, nos termos do art. 17º nº1 do CIRE, é direito subsidiário o Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do CIRE.
Assim, o exercício de determinação do direito subsidiário aplicável passa pela análise sucessiva dos regimes aplicáveis, pela ordem resultante da lei.
Regulam a liquidação judicial de instituições de crédito (e, com as devidas adaptações, de sociedades financeiras) os arts. 8º e ss. do Decreto Lei nº 199/2006, prevendo-se, no art. 9º nº3, a aplicabilidade das disposições do CIRE à tramitação subsequente ao despacho de prosseguimento «que se mostrem compatíveis com as especialidades constantes deste decreto-lei, com exceção dos títulos IX e X[4]
Passando ao direito subsidiário de primeira linha, prescreve o art. 1º nº1 do CIRE que «O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.».
Dado que, nos termos do nº3 do art. 9º do Decreto Lei nº 199/2006 aos processos de liquidação judicial de instituições de crédito não é aplicável o título IX, ou seja, o plano de insolvência, o art. 1º nº1 do CIRE tem que ser lido com esta limitação resultante do regime próprio do Decreto Lei nº 199/2006: o processo de liquidação judicial de instituições de crédito é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela liquidação do património do devedor insolvente.
Esta é a regra que temos que manter sempre presente ao interpretar e aplicar as regras próprias do CIRE e as regras subsidiariamente aplicáveis.
O processo de insolvência é um processo especial que, quanto à sua natureza, pode ser considerado misto, com uma fase marcadamente declarativa (até à declaração de insolvência) e outra claramente executiva (após a declaração de insolvência com liquidação de todo o património do devedor que integra a massa insolvente para satisfação dos credores ou através da aprovação de um plano de insolvência)[5].
Por sua vez, o processo de liquidação judicial de instituições de crédito é, assim, em resultado do regime previsto, um processo de natureza executiva com incidências de natureza declarativa[6] – estando excluída a fase declarativa inicial e a possibilidade de satisfação dos credores através de um plano de insolvência – que visa a satisfação dos credores mediante a liquidação de todo o património do devedor.
Nos termos do nº1 do art. 17º do CIRE, o processo de insolvência e os demais processos previstos no mesmo são regidos pelas regras deste código e, subsidiariamente pelo Código de Processo Civil, «em tudo o que não contrarie as disposições do presente código.».
Trata-se de uma regra de função similar à prevista no art. 549º nº1 do CPC (onde estabelece que os processos especiais se regem pelas regras próprias e, subsidiariamente pelas gerais e comuns e que se segue o processo executivo quando haja lugar a venda de bens, sublinhando-se, porém expressamente, no nº1 do art. 17º do CIRE a primazia das regras do CIRE.
A regra releva que o próprio CIRE tem regras gerais e comuns (por exemplo, os primeiros 17 artigos do código), estabelecendo-se, assim, o seguinte percurso de subsidiariedade:
Em 1º lugar – as regras próprias do Decreto Lei nº 199/2006;
Em 2º lugar – as regras próprias do CIRE que se mostrem compatíveis com as regras do Decreto Lei nº 199/2006;
Em 3º lugar – as regras do CPC se não contrariarem as regras do Decreto Lei nº 199/2006 e as regras específicas do CIRE e se não contrariarem as regras gerais e comuns do CIRE e,
Em 4º lugar, se necessário, adaptadas às regras gerais e comuns do CIRE.
Percorrendo os diplomas, não encontramos regulado no Decreto-Lei n.º 199/2006 regulado qualquer aspeto relativo à instância de tais processos.
Passando ao direito subsidiário de primeira linha, o CIRE, não encontramos qualquer regulação sobre a deserção da instância.
Seguindo o percurso traçado de aplicação do direito subsidiário concluímos pela aplicação do art. 281º nº1 do CPC, se necessário, com as devidas adaptações.
Estabelece-se neste preceito:
«1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.»
Trata-se de regra introduzida na revisão processual civil de 2013 que fundiu e simplificou os anteriores artigos 285º e 291º do CPC, eliminando a interrupção da instância, prevendo um prazo mais curto e atualizando as designações utilizadas.
A propósito desta norma tem sido discutida, essencialmente, a questão do contraditório necessário, relacionado coma noção de negligência, em controvérsia jurisprudencial a que foi posto termo com o AUJ nº 2/2025 de 26 de fevereiro.[7]
No caso dos autos o tribunal, pese embora não decidindo expressamente o requerimento que lhe havia dirigido – no sentido de ordenar diretamente à entidade bancária Novo Banco a junção dos certificados de bloqueio de todos os credores impugnantes – indeferiu-o implicitamente, declarando a deserção da instância das impugnações deduzidas pelos credores que não satisfizeram a ordem prévia de junção de certificados de bloqueio.
O que o tribunal a quo fez foi proceder a uma adaptação do disposto no nº1 do art. 281º do CPC, pensado para a deserção da instância declarativa em processo comum, e determinou a deserção da instância de cada uma das impugnações.
A reclamação de créditos em insolvência, é como em processo executivo singular, um apenso de natureza declarativa, no qual se visa a declaração do montante e graduação dos créditos a satisfazer através do produto da liquidação dos bens e direitos que compõem a massa insolvente[8].
Tratando-se de um processo concursal, adaptou-se a noção de instância a cada uma das impugnações deduzidas, sendo adequada a adaptação, dado que é a impugnação da lista que, por regra, implica atividade processual e jurisdicional, no tocante ao crédito impugnado, podendo suceder-se resposta à impugnação (131º CIRE), saneamento (136º do CIRE), produção de prova e julgamento (137º a 139º CIRE) e, finalmente sentença (140º CIRE).
Ou seja, embora num único apenso – no caso concreto, já que o crédito terá sido reclamado no apenso de reclamação – e com tramitação simultânea, cada impugnação e cada resposta se revestem de autonomia no tocante à produção de prova e apreciação, de facto e de direito.
Nestes termos, mostra-se correta a asserção de que a cada impugnação corresponde a instância respetiva que pode sofrer vicissitudes.
São requisitos/pressupostos legais da deserção da instância: i) que o processo aguarde impulso processual das partes; ii) que a falta de impulso decorra de negligência das partes; iii) que essa falta de impulso ocorra há mais de seis meses[9].
A paragem do processo que empresta relevo ao decurso do tempo deve ser “o resultado (causalmente adequado) de uma conduta típica integrada por dois elementos: a omissão de um ato que só ao demandante cabe praticar; a negligência deste.”[10]
No caso concreto o despacho ordenando a junção de certificados de bloqueio foi proferido em 2023 e, em setembro de 2025 já haviam decorrido muito mais de seis meses sem a respetiva junção tenha sido efetuada.
Os requerimentos juntos nada adiantaram no tocante a duas das impugnações em causa (em relação às quais não foi alegada qualquer relação com o Novo Banco, por as obrigações terem sido adquiridas através do Deutsch Bank e serem relativas a empresa do universo PT, não sendo alegado estarem depositadas no Novo Banco, não se lhe aplicando qualquer das dificuldades reportadas).
O primeiro ponto a analisar é de se o prosseguimento da apreciação destas três impugnações dependia de impulso processual das partes mediante a junção dos certificados de bloqueio.
Para o efeito teremos que aferir a natureza e função dos documentos cuja junção foi ordenada e cuja falta foi valorada como falta de impulso processual.
O bloqueio está previsto no art. 72º do CVM, aplicável a valores mobiliários escriturais, sendo previstas duas modalidades de bloqueio: obrigatória, nos termos do nº1; e a facultativo, nos termos do nº2.
O bloqueio, nos termos do nº3 do preceito consiste num registo em conta, com indicação do seu fundamento, do prazo de vigência e da quantidade de valores mobiliários abrangidos.
Durante o prazo de vigência do bloqueio, a entidade registadora fica proibida de transferir os valores mobiliários bloqueados, nos termos do nº4.
A declaração, ou certificado de bloqueio, atesta o bloqueio e a respetiva função que é de gerar segurança no circuito transmissivo dos valores. “Tecnicamente, consiste num registo em conta que tem o efeito de tornar temporariamente intransmissível determinado direito ou a titularidade de um valor mobiliário (art. 72º nº4).”[11]
Não se confunde com o certificado de registo previsto no art. 78º do CVM, que faz prova da «existência do registo da titularidade dos valores mobiliários a que respeita e dos direitos de usufruto, de penhor, e de quaisquer outras situações jurídicas que especifique, com referência à data em que foi emitido ou pelo prazo nele mencionado.»
O que sucede, com frequência, é que a emissão de certificado nos termos do art. 78º do CVM implica o bloqueio dos valores cujo registo demonstra nos termos do disposto no art. 72º nº1, al. a) do CVM[12], o que implica que o certificado também certificará o bloqueio.
Prescreve a al. a) do nº1 do referido art. 72º que estão obrigatoriamente sujeitos a bloqueio os valores mobiliários escriturais «Em relação aos quais tenham sido passados certificados para exercício de direitos a eles inerentes, durante o prazo de vigência indicado no certificado, quando o exercício daqueles direitos dependa da manutenção da titularidade até à data desse exercício;»
Note-se que é a emissão dos certificados – que provam a titularidade dos valores mobiliários – nos termos do art. 78º do CVM que gera o bloqueio nos termos do art. 72º nº1, al. a) do CVM, e não o contrário.
Por referência ao despacho de 15/02/2023[13] parece-nos evidente que o tribunal pretendia a junção dos certificados que provassem a titularidade dos valores mobiliários (referência ao art. 78º) e que ou entendia que a emissão desse certificado implicaria o bloqueio (referência ao art. 72º), ou entendia que os titulares deveriam solicitar o bloqueio (art. 72º, nº2, al. a)).
A falta de junção dos certificados nos termos do art. 78º apenas releva no domínio da prova da titularidade dos valores mobiliários. É assim, um documento probatório, que, quanto muito, poderá determinar a não prova da atual titularidade dos valores mobiliários invocados pelos impugnantes e não é um documento de que a lei faça depender o prosseguimento da impugnação, única circunstância em que a falta de um documento ordenado juntar corresponderia a falta de impulso processual.
Cabe ainda perguntar se o prosseguimento destas impugnações depende do bloqueio dos valores mobiliários alegados como adquiridos pelos recorrentes.
A al. a) do nº2 do art. 72º do CVM prevê as situações em que “há a emissão de um certificado de titularidade como meio de legitimação para o exercício de direitos inerentes aos valores mobiliários”, vigorando até “ao momento do exercício do direito em causa – por exemplo, até à data da assembleia geral, se o certificado for solicitado para o exercício do direito a participar e a votar na dita assembleia, ou até à data do pagamento dos juros, se o certificado tiver em vista a legitimação para o recebimento da prestação de juros. Este expediente elimina a possibilidade de uma transmissão posterior à obtenção de um certificado a favor do potencial alienante, evitando, em consequência, que haja uma pluralidade de pessoas legitimadas para exercer os direitos relativamente aos mesmos valores mobiliários.”[14]
Desde logo, genericamente, e porque o direito exercido não é inerente à titularidade dos valores mobiliários, mas antes a reclamação de créditos em processo de insolvência de pessoa coletiva - que se extinguirá após o encerramento do processo -, e que já não poderá ser exercido após decorridos todos os prazos perentórios para o efeito, o preceito não parece ser, em abstrato, aplicável. Ainda que o fosse, não nos parece existir fundamento para exigir que, após exercido o direito (reclamados os créditos), se mantenha ou registe o bloqueio, dado o regime da reclamação de créditos insolvencial, sendo que não vemos como cumprir a exigência legal de indicação do prazo de vigência do bloqueio, nem até que momento (processual).
Mas, no caso concreto, temos três impugnações – sequenciais a não reconhecimento de valores reclamados – cujo fundamento é, num dos casos, não a titularidade de valores mobiliários, mas a responsabilidade do intermediário financeiro que os vendeu e nos outros dois casos responsabilidade extracontratual pura, sendo imputada à liquidanda conduta lesiva/fraudulenta que terá determinado a desvalorização de valores adquiridos a um outro intermediário financeiro, mediante o financiamento de entidade englobada no grupo GES pelo grupo PT, todas pedindo a verificação e graduação dos créditos relativos a prejuízos já ocorridos.
Nenhuma destas causas de pedir corporiza o exercício de direitos inerentes à titularidade de valores mobiliários que exijam que os titulares se mantenham na posse[15] dos mesmos durante toda a pendência deste processo.
Não estamos, portanto, no âmbito de aplicação da al. a) do nº1 do art. 72º do CVM.
Entendendo a decisão em causa como impondo às partes a formulação de um pedido de bloqueio ao abrigo da al. a) do nº2 do mesmo preceito, chegamos à mesma conclusão, reforçada pelo facto de se entender, de forma unânime, que a faculdade de bloqueio a pedido do titular deve ser objeto de interpretação restritiva, porque tal bloqueio “cede sempre perante casos de aquisição em que irreleve a vontade do titular”.[16]
A decisão foi proferida e transitou em julgado, não estando o despacho proferido em 15/02/2023 abrangido pelo objeto do presente recurso.
Mas se analisando a decisão em causa, obrigatória dentro do processo, se conclui, como no caso, que o documento cuja junção foi ordenada não cumpria qualquer das funções de segurança do bloqueio de valores mobiliários, resta a dimensão probatória já acima apontada e analisada.
A falta de elementos/documentos relativos a meios probatórios ordenados juntar não acarreta o não prosseguimento dos autos, mas antes o seu prosseguimento e, com grande probabilidade, a prolação de uma decisão de mérito valorativa dessa falta, em função da repartição do ónus da prova[17]. Como já se referiu só a falta de junção de um documento de que a lei faça depender o prosseguimento da impugnação, se verificados os demais requisitos, seria suscetível de fundar a deserção da instância.
O que significa que não necessitamos de aferir se estão verificados os demais requisitos/pressupostos da deserção da instância, dado que se conclui que a falta de junção dos certificados de bloqueio não corresponde a falta de impulso processual que seja suscetível de fundar uma deserção da instância.
O recurso é, assim, integralmente procedente, impondo-se a revogação do despacho recorrido e o prosseguimento dos ulteriores termos dos autos com a apreciação das impugnações deduzidas pelos recorrentes.
*
Não são devidas custas na presente instância recursiva, que seriam a suportar pelos recorrentes, por do recurso terem tirado proveito sem oposição[18], porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso, este não envolveu diligências geradoras de despesas e não há lugar a custas de parte por não ter sido apresentada resposta às alegações de recurso – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil[19].
*
5. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar integralmente procedente a apelação e, em consequência:
a) Revogam a decisão recorrida;
b) Determinam o prosseguimento dos autos para apreciação das impugnações deduzidas por Farber Trading Limited, P4, P5, P1, P2 e P3.
Sem custas na presente instância recursiva.
Notifique.
*
Lisboa, 25 de novembro de 2025
Fátima Reis Silva
Renata Linhares de Castro
Nuno Teixeira
_____________________________________________________
[2] Cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, junho de 2018, pg. 115.
[3] O Decreto-Lei n.º 199/2006 foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 31-A/2012 de 10/02, pela Lei nº 23-A/2015 de 26/03 e pela Lei nº 23/2019, de 13/03.
[4] Plano de insolvência e administração pelo devedor.
[5] Cfr. Lebre de Freitas em Apreensão, separação, restituição e venda, em I Congresso de Direito da Insolvência, coord. Catarina Serra, Almedina, 2013, pg. 229, Maria do Rosário, Epifânio em Manual de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2012, pg. 13, Catarina Serra em A falência no quadro jurisdicional dos direitos de crédito – o problema da natureza jurídica do processo de liquidação aplicável à insolvência no direito português, Coimbra Editora, 2009, pg. 72, Gisela César em Os efeitos da insolvência sobre o contrato-promessa em curso, Almedina, 2005, pg. 38, entre outros.
[6] Por exemplo, a verificação e graduação de créditos.
[7] No qual se fixou jurisprudência no seguinte sentido:
“I - A decisão judicial que declara a deserção da instância nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil pressupõe a inércia no impulso processual, com a paragem dos autos por mais de seis meses consecutivos, exclusivamente imputável à parte a quem compete esse ónus, não se integrando o acto em falta no âmbito dos poderes/deveres oficiosos do tribunal.
II - Quando o juiz decida julgar deserta a instância haverá lugar ao cumprimento do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, com inerente audiência prévia da parte, a menos que fosse, ou devesse ser, seguramente do seu conhecimento, por força do regime jurídico aplicável ou de adequada notificação, que o processo aguardaria o impulso processual que lhe competia sob a cominação prevista no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.”
[8] Assim Ac. TRP de 26/05/2015 (Fernando Samões – 130/13), disponível em www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem referência, onde se escreveu: “A verificação do passivo tem lugar após a sentença de declaração de insolvência e constitui um processo declarativo que corre por apenso ao processo de insolvência, compreendendo as fases de reclamação de créditos (cfr. art.ºs 128.º e segs.), saneamento (art.º 136.º), instrução (art.º 137.º), discussão e julgamento (art.ºs 138.º e 139.º) e sentença (art.º 140.º).” No mesmo sentido Ac. TRG de 03/11/2022 (Alexandra Viana Lopes – 115/16).
[9] Cfr. Ac. TRL de 15/05/2025 (Fátima Viegas – 24/22).
[10] Paulo Ramos de Faria em O julgamento da deserção da instância declarativa, Julgar Online, 2015. Disponível em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/04/O-JULGAMENTO-DA-DESERÇÃO-DA-INSTÂNCIA-DECLARATIVA-JULGAR.pdf, pg. 4.
[11] Paulo Câmara em Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 4ª edição, Almedina, 2018, pg. 361.
[12] E já era assim na vigência do CMVM, como se vê do Ac. TRL de 24/06/1999 (Salvador da Costa – 0038636).
[13] Recordando: “Notifique os credores impugnantes que sejam titulares de valores mobiliários escriturais para virem juntar aos autos, no prazo de 10 dias, os respectivos certificados de bloqueio nos termos dos artigos 72.º e 78.º, do Código dos Valores Mobiliários.”
[14] Paulo Câmara, local citado, pg. 363.
[15] “A lei atribui à escrituração das acções nas contas sediadas em alguma das instituições depositárias o valor essencialmente correspondente à posse no quadro dos títulos de crédito.” – Ac. TRL de 24/06/1999, já citado.
[16] Paulo Câmara, local citado, pg. 363. No mesmo sentido Jorge Alves Morais e Joana Matos Lima, em Código dos Valores Mobiliários Anotado, Quid Juris, 2015, pg. 186 e André Alfar em Código dos Valores Mobiliários Anotado e Comentado, AAFDL Editora, 2021, pgs. 163 e 164.
[17] Acs. TRL de 15/05/2025 (Fátima Viegas – 24/22) e TRP de 04/02/2019 (Fernanda Almeida – 1082/10).
[18] Neste sentido Ac. TRL de 11/02/2021, Carlos Castelo Branco (1194/14).
[19] Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/.