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CESSÃO DE CRÉDITO
NOTIFICAÇÃO DO DEVEDOR
ELEMENTOS DA CESSÃO
PREÇO
FORÇA PROBATÓRIA
DOCUMENTO PARTICULAR
Sumário
Sumário[1] 1 - As cópias dos documentos particulares não impugnadas têm o valor probatório dos originais. 2 – Se forem impugnadas são livremente apreciados pelo tribunal, em conjugação com a demais prova produzida. 3 – A cessão de créditos é o efeito translativo do direito de crédito que deriva de um negócio jurídico causal e tem como requisitos específicos: i) um acordo entre o credor e o terceiro; ii) consubstanciado num facto transmissivo (fonte da transmissão); e iii) a transmissibilidade do crédito. 4 – Um acordo de cessão de créditos que se analisa numa compra e venda de determinado crédito implica a transmissão desse crédito, independentemente do teor do conteúdo da cláusula de fixação do respetivo preço. 5 – O preço da cessão, quando onerosa, não é um elemento essencial que tenha que constar no acordo de cessão. ____________________________________________________ [1] Da responsabilidade da relatora – art. 663º nº7 do CPC.
Texto Integral
Acordam as Juízas da secção de comércio do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório
Por apenso ao processo em que foi decretada a insolvência de Caminhos de Sesimbra – Actividades Turísticas e Residenciais, Lda, veio Eurobergen – Sociedade Imobiliária, SA requerer a sua habilitação como credor naqueles autos, por cessão do crédito de € 19.188,00 do credor P1, reconhecido pelo administrador da insolvência.
Foram notificados a devedora, a massa na pessoa do administrador da insolvência e o credor cedente, nos termos do art. 356º, nº1, al. a) do CPC.
O administrador da insolvência veio contestar, pedindo a improcedência do incidente de habilitação por não estar comprovada a efetiva cessão de crédito.
Alegou, em síntese, não ter sido notificado nos termos do art. 583º nº1 do CC, que o contrato é omisso quanto ao preço, que a mandatária que subscreve a petição não representa a requerente mas sim o requerido, que as assinaturas do cedente são diferentes na procuração e no contrato, pelo que ou o contrato é forjado ou a procuração não é legítima e que no passado da cessionária surgem os habituais peões do afetado pela qualificação da insolvência como culposa, P2.
Não foi apresentada qualquer outra contestação.
Ordenada a notificação da requerente para se pronunciar veio esta pronunciar-se, juntando procuração forense outorgada pela requerente alegando que a notificação prevista no art. 583º nº1 do CC está consumada pela citação do administrador da insolvência e que o contrato de cessão vale entre as suas partes não competindo ao Sr. Administrador da Insolvência a verificação do preço, que correspondeu ao valor do crédito.
Em 03/07/2025 foi proferida a seguinte sentença:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo improcedente o incidente de habilitação de cessionário deduzido e, em consequência absolvo os Requeridos do pedido. Custas pela Requerente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC (arts. 527 do Código de Processo Civil e 7.º da Tabela II do Regulamento das Custas Processuais). Notifique e DN.”
Inconformada apelou Eurobergen – Sociedade Imobiliária, SA, pedindo seja dado provimento ao recurso e substituída a sentença recorrida por outra que julgue procedente o incidente de habilitação, apresentando as seguintes conclusões:
“1 – A notificação da cessão ao devedor pode ser feita por qualquer meio, inclusivamente pela citação do devedor cedido para a ação executiva ou para o incidente de habilitação enxertado nessa ação.
2 - O único elemento constitutivo da eficácia da cessão é o conhecimento do devedor, não exigindo a Lei a sua autorização (artigo 577º, nº 1 do Código Civil).
3- Para proteção do devedor cedido a Lei faculta-lhe a possibilidade de, na contestação, impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo, nos termos do artigo 356, nº 1, alínea a) do C.P.C.
4- A notificação exigida para a cessão é a constante do artigo 583º do C.C., ou seja, a cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada ainda que extra judicialmente, equiparando-se a citação para o incidente de habilitação à forma de dar conhecimento, uma vez que a lei prevê que o requisito para de eficácia para cessão de crédito é o seu conhecimento, não impondo a essa notificação qualquer forma.
5 - A tese que exige que a notificação seja anterior à ação surge como um corpo estranho no regime jurídico da cessão de créditos que admite que a notificação da cessão pode ser extrajudicial e não esta sujeita a forma, conforme defende Vaz Serra in “Cessão de Créditos e de outros direitos”, BMJ, N.º especial, 1955, P.222.
6 - A notificação constitui assim uma declaração recetícia através da qual é dado a conhecer ao devedor cedido o facto da transmissão do crédito. Esta declaração não está sujeita a forma especial, podendo ser feita de forma expressa ou tácita (artigo 217.º e 219.º do Código Civil). A isto acresce que a lei se basta para a eficácia da cessão em relação ao devedor com o seu conhecimento, não exigindo a sua autorização (artigo 577.º ´n.º 1 do Código Civil).
7- O contrato de cessão de créditos é aplicável por via extensiva ou mesmo analógica, os princípios da consensualidade e da eficácia erga omnes consagrados no artigo 408º do Código Civil em conjugação com o artigo 879º, alínea a), 2ª parte do Código Civil, em que se inclui, como efeito típico da compra e venda a transmissão da titularidade do direito, disposição esta também aplicável aos demais contratos onerosos por via do artigo 939º do mesmo Código.
8- A natureza relativa do direito de crédito não obsta aquela eficácia erga omnes, na medida em que esta eficácia translativa não versa sobre o conteúdo da prestação creditícia, mas sobre a própria titularidade do direito de crédito.
9- O Código Civil não estabelece a necessidade de preço como condição para a validade da cessão de crédito. O que importa é a manifestação de vontade livre e consciente das partes em transferir o crédito, seja mediante pagamento ou não.
10- O princípio da liberdade contratual – artigo 405 do Código Civil - permite que as partes estabeleçam acordos com as cláusulas que desejarem, desde que não contrariem a lei. A cessão de crédito, portanto, pode ser gratuita ou onerosa, dependendo da vontade das partes.
11- A cessão de crédito pode ocorrer a título oneroso (mediante pagamento) ou a título gratuito (como em doações). Em qualquer dos casos, a validade da cessão dependerá da manifestação clara da vontade de transferir o crédito e da capacidade das partes em realizar o negócio jurídico.
12- Não existe norma legal que proíba a cessão, a torne nula ou anulável se da cessão não constar o preço ou o meio de pagamento. Assim sendo, tais elementos não são essenciais ao contrato, pese embora sejam aconselháveis e, consequentemente, o contrato que não contenha o preço ou/e a forma de pagamento mostra-se válido e regular, não podendo ser posto em causa.
13- A cedência não altera as condições do contrato original, mas apenas a titularidade do crédito, estando aqui em causa a possibilidade de ceder a outrem o seu direito de receber o crédito, sendo, pois, irrelevante para os autos a alteração do credor, sendo indiferente para a Massa Insolvente que a pessoa a quem deve satisfazer a prestação seja diferente daquela a quem a insolvente assumiu a obrigação de pagar determinado montante.
14- A contestação pelo devedor cedido pode fundamentar-se em vícios de forma, falta de notificação, tentativa de o prejudicar na sua posição processual ou, ainda, que a cessão tinha como intuito dificultar a sua defesa, ou que o negócio subjacente é inválido por a lei o não admitir e ainda de factos que provenham de conhecimento posterior ao da cessão. – Artigo 585º do Código Civil. Ora, nada disto está em causa nos autos.
15- Para efeitos de Habilitação do cessionário satisfaz as exigências legais um título escrito que prove a cessão, como seja um contrato escrito de cessão, onde identifique claramente o crédito, por forma a permitir saber qual o objeto da cessão, sem que este tenha de expressar o exacto montante da dívida ao tempo da transmissão ou o valor acordado para essa transmissão e que porventura até pode ser gratuita, ou seja, se a falta de indicação do preço constitui-se um elemento essencial da cessão, essa falta constituiria uma nulidade. Com efeito, o artigo 577.º do CC não prevê tal exigência. São requisitos da cessão: a) um acordo entre o credor e o terceiro; b) consubstanciado num facto transmissivo (fonte de transmissão); c) a transmissibilidade do crédito.
16- A cessão pode ser efetivada mesmo sem o consentimento do devedor, porque a lei não exige forma especialmente solene para a mesma, e porque a habilitação do cessionário em processo pendente não afecta a substância, o objecto da causa, nem prejudica a posição do devedor no autos, a prova daquela cessão para este efeito de acordo com o previsto no artigo 356º do CPC, não tem de ser exigente no sentido de dever abranger todas as suas vicissitudes e particularismos, como seja o valor cedido e demais condições de cedência.
17-Não se vislumbra suporte legal para a convicção de que existe uma nulidade do negócio jurídico de cessão de um crédito se o preço dessa cessão não constar num documento que titule o negócio. Não há exigências de forma ou de substância que corroborem diferente entendimento, não se encontrando na Lei nem na jurisprudência qualquer apoio para tal diferente entendimento.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido por despacho de 21/10/2025 (ref.ª 449282529), no qual foi fixado o valor do incidente.
Por despacho da relatora de 13/11/2025, foi alterado o efeito fixado ao recurso, tendo sido fixado ao mesmo efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se oficiosamente e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas, a única questão a decidir é a de se se encontram reunidos os requisitos de procedência da habilitação de cessionário.
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3. Fundamentação de facto:
Além do que consta do Relatório, resultam dos autos os seguintes factos, com relevância para a decisão do recurso:
1 - Caminhos de Sesimbra – Actividades Turísticas e Residenciais, S.A. foi declarada insolvente por sentença de 20/09/2018, transitada em julgado – cfr. processo principal.
2 – O Sr. Administrador da Insolvência apresentou a lista prevista no art. 129º do CIRE, da qual consta, como reconhecido, um crédito sobre a insolvência de € 19.188,00, do credor P1 – cfr. apenso A.
3 – Tal crédito não foi objeto de impugnação – cfr. apenso A.
4 – Foi junto aos autos como doc. 1 escrito denominado “Contrato de Cessão de Créditos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e do qual consta:
“CONTRATO DE CESSÃO DE CRÉDITOS
Entre P1, Rua …. Lisboa C.C. Nº … válido até …, NIF … adiante designado por Primeiro Contratante,
E, Eurobergen Sociedade Imobiliária SA, contribuinte n.º 509 238 394, com sede na Rua … em Lisboa, adiante designada por Segunda Contratante,
Considerando que:
1- Os primeiro Contratante é titular de um crédito sobre a Caminhos de Sesimbra SA ora insolvente, correndo termos o respectivo processo de Insolvência no Tribunal de Comércio de Lisboa sob o nº 27078/17.5 T8LSB- Juíz 1, no valor de 19.188,00€, a titulo de crédito de por serviços prestados à INSOLVENTE, valor que foi reconhecido em definitivo.
2- Considerando que o referido crédito, reconhecido pelo AI, consta do mapa de credores e do relatório aprovado no processo.
3- Considerando que o primeiro contratante manifestou vontade de negociar por razões económicas, e que a segunda Contratante está na disposição de ajudar, assumindo o pagamento desses créditos reclamados no processo acima melhor identificado.
4- Que desta forma a segunda Contratante Eurobergen Sociedade Imobiliária SA, se propõe assumir a posição de credora da Insolvente, pelo valor do crédito reclamado pelos primeiros Contratantes, e uma vez que consta da lista definitiva de credores.
5- Que a segunda Contratante tem meios financeiros e dispõe-se a ajudar o primeiro Contratante a realizar os seus créditos adiantando-os por forma a ajudar os mesmo a ultrapassar as suas dificuldades
É NA BOA FÉ ESTABELECIDO ENTRE OS CONTRATANTES O PRESENTE CONTRATO DE CESSÃO DE CRÉDITOS NOS TERMOS CONSTANTES DAS CLÁUSULAS SEGUINTES:
1º O, Pimeiro Contratante cede à Segunda Contratante, definitive e irrevogavelmente os créditos de que é titular, mencionados nos considerandos supra, sobre a insolvente CAMINHOS DE SESIMBRA SA, já reclamados e verificados no processo de insolvência.
2º A segunda contratante paga os créditos ora cedidos por este contrato ao primeiro e este dá quitação por este contrato.
O presente contrato dá quitação aos valores entregues, dispensando a indicação, quanto ao valor pago, por ser do exclusivo interesse das partes.
Os intervenientes vão assinar o presente contrato feitos em duas vias, ficando uma na posse do primeiro e a outra na posse da segunda Contratante.
As assinaturas do primeiro e a do procurador da segunda não serão reconhecidas por acordo entre as partes.
Lisboa, 15 de Junho de 2022”
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4. Fundamentação de direito
Foi intentado, por apenso a processo de insolvência em fase de liquidação do ativo, incidente de habilitação de cessionário relativo a crédito cedido por credor cujo crédito se encontra verificado.
Foram os seguintes os fundamentos da decisão recorrida, que indeferiu tal pedido:
- é pressuposto da cessão de créditos um preço e o respetivo meio de pagamento – atento o teor do art. 583º do CC;
- é pressuposto da cessão a notificação prévia ou aceitação, que no caso não sucedeu em relação à massa insolvente;
- do contrato de cessão junto não constam nem o preço nem o meio de pagamento, elementos essenciais;
- o administrador da insolvência tem o direito de impugnar os elementos do contrato;
- o documento junto, mera imagem de um documento particular, não permite ao tribunal comprovar a cessão a favor da Requerente do crédito reconhecido ao indicado P1;
- a equiparação da citação à notificação não é pacífica e não é a posição perfilhada pelo tribunal, que entende que a notificação a que alude o art. 583º nº1 do CC não se equipara à citação para uma determinada ação judicial, desde logo porque os efeitos da citação judicial estão plasmados de forma taxativa no art. 564º do CPC.
A recorrente alinha os seguintes argumentos:
- a notificação da cessão ao devedor pode ser efetuada por qualquer meio, inclusive pela citação do devedor cedido para a ação executiva ou incidente enxertado;
- o único elemento constitutivo da eficácia da cessão é o conhecimento do devedor e não a sua autorização;
- o preço não é condição da validade da cessão de crédito, apenas o sendo a manifestação de vontade das partes em transmitir o crédito, mediante pagamento ou não, podendo a cessão ser gratuita ou onerosa;
- nenhuma norma legal proíbe ou torna nula a cessão em que não conste o preço ou meio de pagamento;
- a contestação pelo devedor cedido pode fundamentar-se em vícios de forma, falta de notificação, tentativa de o prejudicar na sua posição processual ou, ainda, que a cessão tinha como intuito dificultar a sua defesa, ou que o negócio subjacente é inválido por a lei o não admitir e ainda de factos que provenham de conhecimento posterior ao da cessão, nos termos do art. 585º do Código Civil, nada disto estando em causa nos autos.
Apreciando:
A habilitação por transmissão entre vivos, regulada no art. 356º do CPC (sendo ainda relevante o disposto no 263º do mesmo diploma) é uma das formas previstas de modificação subjetiva da instância.
Pressupõe a transmissão do direito (ou coisa) ou dever litigioso, sendo, porém, facultativa, dado que nos termos do nº1 do art. 263º do CPC a transmissão não afeta a legitimidade processual do transmitente.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa[2] em anotação ao art. 356º “por via do incidente de habilitação do cessionário, permite-se que o cedente seja substituído no processo pelo cessionário, o qual adquire a posição processual que o cedente tinha no pleito, não sendo admissível que continuem ambos na lide.”, o que é unanimemente acolhido na jurisprudência[3].
São pressupostos da admissibilidade de habilitação: “pendência de uma ação; existência de uma coisa ou de um direito litigioso; transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da ação, por ato entre vivos e conhecimento da transmissão durante a ação.”[4]
A habilitação do cessionário apenas visa a modificação dos sujeitos da lide e os seus efeitos são de natureza meramente processual[5].
A cessão de créditos é um dos pressupostos da admissibilidade de habilitação, o negócio jurídico pelo qual se dá a transmissão da coisa, direito ou dever em litígio. A habilitação pressupõe a transmissão, mas não se confunde com ela: enquanto que o negócio jurídico celebrado entre o cedente e o cessionário transmite a coisa, direito ou dever, a habilitação coloca o cessionário na posição processual do cedente, considerando-os, aliás, a mesma parte processual[6].
No caso dos autos a decisão recorrida concluiu pela invalidade do ato de transmissão – por falta do preço e meio de pagamento; pela falta de notificação prévia da transmissão que causará a sua ineficácia perante a massa insolvente e, sem grande pormenor, pela não prova da própria cessão.
Começando por este último aspeto temos que, efetivamente, foi junta a versão digital de um documento particular, alegadamente assinado pelo cedente e pela cessionária.
No entanto, compulsada a contestação apresentada pela massa insolvente não podemos ter por impugnada a respetiva veracidade. A massa insolvente alegou diferenças na assinatura do contrato e da procuração, aventando ambas as hipóteses, de falta de fidedignidade (mencionou legitimidade) ou do contrato ou da procuração, mas sem optar.
O cedente, cuja assinatura foi posta em causa de forma “alternativa”, foi notificado e não contestou a habilitação, pelo que, quanto a este, o interveniente na cessão, o documento junto faz prova plena da mesma, nos termos do art. 376º do CC.
A declaração da massa insolvente de que as assinaturas do cedente na procuração (junta por lapso, na alegação da requerente) e no contrato de cessão são diferentes, não sabendo qual delas seja verdadeira, equivale a impugnação da veracidade da assinatura, dado que a massa é terceiro em relação ao contrato de cessão, não tendo, assim aplicação o disposto no nº1 do art. 374º do CC.
Tendo em conta o disposto no nº2 do art. 374º do CC estaremos assim ante um documento a valorar livremente pelo tribunal[7].
Neste ponto há que precisar que, pese embora o tribunal tenha aludido ao facto de este documento ser uma imagem de um documento particular, nenhuma das partes no incidente colocou em causa a genuinidade da cópia, pelo que esta se tem como verdadeira e correspondente ao original. Na verdade, a impugnação deduzida pela massa assume a correspondência da imagem, da cópia, da versão digital, ao impugnar apenas a autoria da assinatura nos termos em que o fez.
Conjugando todos os elementos dos autos e valorando em especial a posição assumida pelo cedente, não existe qualquer razão para não considerar provada a cessão mediante o documento junto, havendo apenas que discutir a respetiva validade e eficácia.
A regra da al. b) do nº1 do art. 356º do CPC, conjugada com o caráter estritamente processual da habilitação, significa que a impugnação da validade do ato de transmissão e/ou a alegação de que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a posição da parte contrária no processo são os únicos fundamentos possíveis de oposição à habilitação[8].
Nos termos do disposto no art. 583º nº1 do CC: «1. A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite. 2. Se, porém, antes da notificação ou aceitação, o devedor pagar ao cedente ou celebrar com ele algum negócio jurídico relativo ao crédito, nem o pagamento nem o negócio é oponível ao cessionário, se este provar que o devedor tinha conhecimento da cessão.»
A decisão recorrida enunciou as duas teses conhecidas sobre a necessidade/desnecessidade de notificação prévia e seu suprimento mediante a citação para o incidente/processo em que a cessão está a ser feita valer, optando pela tese mais restrita e formalista que entende que a citação/notificação no próprio procedimento judicial não supre esta, pelo que esta cessão seria ineficaz em relação à massa insolvente[9].
Não é essa a nossa opinião, nem, refira-se, da maioria, quer da doutrina, quer da jurisprudência.
Menezes Cordeiro[10] afirma, sem hesitação, que a citação para a ação equivale, a partir do momento em que seja feita, à notificação. Ana Taveira da Fonseca[11] entende também que sim desde seja alegada a transmissão do crédito, o que sucede necessariamente num incidente de habilitação de cessionário, em que a transmissão é a causa de pedir.
Na jurisprudência, entre muitos outros, o Ac. STJ de 07/09/2021 (Maria Clara Sottomayor – 348/16) faz exaustiva recolha da jurisprudência sobre esta questão e, em fundamentação a que aderimos, refere:
“A tese que exige que a notificação seja anterior à ação executiva surge como um corpo estranho no regime jurídico da cessão de créditos, que admite que a notificação da cessão pode ser extrajudicial e não está sujeita a forma. Conforme defendido por Vaz Serra, «Cessão de Créditos e de outros direitos», BMJ, n.º especial, 1955, p. 222, «(…) [a] notificação não é um negócio jurídico, pois por ela não se exprime uma vontade dirigida a efeitos jurídicos determinados: quer-se apenas informar terceiros do facto da cessão. Mas, isto não obsta a que lhe sejam aplicáveis, por analogia, (…) as normas relativas aos negócios, uma vez que é uma ação voluntária lícita com efeitos semelhantes aos dos negócios jurídicos». A notificação constitui, assim, uma declaração recetícia através da qual é dado a conhecer ao devedor cedido o facto da transmissão do crédito. Esta declaração não está sujeita a forma especial, podendo ser feita de forma expressa ou tácita (artigos 217.º e 219.º, ambos do Código Civil). A isto acresce que a lei se basta, para a eficácia da cessão em relação ao devedor, com o seu conhecimento, não exigindo a sua autorização (artigo 577.º, n.º 1, do Código Civil). Assim, não há motivos legais nem práticos que impeçam que o conhecimento do devedor se adquira ou concretize através de várias formas, entre as quais se conta a citação para a ação. Com efeito, apesar das diferenças normalmente apontadas entre a notificação e a citação, é inegável que ambas produzem o conhecimento da transmissão do crédito por parte do devedor, sendo o conhecimento o único elemento constitutivo da eficácia da cessão em relação ao devedor. A circunstância de o conhecimento da cessão só operar no momento da citação e não em momento prévio não afeta a confiança que o regime da cessão de créditos, consagrado nos artigos 577.º do Código Civil e seguintes, pretende tutelar: a confiança do devedor cedido que paga a um credor aparente, desconhecendo a cessão (Pestana Vasconcelos, A Cessão de Créditos em Garantia e a Insolvência – Em particular da Posição do Cessionário na Insolvência do Cedente, Coimbra editora, Coimbra, 2007, p. 405). Note-se que, se o devedor pagou a dívida ao cedente antes do conhecimento da cessão, a lei considera o pagamento liberatório, cabendo ao cessionário provar que o devedor teria adquirido esse conhecimento por outros meios, exigindo-se a demonstração do conhecimento efetivo do devedor, não bastando um desconhecimento culposo deste (cfr. Ana Taveira da Fonseca, “Anotação ao artigo 583.º”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 610). Ademais, para proteção do devedor cedido, a lei faculta-lhe a possibilidade de na contestação impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo, nos termos do artigo 356.º, n.º 1, al. a), do CPC. A jurisprudência reconhece, ainda, nos termos da lei, ao devedor cedido, o direito de “(…) invocar como meio de defesa geral contra o cessionário, a ineficácia em sentido amplo do negócio-acto de cessão de créditos (causa próxima) convencionado com a cedente, em adição à oponibilidade das vicissitudes (excepções) do negócio subjacente ao crédito cedido (causa remota), licitamente invocáveis contra o cedente nos termos do art. 585.º do CC.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-05-2021, proc. n.º 348/14.7T8STS-AV.P1.S1). Não vê, portanto, o devedor, os seus meios de proteção diminuídos, em virtude de ter conhecido a cessão através da citação.”
O que significa que, no caso concreto se terá que ter a notificação para o incidente de habilitação como notificação nos termos do nº1 do art. 583º do CC.
Resta, assim a análise da validade da cessão por, na expressão do tribunal a quo faltarem o preço e meios de pagamento, elementos essenciais da cessão.
Cessão de créditos pode ser definida como “a transmissão total ou parcial, a título individual, de um direito de crédito do credor (cedente) para um terceiro (cessionário) através de negócio jurídico. Apesar de, por vezes, também se recorrer à expressão para designar o facto jurídico que, em concreto, desencadeia a transmissão do crédito (Antunes Varela, 1999: 296), há vantagem em reservar a expressão cessão de créditos para o efeito translativo do direito de crédito que deriva de um negócio jurídico causal (Menezes Leitão, 2005: 285 e Pestana de Vasconcelos, 2007: 373 e ss.).”[12]
Como se escreveu no mesmo Ac. STJ de 07/09/2021 (Maria Clara Sottomayor – 348/16) “A cessão de créditos define-se como um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, com a única modificação subjetiva que consiste na transferência do lado ativo da relação obrigacional.”
Tem como requisitos específicos[13]:
- um acordo entre o credor e o terceiro;
- consubstanciado num facto transmissivo (fonte da transmissão);
- a transmissibilidade do crédito”.
Nos termos do nº1 do art. 578º do CC, «Os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que lhe serve de base.»
Vejamos então as regras acordadas entre as partes no Contrato identificado como de cessão de créditos.
Estão em causa as cláusulas primeira e segunda[14]:
1º O Primeiro Contratante cede à Segunda Contratante, definitiva e irrevogavelmente os créditos de que é titular, mencionados nos considerandos supra, sobre a insolvente CAMINHOS DE SESIMBRA SA, já reclamados e verificados no processo de insolvência.
2º A segunda contratante paga os créditos ora cedidos por este contrato ao primeiro e este dá quitação por este contrato.
O presente contrato dá quitação aos valores entregues, dispensando a indicação, quanto ao valor pago, por ser do exclusivo interesse das partes.
O clausulado analisa-se num negócio causal de compra e venda do referido crédito, sem qualquer limitação (compreendendo o direito de cobrança de créditos).
Da cláusula primeira retira-se que este negócio jurídico é uma compra e venda que, assim sendo opera imediatamente a transmissão da titularidade do direito, nos termos da alínea a) do art. 879º do CC, gerando na contraparte a obrigação de pagamento do preço.
Voltando aos requisitos específicos já enumerados verifica-se estarem todos preenchidos: trata-se de um acordo entre o titular do crédito e o cessionário (terceiro), tem como fonte da transmissão a compra e venda do crédito e esse crédito é livremente transmissível.
Não são exigidos mais que estes requisitos, sendo, aliás, desnecessária a indicação do preço da cessão[15].
A fundamentação da sentença recorrida no sentido de que o preço e meio de pagamento seriam exigíveis dada a respetiva menção no texto do art. 583º do CC esbarram na própria letra da lei: o que o nº2 do art. 583º regula é a situação do pagamento pelo devedor ao cedente – o que aqui seria impossível, dada a insolvência da devedora e as regras que presidem aos pagamentos em insolvência – previamente à notificação da cessão e depois desta efetuada, com conhecimento pelo devedor.
Não havendo qualquer exigência de forma legal quanto ao negócio causal e não resultando qualquer causa de nulidade deste, há uma efetiva cessão deste crédito e o fundamento eleito pelo tribunal recorrido para julgar improcedente o presente incidente não se verifica: o documento junto comprova a cessão.
O que significa que a sentença recorrida deve ser revogada, procedendo a habilitação.
A presente apelação procede, assim, integralmente.
*
Não são devidas custas na presente instância recursiva, a suportar pela recorrente, que do recurso tirou proveito, sem que haja parte vencida[16] porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso, este não envolveu diligências geradoras de despesas e não há lugar a custas de parte por não ter sido apresentada resposta às alegações de recurso – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil [17].
*
5. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida e, consequentemente, julgar habilitada a requerente Eurobergen – Sociedade Imobiliária, SA que passa a ocupar o lugar do credor P1 nos autos apensos do processo especial de insolvência em que é devedora Caminhos de Sesimbra – Actividades Turísticas e Residenciais, Lda.
Sem custas na presente instância recursiva.
Notifique.
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Lisboa, 25 de novembro de 2025
Fátima Reis Silva
Ana Rute Costa Pereira
Amélia Sofia Rebelo
____________________________________________________ [2] Em Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, Almedina 2022, pg. 451. [3] Entre outros, neste exato sentido, os Acs. TRG de 24/04/2019 (José Alberto Moreira Dias - 4490/16), TRP de 30/01/2012 (Maria Adelaide Domingos – 115/09) e TRP de 05/11/02 (Alziro Cardoso - 0220930). [4] Idem, citando o Ac. TRL de 02/12/2015 (Ondina Carmo Alves – 691/11). [5] Cfr. Ac. TRL de 11/03/2021 (Adeodato Brotas – 7428/12). [6] Como referem Castro Mendes e Teixeira de Sousa em Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL Editora, 2022, pg. 285: “a identidade de partes é aferida pela qualidade jurídica dos sujeitos (art. 581º nº2), o que justifica, por exemplo, que o de cuiús e herdeiro ou transmitente e o adquirente sejam a mesma parte”. [7] Cfr. Ac. TRG de 22/04/2021 (Helena Melo – 1719/14). [8] Neste sentido Acs. TRG de 23/04/2020 (José Moreira Dias – 5239/16) e de 14/03/2019 (Alcides Rodrigues – 4141/16) e TRP de 11/01/2024 (Ana Vieira – 1162/22). [9] Pese embora o tribunal a quo não tenha extraído essa conclusão, crê-se que prejudicada pela não prova da cessão e sua invalidade por falta de preço e meio de pagamento que elegeu em fundamento principal da sua decisão. [10] Em Código Civil Comentado, II Vol., Das obrigações em Geral, CIDP, Almedina, 2021, pg. 609. [11] Em Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, das obrigações em geral, UCP Editora, 2018, pg. 609. [12] Ana Taveira da Fonseca em anotação ao art. 577º do Código Civil, Em Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações – Das obrigações em geral, Universidade Católica Editora, 2018, pg. 594. [13] Menezes Cordeiro em Direito das Obrigações, Vol. 2º, AAFDL, 1987, pg. 90. [14] Tendo-se procedido à correção dos erros ortográficos evidentes do texto do clausulado. [15] Neste exato sentido Ac. TRE de 11/11/2021 (José Lúcio – 2998/19) e TRC de 16/03/2021 (Carlos Moreira – 132/12). [16] Neste sentido Ac. TRL de 11/02/2021, Carlos Castelo Branco (1194/14), disponível em www.dgsi.pt. [17] Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/.