EXECUÇÃO PARA ENTREGA DE COISA CERTA
EMBARGOS DE EXECUTADO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
TRANSAÇÃO
IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES
Sumário

Sumário: (elaborado ao abrigo do disposto no art. 663º, nº 7, do CPC)
Sendo apresentado como título executivo documento denominado “Acordo de Transação” datado de 21/02/2024 e no âmbito do qual a executada se obrigou à entrega de vários imóveis até ao dia 31/12/2024, a dificuldade de cumprimento na entrega não consubstancia qualquer impossibilidade física de cumprimento da obrigação.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Na sequência de execução para entrega de coisa certa contra si intentada por Fundo de Investimento Imobiliário Aberto Imonegócios veio a executada Kashmir Imóveis, S.A. deduzir embargos de executado, alegando, em síntese, que integra o Grupo Urbanos, sendo que diversas sociedades deste grupo exercem a sua actividade nos imóveis dos autos, ali tendo a sua sede social, e ali armazenando bens de clientes, muitos dos quais de elevado valor e de grande fragilidade, o que impede a executada de entregar os imóveis no prazo de 20 dias. Mais alega que esta impossibilidade de entrega leva a que se entenda nulo o título executivo, já que sendo nula a obrigação de entrega imediata, a mesma não pode valer em sede de processo de execução para entrega de coisa certa; inexistindo, pois, título executivo com este conteúdo; caso não se entenda que o título executivo contém obrigação exequenda nula, deverá entender-se que a mesma é inexigível; a obrigação existe, mas não é (ainda) exigível, pois (ainda) não é fisicamente possível o seu cumprimento; a execução só poderá acontecer após concedido prazo razoável para a desocupação dos imóveis.
Termina pedindo que seja atribuído aos presentes embargos efeito suspensivo, nos termos do art. 733º, nº 1, al. c) do CPC, e que sejam os presentes embargos, a final, julgados procedentes, declarando-se que a obrigação de entrega não é imediatamente exigível, mas apenas num calendário passível de ser cumprido, nos termos por si indicados no requerimento inicial.
2. Foi proferida decisão, indeferindo liminarmente os embargos de executado.
3. É desta decisão que a executada recorre, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“1. A obrigação de entrega dos imóveis numa determinada data, no momento em que se constituiu (ou seja, aquando da celebração do acordo, e não aquando do seu vencimento) era possível, mas deixou, entretanto, de ser possível.
2. O que está em causa não é a nulidade originária da obrigação de entrega do imóvel, constante do título executivo, mas a nulidade de um aspecto acessório da obrigação, que é o seu modo e tempo. Pode ser cumprida, mas não imediatamente e de uma só vez.
3. A Recorrente não disputa que o prazo previsto no título executivo já se encontra vencido e que, por essa via, a obrigação seria exigível.
4. Alega, sim, que, para além do vencimento, a exigibilidade se reporta a outras realidades, nomeadamente à possibilidade física/jurídica do cumprimento. Quanto a este argumento, a decisão em crise nada diz, tendo decidido mal.
5. Se não é possível entregar a coisa no imediato, fisicamente (por não haver meios logísticos, da Executada ou de terceiro, que permitam a retirada imediata do recheio dos imóveis), ou juridicamente (por não ser lícito entregar à Exequente os imóveis contendo no seu interior bens de terceiro), não se pode exigir essa entrega imediata. E não se poder exigir tem de corresponder a inexigibilidade.”.
5. Em contra-alegações, a exequente defendeu a improcedência do recurso.
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II. QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, são:
- da nulidade do título executivo;
- da inexigibilidade da obrigação exequenda.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos a atender são os que resultam do relatório supra.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Vem o presente recurso interposto da decisão que indeferiu liminarmente a oposição à execução deduzida pela executada por ter entendido que os embargos se mostram manifestamente improcedentes.
Importa recordar que estamos no âmbito de uma execução para entrega de coisa certa, prevista nos arts. 859º e ss. do CPC, dispondo o art. 860º, nº 1 que “o executado pode deduzir oposição à execução pelos motivos especificados nos artigos 729.º a 731.º, na parte aplicável, e com fundamento em benfeitorias a que tenha direito”.
No caso vertente, a executada veio alegar a inexistência de título executivo face à nulidade do mesmo, e, caso, assim não se entenda, a inexigibilidade da obrigação exequenda, configuração jurídica não acolhida em primeira instância e com a qual a apelante se insurge, reiterando os seus fundamentos.
Vejamos.
Antes de mais, cumpre salientar que a exequente apresentou como título executivo “Acordo de Transação” datado de 21/02/2024 e no âmbito do qual a executada se obrigou à entrega de vários imóveis até ao dia 31/12/2024.
Mais resulta da análise do título executivo e do articulado de oposição à execução que esta obrigação de entrega dos imóveis em causa nos autos foi precedida de um anterior acordo, celebrado a 18/07/2022, mediante o qual a executada se tinha obrigado à entrega dos imóveis até ao dia 30/11/2023 e ainda que, não tendo sido cumprido esse acordo, a executada, reconhecendo esse incumprimento, se obrigou à entrega dos imóveis até ao dia 31/12/2024 nos termos constantes do acordo que constitui título executivo.
Desta resenha cronológica extrai-se que as partes fixaram o prazo para o cumprimento da obrigação até ao dia 31/12/2024 e ainda que, não tendo sido observado esse prazo, foi intentada a execução a que estes autos estão apensos em 26/01/2025, ou seja, depois do prazo acordado.
Entende agora a apelante que não é possível proceder à entrega, o que determina a nulidade da obrigação exequenda nos termos do art. 280º, nº 1 do CC.
O art. 280º do CC estabelece como requisitos de validade do objecto negocial a possibilidade física e legal, a conformidade à lei, a determinabilidade e o respeito pela ordem pública e pelos bons costumes.
Assim, e no que ora nos interessa, dispõe o art. 280º, nº 1 do CC que “É nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável”.
No caso dos autos, não está em causa a impossibilidade legal, mas apenas a impossibilidade física, alegando a apelante a obrigação de entrega dos imoveis deixou de ser possível, estando em causa “não a nulidade originária da obrigação de entrega do imóvel, constante do título executivo, mas a nulidade de um aspecto acessório da obrigação, que é o seu modo e tempo. Pode ser cumprida, mas não imediatamente e de uma só vez”.
Como ensina Elsa Vaz de Sequeira em anotação ao citado art. 280º in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa 2014, pág. 691, “Verifica-se a impossibilidade física do objeto quando este contunde ontologicamente com a natureza das coisas, sendo, por isso, inviabilizado pelas próprias leis na natureza. Importa, no entanto, observar este requisito de um prisma sociocultural e não puramente físico ou naturalístico. O que equivale a dizer que a impossibilidade física do objeto deve ser aferida tendo em conta a situação concreta em que se apresenta e não de forma abstrata e apriorística. Há impossibilidade física do objeto, por exemplo, quando o negócio se reporte a uma coisa inexistente ou inalcançável, ou a uma prestação objetiva e absolutamente irrealizável”.
Também Pires de Lima e Antunes Varela explicavam que “É fisicamente impossível o objecto do negócio que envolve uma prestação impossível no domínio dos factos: entregar a lua, transportar uma pessoa de um lugar para outro a uma velocidade que os meios de transporte estejam longe de ter atingido na altura da execução do contrato, etc.”.
Por outro lado, e recorrendo novamente a Elsa Vaz de Sequeira, ob. cit., pág. 692, “A impossibilidade do objeto aqui consagrada é uma impossibilidade originária, absoluta e definitiva. O que vale por afirmar que o negócio só será nulo quando a impossibilidade do objeto exista logo no momento da sua conclusão, para a generalidade das pessoas e não seja temporária.”.
No caso vertente, como bem se refere na decisão recorrida, “O que a executada alega é a dificuldade de cumprimento da prestação, quer no prazo que a executada acordou com a exequente no “Acordo de transação” de 21/02/2024 (sendo que, em data anterior as partes já tinham acordado outra data para a entrega dos imóveis, que a executada não cumpriu), quer no prazo (de vinte dias) que lei prevê para o cumprimento da obrigação exequenda.
O cumprimento da obrigação não era impossível no momento em que a obrigação se constituiu.
Inexiste, por conseguinte, qualquer impossibilidade (quer de facto, quer de direito) de realização da prestação acordada.”.
Tem de se concordar com esta apreciação.
Com efeito, o cumprimento da obrigação de entrega dos imóveis não era impossível no momento em que a obrigação se constituiu, não se podendo transformar a dificuldade de cumprimento da prestação na impossibilidade física do seu cumprimento.
Aliás, a própria apelante alega que é possível prestar a obrigação, apenas pretendendo dilatar no tempo esse cumprimento.
Ora, essa dificuldade de cumprimento, e que a apelante deveria ter previsto, face às anteriores datas para o qual foi acordada a entrega dos imóveis, não consubstancia qualquer impossibilidade física de cumprimento da obrigação.
Saliente-se ainda que a apelante não refere, em momento algum, ter iniciado as diligências necessárias com vista à desocupação dos imóveis, por forma a que se compreenda o adiamento da entrega por mais de dois anos.
Desconhece-se, por exemplo, desde quando é que os bens ali colocados o foram, quais são concretamente esses bens e a impossibilidade de os colocar noutro local, nomeadamente face às datas de do anterior acordo de entrega (18/07/2022, com entrega até 30/11/2023) e às datas acordadas no que constitui título executivo.
Donde, e no que se refere a este fundamento, é a apelação improcedente.
Alega ainda a apelante que a obrigação exequenda é inexigível face à impossibilidade física/jurídica do cumprimento.
A exigibilidade é, nos termos do art. 713º do CPC, um dos requisitos da obrigação exequenda, podendo definir-se como a possibilidade de o exequente impor ao executado, de forma imediata e sem qualquer outro requisito adicional, o cumprimento da obrigação.
Tal como se pode ler na decisão recorrida, “Como ensina Rui Pinto, «A exigibilidade é a qualidade substantiva da obrigação que deva ser cumprida de modo imediato e incondicional após interpelação ao devedor. Tal qualidade não é processual, mas substantiva: a verificação do facto do qual depende o cumprimento – interpelação pelo credor, decurso do prazo de vencimento, ocorrência de condição, realização de contraprestação. (…) Portanto, e em termos simples, obrigação exigível é a obrigação que está em tempo de cumprimento – é a obrigação atual.» (A Ação Executiva, AAFDL Editora, Lisboa, 2018, p. 230).”.
No caso dos autos, a exigibilidade da obrigação exequenda resulta do próprio título executivo, no qual se estipulou um prazo para o cumprimento da obrigação (31/12/2024), o qual se encontra já vencido.
Ou seja, resulta do título executivo que a executada, ora apelante, se obrigou a proceder à entrega dos imóveis numa data acordada entre as partes, não tendo feito depender essa entrega de qualquer condição.
Donde, tendo a execução a que estes autos se mostram apensos, sido intentada decorrido que se encontrava esse prazo, ou seja, depois do vencimento da obrigação, esta é exigível, como bem decidido em primeira instância, o que redunda na improcedência deste segmento da apelação.
Pelo exposto, improcedendo todas as conclusões do recurso, impõe-se a manutenção da decisão recorrida.
As custas devidas ficam a cargo dos apelantes, cfr. art. 527º do CPC.

V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
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Lisboa, 2 de Dezembro de 2025
Ana Rodrigues da Silva
Cristina Silva Maximiano
Luís Filipe Pires de Sousa