EMBARGO DE OBRA NOVA
PRESSUPOSTOS
PRÉDIOS CONFINANTES
EDIFICAÇÃO URBANA
DIREITOS DE PERSONALIDADE
Sumário

Sumário: 1
I – A procedência do procedimento de embargo de obra nova depende, para além da existência de uma obra, trabalho ou serviço novo, da ofensa de um direito real ou pessoal de gozo ou da posse, que cause ou ameace causar prejuízo.
II - A relação jurídica entre a requerente e a requerida, enquanto titulares de direitos reais - proprietárias de prédios confinantes -, no que diz respeito à edificação nos respectivos prédios, rege-se pelas normas do Código Civil (art.ºs 1360º a 1365º), que regulam os interesses conflituantes entre proprietários de prédios com relações de proximidade ou vizinhança e não pelo disposto em normas de direito público, como o Regime Geral de Edificações Urbanas.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
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I – RELATÓRIO
AA2 deduziu, em 14 de Julho de 2025, contra INCREMENTO ASTUTO, LDA.3 requerimento inicial de procedimento cautelar de embargo de obra nova, requerendo o seguinte:
a. Que, sem prévia audição da requerida, seja ordenada a suspensão imediata dos trabalhos de construção iniciados no Rua 1, a cargo da requerida;
Subsidiariamente, caso se entenda não estarem verificados os pressupostos para o procedimento cautelar de embargo,
b. Que se proceda à sua convolação em procedimento cautelar comum e decretada a suspensão imediata dos trabalhos, face à prova sumária apresentada.
Alegou para tanto, muito em síntese, o seguinte:
• A requerente é proprietária do prédio urbano sito à Rua 2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.º ... da freguesia de Ponta Delgada (São Pedro) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia de Ponta Delgada (São Pedro);
• A requerida é proprietária do terreno contíguo ao prédio da requerente, designadamente, o Rua 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o artigo ... da referida freguesia, onde, em Novembro de 2024, iniciou trabalhos de construção, sem submissão da competente Comunicação Prévia, o que motivou a apresentação de queixa por parte da requerente junto da Polícia Municipal, que, tendo-se deslocado ao local, suspendeu de imediato os trabalhos, sendo confirmada, em 28 de Janeiro de 2025, a necessidade de reposição da legalidade urbanística;
• Na semana entre 16 e 20 de Junho de 2025, os trabalhadores da requerida reiniciaram trabalhos no prédio, desconhecendo se com licença ou não, que prosseguiram no dia 10 de Julho de 2025;
• A construção em curso não respeita os artigos 73.º e 75.º do Regime Geral das Edificações Urbanas4, nomeadamente, porque dista menos de 3 metros do seu imóvel, isto é, dista 2,20 m da sua propriedade;
• A requerida está a invadir directamente a sua propriedade e lesa o seu direito a uma vista desimpedida das suas janelas, uma vez que agora tem uma construção, sem respeito pelas normas jurídicas aplicáveis, a uma distância menor do que a permitida;
• A obra já está a causar-lhe prejuízo, invadindo a sua propriedade, o que pode agravar-se caso não seja suspensa de imediato;
• A audição da requerida, com o protelamento da decisão, agravará ainda mais tais prejuízos.
Para além da prova documental, a requerente solicitou a realização de prova por inspecção ao local e a inquirição de duas testemunhas.
Foi determinada a audição da requerida que, uma vez citada, veio deduzir oposição alegando, em síntese, o seguinte:
• A obra teve início decorridos mais de 30 dias após a comunicação prévia, que não foi objecto de resposta, tendo, posteriormente, sido solicitada pela Câmara Municipal a obtenção de parecer favorável emitido pela Marinha Portuguesa, que tentou obter, mas face às queixas da requerente a obra acabou por ser embargada administrativamente em 16 de Dezembro de 2024, por falta do parecer;
• A Marinha pronunciou-se a 21 de Fevereiro de 2025 referindo que o projecto consubstanciava a aplicação de metais nas janelas do edifício e deveria ser substituído por PVC, em razão da possibilidade de interferir nas comunicações, o que determinou a apresentação de projecto rectificativo, em conformidade com o proposto e foi solicitado novo parecer à Marinha, que demorou três meses a emiti-lo;
• O espaçamento existente entre os prédios das partes deve-se exclusivamente à má implantação da moradia da requerente, conforme levantamentos topográficos realizados, que apontam para um deslocamento a sul de 26 cm nessa implantação e ainda à edificação no piso superior que se afasta sobremaneira do limite do lote, do limiar da implantação;
• O embargo administrativo foi levantado, por caducidade, em 4 de Julho de 2025; a obra esteve e mantém-se parada desde o dia 16 de Dezembro de 2024, sendo falso que tenha retomado os trabalhos, o que se deve à demora decorrente do embargo, levando a que o empreiteiro tenha iniciado outros projectos, pelo que retomará a obra apenas em Setembro;
• O distanciamento previsto no loteamento para o afastamento entre os prédios é de 253 cm, conforme loteamento originário;
• Porém, aquando da unificação dos lotes 3, 4 e 5, resultando no lote 3 aqui em causa, por lapso, o arquitecto responsável refere uma distância de 3 metros entre prédios, sem atentar no rigor da planta do loteamento, o que a qualquer momento poderá ser rectificado para os iniciais 253 cm, por ser a distância aprovada para o loteamento em questão;
• Para evitar maiores delongas e poder entregar as fracções aos seus clientes, a requerida aceitou proceder à alteração do projectado e motivou o despacho camarário que esvazia de sentido o presente procedimento;
• De acordo com o disposto nos art.ºs 1360º e 1361º do Código Civil, o direito à vista do proprietário está acautelado desde que respeitada a distância de um metro e meio entre o novo prédio construído e o prédio pré-existente;
• O RGEU visa proteger a salubridade dos edifícios, garantido um mínimo de arejamento, iluminação natural e exposição solar, tendo presente finalidades de interesse público, pelo que não se destina a proteger a propriedade, sendo que, ainda que diste entre os prédios 2,20 m, o que não aceita, sempre tal não integra violação de qualquer direito da requerente, tando mais que o espaço a que esta se reporta corresponde a uma via de domínio público, concretamente um caminho, pelo que as restrições do art.º 1360º do Código Civil não lhe são aplicáveis (art.º 1361º);
• Conforme informação prévia dirigida à Câmara, da parte habitacional do edifício a construir pela requerida ao limite do lote da requerida existe um espaçamento de 5 metros e do limite do lote da requerida até ao edifício da requerente, 2,53 metros de distância, distância que se alterou por a requerente ter alargado a sua moradia em 26 cm e entre a parte habitacional, com janelas, do prédio a ser edificado e o edificado da requerente distam mais de 7 metros.
Concluiu pela improcedência do procedimento cautelar e pela não verificação dos pressupostos para a inversão do contencioso e pelo prejuízo superior que o decretamento da providência determinaria para si e para os seus clientes, promitentes-compradores das fracções. Juntou prova documental e arrolou testemunhas.
A requerente pronunciou-se por requerimento de 25 de Agosto de 2025, aceitando que a distância entre os prédios é de 2,33 metros. Juntou um documento (vídeo) para comprovar a continuação de trabalhos na obra em 21 de Agosto de 2025 e solicitou a junção pela requerida dos documentos numerados e a notificação da Câmara para juntar o procedimento administrativo de licenciamento da obra.
Em 29 de Setembro de 2025 foi proferida decisão em que, após o relatório e saneamento, se consignou o seguinte:
“O estado dos autos permite, desde já, conhecer do mérito da causa, não se julgando necessário a produção de prova, nos termos do art. 367.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, considerando que, ainda que toda a factualidade alegada no requerimento inicial fosse provada, a pretensão da requerida teria, em qualquer caso, de ser indeferida.”
Após tecidas considerações sobre os pressupostos da providência cautelar especificada de embargo de obra nova e da providência cautelar inominada, o Tribunal recorrido concluiu que, ainda que se provasse a alegação da requerente, da sua demonstração nunca se poderia retirar a existência de lesão ao seu direito de propriedade ou a afectação de direitos de personalidade que atingisse gravidade que justificasse o constrangimento do direito da requerida, pelo que julgou o procedimento cautelar totalmente improcedente e absolveu a requerida dos pedidos formulados.
Inconformada com esta decisão, veio a requerente interpor o presente recurso, concluindo a respectiva motivação do seguinte modo:
i. O presente recurso vem interposto da sentença que indeferiu o procedimento cautelar de embargo de obra nova intentado pela Recorrente contra a sociedade Incremento Astuto, Lda., decisão essa de que a Recorrente discorda, por nulidade de sentença e erro de julgamento de facto e de direito.
ii. A decisão recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, porquanto o Tribunal a quo não se pronunciou sobre (i) o requerimento probatório da Recorrente, nem sobre (ii) a legalidade urbanística da obra em curso.
iii. Com efeito, o Tribunal recorrido não apreciou o requerimento de produção de prova testemunhal nem a realização de inspeção judicial ao local, diligências estas expressamente requeridas pela Recorrente, nem justificou a sua omissão, violando o disposto nos artigos 411.º, 413.º, 590.º e 602.º do CPC.
iv. Tal omissão constitui restrição grave e injustificada ao direito de defesa da Recorrente e às garantias de um processo justo e equitativo, violando os princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material.
v. De igual modo, o Tribunal recorrido não conheceu das questões fundamentais suscitadas pela Recorrente relativas à violação do direito de propriedade (artigo 1305.º do Código Civil) e à inexistência de título urbanístico válido para a obra nova em execução, limitando-se a reconduzir o litígio a um alegado “direito à vista desimpedida”.
vi. A decisão requalificou, assim, a causa de pedir como se estivesse em causa um direito de personalidade (paisagem), afastando-se do objeto processual efetivamente invocado — a lesão direta do direito de propriedade —, o que consubstancia omissão de pronúncia sobre questões essenciais à decisão da causa.
vii. A inexistência de apreciação quanto ao licenciamento da obra configura igualmente nulidade, pois a falta de título urbanístico válido constitui, por si só, ilicitude urbanística, bastante para fundamentar o embargo de obra nova (artigo 397.º do CPC).
viii. O Tribunal recorrido errou, ainda, na aplicação do direito, ao considerar que a tutela cautelar requerida se destinava à proteção de um direito de personalidade, quando a Recorrente invocou e demonstrou, prima facie, lesão do seu direito real de propriedade, que constitui fundamento direto do embargo.
ix. O embargo de obra nova destina-se a paralisar a continuação de obra ilícita ou lesiva de direitos reais, assegurando a conservação do estado de coisas até decisão final, bastando para o seu decretamento a probabilidade séria da ofensa do direito de propriedade e o periculum in mora decorrente da continuação da construção.
x. A jurisprudência e a doutrina (cfr. Moitinho de Almeida, Embargo ou Nunciação de Obra Nova, 1974, e Acórdão do TRÉvora, de 30.06.2021, Proc. 324/21.3T8OLH.E1) reconhecem que a violação do direito de propriedade por construção confinante, desconforme às regras do RGEU, constitui fundamento idóneo de embargo de obra nova, sem necessidade de alegar prejuízo adicional.
xi. O RGEU contém normas de carácter imperativo e relacional (cfr. Acórdão do TCAN de 15.07.2015, Proc. 00196/07.0BECBR), cuja violação implica ilicitude urbanística e afeta diretamente o direito de propriedade dos edifícios confinantes, pelo que não pode ser desconsiderado sob o argumento de que não confere direitos subjetivos a particulares.
xii. A sentença recorrida andou, pois, mal ao indeferir a providência cautelar com base em errada qualificação jurídica dos factos e ao omitir o conhecimento das questões essenciais colocadas, padecendo de nulidades insanáveis e erro de julgamento.
xiii. Deveria, ao invés, ter determinado o decretamento do embargo de obra nova, ou, subsidiariamente, sempre deveria o Tribunal a quo ter permitido a produção da prova testemunhal e a realização da inspeção judicial ao local, nos termos dos artigos 410.º e seguintes do CPC, para apuramento dos factos alegados.
xiv. Nestes termos, e pelos mais de Direito que V. Exas. suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo revogada a sentença recorrida e substituída por decisão que decrete o embargo de obra nova, ou, subsidiariamente, determine o prosseguimento dos autos com produção de prova testemunhal e inspeção ao local.
A requerida/recorrida contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil5, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 2016, 7ª edição Atualizada, pág. 135.
Assim, perante as conclusões da alegação da requerente/apelantes há que apreciar as seguintes questões:
a. A nulidade da decisão;
b. A verificação dos pressupostos para a procedência da providência requerida.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Para a apreciação do objecto do recurso relevam as ocorrências processuais descritas no relatório supra.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.2.1. Da nulidade da decisão
A recorrente sustenta que a decisão recorrida é nula, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, d) do CPC, pelo facto de o Tribunal a quo não ter emitido pronúncia sobre o requerimento probatório que formulou no requerimento inicial, considerando que aquele, mesmo que tivesse dúvidas sobre a procedência do procedimento, deveria ter determinado o seu prosseguimento, com agendamento de data para inquirição das testemunhas arroladas e inspecção ao local, conforme requereu, não podendo indeferir a providência com base em insuficiência da prova apresentada quando não a admitiu.
A recorrida alerta para o facto de não estar em causa uma decisão de indeferimento liminar mas de improcedência do procedimento, para além de o tribunal recorrido ter expressamente se pronunciado sobre a desnecessidade da produção de prova.
A senhora juíza a quo pronunciou-se no sentido de não se verificarem as nulidades arguidas, por ter entendido não ser necessária a produção de prova e por ter apreciado sobre a questão da violação do direito de propriedade, sendo que quanto à conformidade com as regras urbanísticas considerou que tal não consubstanciava violação deste direito.
Conforme se afere do relatório supra, é verdade que a requerente, no requerimento inicial com que introduziu em juízo a sua pretensão de obter o embargo judicial da obra levada a cabo pela requerida no prédio contíguo ao seu, apresentou rol de testemunhas e solicitou a realização de inspecção ao local. Contudo, já não é correcto afirmar-se que a 1ª instância não se pronunciou sobre o requerimento probatório apresentado. Pelo contrário, após a audição da requerida e tendo esta deduzido a sua oposição, o Tribunal entendeu estar em condições de apreciar o mérito da causa consignando na decisão recorrida, de modo expresso, que a produção de prova se apresentava desnecessária, porquanto, provando-se ou não o alegado no requerimento inicial, a decisão sempre seria de improcedência.
Poderá estar-se perante uma incorrecta avaliação do estado dos autos, mas não perante uma nulidade da decisão por omissão de pronúncia.
Ademais, ainda que o Tribunal a quo não se tivesse pronunciado sobre os requerimentos probatórios – o que não sucedeu, como se viu – sempre tal falta não integraria uma omissão de pronúncia.
Com efeito, é sabido que o juiz deve conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, nos termos do art.º 608º, n.º 2 do CPC, o que não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias soluções plausíveis de direito para a solução do litígio, tenham sido deduzidos pelas partes ou possam ter sido inicialmente admitidos pelo juiz – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Edição, pp. 713 e 737.
A sentença deve resolver todas as questões submetidas pelas partes à apreciação do tribunal, com excepção daquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, entendendo-se por «questão» o efeito pretendido pelo autor (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir), bem como as excepções, sejam dilatórias ou peremptórias, e suas razões, invocadas pelas partes ou de que o juiz deva conhecer oficiosamente.
Portanto, a omissão de pronúncia, enquanto vício descrito na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, pressupõe que nada tenha sido dito sobre uma questão de conhecimento obrigatório, sendo que questão a resolver para este efeito é coisa diferente de «questão jurídica» - determinação da norma aplicável e sua interpretação – que, como fundamento ou argumento de direito, possa (ou deva mesmo) ser analisada no âmbito da apreciação da questão a resolver. Ou seja, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que constituem, de forma directa e imediata, dados integradores dos elementos constitutivos ou impeditivos, modificativos ou extintivos dos direitos cuja tutela é visada pelas partes, e não os argumentos, opiniões ou razões jurídicas.
Assim, ainda que a senhora juíza a quo não tivesse chegado a emitir pronúncia sobre os requerimentos probatórios, e emitiu, tal omissão não tornaria a sentença nula, pois que um requerimento probatório não constitui, por si, uma questão a resolver nos termos do disposto no art.º 608º, n.º 2 do CPC – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8-04-2025, 2616/24.0T8FNC.L1-7.6
Sustenta ainda a recorrente ter alegado que a obra nova invade a zona de protecção do seu prédio, afectando a sua função normal, por não terem sido observadas as distâncias previstas no RGEU, questão que não foi conhecida na decisão, que requalificou a causa de pedir como se estivesse apenas em discussão um alegado direito “a uma vista desimpedida”, enquanto direito de personalidade, quando o que se discutia era a lesão do direito real de propriedade, por implantação desconforme e excessivamente próxima que afecta a utilização e fruição do prédio da recorrente, o que não foi apreciado na decisão recorrida, tendo requerido o embargo da obra nova ilícita por falta de licenciamento/indevida conformidade urbanística, o que não foi apurado pelo tribunal.
A apelada pronunciou-se sobre esta matéria reiterando apenas que o licenciamento existe e que o prédio incorrectamente implantado é o da requerente.
Em face do acima expendido sobre o vício da omissão de pronúncia, há que reconhecer que a decisão recorrida dele não padece, também no que concerne ao fundamento ora esgrimido pela recorrente.
Com efeito, a requerente invocou a falta de comunicação prévia à Câmara Municipal por parte da requerida ao momento do início dos trabalhos, em Dezembro de 2024, que levou à suspensão da obra, referindo desconhecer se foi ou não obtido o licenciamento, tendo os trabalhos recomeçado na semana de 16 a 20 de Junho de 2025, assim como invocou o desrespeito do disposto nos art.ºs 73º e 75º do RGEU, por a obra distar menos de 3 metros do seu prédio, considerando que a sua propriedade estava a ser invadida e era lesado o seu direito a uma vista desimpedida das suas janelas.
Na decisão recorrida entendeu-se que a relação entre a requerente e a requerida, enquanto titulares de direitos reais incidentes sobre prédios confinantes e sua edificação se rege pelas normas do Código Civil e não pelas normas do RGEU invocadas pela requerente, que visam tutelar interesses públicos e de ordenamento do território e urbanismo, pelo que a sua violação não justifica, por si só, o embargo da obra tal como requerido e, não tendo sido invocada a violação das normas civis – designadamente do disposto no art.º 1360º do Código Civil -, alegando a requerente que distância existente entre os prédios é de 2,20 metros, não identificou nenhuma violação ou lesão ao direito de propriedade.
Sendo esta a fundamentação do tribunal recorrido para considerar improcedente o procedimento cautelar, logo se descortina que nenhuma omissão de pronúncia ocorreu, porquanto se entendeu que, por um lado, era irrelevante, em sede de relação jurídica de vizinhança entre particulares, o cumprimento ou não dos normativos do RGEU convocados pela requerente e, por outro, que nenhuma violação das distâncias mencionadas no art.º 1360º do Código Civil era concretamente identificada.
A ausência de apuramento ou pronúncia sobre a existência ou não de licenciamento está abrangida pela consideração de que as normas aplicáveis ao caso concreto são as previstas no art.º 1360º e seguintes do Código Civil e que apenas a violação destas justificaria o decretamento do embargo da obra executada pela requerida.
Assim, o Tribunal apreciou a questão que importava resolver, ou seja, se estavam verificados os pressupostos para o decretamento da providência solicitada, com base nos factos integradores da causa de pedir convocada pela requerente.
Não ocorre, pois, a nulidade da decisão recorrida, tendo de ser julgada improcedente tal arguição, o que se determina.
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3.2.2. Dos pressupostos do embargo de obra nova
Estatui o art.º 397º, n.º 1 do CPC: “Aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, pode requerer, dentro de 30 dias a contar do conhecimento do facto, que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente.”
São, pois, requisitos essenciais do embargo de obra nova:
a) que o requerente seja titular de um direito de propriedade ou outro direito real ou pessoal de gozo;
b) a existência de uma obra, trabalho ou serviço;
c) uma obra, trabalho ou serviço em execução;
d) a obra, trabalho ou serviço devem ser novos, deve verificar-se uma novidade;
e) a obra, trabalho ou serviço novo cause ofensa ao direito do requerente e cause ou ameace causar prejuízo – cf. Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 4ª Edição, pág. 297.
Esta providência visa impedir a violação – ou o prosseguimento da violação – de um direito real ou pessoal de gozo ou da posse em virtude da execução de uma obra, trabalho ou serviço, isto é, tem por objectivo principal suspender provisoriamente uma obra cuja suspensão definitiva ou cuja demolição possa vir a ser decretada na acção, obtendo-se assim a estabilização da situação de facto até que o litígio seja resolvido na acção principal – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 163; António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume – Procedimentos Cautelares Especificados, pág. 222
O direito ofendido pela obra pode ser o direito de propriedade ou qualquer outro direito real de gozo.
O proprietário goza, de modo pleno e exclusivo, dos direitos de uso e fruição da coisa que lhe pertence, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas – cf. art.º 1305º do Código Civil -, daí que uma obra que limite essa possibilidade de uso e fruição constitui ofensa ao direito de propriedade.
As restrições ao exercício do direito podem ser de direito publico e de direito privado, pertencendo as primeiras ao domínio do direito público – entre elas, sobressai a expropriação por utilidade pública, mas também as restrições ao direito de construir, por motivos de ordem estética ou de higiene, proximidade de certas vias de comunicação, por interesses de defesa militar, arqueológica, entre outras - e as segundas, ao domínio do direito privado – são as que resultam das relações de vizinhança e que visam regular os conflitos de interesses que surgem entre vizinhos, sendo que a generalidade das restrições relativa à propriedade dos imóveis está prevista nos art.ºs 1344º e seguintes do Código Civil – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª Edição Revista e Actualizada, pp. 94-95.
Neste caso relevam, tal como se mencionou na decisão recorrida, os art.ºs 1360º e seguintes do Código Civil.
Com efeito, a requerente convocou no seu requerimento inicial que a distância sobrante entre a construção do prédio iniciada pela requerida e o seu prédio é de 2,20 metros, considerando que assim se mostrava violado o disposto nos art.ºs 73º e 75º do RGEU e que a requerida invadia a sua propriedade, lesando o seu direito a uma vista impedida das suas janelas.
Ora, é com base nestes factos que a requerente alegou que cumpre verificar se, a provarem-se, constituem ofensa do seu direito de propriedade ou ameaça de ofensa, causada pela obra da requerida, que justifique o decretamento da providência solicitada.
Se se atentar no disposto nos art.ºs 1360º a 1365º do Código Civil, que estipulam sobre as construções e edificações – o que aqui está em causa -, afere-se ser claro que a requerente não invocou uma específica violação do seu direito de propriedade subjacente àquelas previsões legais. E não o fez porque é evidente que sustentou o seu direito em violação de normas de direito administrativo e num putativo “direito a uma vista desimpedida das suas janelas”7, relativamente ao qual não concretizou a concreta norma legal que terá sido violada pela requerida.
Em sede de recurso, a recorrente argumenta que o Tribunal partiu de premissas jurídicas incorrectas ao restringir a tutela requerida a um alegado direito de vista desimpedida, enquanto direito de personalidade, pois que invocou a lesão do direito de propriedade, por implantação e volumetria da construção contígua, que afectam a utilização e fruição do seu prédio.
A matéria atinente à implantação e volumetria da construção contígua não foi, de todo, suscitada no requerimento inicial, onde a requerente apenas fez referência à distância entre os prédios e à falta de licenciamento como fundamento daquela que entende ser uma lesão ao seu direito de propriedade.
Daqui se retira que a apelante não invocou ou sequer defende que a requerida incumpriu quaisquer regras concretas, tal como definidas no Código Civil, relativamente às construções e edificações (art.ºs 1360º a 1365º do Código Civil), porquanto aceita expressamente que a obra nova iniciada pela requerida dista do seu prédio mais de metro e meio8, o que exclui, desde logo, a aplicação do disposto no art.º 1360º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil.9
Esta norma tem a finalidade de evitar três tipos de problemas: a possibilidade de o vizinho devassar o que ali se passa, espreitando para o interior do prédio; a possibilidade de serem arremessados objectos, líquidos ou dejectos, provocando danos e desconforto; o risco de o dono do prédio contíguo pretender, ele próprio, construir até à estrema, entaipando janelas do vizinho – cf. António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, IV – Direito das Coisas, CIDP 2024, pág. 541.
Assim, a distância mínima de metro e meio entre os prédios vizinhos, servirá, em termos de razoabilidade, a privacidade exigível, impondo-se, por isso, tal restrição à propriedade individual. Observada essa distância relativa, não se pode identificar, em termos de relações de vizinhança, violação da norma em referência.
Contudo, o direito da requerente a gozar e fruir do seu imóvel terá de se conciliar com idêntico direito de propriedade da requerida relativamente ao prédio vizinho, devendo esta, por sua vez, respeitar na nova construção as regras estabelecidas no Código Civil sobre as construções e edificações e todas as demais previstas em legislação especial.
Para existir servidão de vistas tutelada juridicamente, seria necessário que a distância entre os prédios fosse inferior a metro e meio, tal como resulta dos art.ºs 1360º, nº 1 e 1362º, nº 1 do Código Civil.
Na situação dos autos não se mostra que tais preceitos tenham sido violados, quer porque a distância legal exigida entre os prédios foi manifestamente respeitada, quer porque não foi alegado que a requerida tivesse feito qualquer abertura de janelas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes para o prédio da recorrente.
Certo é que as relações de vizinhança, para além das questões relativas à da natureza dos respectivos direitos sobre os imóveis, contendem muitas das vezes com a tutela geral dos direitos de personalidade, ou seja, “os direitos que concedem ao seu sujeito um domínio sobre uma parte da sua própria esfera de personalidade” e onde se abrangem os direitos sobre bens pessoalíssimos, como o direito à vida, à integridade física, à imagem ou ao nome – cf. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2000, pág. 203.
A utilização dos benefícios do prédio, onde se inclui o gozo da vista que a partir dele é proporcionada ao titular são ainda extensões do direito de propriedade, mas contendem já com a qualidade de vida de cada cidadão, pelo que integram um direito pessoal.
Ao contrário do que propugna a apelante, a decisão recorrida não julgou o pedido de embargo de obra nova improcedente por entender que estava em discussão um direito de personalidade10, mas sim por considerar que nenhuma norma de direito civil que regula as relações de vizinhança foi invocada como tendo sido violada, não podendo a requerente louvar-se em normas de natureza administrativa para alcançar esse efeito na relação entre particulares.
A alusão ao direito à paisagem como componente do direito ao ambiente serviu apenas para reforçar o sentido do decidido, por se ter entendido que não integra o estatuto real do direito de propriedade, que é o objecto da tutela específica da providência solicitada.
Não se descortinam razões para discordar deste entendimento. Com efeito, a providência específica de embargo de obra nova visa a salvaguarda do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo ou da posse, pelo que apenas poderá ser decretada quando da execução da obra, trabalho ou serviço novo resulte a ofensa de um qualquer desses direitos ou da posse – cf. Marco Carvalho Gonçalves, op. cit., pág. 300.
Daí que o embargo de obra nova se tenha de ter por injustificado quando solicitado para tutelar direitos de personalidade – como o direito ao repouso, à tranquilidade ou ao gozo de vistas – ainda que tal ofensa decorra da realização de uma obra.
Dado que o embargo de obra nova requer a ofensa de um dos direitos enumerados no n.º 1 do art.º 397º do CPC, não pode ser requerido com fundamento na ofensa a direitos de personalidade (como, por exemplo, o direito à saúde ou à privacidade, ou como violação de um putativo direito subjectivo a paisagem) – cf. Miguel Teixeira de Sousa, CPC Online: art. 362.º a 409.º - Versão de 2025/1011; cf. acórdão dos Tribunais da Relação de Lisboa de 14-07-2022, 1178/22.8T8OER.L1-7 – “Invocando a requerente a defesa da sua privacidade e o direito à paisagem de que sempre gozou no prédio de sua propriedade, que considera afetados com reflexos no direito de gozo dessa sua propriedade face à construção em curso realizada pela requerida, sem alegar a concreta violação de regras de construção por parte desta, mormente no que se refere à distância mínima entre os edifícios ou qualquer outra prevista no Código Civil relativamente às construções e edificações ou em legislação especial, não pode a mesma embargar a referida obra”; da Relação de Évora, de 22-09-2016, 160/16.9T8LAG.E1 – “não se está perante verdadeiros direitos de personalidade, mas, quanto muito, face a expectativas criadas pela requerente […] de que jamais seria privada daquilo que estava habituada (mais sol e uma vista da varanda da sua habitação mais desafogada). Mas mesmo admitindo que no caso […] sejam reconhecidos verdadeiros direitos de personalidade, nunca estaríamos perante uma situação que pela gravidade ou anormalidade se devesse considerar excluída pelos riscos próprios da vida em comunidade, mas sim perante pequenos incómodos e aborrecimentos que sempre têm de ceder em face da ordenação que a requerida pretendeu dar ao seu direito de propriedade. Tenha-se presente, por último, que não se trata de uma situação de privação total ou significativa de sol, luminosidade ou vistas, mas de uma relativa diminuição das vistas, situação que nunca poderia justificar uma proibição de a requerida edificar no seu prédio, de acordo com projeto de licenciamento aprovado pela Câmara Municipal – cuja validade não foi colocada em causa e cuja competência sempre reservadas às instâncias jurídico-administrativas –, e respeitando as demais imposições legais e administrativas aplicáveis ao caso.”
Para defesa de direitos de personalidade, sendo esse o caso, há que recorrer à providência cautelar comum – cf. art.º 362.º e seguintes do CPC –, ponderação que, aliás, foi efectuada pela 1ª instância quando apreciou o pedido subsidiário.
Por fim, apesar da jurisprudência em sentido contrário12 convocada pela apelante, concorda-se com a decisão recorrida quando refere que:
“No caso dos autos, a requerente invoca a lesão do seu direito a uma vista desimpedida das suas janelas que, no seu entender, é ofensivo da sua propriedade e, para tanto, invoca a violação das normas dos arts. 73.º e 75.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU).
Todavia, como se refere no Acórdão do TRG de 11-03-2021, p. 5124/20.5T8GMR.G1 (disponível em dgsi.pt), «a relação jurídica entre requerente e requerida, enquanto titulares de direitos reais, concretamente, proprietárias de prédios confinantes, no que toca à edificação nos respectivos prédios, rege-se pelas normas do Código Civil – arts. 1360.º e seguintes, cujo escopo é regular os interesses conflituantes entre proprietários de prédios com relações de proximidade ou vizinhança – e não pelo disposto no RGEU (…). O escopo do RGEU (…) e de outras normas de direito público que regulam a edificação, não é a concessão ou o reconhecimento de direitos subjectivos a particulares».
Efectivamente, tais normas visam a tutela de interesses públicos e de ordenamento do território e urbanismo, mas não de protecção ou concessão de direitos subjectivos de propriedade, pelo que a sua violação não justifica, por si só, o embargo da obra levada a cabo pela requerida – neste sentido, cf. Ac. TRG de 11-03-2021, já citado.
Contrariamente, são as regras previstas nos arts. 1360.º e seguintes do Cód. Civil que regulam os interesses conflituantes entre titulares de prédios com relações de proximidade, pelo que só a violação de tais regras poderia justificar o embargo da obra executada pela requerida – cf. cf. Ac. TRG de 11-03-2021, já citado. No mesmo sentido, cf. Ac. do TRL de 14-07-2022, p.1178/22.8T8OER.L1-7 (ambos disponíveis em dgsi.pt). […]
Isto porque «o embargo de obra nova tem como objectivo defender o interessado quando seja prejudicado no seu património, e não protegê-lo de todos os efeitos reflexos causados através da ofensa dos seus direitos materiais. Pode ser requerido quanto tenha sido afectado o direito de propriedade, outro direito real ou pessoal de gozo ou a pose formal, já não quando os actos, mesmo que ilícito, apenas afectem o interessado na esfera dos seus direitos de personalidade» - cf. GERALDES, António Santos Abrantes, in Temas da reforma do processo civil, iv volume, Lisboa, Almedina, 4.ª edição, pág. 258.”
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11-03-2021, 5124/20.5T8GMR.G1 mencionado na decisão recorrida, a finalidade das normas de direito público, nomeadamente das vertidas no RGEU e que foram invocadas pela requerente, não é a regulação de relações jurídico-privadas, nem a concessão ou o reconhecimento de direitos subjectivos a particulares. As restrições de âmbito administrativo que emergem para os particulares no exercício do direito de propriedade originam o estabelecimento de uma relação entre a administração e os destinatários de tais normas, consistindo numa relação jurídico-administrativa, ainda que possa estar em causa, simultaneamente, a protecção de interesses privados, o que não significa, porém, que na relação de vizinhança tais normas possam sustentar a pretensão de suspensão de uma obra por falta de licenciamento ou com base na violação de normas de natureza administrativa (independentemente do reconhecimento de que tais normas possam proteger interesses particulares, tutelando embora primacialmente interesses públicos, podendo originar ou sustentar uma obrigação de indemnização por eventuais danos causados13).
Assim, quer a obra da requerida tenha sido ou não licenciada pela entidade administrativa competente, quer tenha existido ou não violação das normas dos art.ºs 73º e 75º do RGEU, tal é indiferente para o desfecho da presente causa, porquanto dessas normas não emerge um qualquer direito subjectivo do particular a alcançar a suspensão da obra inovadora.
O embargo de obra nova está fundamentalmente delineado como meio de reacção à ofensa de situações jurídicas de direito civil.14 As normas de direito público, nomeadamente as que estabelecem onde se pode ou não edificar e as regras de edificação, não conferem direitos subjectivos, ou seja, a apelante não tem o direito de exigir ao dono do prédio vizinho, que cumpra as regras de direito público, emanem elas do RGEU, do plano director municipal ou de outro instrumento público. São as autoridades públicas competentes quem tem o direito de exigir esse cumprimento, através dos meios previstos nesse e noutros diplomas, que regulam as relações entre as autoridades públicas e os privados (relação jurídico-administrativa).
Neste caso, a recorrente não alegou quaisquer factos que, a serem demonstrados, atestem uma violação do seu direito de propriedade por infracção das normas do Código Civil relativas a construções e edificações, sendo que as restrições nelas enunciadas são taxativas.
A diminuição da vista a partir das janelas do prédio da requerente poderia, em tese, afectar o bem-estar de quem ali habita, circunstância que foi, contudo, afastada pela decisão recorrida à luz dos factos alegados, considerando não verificada uma lesão com gravidade suficiente para justificar a adopção de providência inominada, por não estarem reunidos os respectivos pressupostos, o que justificou o indeferimento também do pedido subsidiário deduzido, que, nessa parte, transitou em julgado, porquanto a recorrente não se insurgiu contra esse segmento da decisão (cf. art.º 635º, n.ºs 2 a 4 do CPC).
Em consonância com o expendido, não tendo a requerente invocado a concreta violação pela requerida de regras de construção/edificação em sede de relações entre particulares, sobremaneira quanto à inobservância da distância mínima entre os edifícios, impõe-se corroborar a conclusão do tribunal recorrido no sentido de que, ainda que viesse a provar-se a factualidade alegada pela requerente, daí não resultaria a procedência da sua pretensão.
Assim, pode concluir-se, sem necessidade de outras diligências e/ou da produção de prova, que à requerente não assiste o direito de embargar a obra da requerida.
Improcede a presente apelação, devendo manter-se inalterada a decisão recorrida.
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Das Custas
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
A recorrente decai em toda a extensão quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
As custas ficam a cargo da apelante.
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Lisboa, 2 de Dezembro de 202515
Micaela Sousa
Ana Mónica Mendonça Pavão
Paulo Ramos de Faria
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1. Elaborado pela relatora e da sua inteira responsabilidade – cf. art. 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil.
2. NIF ....
3. NIPC ....
4. Aprovado pelo DL n.º 38382/51, de 07 de Agosto, adiante designado pelo acrónimo RGEU.
5. Adiante designado pela sigla CPC.
6. Acessível na base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
7. Cf. artigo 13º do requerimento inicial.
8. 2,20 metros, conforme alega no artigo 11º do seu requerimento inicial; aceitando, posteriormente, no requerimento de 25 de Agosto de 2025, Ref. Elect. 6443355, que essa distância é de 2,33 metros (ponto v.).
9. “1. O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio.
2. Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela.”
10. Esta questão foi analisada a propósito do impedimento das vistas da janela, mas em sede de apreciação do pedido subsidiário de decretamento de uma providência inominada.
11. Acessível em https://blogippc.blogspot.com/.
12. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30-06-2021, 324/21.3T8OLH.E1, onde se entendeu que, tendo sido alegada factualidade no sentido de que a construção irá bloquear a luz e as vistas a sul e a poente, com janelas tapadas por paredes com a altura de 5 pisos, a um metro de distância, violando, assim, o disposto nos artigos 57.º e 59.º do PDM de Olhão e o artigo 73.º do RGEU, se mostra invocada matéria susceptível de integrar os pressupostos do art.º 397º do CPC, mas sem se discorrer, em concreto, sobre a questão de as normas de direito público poderem sustentar a providência solicitada no contexto de relações privadas de vizinhança.
13. Cf. Neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 14-11-1996, CJ 1006, V, 96.
14. Ainda que se estenda a casos em que se visa a defesa de interesses públicos que não cabem na previsão do art.º 9º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, conforme decorre do disposto no art.º 398º do CPC.
15. Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.