BURLA QUALIFICADA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ESPECIFICAÇÃO
PRINCIPIO IN DUBIO PRO REO
MEDIDA DA PENA
CONDIÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REPARAÇÃO DO DANO
Sumário


I - Mostra-se cumprido  o disposto na al. b) do nº3 e do nº4 do artº 412º CPP se o recorrente transcreve parte  das declarações do arguido, declarações do ofendido, depoimento de Pedro Silva, e indica no inicio de cada fala o minuto e segundo constante do depoimento respectivo gravado, e se identifica os documentos que devem ser apreciados, e seu teor e significado com vista à modificação do decidido;
II – Se o recorrente descreve e integra na sua motivação o resultado da sua impugnação indicando expressamente quais os factos que a final deviam ficar provados e os não provados alterando desse modo a matéria de facto julgada na 1ª instância mostra-se  cumprido o ónus imposto pelo artº 412º 3 al a) CPP, a lei não impõe qualquer formalidade especial, nessa descrição, posto que o tribunal da Relação compreendeu perfeitamente o que estava em causa.
III - Não impondo a lei onde deve ser cumprido formalmente o ónus de especificação do artº 412º nº3 CPP o mesmo mostra-se cumprido desde que o seja na motivação independentemente de também o haver sido nas conclusões.
IV - A lei, não limita o tribunal da Relação à prova indicada pelo impugnante da matéria de facto e antes impõe-lhe um dever suplementar, ao estatuir expressamente no artº 412º nº 6 CPP que no que respeita à prova gravada a sua apreciação não se limita à audição das passagens indicadas pelo recorrente nas procede à audição de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
V - O princípio in dúbio pro reo deve ser tratado como erro notório na apreciação da prova   como modo para a alteração da matéria de facto
VI - o princípio in dubio pro reo, como corolário do principio da livre apreciação da prova, ínsito no princípio da inocência do arguido, mostra-se violado quando o tribunal opta por decidir, na dúvida, contra o arguido;
VII - A actividade  recursiva do STJ, também no  que respeita à medida da pena se traduz  como um remédio jurídico  com vista a  averiguar, neste contexto, se os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade (artº 18º CRP) das penas se mostram respeitados e observados, bem como nessa sequência se as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, foram observadas mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”
VIII – A condição da pena suspensa traduzida na recuperação do dano causado  visa não apenas a finalidade da reparação do mal do crime (artº 51º1CP) mas também a reintegração social do arguido em vista do seu afastamento da prática de novos crimes ( artº 50º nº2 CP)
IX - A reparação do dano, como condição da suspensão da pena, na fixação do seu montante  está sujeita ao critério da adequação e razoabilidade ou proporcionalidade, tendo uma função de adjuvante da realização das finalidades da punição, e como tal a condição implica um sacrifício, e como tal tem de ser encarado pelo arguido.

Texto Integral

Acordam em Conferencia os Juizes Conselheiros na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

1. No Proc. C.S. nº 40/22.9T9MAI.P1 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto -Juízo Local Criminal da Maia em que é arguido AA, e

assistente e demandante civil BB,

foi por sentença de 3/7/2024 proferida a seguinte decisão:

Em face do exposto, decide-se:

A. julgar improcedente, por não provada, a acusação deduzida e, em consequência, absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificado, previsto e punível pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, alínea a) do Código Penal

B. julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante BB, do mesmo absolvendo o demandado AA

Custas cíveis pelo demandante, nos termos do disposto nos arts. 527º do Código de Processo Civil, ex vi do art. 523º do Código de Processo Penal.”

2. Recorreu o assistente para o Tribunal da Relação do Porto, suscitando a questão relativa à impugnação da matéria de facto, por erro de julgamento.

Por acórdão de 11/6/2025 a Relação do Porto decidiu:

“Pelo exposto, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação, julgam parcialmente procedente o recurso interposto pelo assistente, revogando parte da decisão do Tribunal “A Quo”, e em consequência, alteram a decisão da matéria de facto nos termos supra expostos, determinando condenar o arguido AA como autor material de 1 (um) crime de burla qualificada previsto e punido pelos arts.217.º n.º 1, 218.º n.º 2 alínea a) ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão;

Considerando a personalidade do arguido, a sua primariedade, pese embora a ilicitude apurada no crime cometido, o Tribunal conclui que a simples censura do facto e a ameaça da pena, satisfazem os fins da pena, pelo que, nos termos do art.50º do Cód.Penal, determina a suspensão da execução da pena pelo período de 3 (três) anos e 10 (dez) meses.

Neste regime de suspensão, nos termos do arts.51º nº1 alínea a) do Cód.Penal, mais se sujeita o arguido no decurso do regime de suspensão, ao dever de pagar a quantia de 45.000€ (quarenta e cinco mil euros) que integra parte da condenação pelo pedido cível, sem prejuízo dos procedimentos executivos que o demandante prossiga, quantia que deverá ser depositada em frações de 15.000€ (quinze mil euros) por cada ano do período de suspensão, de tal modo que ao terceiro ano de suspensão a referida quantia de 45.000€ esteja integralmente paga. Os depósitos deverão ser feitos por depósito autónomo, que o Tribunal depois entregará ao ofendido.

Mais se condena o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se em 4 UC (quatro unidades de conta) a taxa de justiça devida.

Quanto ao pedido cível deduzido pelo demandante.

O Tribunal julga o mesmo parcialmente procedente, condenando o demandado AA a pagar ao demandante a indemnização de 70.000€ (setenta mil euros) pelos danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora vencidos desde a notificação para contestar o pedido cível e nos juros vincendos até integral pagamento, absolvendo o demandado da restante parte do pedido.

Custas cíveis pelo demandado e pelo demandante na proporção do decaimento.”

3. Recorre agora o arguido para este Supremo Tribunal, o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões na parte pertinente destas ( transcrição):

1. A primeira é a violação dos poderes de cognição do tribunal face, pelo incumprimento do artigo 412º, nº 3 e 4 do CPP, que torna o acórdão nulo por força dos artigos 425º, nº 4 e 379º, nº 1, al c) do CPP.

2. O presente acórdão substituiu-se ao juiz de 1ª instância, substituiu a falta de elementos de prova indicados pelo assistente e fazendo tábua rasa do que é afinal o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do CPP, inovou e condenou o arguido.

3. Mais violou o constitucional princípio de in dúbio pro reo.

4. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões.

5. Quando se aponte um erro de julgamento, para lá dos limites impostos para a cognição do objecto decorrentes do ónus da especificação imposta ao recorrente, da falta de oralidade e de imediação, da impossibilidade de transformar o acórdão em novo julgamento, acresce ainda o limite decorrente da decisão circunscrita à decisão de facto que contende com as concretas provas indicadas pelo recorrente.

6. O assistente não procedeu à indicação das provas que impõem a decisão que o mesmo reclama e, como tal, o ónus da especificação não foi cumprido.

7. A posição do assistente foi defender o que lhe parecia acertado como decisão de facto, sem indicação de prova, limitando-se a remeter para as regras da experiência, regras essas que sustentaram a absolvição.

8. O ora recorrente fora absolvido do cometimento do crime de burla, pois confessou ter recebido por transferência o montante de 20 mil euros, mas não o valor de 50 mil euros em numerário e mais se confessou que a importação do veículo que iria importar se frustrou, negando a intenção de enganar e ficar o montante recebido para si.

9. A decisão de 1ª Instância explicitou bem a razão por que deu como não apurada esta entrega tão avultada e que o acórdão ora recorrido, como resulta de fls. 14 e 15.

10. A ilegalidade de conhecer de questão que não é colocada é clara pela análise do objecto do recurso submetido à ponderação do tribunal da Relação e, depois, a decisão ora recorrida a invocar elementos de prova nunca antes invocados nas conclusões.

11. A decisão que era tão só a de impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso pela violação do artigo 412º, nº 3, als b), c) e 4 do CPP, tornou-se numa decisão nula.

12. O recorrente especificou e transcreveu o percurso da decisão, da tese recursiva do assistente e da posição do MP e arguido tomaram, no exercício do direito do contraditório, que que dá como reproduzido.

13. A questão do erro de julgamento submetida à ponderação, delimitada nas conclusões elaboradas pelo assistente foi em clara violação do artigo 412º, 263 e 4 do CPP, porque não foram indicadas as prova que impõem decisão diversa, o que inviabiliza legalmente a efectivação da sindicância reclamada quanto ao erro de julgamento.

14. Na verdade, nunca procedeu a qualquer indicação, de modo concreto e especificado, da relação entre passagens de depoimentos e declarações produzidos em julgamentos e cada um dos factos cuja impugnação especí ca pretendia realizar, no intuito de demonstrar a sua comprovação efectiva, não invocou, de igual forma um qualquer elemento de prova atendido pela decisão de primeira instância, para lá de referir as duas movimentações bancária (com respaldo na confissão do ora recorrente e ali recorrido).

15. O tribunal ora recorrido, defende, a fls. 19, da sua decisão que o recorrente cumpriu minimamente os ónus que lhe incumbiam nos termos do art.412º nº3 e 4 do CPP, quer nomeando a matéria impugnada, elencando ponto por ponto os factos que pretendia ver provados, quer efetuando as transcrições dos depoimentos das testemunhas, das declarações do arguido e conjugando com prova documental, assim enunciada para obter decisão diversa da recorrida.

16. Aqui não se pode acompanhar a posição do tribunal recorrido, pois lidas e relidas as conclusões do recurso do assistente falta a especificação das provas que impõem a tal decisão diferente da tomada pelo tribunal de 1ª instância.

17. O presente recurso impõe-se face à posição do acórdão que em violação do ónus decorrente do nº 3 e 4 do artigo 412º do CPP e decide desta forma, que se reproduz:

18. Portanto, os meios de prova não foram corretamente analisados, com falhas na operação lógica e das regras da experiência comum, não só, quanto à entrega dos 50.000€ em numerário pelo ofendido ao arguido, assim como quanto ao esquema fraudulento empreendido pelo arguido sobre o assistente e que levou este a despender a quantia global de 70.000€, assim falhando o juízo de prova quanto aos pontos 1 a 6 dos factos não provados, assim como à amplitude dos pontos 2 e 10 dos factos provados.

19. Por último, quanto à matéria da decisão de facto relativa aos danos morais alegados no pedido cível, não é deduzida impugnação fundamentada, quanto a esses factos, pelo que, quanto a essa matéria, o Tribunal de recurso não se pronunciará.

20. Em consequência, no essencial procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, determinando este Tribunal de recurso a alteração da redação dos pontos 2 e 10 dos factos provados e a adição dos pontos 5.1, 5.2, 5.3, 5.4, e 5.5, ao elenco dos factos provados, tudo com a seguinte redação(…).

21. O tribunal debruçou-se e levou a cabo uma tarefa que lhe estava vedada: fazer um segundo julgamento.

22. A decisão é assim nula nos termos do artigo 425º, nº 4 e 379º, nº 1, al c) do CPP pelos fundamentos e normas acima indicadas, que são violadas, a saber 412º, nº 3 e 4, 127º, do CPP e violação do princípio in dúbio pro reo.

23. A segunda questão é colocada em torno da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena previsto no artigo 50º do CP, sujeita aos deveres decorrentes do artigo 53º por se mostrarem economicamente impossíveis de serem cumpridos.

24. Apesar da nulidade apontada à alteração da decisão de facto, a decisão recorrida parte da “factualidade” que vem de apurar para operar o enquadramento jurídico.

25. Sucede, porém que na fixação da medida da pena, a curta análise determinou que ao ora recorrente fosse aplicada a pena de pena de 3 anos 28 e 10 meses para o crime de burla qualificada previsto no artigo 218 nº 2 alínea a) do CP.

26. Antes de mais, a dosimetria encontrada é onerosa e desproporcional ao caso.

27. O recorrente é primário, não tem como modo de vida o comércio de automóveis, é um jovem adulto, com vida estabilizada de acordo com a decisão de facto constante do ponto 12 que não foi invocada e, por isso, se mantém inalterada.

28. Os artigos 40º, 70º e 71º do CP têm em vista por um lado a prevenção e por outro a reintegração do agente.

29. A medida da pena é o equilíbrio da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – [prevençãogeral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.

30. Ainda que o recurso ao instituto da suspensão da execução da pena seja incontestável, já não o é o regime decorrente do artigo 53º porque atira de forma inevitável o agente para a cadeia.

31. A decisão recorrida ainda que, impugnada, caso não seja declarada verificada a nulidade apontada, deve quedar-se numa pena de prisão de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução.

32. O recorrente não consegue materializar, com êxito, o regime de execução da pena quando se subordine este regime ao dever de pagar o montante de 45.000€ (em três prestações ao longo de 3 anos).

33. O que vem de ser dito não é equitativo.

34. Aufere o rendimento líquido mensal de 1.069,31€ é a decisão de facto rmada e não contestada quanto ao que o ora recorrente ganha.

35. A decisão recorrida violou os artigos 40º. 70º, 71º, 50º e 53º todos do CP.

36. Por fim, a terceira questão é atinente à condenação do recorrente em sede de pedido cível no valor de 70 000,00 euros, acrescidos de juros vencidos e vincendos desde a notificação para contestação do pedido cível.

37. O valor em causa é elevado.

38. Podem, como reconhece a decisão recorrida ser suscitadas questões que o recorrente, porque foi absolvido em 1ª instância não arguiu ou equacionou por falta de interesse em reagir a decisão que lhe era favorável.

39. Na verdade, como se reconhece, pode ser suscitada a qualificação de outros tipos contratuais convencionados nos usos comerciais, como o contrato de intermediação de bem móvel.

40. A decisão parte do princípio que “estava supostamente definido (assim estando excluída a angariação por forma a facilitar a compra do veículo)” não é líquido.

41. Bem reconhece a decisão que também não foram definidos honorários, elemento corrente deste negócio.

42. Ora, ainda acresce outas questões como sejam a nulidade ou anulabilidade do contrato, e, bem assim, outras em torno da responsabilidade pré-contratual.

43. Uma realidade é certa, ultrapassar as questões seja em abono ou desabono de um sujeito processual não é a solução.

44. E tanto assim é que o artigo 82º, nº 3 do CPP quando se verifiquem uma das situações previstas no artigo 72º do CPP prevê a remessa para esta discussão para os meios comuns.

45. Deve, pois, o recorrente ser absolvido da instância sob pena de violação dos artigos 72º e 82º, nº 3 do CPP.”

Respondeu o Mº Pº pugnando pela manutenção da decisão recorrido e improcedência do recurso.

Respondeu o assistente pugnando pela manutenção da decisão e improcedência do recurso

4. Neste Supremo Tribunal o digno PGA emitiu parecer expressando que o “ acórdão recorrido deve ser declarado nulo, por excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 379.º, n.º 1, alínea c), parte final, e 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal;

Caso assim não se entenda,

- O recurso deve ser rejeitado quanto à questão da violação do princípio in dubio pro reo e julgado improcedente quanto à questão da medida concreta da pena e procedente quanto ao valor do pagamento que subordina a suspensão da execução da pena de prisão.

Foi cumprido o disposto no artº 417º2 CPP.

O arguido recorrente manifestou-se dando o seu acordo ao parecer do ilustre PGA no que à nulidade respeita.

O assistente manifestou o seu desacordo ao parecer do ilustre PGA no que à nulidade respeita, reiterando a sua resposta ao recurso, e o bem fundado do acórdão recorrido.

Procedeu-se à conferência com observância do formalismo legal

Cumpre decidir

5. Consta do acórdão recorrido (transcrição)

5.1. Factos e motivação da 1ª instância tal como transcritos e apreciados pela Relação:

“II. Fundamentação

Factualidade provada e não provada

Dos factos vertidos na acusação, no articulado cível, na contestação e bem assim dos que resultaram da discussão da causa, mostra-se provado, com relevo para a respectiva decisão, que:

1. No dia 14 de maio de 2021, o arguido foi contactado por CC, sobrinho do ofendido BB, o qual, sabendo que aquele já importara veículos para venda a particulares, lhe solicitou a sua intermediação para aquisição de um veículo de marca Porsche, modelo Macan, a importar da Alemanha;

2. O arguido comprometeu-se a contactar o vendedor alemão do veículo e a ir buscá-lo à Alemanha e, alegando, inclusivamente, que já adquiria um Porsche para si pela mesma via e que, na mesma ocasião, também iria adquirir um outro veículo;

3. Assim, através de mensagens trocadas com CC, o arguido remeteu ao ofendido diversos links de veículos da marca Porsche, modelo Macan, publicitados no site “mobile.de”, para que este escolhesse o veículo a comprar;

4. Depois de o ofendido ter escolhido o veículo que pretendia, o arguido comunicou-lhe que o preço a pagar seria de 70.000,00€ e solicitou-lhe o pagamento de 1000,00€ a título de sinal e, posteriormente, dos restantes 69.000,00€, para tanto lhe indicando o NIB da conta bancária por si titulada;

5. Acreditando na seriedade do que lhe era transmitido, o ofendido transferiu, a partir da sua conta bancária nº .............61, domiciliada no banco Montepio, agência do ..., para a conta bancária nº .........35, pelo arguido titulada no banco CTT, para pagamento do veículo a importar:

- a quantia de 1000,00€, no dia 28 de maio de 2021, pelas 0h41;

- a quantia de 19.000,00€ no dia 3 de junho de 2021;

6. A partir de 1 de junho de 2021, o arguido foi alegando sucessivos problemas quanto ao transporte do veículo a Portugal, referindo que iria solicitar a alguém que conhecia na Alemanha que diligenciasse por esse transporte e, posteriormente, referindo que essa pessoa fora detida em Espanha e que a polícia lhe apreendera o dinheiro, nunca tendo entregado qualquer veículo ao ofendido;

7. Com a descrita conduta, o arguido determinou o ofendido a transferir para a sua posse a referida quantia em dinheiro no convencimento de que tal dinheiro seria entregue ao verdadeiro proprietário do veículo e que, desse modo, efetivava a compra pretendida;

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8. O comportamento do arguido/demandado causou revolta, mau estar, angústia, preocupação, apreensão, desassossego, aflição e ansiedade ao assistente;

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9. O arguido colaborou com o stand E...;

10. A quantia recebida pelo arguido não foi além da que foi depositada e levantada da sua aberta no Banco CTT;

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Mais se provou que:

11. O arguido não tem antecedentes criminais;

12. O agregado familiar de AA, de 38 anos, é composto pela companheira, DD, de 32 anos, ... e pela filha do casal, EE, de 1 ano, integrada em infantário. Reside, desde setembro de 2022, juntamente com a companheira, na moradaRua 1, ..., ..., .... O apartamento é propriedade de uma amiga dos progenitores do arguido, com quem celebrou contrato de comodato. O arguido tem como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade. Iniciou recentemente atividade na área do Turismo, no transporte de turistas para o Douro Vinhateiro, atividade que lhe tem permitido aumentar os seus rendimentos e colmatar os períodos de menor trabalho, na área dos espetáculos de musica. As suas experiências profissionais mais significativas foram como .../... em hotéis da cidade do Porto, motorista da ... e como vendedor de automóveis, atividade que desenvolveu entre 2012 e 2015. Paralelamente, desenvolvia atividade de Road Manager, condutor, Roadie e Relações Públicas, por conta própria.

Aufere o rendimento líquido mensal de 1.069,31€.

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Não se provaram, com relevo para a decisão da causa, quaisquer outros factos, para além ou contrariamente aos que antecedem e, designadamente, que:

1. Com o fito de obter proventos económicos, o arguido tenha logo delineado um plano para fazer sua a quantia a pagar pelo veículo pretendido por BB, sem que alguma vez tivesse a intenção de adquirir esse veículo;

2. No dia 1 de junho de 2021, na habitação do ofendido sita na Rua 2, ..., o ofendido tenha entregue ao arguido, em dinheiro e para pagamento do veículo a importar, a quantia de 50.000,00€;

3. O arguido tenha agido como referido no facto provado 7 induzindo o ofendido em convencimento erróneo quanto ao que ali se refere;

4. O arguido tenha feito sua, utilizando-a em seu proveito, a quantia total de 70.000,00€ pertencente a BB;

5. Ao alegar que reunia as condições necessárias, em termos de conhecimentos e de experiência, para tratar do negócio pretendido pelo ofendido, o arguido tenha actuado com o propósito concretizado de criar neste a confiança necessária para o convencer de uma realidade inexistente e assim o determinar a entregar-lhe as quantias monetárias que entregou e a que sabia não ter direito, estando consciente de que o fazia à custa do património do ofendido e contra a vontade deste;

6. Tenha agido, sempre, o arguido, dispondo de vontade livre e de plena capacidade para avaliar o desvalor da sua conduta e se autodeterminar de acordo com essa avaliação, bem ciente de que a conduta que protagonizava era proibida e punida por lei;

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7. O assistente tenha entrado em estado de apatia e desinteresse;

8. Nas poucas horas em que lograva dormir, acordasse subitamente a intervalos curtos, apresentando, durante o dia, sonolência, irritabilidade e incapacidade para raciocinar com facilidade;

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9. O arguido nunca se tenha dedicado à importação de veículos automóveis;

10. A quantia de dezanove mil euros tenha sido logo entregue a quem ia comprar no país de origem, para o tio da testemunha CC;

11. A reserva que fora efectuada acabou por perder a sua validade.

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Motivação da decisão da matéria de facto

Para dispor sobre a matéria de facto que antecede, ancorado nas regras da experiência, fundou este tribunal a sua convicção na apreciação crítica do conjunto da prova produzida e no seu cotejo com o princípio da livre apreciação.

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O arguido, em declarações, referiu que desconhece o teor das mensagens que foram anexadas ao processo. Confirma ter recebido vinte mil euros por transferência que foi entregue para a futura compra do carro. A entrega em numerário foi pedida pela pessoa que foi à Alemanha (de nome FF, não se recordando do apelido, que era freelancer e que fazia importação de carros para várias pessoas; ele estava mais por dentro; o declarante não dominava o assunto). O declarante acedeu. Não apresentou nenhum automóvel como se fosse seu. Não mandou nenhuma mensagem com imagem. As mensagens são eventualmente falsas.

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Foram tomadas declarações ao assistente, o qual referiu que queria comprar um carro, importando-o da Alemanha e falou com o sobrinho a ver se este conhecia quem o fizesse. Ele disse que conhecia o arguido. Foram-lhe apresentados modelos de viaturas e preços. Definiu um máximo de setenta mil euros. O sobrinho fazia serviços para o arguido, colocando películas nos vidros de carros importados. Chegaram ao consenso relativo a uma viatura. O arguido iria buscar o carro. Identificaram o stand. Havia um sinal a suportar. Recebeu um documento comprovativo da entrega do valor a titulo de sinal ao destinatário. Foi-lhe dito que a viatura chegaria o mais rapidamente possível. Era uma questão de acertar o transporte. Demoraria uma semana ou duas. O sobrinho esteve presente sempre. E como que o representou. A partir daí o arguido começou a enviar fotografias a dizer que o carro vinha num reboque. Depois disse que o dinheiro tinha ficado retido em Andorra. O CC disse que ele entregou a outra pessoa para ir buscar a viatura. Aí, o declarante começou a desconfiar. Depois o arguido disse que estava a tentar resolver com a advogada. O arguido nunca deixou de lhe comunicar, mas comunicava mais com o sobrinho. Chegou a atender o telefone ao assistente. Ficou sem a viatura e sem o dinheiro. Entregou mil euros a 28 de maio; depois, em sua casa, na sala, cinquenta mil euros em numerário e, no dia 3, dezanove mil euros. Ele contou os 50000 à sua frente. Integrados por notas de 50 e algumas de 100. Quando compôs os 50000, o sobrinho presenciou a contagem do dinheiro. Foi pela tarde. A esposa estava em casa e viu-o lá, mas não esteve presente na contagem de dinheiro. Mas o declarante referiu que acabou de pagar para o carro dela. Quis oferecer a viatura porque estava com doença oncológica e tinha um prognóstico de curta sobrevivência. Esteve com ele por duas vezes. A primeira antes da primeira transferência, em vinte e tal de maio. A segunda, quando entregou o numerário. Perguntou ao sobrinho, que lhe disse que o arguido tinha trabalhado para alguém que importava carros e que agora estava a fazê-lo por conta dele. Deu ao sobrinho o negocio da venda da sua anterior viatura. Confirma o teor de fls. 7, verso, como sendo a reserva feita.

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Foram inquiridas as seguintes testemunhas:

CC, colocador de vidros automóvel, que disse conhecer o arguido, já lhe tendo prestado serviços. Não está de bem com ele, pelo que fez ao tio. Tentaram comprar um carro. O tio pediu-lhe ajuda. Conhecia o arguido de importar carros e falou com ele. A comunicação passava sempre por si. Quando se falou de dinheiros é que lhe disse que tinha de falar com o tio. Ele enviou-lhe uma foto de uma folha alusiva a reserva, que consta de fls. 7, verso. O valor acordado era 70000 euros. Foi feita uma transferência de 19000. Ele veio buscar os 50000 em mãos e depois foi feita a transferência no mesmo dia ou no dia a seguir. Depois ele começou a invocar razões para o facto de ainda não ter trazido o veículo. O primeiramente acordado era o arguido ir buscar a viatura. Mas depois disse que não conseguia. Disse que fazia uma transferência para o stand. Mas depois disse que entregava o numerário a quem ia buscar a viatura. Depois disse que o dinheiro tinha ficado retido na fronteira de França. Mas não sabia quem era a pessoa, não sabia o contacto da pessoa. O acumular de justificações levou o depoente a perceber. Ele disse que ele próprio tinha tentado comprar um carro e também tinha sido enganado, que estavam todos no mesmo barco. Estava presente quando os 50000 foram entregues. Tinha notas de 20 e outras. O arguido contou tudo. O GG era dono do Panamera que o arguido disse que queria adquirir da Alemanha. O depoente comentou com o arguido a respeito do estado físico do assistente.

GG, empresário do ramo automóvel, que disse conhecer o arguido como amigo e também por já ter trabalhado consigo. O anterior depoente contou-lhe o que se estava a passar com o arguido. Tentou ajudar na situação entre ambos. Tentou encontrar-se com os dois. O arguido disse que tinha sido enganado a meio de um negócio. Depois disto, a relação com o arguido ficou afectada. Não houve mais proximidade. Confirma a viatura de fls. 16. Essa viatura comprou-a e vendeu-a a um cliente. O AA tinha-lhe pedido as fotos. Pensou o depoente que ele tinha cliente para a viatura. O depoente disse ao CC que o carro era seu. O CC disse que ele tinha dito que estava a adquirir essa viatura.

HH, casada (com o sobrinho do assistente) e esteticista. Disse que sabia da situação de saúde por que passava o assistente. Ele ficou com preocupação e desespero. Mais nervoso e stressado.

II, empresária, esposa do demandante, que referiu que o assistente queria fazer-lhe uma surpresa e estava mal de saúde. Estava a fazer quimioterapia. Não saía de casa. Numa das vezes em que o arguido foi a sua casa, a depoente estava a sair para ir trabalhar para o restaurante. O marido partilhou consigo o que ia fazer.

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Documentalmente, foi tido em consideração o teor de:

- fls. 9/36 (prints de conversação),

- fls. 18/19 (talões bancários),

- fls.41 (registo civil),

- fls. 42 (ficha biográfica),

- fls. 45/83 (documentação bancária),

- fls. 92 (exame),

- fls. 93 (conteúdo de CD),

- fls. 8 (fotografia),

- certidão do processo nº 6391/22.5T9VNG junta em 2024.04.24.

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A ausência de antecedentes criminais decorre do teor do último crc junto aos autos.

A apurada situação pessoal e socioeconómica do arguido foi respigada do teor do relatório social junto aos autos.

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Em sede de discussão dos meios de prova, importa referir que inexiste prova suficientemente segura e acima de uma dúvida razoável e fundada acerca da alegada entrega pelo assistente ao arguido da quantia de cinquenta mil euros em numerário, não o sendo a alusão em sede de conversações nos autos documentadas ao montante total de setenta mil euros relativo ao negócio acordado, nem a alusão, em sede de declarações, do próprio assistente/demandante, corroborada pelo depoente CC, na medida em que se trata de uma quantia avultada que, de acordo com as regras da experiência e da normalidade, não se entrega, com tal singeleza, sem uma imediata (ou prévia) contrapartida/contraprestação (ou garantia de contrapartida/contraprestação) contratual ou sem um mínimo de possibilidade de futura demonstração de que tal pagamento ocorreu. Isto é o que manifestamente nos inculcam todas as mais elementares regras da lógica, às quais não nos podemos in casu subtrair, pese embora a afirmação de assistente e seu sobrinho a respeito da efectiva entrega de tal quantia em numerário. Assim, entende-se decidir este aspecto factual mediante formulação de um juízo dubitativo, que é de fundada e razoável suscitação, e que convoca o principio de direito probatório in dubio pro reo, consequentemente julgando não provado o correspondente substracto factual.

Ademais, pese embora o arguido tenha admitido ter recebido do assistente a quantia de vinte mil euros, a título de princípio de pagamento da viatura em cuja aquisição este estava interessado, a verdade é que os meios de prova produzidos - mesmo aqueles que se reconduzem ao teor das conversações anexas aos autos e muito menos à sua mera atestação por via das declarações do principal interessado no seu directo ressarcimento, ainda que corroboradas por familiar próximo - não permitem sustentar, de forma mínima e suficientemente consistente, que a actuação do arguido decorreu desde o início informada de um transversal intuito de apropriação indevida da quantia que lhe foi entregue, no propósito de nunca proceder à entrega da viatura em apreço. A forma como os meios de prova nos evidenciam o iter factual é, ainda, compatível com a hipótese da frustração objectiva do negócio, por motivo não inteiramente apurado, bem como pela não subsequente existência de condições subjectivas para a repetição das quantias entregues. A conduta do arguido, vista, seja por via das suas declarações, seja-o na perspectiva quer de assistente, quer de CC, sendo muito embora portadora de caracteres em abstracto equacionáveis no contexto de um intuito defraudador, a verdade é que são, ainda, em concreto, amplamente compatibilizáveis com a alegada actuação desprovida de um tal intuito e “afectada” por vicissitudes que deram azo a um “incumprimento” contratual.

Por tal conjunto de razões e de circunstâncias, é de considerar que o conjunto factual, no contexto dos meios de prova que o permite minimamente evidenciar, se queda, também aqui, num domínio dubitativo, de razoável e fundada formulação, convocando o principio de direito probatório in dubio pro reo, consequentemente impondo a selecção da correspondente factualidade como não provada.

A alusão do arguido a uma viatura que, em boa verdade, não lhe pertencia, pese embora reveladora de uma inverdade, evidenciando porventura uma forma de actuação menos transparente em sede negocial (não necessariamente defraudadora), em função do depoimento de GG, não é suficientemente decisiva para que por sua via se considere relevantemente substanciadora de um intuito inicial ou sequer subsequente de defraudação do assistente.

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Os factos provados 1 a 3 decorrem das declarações do assistente, tendo sido contextualmente admitidos pelo próprio arguido.

O facto provado 4 decorre do teor das documentadas conversações, não resultando, porém, probatoriamente demonstrado quando é que seria suposto ocorrer o pagamento da quantia remanescente considerando aquela que foi transferida.

O facto provado 5 foi documentalmente sustentado.

O facto provado 8 resulta das declarações do assistente e dos (nessa matéria, credíveis) depoimentos que sobre essa matéria foram colhidos, em articulação com as regras da experiência comum aplicáveis in casu, que nos indicam que situações como a decorrente da factualidade provada dão azo a sentimentos e estados como os referidos.

O facto provado 9 decorre do credível depoimento de GG

O facto provado 10 decorre da acima referida formulação de um juízo dubitativo a respeito da entrega da quantia de cinquenta mil euros, como consequência da aplicação do princípio in dubio pro reo.

Os factos não provados 1 a 6 decorrem das considerações acima expendidas.

Os factos não provados 7 a 11 não foram consistentemente sustentados pelos produzidos meios de prova ou não o foram de todo.

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Não foram tidas em consideração as asserções de pendor probatório (instrumentais), conclusivo (despidas de concretização factual) ou jurídico (co-envolvendo, mais ou menos explicitamente, juízos de enquadramento normativo).”

5.2 Factos aditados pela Relação e sua motivação (transcrição)

“… no essencial procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, determinando este Tribunal de recurso a alteração da redação dos pontos 2 e 10 dos factos provados e a adição dos pontos 5.1, 5.2, 5.3, 5.4, e 5.5, ao elenco dos factos provados, tudo com a seguinte redação:

“2. - Com o fito de obter proventos económicos, o arguido logo delineou um plano para fazer sua a quantia a pagar pelo veículo pretendido por BB, sem que alguma vez tivesse a intenção de adquirir esse veículo. Assim, comprometeu-se a contactar o vendedor alemão do veículo e a ir buscá-lo à Alemanha, alegando, inclusivamente, que já adquiria um Porsche para si pela mesma via e que, na mesma ocasião, também iria adquirir um outro veículo;

(…)

5.1. - No dia 1 de junho de 2021, na habitação do ofendido sita na Rua 2, ..., o ofendido entregou ao arguido, em dinheiro e para pagamento do veículo a importar, a quantia de 50.000,00€;

5.2. - O arguido agiu como referido no facto provado no ponto 7, induzindo o ofendido em convencimento erróneo quanto ao que ali se refere;

5.3. - O arguido fez, assim, sua, utilizando-a em seu proveito, a quantia total de 70.000,00€ pertencente a BB, tendo este suportado a diminuição do seu património no mesmo montante;

5.4. - Ao alegar que reunia as condições necessárias, em termos de conhecimentos e de experiência, para tratar do negócio pretendido pelo ofendido, o arguido atuou com o propósito concretizado de criar neste a confiança necessária para o convencer de uma realidade inexistente e assim o determinar a entregar-lhe as quantias monetárias que entregou e a que sabia não ter direito, estando consciente de que o fazia à custa do património do ofendido e contra a vontade deste;

5.5. - Agiu, sempre, o arguido, dispondo de vontade livre e de plena capacidade para avaliar o desvalor da sua conduta e se autodeterminar de acordo com essa avaliação, bem ciente de que a conduta que protagonizava era proibida e punida por lei;

(…)

10. A quantia recebida pelo arguido foram os 70.000€ como acima resulta descrito.”

Consequentemente, mais se determina eliminar os pontos 1 a 6 o elenco dos factos não provados.”

Para o efeito a Relação adjunta a seguinte motivação / apreciação da prova:

“Um dos pontos capitais dos autos, a par de saber do seu dolo inicial de burlar e de se pretender apropriar do valor de 70.000€, interessará saber se o arguido recebeu toda a quantia dos 70.000€, em particular a parte dos 50.000€ em numerário, pelo pagamento do Porsche modelo Macan. Pois, esse recebimento, significa, por si só, e justificaria os supostos esforços para providenciar pelo envio de um veículo já pago. Na indagação probatória, o Tribunal “A Quo” não procedeu, como devia, à análise particular, a par e passo, do curso das mensagens que se encontram transcritas nos autos e menos as articulou com a restante prova documental, testemunhal, assim como com as declarações do arguido. De forma conclusiva referiu o Tribunal “A Quo” que “ao teor das conversações anexas aos autos e muito menos à sua mera atestação por via das declarações do principal interessado no seu directo ressarcimento, ainda que corroboradas por familiar próximo - não permitem sustentar, de forma mínima e suficientemente consistente, que a actuação do arguido decorreu desde o início informada de um transversal intuito de apropriação indevida da quantia que lhe foi entregue, no propósito de nunca proceder à entrega da viatura em apreço”.

Contudo, contrariamente, dessas mensagens resultam várias evidências, exuberantes por sinal, da conduta delitual do arguido em burlar ab initio, desde logo, a encenação (mise-en-scène) que montou a CC e ao assistente de uma encomenda de um veículo Posrche modelo macan importado da Alemanha, onde o arguido ao mesmo tempo também compraria um carro para si, transmitindo a ideia de partilhar o risco da operação, e depois de consumar a burla com o recebimento dos 70.000€, multiplicou uma sucessão de explicações extraordinárias, as quais mostram mentiras mantidas consecutivamente, com o objetivo de ocultar o seu esquema enganoso, descrevendo uma sucessão de azares bizarros, uns atrás dos outros, mas ficando assim absolutamente demonstrado o seu dolo de burla, existente “ab initio”.

Impressiona a sucessão muito numerosa de mails, cuja falsificação não se antevê, sobretudo, que fosse o próprio assistente a juntar nos autos um conjunto tão alargado de mensagens falsificadas, muitas delas com conversas coloquiais sem interesse algum para a questão dos autos, onde o arguido em declarações, confrontado com o suporte escrito dos mails, foi lacónico, quando a eles se referiu, e em vez de responder e negar de forma categórica, se fosse esse o caso, à pergunta sobre se as mensagens - são falsas?, respondeu o arguido – Eventualmente. (…) não sou órgão de policia não lhe posso precisar, eu não lhe enviei as mensagens. Sendo que o Tribunal “A Quo” faz referências às mensagens em causa no ponto 3 dos factos provados. Ora, resulta dessas mensagens escritas que nos trâmites do negócio, que estava a ser preparado entre o arguido e o CC, que o veículo só viria do estrangeiro depois de pago na íntegra, conforme expressamente pediu o arguido e consta das mensagens trocadas, concretamente a fls.12, pergunta o JJ “Para avançar para trazer o macan é pagar já a totalidade? “Sim” (responde o arguido). Mais adiante, a 21 de maio de 2021, o arguido insiste a fls.13, “…e eles querem a caução como te disse, e querem o valor total. Não facilitam nisso.(…)” “Tem que ser assim….Uns pedem todo, outros metade… Não dá para fugir a isso”, respondendo o JJ “Então nesse caso tem de transferir os 64 mil” (mensagens de fls.13). Negócio que se consuma na 1ª coluna das mensagens e fls.13 verso a 22 e 23 de maio de 2021, continuando os “acertos” acrescentados pelo arguido sobre a encomenda de uma suposta unidade de velas para o Porsche, ver 1º coluna de mensagens de fls.14 a 23 de maio. Continuando o arguido a ficcionar que estava a apurar, sobre se sempre se confirmava o valor global dos 70 mil para o assistente pagar, antes de mandar vir o automóvel (1ª coluna de fls.14 a 24 de maio de 2021), e nas mensagens seguintes na 2ª coluna de mensagens de fls.14 continuam a tratar do pagamento global dos 70.000€. A 29 de maio de 2021 na 1ª coluna de mensagens de fls.15, o JJ escreve ao arguido “Do macan deve ter 50 em dinheiro e o resto para transferir. Mas depois precisa do NIB”. Circunstância que confere com os pagamentos que vieram a ser feitos, 20.000€ por transferências bancárias e os 50.000€ em numerário em casa do assistente, e que se concentraram entre os dias 28 de maio a 3 de junho de 2021. Sobre a circunstância de ir buscar o dinheiro a casa do assistente, temos as mensagens dos dias imediatamente seguintes a 29 de maio, nas 1ª e 2ª coluna de fls.15, onde o JJ tenta combinar com o arguido a entrega dos 50.000 euros em numerário, em casa do assistente “Tá com ele. Se quiseres passas aqui e vamos a casa dele buscar. Mas ele hoje deve ter ido trabalhar.”. Muito mais à frente, depois de todo o logro consumado, e de múltiplas mentiras e enganos engendrados pelo arguido, também é referido por CC nas mensagens “Não está fácil. São 70 mil euros e trabalham muito para ter acredita.” Vide 1ª coluna de fls.29. A este respeito, a testemunha CC no seu depoimento refere que o seu tio vendeu um outro veículo que tinha um X5, e recebendo o dinheiro desse negócio, tinha o montante em numerário para pagar ao arguido, versão que é confirmada pelo assistente quando refere que por aquela altura tinha vendido o seu veículo X5 (por intermédio do seu sobrinho, o CC) e que o respetivo vendedor tinha-lhe pago 30.000 em numerário, e porque tinha os restantes 20.000€ em casa, por essa razão, veio a pagar ao arguido a aludida quantia dos 50.000€ em numerário, tendo à sua frente lhe contado o dinheiro, o qual fora também contado pelo arguido, referindo que as notas eram de vários divisores, notas de 50€, 100€ e algumas de 20€ (em vários molhos), num depoimento convicto e objetivo. A testemunha CC também presente nessa ocasião, em casa de seu tio, referiu que o dinheiro estava acondicionado em molhos, com notas de 20€ e de outras, e que o arguido também contara o dinheiro. A este propósito, o Tribunal “A Quo” não admite a hipótese do pagamento ter ocorrido dessa forma, invocando as regras da experiência comum relativa à circunstância de um pagamento dessa natureza, em numerário, não permitir um comprovativo documental do pagamento, sendo, por isso, uma forma insegura de pagar e assim inverosímil, contudo, a este respeito há a ponderar que, no comércio, ainda continuam a ser feitos muitos pagamentos avultados em numerário, quando os envolvidos, nisso vêm alguma vantagem tributária ou outra; depois, o assistente explicou o condicionalismo desse pagamento em numerário, sendo que o mesmo fora feito na presença de CC (o qual conhecia o arguido), sentindo o assistente essa segurança. Depois, o conjunto da prova produzida, torna inaplicável ao caso a referida regra da experiência comum, quanto a pagamentos em numerário, pois, como já se referiu e como a seguir veremos, o pagamento dos 50.000€, que depois totalizam os 70.000€, aconteceu efetivamente.

Com efeito, nos dias seguintes à entrega dos 70.000€, numa altura em que o pagamento de toda a quantia de 70.000€ já estava liquidada (pois, não consta qualquer mensagem adiante, onde o arguido peça mais dinheiro ou adiantamento de quantias; nas subsequentes mensagens, apenas passou a mencionar os trâmites da suporta entrega do veículo já pago), ainda na 1ª quinzena de junho de 2021, porque o preço já estava todo liquidado, o arguido dava a ideia ao JJ que iria buscar o carro ao estrangeiro ver 2ª coluna de mensagens de fls.16 verso. De notar que a sucessão de acontecimentos descritos nos mails, foram repetidamente corroborados pelo depoimento do JJ, que se afigurou coerente, sereno e conhecedor dos factos. Assim, a 10 de junho de 2021, o arguido, depois de ter estado off line alguns dias, vem declarar que não irá buscar o veículo ao estrangeiro, vide 1ª coluna de mensagens de fls.16. Nas mensagens desta folha, o arguido envia uma foto fraudulenta de um veículo Porsche panamera para venda, quando na verdade era apenas uma foto de um veículo, cedida pela testemunha GG ao arguido a pedido deste, conforme fora confirmado pelo depoimento do GG, referindo que fora o arguido que lhe pedira uma foto do veículo que o GG tinha para vender.

O arguido depois, continua com a sucessão de encenações, sobre hipotéticas vindas e envios do veículo Porsche, que nunca aconteceram, passando por um camião cuja foto alega reportar-se ao mesmo veículo, em mensagem de 11 de junho de 2021, vide 1ª e 2ª coluna de mensagens de fls.16 verso, dizendo depois de 15 de junho de 2021 que está em contacto com o camião para não demorar muito, vide 2ª coluna de fls.17. Depois, começa a descrever problemas na alfândega, referindo a seguir, que, um tal FF não deixou o Macan em Essen, vide, 1ª coluna de fls.17 verso. Depois, começa a levantar suspeitas sobre os supostos intermediários na Alemanha quanto às fotos exibidas dos carros, vide 2ª coluna de mensagens de fls.17 verso e fls.17-A; dúvidas e suspeitas, sobre os supostos vendedores na Alemanha, que o arguido continua a instilar nas mensagens de fls.17-A verso, onde nas primeiras, há alusões expressas à circunstância do carro já estar pago por inteiro. A fls.20 o arguido envia mensagens relatando que ficaram na fronteira de Espanha com a França, relatando episódios estranhos e inverosímeis de interpelação policial por excesso de velocidade, e que “levaram o dinheiro todo e que o levaram para a esquadra”, e que iam voltar para a Alemanha, circunstâncias que não fazem o menor sentido. O arguido a par de suscitar suspeitas contínuas sobre os hipotéticos vendedores, acrescenta que o dinheiro que investiu em carros para si, está igualmente em perigo, assim pretendendo credibilizar a sua posição, tese que insiste permanentemente, vide mensagens de fls.20 verso e fls.21. Depois, torna a simular que vai de carro novamente à Alemanha trazer os carros ou o dinheiro (depois concretiza que vai à esquadra na fronteira da Espanha com a França, para o que tem de contactar com uma advogada francesa, que depois já diz que é espanhola), vide mensagens da 1ª e 2ª coluna de fls.22 e 1ª coluna de fls.22 verso, fls.23 e fls.23 verso, agora já por volta de 26 a 28 de junho de 2021, iludindo que ainda não arrancou com o carro para a fronteira com a França, porque ainda espera pelo contacto da advogada, que não lho dão. Depois, simulando que se coloca a caminho, envia a informação que o veículo que conduz está a perder água, e que embora faltem 400 km, não pode prosseguir assim, referindo que acendeu a luz do motor no painel, vide mensagens de fls.24, fls.24 verso, fls.25. Simulando que encontra em Espanha envia fotos de esquadras e de autoridades policiais, e que, não sabendo onde está o carro hipoteticamente apreendido, pretende enviar um mail, mas sem saber, depois refere que tem de ser um advogado. A 30 de junho o arguido ainda insiste que não lhe deram o número de telefone da advogada, vide mensagens de fls.26 verso. Depois, invoca a ajuda de um primo da PJ, que é dos homicídios, vide mensagens de fls.27. Sobre as indagações do CC quanto a um tal FF, o arguido nas mensagens é evasivo, sem nunca dar um único elemento válido que o permita identificar (caso existisse esse FF) vide fls.27 verso. Não deixa de ser curioso que o arguido respondendo ao CC, recusa-se a ir à PJ, vide mensagem da 1ª coluna de fls.28 verso. Assim como dá números de telemóvel todos inoperacionais ou de contactos do Brasil, circunstância que é amplamente confirmada pelo depoimento de Pedro Silva. A fls.29 verso, ainda alegava estar à espera do número da advogada (como se só existisse uma única advogada em Espanha, na fronteira em causa).

Não deixa de ser interessante a pergunta receosa do arguido na mensagem da 1ª coluna de fls.30 verso “Diz-me uma coisa… Os teus tios foram á investigação criminal?”, respondendo e perguntando o CC “Não me disseram nada. Porque?” (…), respondendo o arguido “Só para saber.”

Mas sobretudo, a intenção de logro do arguido desvenda-se da encenação pelo mesmo recriada sobre o hipotético envio de um Porsche da Alemanha, com a entrega prévia de o montante global de 70.000€, que se consumou, descrevendo a CC os contatos e negócios que anteriormente fizera até aí, e que continuava a fazer. Acresce que, ao mesmo tempo do negócio do assistente, o arguido simula igualmente que se encontra a comprar um outro veículo, pelos mesmos contactos da compra do Porsche modelo Macan, assim estabelecendo um clima de confiança recíproco. Depois, de receber os valores, o arguido, consumada a burla, densifica o artificio enganoso, agora com vista a esconder e dissimular o crime cometido, visando ocultar a própria burla já consumada, multiplicando a gama de mentiras a uma escala tal, que se tornou evidente o logro. Primeiramente, referia ao CC que tudo sempre tinha corrido bem, e depois, já no meio dos enredos que engendrou, referia que, no passado, houve um negócio anterior em que lhe haviam apreendido a viatura por causa de droga, tendo-lhe desmontado a viatura, apreensão essa que se manteve por um ano. No elenco de mentiras e enganos, como se referiu, pediu ao amigo GG (vendedor de automóveis) o envio da foto de um outro Porsche modelo panamera (a fls.16 e que se inscreve na conversação e que fora confirmada pela testemunha GG, o qual posteriormente veio a vender esse seu veículo) que depois envia à testemunha CC e ao assistente, como sendo um veículo a vender. Depois, multiplica-se em episódios insólitos e inverosímeis, sem nunca ter apresentado um contacto real, ou documentação de um hipotético negócio feito na Alemanha. Torna-se muito provável que nunca houve qualquer veículo Porsche macan para venda e muito menos em trânsito da Alemanha para Portugal.

Portanto, o Tribunal “A Quo”, não obstante ter valorado as mensagens como meio de prova, contudo, não atentou no seu concreto excurso, e daí não aferiu a sua importância probatória, como devia, sobretudo quando articulada com a restante prova testemunhal, onde relevam os depoimentos de CC e até de GG. Estas circunstâncias determinaram o erro do Tribunal “A Quo” na decisão da matéria de facto, sobre o que deu como não provado nos pontos 1 a 6 dos factos provados e na redação que conferiu ao ponto 10 dos factos provados. Depois, também não valorou devidamente os movimentos da conta bancária do arguido (documentos de fls.46 a 50), que numa proximidade temporal aos factos, após o recebimento dos valores do assistente (20.000€ por transferência e 50.000€ em numerário): na conta do arguido são creditados 1.000€ e 19.000€ pelas transferências do assistente BB em 31 de maio e 3 de junho de 2021; igualmente são creditados os depósitos em numerário na sua conta das quantias de 19.000€, 18.000€ e 1.315€ em 5 de julho, 2 e 11 de agosto de 2021. Portanto, o extrato da conta do arguido desde 11 de maio a 31 de dezembro de 2021, revela o surto de capitais substanciais coincidentes e próximos ao recebimento dos 70.000€ do assistente, fazendo o arguido depósitos e transferências muito vultuosas (que depois, não se voltam a repetir até dezembro desse ano), o que face ao nível de vida apurado, torna igualmente consistente a apropriação por parte do arguido desses valores de 70.000€, não obstante as explicações lacónicas do arguido em forma de pergunta, - a minha mãe não me pode ter dado dinheiro?.

Portanto, os meios de prova não foram corretamente analisados, com falhas na operação lógica e das regras da experiência comum, não só, quanto à entrega dos 50.000€ em numerário pelo ofendido ao arguido, assim como quanto ao esquema fraudulento empreendido pelo arguido sobre o assistente e que levou este a despender a quantia global de 70.000€, assim falhando o juízo de prova quanto aos pontos 1 a 6 dos factos não provados, assim como à amplitude dos pontos 2 e 10 dos factos provados.”

6. É unanime o entendimento que o recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), sem prejuízo de ponderar os vícios da decisão e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/121 e 7/95 de 19/10/ 952 e do conhecimento dos mesmos vícios em face do artº 432º1 a) e c) CPP (redação da Lei 94/2021 de 21/12) mas que, terão de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo”, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100, constituindo a “revista alargada” donde, donde para além da admissibilidade do recurso, são as seguintes as questões a apreciar suscitadas pelo recorrente:

- Nulidade do acórdão “por força dos artigos 425º, nº 4 e 379º, nº 1, al c) do CPP pelos fundamentos e normas insertas no artigo 412º, nº 3 e 4, 127º do CPP que são violadas”

- Violação do princípio in dubio pro reo.

- Medida da pena

- condição da suspensão da execução da pena

- indemnização civil

7. A Admissibilidade do presente recurso para o STJ, resulta do artº 432º1b) CPP que dispõe: “1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;” e do artº 400º 1 e) CPP que estatui:

“1 - Não é admissível recurso:

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;” pois não sendo admissível recurso se a Relação em recurso aplicar pena não superior a 5 anos, mas “a contrario” sê-lo-á se tiver ocorrido absolvição na 1ª instancia.

Assim é admissível recurso para o STJ do acórdão da Relação que condenou o arguido em pena inferior a 5 anos porque revogou a decisão da 1ª instância que o absolvera.

8. Realizado o percurso descritivo sobre os factos apurados e suas motivações, importa entrar na análise das questões suscitadas sendo a primeira a invocação da nulidade do acórdão “por força dos artigos 425º, nº 4 e 379º, nº 1, al c) do CPP pelos fundamentos e normas insertas no artigo 412º, nº 3 e 4, 127º do CPP”

Para tal fundamenta-se o recorrente que questionando a impugnação da matéria de facto, na alegação de que o “recorrente não cumpriu o ónus que sobre si recai e que decorre do artigo 412º, nº 3 e 4 do CPP”, o que se traduz na especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; nas concretas provas que impõem decisão diversa; nas provas que devem ser renovadas, e quanto às provas gravadas a indicação dessa gravação conforme ao constante da acta e ainda a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, o que tudo se traduz no desejo de que por ausência do cumprimento do ónus de especificação, o tribunal da Relação não podia conhecer dessa impugnação da matéria de facto.

Vejamos:

8.1 O Tribunal da Relação, analisando essa questão, desde logo delimitou o objecto da apreciação/ impugnação referindo: “O recorrente centra a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto na circunstância do Tribunal “A Quo” não ter julgado corretamente os pontos que constam dos factos não provados respeitantes ao pagamento dos 50.000€ em numerário e ao emprego do artifício enganoso e respetivo dolo de burla, pretendendo se julguem provados, sustentando que o arguido dever condenado pelo crime de burla qualificada.” e considerou que Contrariamente ao sustentado pelo MP, o recorrente cumpriu minimamente os ónus que lhe incumbiam nos termos do art.412º nº3 e 4 do CPP, quer nomeando a matéria impugnada, elencando ponto por ponto os factos que pretendia ver provados, quer efetuando as transcrições dos depoimentos das testemunhas, das declarações do arguido e conjugando com prova documental, assim enunciada para obter decisão diversa da recorrida.” a que se segue depois toda a análise e apreciação da prova nos termos da fundamentação supra transcrita e aqui se dá por reproduzida.

Inserida na apreciação que devemos fazer, anota-se que é de lamentar que o ora recorrente arguido, para demonstrar o seu ponto de vista, se limite na sua motivação do recurso a transcrever as conclusões do recurso interposto pelo assistente para a Relação e as conclusões das respostas ao mesmo recurso por si e pelo Mº Pº e pelo parecer do ilustre PGA na Relação, posições que não tiveram acolhimento, como se um recurso ao tribunal e ao juiz se apresente como uma análise de juízos de autoridade exterior a si próprio e a que o juiz deve obediência, e sem rebater por qualquer argumento o mal fundado que imputa à decisão da Relação.

8.2 Desde logo cumpre assinalar que vista a motivação do recurso do assistente para a Relação, ela não apenas transcreve parte3 das declarações do arguido, declarações do ofendido, depoimento de CC, como indica no inicio de cada fala o minuto e segundo constante do depoimento respectivo gravado4, e também identifica os documentos que devem ser apreciados, e seu teor e significado com vista à modificação do decidido, pelo que neste âmbito cumpre em conformidade com o disposto na al.b) do nº3 e do nº4 do artº 412º CPP.

8.3 Do mesmo modo, elencando as questões que imporiam decisão diversa tal como as entendeu o tribunal da Relação atrás transcritas, o recorrente descreve e integra na sua motivação o resultado da sua impugnação indicando expressamente quais os factos que a final deviam ficar provados e os não provados alterando desse modo a matéria de facto julgada na 1ª instância. Indicação que cremos ser suficiente e clara sobre os concretos pontos que considera incorrectamente julgados, cumprindo assim o ónus imposto pelo artº 412º 3 al a) CPP. Será uma forma diferente de o fazer, mas estão lá e a lei não impõe qualquer formalidade especial. Factos que o tribunal da Relação como supra expressámos e transcrevemos compreendeu perfeitamente referindo o que estava em causa.

8.4. Nesse âmbito convirá esclarecer, que o recorrente remete para a ausência de tais especificações nas conclusões, esquecendo tudo o que consta da motivação.

Ora tal matéria (indicação dos factos e das provas), não tem de constar das conclusões, pois tal não é imposto pelas normativos legais. Na verdade o nº1 do artº 412º que se refere à motivação e seu conteúdo que são os fundamentos do recurso e as conclusões, sendo que estas, devem ser objecto de um formalismo especial (deduzidas por artigos) são um resumo das razões do pedido, a quais por natureza devem ser claras e sintéticas ou concisas, devendo no mais e no que respeita à matéria de direito ter o conteúdo expresso no nº2 do artº 412ºCPP.

Não impondo a lei no nº3 do artº 412º CPP onde (na motivação ou nas conclusões) deve ser expresso o ónus de especificação dos factos e das provas, impõe-se concluir que basta estarem inseridos (pois são esses os fundamentos da impugnação) na motivação ( sendo que nas conclusões só poderiam estar inseridos se já o estivessem na motivação).

Assim não impondo a lei onde deve ser cumprido formalmente o ónus de especificação do artº 412ºnº3 CPP o mesmo mostra-se cumprido desde que o seja na motivação independentemente de também o ser ou não nas conclusões.5

Neste sentido o decidiram o STJ no ac. 17/2/2005 Proc. 04P47166 e de 16/6/2005 proc 05P1577 ambos do Cons. Simas Santos, em www.dgsi.pt, mantendo-se inalterada a redação do artº 412º 3 CPP.

8.5 Mas a lei, não limita, ao contrário do que alega o recorrente, o tribunal da Relação à prova indicada pelo impugnante da matéria de facto. Pelo contrário impõe-lhe um dever suplementar, ao estatuir expressamente no artº 412º nº 6 CPP que no que respeita à prova gravada a sua apreciação não se limita à audição das passagens indicadas pelo recorrente nas procede à audição de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa7 pelo que se o tribunal o fez (como fez) não observou mais que o seu dever, legalmente imposto, como se expressa desde há muito o STJ no ac. 1/7/2010 “II. Se o recorrente tem o ónus de indicar as concretas passagens das gravações, o tribunal tem o dever de atender a outras que considera relevantes para a descoberta da verdade, sob pena de o recorrente escolher a passagem que lhe interessa - e omitir tudo o mais que não lhe interessa, assim se defraudando a verdade material.”

Donde resulta, depois de tudo apreciado, que o tribunal não cometeu nenhuma nulidade tendo cumprido apenas o seu dever e conheceu do recurso e da impugnação da matéria de facto em conformidade com o seu dever legal de “descoberta da verdade e a boa decisão da causa”

9. Nessa sequência invoca o recorrente a violação do princípio in dubio pro reo por parte da Relação avançando para o efeito, nas suas palavras que “…inexiste prova

suficientemente segura e acima de uma dúvida razoável e fundada acerca da alegada entrega pelo assistente ao arguido da quantia de cinquenta mil euros em numerário, não o sendo a alusão em sede de conversações nos autos documentadas ao montante total de setenta mil euros relativo ao negócio acordado, nem a alusão, em sede de declarações, do próprio assistente /demandante, corroborada pelo depoente CC, na medida em que se trata de uma quantia avultada que, de acordo com as regras da experiência e da normalidade, não se entrega, com tal singeleza, sem uma imediata (ou prévia) contrapartida/contraprestação (ou garantia de contrapartida /contraprestação) contratual ou sem um mínimo de possibilidade de futura demonstração de que tal pagamento ocorreu” concluindo que “pese embora a afirmação de assistente e seu sobrinho a respeito da efectiva entrega de tal quantia em numerário. Assim, entende-se decidir este aspecto factual mediante formulação de um juízo dubitativo, que é de fundada e razoável suscitação, e que convoca o principio de direito probatório in dubio pro reo” e ainda: “ A forma como os meios de prova nos evidenciam o iter factual é, ainda, compatível com a hipótese da frustração objectiva do negócio, por motivo não inteiramente apurado, bem como pela não subsequente existência de condições subjectivas para a repetição das quantias entregues. A conduta do arguido, vista, seja por via das suas declarações, seja-o na perspectiva quer de assistente, quer de CC, sendo muito embora portadora de caracteres em abstracto equacionáveis no contexto de um intuito defraudador, a verdade é que são, ainda, em concreto, amplamente compatibilizáveis com a alegada actuação desprovida de um tal intuito e “afectada” por vicissitudes que deram azo a um “incumprimento” contratual. Por tal conjunto de razões e de circunstâncias, é de considerar que o conjunto factual, no contexto dos meios de prova que o permite minimamente evidenciar, se queda, também aqui, num domínio dubitativo, de razoável e fundada formulação, convocando o principio de direito probatório in dúbio pro reo, consequentemente impondo a selecção da correspondente actualidade como não provada”

Como se vê do transcrito o arguido invoca o principio in dubio pro reo, como forma de manter a decisão, que decidira ao abrigo desse principio cuja aplicação pretendia ver pelo Tribunal da Relação, pois a violação de tal princípio deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova8 como modo para a alteração da matéria de facto.

Como temos expressado9 o princípio in dubio pro reo, como corolário do principio da livre apreciação da prova, ínsito no princípio da inocência do arguido, mostra-se violado quando o tribunal opta por decidir, na dúvida, contra o arguido 10, pois o in dubio pro reo, com efeito, “parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador” – Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997. Até porque “a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade” (idem, pág. 17): “O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, pág. 13)». E, por isso, é que, «nos casos […] em que as regras da experiência, a razoabilidade e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação, não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo...”.

No âmbito da fase recursiva diz-nos o Ac. STJ 17/4/2008, proc 08P823 cons. Pires da Graça, www.dgsi.pt/jstj que “I- A violação do princípio in dubio pro reo, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicada pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido – pela prova em que assenta a convicção. II - Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à condenação do arguido – juízo factual que, no caso dos autos, não teve por fundamento uma imposição de inversão da prova, ou ónus da prova a cargo do arguido, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o art. 355.º, n.º 1, do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório (art. 32.º, n.º 1, da CRP) –, fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, dando-se por definitivamente assente a matéria de facto apurada.”

E assim só haverá violação do principio in dubio pro reo se for manifesto que o julgador, perante uma dúvida relevante, decidiu contra o arguido, acolhendo a versão que o desfavorece ou quando, embora se não vislumbre que o tribunal tenha manifestado ou sentido dúvidas, da analise e apreciação objectiva da prova produzida, à luz das regras da experiencia e das regras e princípios em matéria de direito probatório, resulta que as deveria ter (Acs. S TJ 27/5/2010, 15/7/2008, www.dgsi.pt).

Para averiguar da existência de tal violação, terá a mesma de resultar do texto da decisão em análise por si só ou conjugado com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer elementos exteriores a ele, e não resultando da decisão que o julgador ficou num estado de dúvida sobre os factos, e bem assim que «ultrapassou» essa dúvida dando-os por provados contra o arguido, ao STJ fica vedada a possibilidade de decidir sobre a violação do princípio «in dubio pro reo», dado o quadro dos respetivos poderes de cognição, restritos a matéria de direito. Como se expressa o STJ no ac. 5/6/201411 “III- A violação do princípio in dubio por reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que deve dar por provados ou não provados. Se for esse o caso, o STJ pode sindicar a aplicação do princípio, no âmbito da sua competência de tribunal de revista, no domínio da apreciação de direito. Mas, transitamos para o âmbito da apreciação de facto se o recorrente invocar a violação do princípio, tendo em conta que, apesar de o tribunal a quo não ter tido dúvidas sobre o que considerou provado, deveria tê-los tido. …”12

Vista a decisão recorrida do tribunal da Relação, supra transcrita no que se refere à fundamentação da alteração da matéria de facto por via da impugnação da mesma, em lado algum se demonstra que tenha ocorrido uma dúvida, após a análise de toda a prova em face da matéria de facto impugnada, ou o mesmo tribunal na dúvida, tenha optado por decidir contra o arguido ou ainda que o tribunal chegou a um estado de dúvida insanável e, apesar disso, escolheu a tese desfavorável ao arguido (ac. do STJ de 27/5/1998, BMJ nº 477, 303), antes pelo contrário pela análise dessa fundamentação se verifica que não apenas o tribunal da Relação não teve dúvida como não a podia/ devia ter tido13 pelo que não se vislumbra a ocorrência de tal vício ou erro sendo certo que a dúvida que possibilita a aplicação do princípio in dubio pro reo, é uma dúvida insanável: por não ter sido possível ultrapassar o estado de incerteza após aplicação de todo o empenho e diligência no esclarecimento dos factos; dúvida razoável: sendo uma dúvida séria, racional e argumentada; e dúvida objectivável: porque justificável perante terceiros excluindo as dúvidas arbitrárias ou as meras conjecturas ou suposições (em que se insere parte da alegacão do arguido).

Donde se verifica que improcede esta questão.

10. No que respeita à medida da pena, item recursivo invocado pelo arguido alega que “ …a dosimetria encontrada é onerosa e desproporcional ao caso. O recorrente é primário, não tem como modo de vida o comércio de automóveis, é um jovem adulto, com vida estabilizada de acordo com a decisão de facto constante do ponto 12 que não foi invocada e, por isso, se mantém inalterada”.

O acórdão recorrido, neste âmbito, diz-nos o seguinte:

“Para a determinação da medida concreta da pena têm que se ponderar os fatores previstos no art.71º do Cód.Penal, o que significa que tal determinação será feita em função da culpa e das exigências de prevenção. Considerando a gravidade da conduta do arguido, a densidade da ilicitude cometida pelo mesmo, há a ponderar que cometeu o crime de burla qualificada com uma execução persistente, e por uma soma de artifícios que veio a prolongar por alguns meses, mesmo além do consumação do delito, o que denota, não só uma energia criminosa mantida, como um grau de censura acentuado, dado que nunca abrandou o seu propósito, antes intensificou-o, e depois de consumar o delito, com o recebimento da quantia total de 70.000€, multiplicando uma rede de mentiras para tentar ocultar o seu desígnio de burla e a apropriação da referia quantia, circunstâncias que densificando a culpa, a ilicitude do delito (causando um prejuízo considerável ao ofendido), agravam as exigências de prevenção geral e especial. Assim se apropriando de quantias em montante significativo circunstância que agrava as exigências de prevenção.

O arguido atuou com um apreciável desvalor da atitude, não só violando de forma ostensiva a boa fé contratual, influindo negativamente na vida da vítima, mantendo sempre uma atitude e uma resolução criminosa enérgica, circunstâncias que agravando a culpa, intensificam de igual modo as razões de prevenção geral, dada a frequência com que ocorrem factos desta natureza e o alarme social que causam.

Agravam igualmente as exigências de prevenção geral o “quantum” das quantias de que apropriou.

O dolo do arguido é manifesto, tendo persistido no propósito criminoso.

No que respeita às exigências de prevenção especial, interessa a primariedade do arguido, pese embora, a sua falta de sentido crítico quanto ao engano persistentemente induzido na vítima que ofendeu, assim como ao desinteresse em reparar o extenso prejuízo patrimonial que provocou, são circunstâncias que pesando negativamente nas exigências de prevenção especial, (…)

Sopesando todos os considerandos respeitantes ao arguido e atentas as molduras do crime qualificado com uma amplitude de 6 anos (de 2 a 8 anos de prisão), considerando o grau de culpa e as aludidas exigências de prevenção, o Tribunal considera adequada a pena de 3 anos e 10 meses para o crime de burla qualificada previsto no art.218 nº 2 alínea a) do CP.

Não assaca o recorrente ao assim decidido a inobservância de qualquer principio ou circunstância a que devesse atender, nem invoca que tenha atendido a circunstâncias indevidas, pelo que tendo em conta que a actividade recursiva do STJ, também no que respeita à medida da pena se traduz como um remédio jurídico14 com vista a averiguar, neste contexto, se os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade (artº 18º CRP) das penas se mostram respeitados e observados, bem como nessa sequência se as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, foram observadas mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”15.

Ora visto o exposto, a moldura penal (sendo o meio da pena de 5 anos de prisão), o valor apropriado (consideravelmente elevado – artº 202ºb) CP) e logo o dano causado e a observância das finalidades da pena em face das exigências de prevenção geral, da prevenção especial e da sua culpa, aliada ao seu modo de vida e personalidade, a pena aplicada não se mostra necessitada de correcção, pelo que é de manter.

11. Insurge-se o arguido contra a condição da suspensão da pena de prisão, que lhe foi imposta, traduzida na obrigação de pagamento alegando, em síntese “que não a consegue satisfazer, em face do seu modo de vida e situação económica”

Na decisão recorrida determinou-se a sujeição do arguido a “ no decurso do regime de suspensão, ao dever de pagar a quantia de 45.000€ (quarenta e cinco mil euros) … quantia que deverá ser depositada em frações de 15.000€ (quinze mil euros) por cada ano do período de suspensão, de tal modo que ao terceiro ano de suspensão a referida quantia de 45.000€ esteja integralmente paga”, como montante “que se considera equitativo, face à sua condição económica, por forma a gerar probabilidades de reintegração social (cfr.art.51º nº1 alínea c) e nº2 do CP)” e como factor que “deve contribuir para intensificar a integração social e profissional do arguido”.

Como flui dos factos a obrigação imposta ao arguido, traduz-se em pouco mais de metade (45000€) do valor de que se apropriou (70000€) e traduz-se grosso modo numa obrigação de restituição (parcial) do mal patrimonial causado, como factor de reintegração social e visando esta, e podendo ser fixada no valor do dano causado, pode sê-lo apenas em parte, face à situação económica do arguido, que por isso o tribunal ponderou e com a finalidade da reparação do mal do crime (artº 51º1CP) e a reintegração social do arguido em vista do seu afastamento da prática de novos crimes, como finalidade de toda a pena ( artº 50º nº2 CP)

Invoca o arguido que tal montante não é equitativo.

Mas não tem de ser, estando apenas sujeito ao critério da adequação e razoabilidade ou proporcionalidade (artº 51º nº2 CP)16 nem aqui se envolvem juízo dessa natureza, nem a fixação desse montante o exonera do pagamento da totalidade dos danos (mas apenas reforça o sancionamento penal) sendo ainda que a não imposição dessa obrigação, em face da pena suspensa seria penalmente ineficaz em termos preventivos, parecendo ser esse o objectivo do arguido, descurando o objetivo ínsito no acórdão recorrido ao suspender a pena sob condição “As exigências de prevenção especial constituindo a parte mais dinâmica e filosófica dos fins das penas, em si, integrando uma etiologia modificativa do homem, com correção do seu coração em aproximação ao valor da norma e do bem jurídico, determinam que a pena a aplicar ao arguido deva consciencializa-lo da gravidade e censurabilidade das suas condutas, motivando-a a futuro cumprimento das normas socialmente vigentes, e respeito pelos valores protegidos.”

Acresce ainda, como o acórdão recorrido evidencia que “o arguido deverá ser sujeito ao cumprimento do dever de pagar parte do montante em que é condenado no pedido cível, no decurso da suspensão da pena (cfr.art.53º nºs1 a 3 do Cód.Penal), com o objetivo de promover e consolidar a sua integração social, concluindo o Tribunal que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizarão com suficiência as finalidades de punição, tornando possível a suspensão da pena a cominar cfr.arts.50º nº1, 50º nº1 do Cód.Penal, firmando num juízo de prognose favorável” demonstrando que a suspensão da execução da pena de prisão só permite realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, se a ela, se associar a reparação dos danos provocados ao lesado, atenta a “sua função de adjuvante da realização das finalidades da punição”17

Alega, em sequência do seu recurso, as suas condições de vida e situação familiar e o seu vencimento liquido, querendo com isso defender a impossibilidade de satisfazer a condição. Não vemos a razão, desde logo há que ponderar que a condição é um sacrifício, e como tal tem de ser encarado pelo arguido, imposto para evitar cumprir a pena na prisão, e não uma compra a prestações que ele pode negociar; depois as suas condições económicas não são assim tão más não apenas em face do seu vencimento, como da actividade da esposa e da habitação sujeita não ao pagamento de uma renda mas emprestada, o que o liberta de um encargo, e depois o seu rendimento permite-lhe obter um empréstimo para satisfazer a condição, como faria para comprar casa ou carro.

Acresce que o arguido em face das suas múltiplas habilidades profissionais pode obter outras fontes de rendimento licito como seja a “atividade na área do Turismo, no transporte de turistas para o Douro Vinhateiro, atividade que lhe tem permitido aumentar os seus rendimentos e colmatar os períodos de menor trabalho, na área dos espetáculos de musica”.

Acresce que o arguido apropriou-se de 70000€ que ingressaram no seu património e que se os não gastou estão ainda na sua disponibilidade, e se os gastou devia tirar deles o rendimento adequado. Quem não tem de arcar com o prejuízo é a vitima do seu crime.

Pelo que é de manter a condição imposta à pena de prisão suspensa e em vista dela.

12. Relativamente à indemnização civil, reclama o arguido a sua absolvição porque, em suma, o negócio poderia ser resolvido com base nos institutos de direito civil e comercial que não foram analisados, em face do teor do acórdão recorrido.

Sem razão.

A indemnização civil emergente da prática de um crime é regulada pela lei civil e emerge, enquanto tal, das norma do artº 483º e ss CC, e não de quaisquer outras, ou no pressuposto de outros contratos que não o de compra e venda do automóvel acordado entre arguido e lesado/ vitima do crime. Como tal quaisquer suposições ou possibilidades não são para aqui chamadas nem são de ponderar. Aliás, isso mesmo expressa o acórdão recorrido ao expender: “in casu, esta tutela contratual respeitante a direitos de crédito, não prevalece sobre a tutela criminal que resulta do crime de burla como norma de proteção que é, face à esfera patrimonial do ofendido.

Nesse concurso de normas, entre a lesão do direito subjetivo de crédito, prevalece a tutela que deriva da violação das normas de proteção com acolhimento no regime previsto no arts.483 nº1 do CCivil.

O valor em causa é elevado – 70 000,00 euros acrescidos de juros vencidos e vincendos desde a notificação para contestação do pedido cível.”

A remessa para os meios comuns, de que agora o arguido se lembrou, não é necessária, pois o processo crime, tem capacidade para solucionar a questão, face aos princípios de adesão e da suficiência do processo penal (artºs 7º e 71º CP).

Improcede esta questão

Na ausência de outras questões de que cumpra conhecer improcede o recurso.


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Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça decide:

Julgar improcedente o recurso do arguido AA e em consequência mantém a decisão recorrida.

Condenar o arguido na taxa de justiça que fixa em 6 UC, e nas demais custas (artº 513º CPP e Tabela III RCJ).

Notifique e DN


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Lisboa e STJ 16/12/2025

José A.V. Carreto (relator)

Fernando Ventura

Horácio Correia Pinto

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1. Do seguinte teor: “As nulidades de sentença enumeradas de forma taxativa nas alíneas a) e b) do artigo 379.º do Código de Processo Penal não têm de ser arguidas, necessariamente, nos termos estabelecidos na alínea a) do n.º 3 do artigo 120.º do mesmo diploma processual, podendo sê-lo, ainda, em motivação de recurso para o tribunal superior.”

2. Do seguinte teor “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”

3. Para além de juntar ao recurso a transcrição da totalidade da prova por declarações e testemunhal;

4. Que sempre seria de apreciar mesmo que o não fizesse atento o disposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2012, in D.R. n.º 77, Série I de 2012-04-18:

  «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência ás concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações.»

5. O que seria uma redundância e uma má técnica, porquanto contrárias ao dever de síntese/ de resumo que é imposto pela lei às conclusões.

6. Com o seguinte teor “1 - A redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.

  2 - Perante esta margem de indefinição legal, e tendo o recorrente procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou a Relação conhecia da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convidava o recorrente a corrigir aquelas conclusões.”

7. Artº 412º 6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

8. Cf. Paulo Albuquerque, Comentário do Cód. Proc. Penal, Ucp, 2009, 3ªed. pág. 1094 “ violação do principio in dubio pro reo é uma das formas que pode revestir o erro notório na apreciação da prova.”

  Ac. STJ 24/4/2024, proc. 1819/18.1T9VNG.P.S1 Cons. Jorge Gonçalves, www.dgsi.pt no texto “apreciação pelo STJ da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou então quando, não tendo o tribunal reconhecido expressamente esse estado de dúvida, ele resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum. Já a questão de saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito (cf. acórdãos de 12.03.2009, Proc. 07P1769, e de 14.10.2009, Proc. 101/08.7PAABT.E1.S1).”

9. Ac. STJ 5/3/2025 Proc. nº 5615/18.8T9LSB.L1, www.dgsi.pt, que seguimos;

10. cf. Ac STJ 19/11/97, BMJ, 471.º-115, e STJ 10/1/08 in www.dgsi.pt/jstj Proc. nº 07P4198 no qual se expressa que: “IV- Não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio in dubio pro reo exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu – «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto».

11. Proc 853/98.0JAPRT.P1.S1 Cons. Souto de Moura in www.dgsi.pt

12. Cfr. também ac. STJ de 16-05-2007, CJ (STJ), T2, pág.182 “ IV. … saber se o Tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto, a mesma exorbita os poderes de cognição do STJ enquanto Tribunal de revista e, do exame dos acórdãos impugnados decorre que as instâncias não ficaram na dúvida em relação a qualquer facto.”

13. Em face da análise das provas e do raciocínio dedutivo que elas impunham.

14. Ac. do STJ de 19.05.2021 proc. n.º 10/18.1PELRA.S1, in www.dgsi.pt “os recursos não são novos julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos.”

15. Idem, citando F. Dias in As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197

16. J. F. Dias, As Consequências…, Coimbra edit. 2005 pág 350/351

17. Idem, ibidem, pág. 353;