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JULGAMENTO
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
WHATSAPP
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário
O arguido residente no estrangeiro pode validamente prestar declarações no julgamento através da aplicação WhatsApp.
Texto Integral
Acordam, em audiência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. No âmbito de Processo Comum Singular, que corre termos pelo Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, sob o nº 287/20.2T9VPA, durante a audiência de discussão e julgamento, foram proferidos os seguintes três despachos, todos na sessão de julgamento realizada em 04-04-2025, constante da acta com a referência ...33, em relação à ausência física do arguido durante o julgamento:
DESPACHO (1)
- na sequência da ilustre mandatária do arguido ter solicitado a audição do arguido via WhatsApp por estar no estrangeiro:
“O arguido encontra-se ausente no estrangeiro, tendo a defesa requerido a audição do mesmo através de WhatsApp face ao facto do mesmo não se encontrar em território nacional, tendo o Ministério Público pugnado pelo indeferimento do requerido por falta de fundamento legal. Nos termos do artº 61, n.º1, do Código de Processo Penal, está previsto o direito do arguido estar presente em todos os atos processuais que lhe digam diretamente respeito, por seu turno o art.332.º, n.º1 do mesmo diploma legal, prevê a obrigatoriedade da presença do arguido em audiência de julgamento, embora não diga que tem que ser de forma física. Uma vez que o arguido não se encontra em Portugal, tendo junto declaração da sua entidade patronal, fazendo constar isso mesmo, que não pode estar presente data porque se encontra a laborar no estrangeiro e considerando, que a presente data já se encontra designada, o Tribunal, excecionalmente, defere que o arguido seja interrogado através de meios de comunicação à distância, nomeadamente, conforme requerido, via WhatsApp.” DESPACHO (2)
- na sequência do MºPº ter suscitado a nulidade prevista no artº 119º al. c) do CPP: A posição do tribunal expressa no inicio desta audiência, no sentido de deferir a audição do arguido via WhatsApp, baseou-se, conforme foi dito, no direito ao arguido estar presente em todos os atos que lhe digam respeito, nos termos do art.º 61, n.º1 al. a), do Código de Processo Penal. O estatuído no art.332.º, n.1.º do Código de Processo Penal que estabelece a obrigatoriedade de presença do arguido em audiência de julgamento, verifica-se, uma vez que o arguido esteve presente, simplesmente através de meios de comunicação à distância, sendo que foi o próprio a renunciar à sua presença física. Por outro lado, os presentes autos já tiveram um adiamento, não por motivo imputável ao arguido, mas imputável ao tribunal na sequência de um interrogatório judicial de arguido detido e um novo adiamento traria consequências para todos os intervenientes processuais, não só ao tribunal mas como à Ilustre Defensora do arguido e às testemunhas que mais uma vez estariam notificadas para esta data, tendo organizando toda a sua vida no sentido de estarem presentes na presente data teriam então que comparecer numa nova data a designar pelo Tribunal. É nosso entendimento que a lei tem realmente de ser interpretada de forma atualista e sendo um direito do arguido estar presente na audiência de julgamento, o tribunal entende que, neste caso, sendo o mesmo motorista e fazendo frequentes viagens ao estrangeiro que foi de deferir a sua audição via WhatsApp. Posto isto, o tribunal não vislumbra que se verifique a nulidade prevista no art.º 119, al. c,) que prevê que, efetivamente, existe nulidade quando haja ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exija a sua comparência, porquanto o arguido esteve presente, apenas não esteve presente fisicamente, mas sim através de meios de comunicação à distância, pelo que se indefere a nulidade arguida.”
DESPACHO (3)
- na sequência do arguido ter confessado via WhatsApp: “Nos termos do art.º 344.º n.º1, do Código de Processo Penal, quando o arguido declare que pretende confessar os factos que lhe são imputados, é então perguntado se o faz de livre vontade e fora de qualquer coação, o que fez este tribunal, ao que o arguido respondeu afirmativamente, dizendo que o faz livremente. A confissão livre, integral e sem reservas implica, nos termos do n.º2 do mesmo artigo, a renuncia à produção de prova relativamente aos fatos imputados que, consequentemente, se consideram como provados e a passagem de imediato para as alegações orais, bem como a redução da taxa de justiça para metade. Entendendo este tribunal que não se verifica nenhuma nulidade, impõe-se consignar que o arguido confessou livre, integralmente e sem reservas os factos que são imputados e, perante isto não haverá produção de prova nos termos do citado art. º344.º, do Código de Processo Penal.” II. Inconformado, veio o MºPºinterpor recurso em 12-05-2025, com a refª ...68, através do qual, pugnando pela existência de nulidade do artº 119º al. c) do CPP por o arguido não se mostrar fisicamente presente no julgamento, pede a revogação daqueles despachos e repetição do julgamento, tendo rematado com as seguintes conclusões:
1. O recurso ora interposto incide sobre os despachos proferidos em sede de audiência de discussão e julgamento, pelos quais o Tribunal a quo deferiu, em violação da legalidade, a audição do arguido através da plataforma denominada WhatsApp, por intermédio do telemóvel da sua Ilustre Mandatária, indeferiu a nulidade insanável arguida pelo Ministério Publico, e admitiu a confissão integral e sem reservas do arguido através daquele meio.
2. No primeiro despacho recorrido, o Tribunal a quo permitiu, frisando a título excepcional, a audição do arguido através da plataforma denominada WhatsApp, por intermédio do telemóvel da sua Ilustre Mandatária, fundamentando a sua ausência no estrangeiro.
3. No segundo despacho recorrido, o Tribunal a quo a nulidade insanável estatuída no artigo 119º/c do Código de Processo Penal arguida pelo Ministério Público argumentando, em suma, que assiste ao arguido o direito de estar presente em todos os actos que lhe digam respeito e que foi o próprio a renunciar à sua presença física.
4. No terceiro despacho recorrido, o Tribunal a quo admitiu a confissão integral e sem reservas operada através da plataforma denominada WhatsApp, por intermédio do telemóvel da sua Ilustre Mandatária.
5. Em primeiro lugar, nos termos da lei processual, “é obrigatória a presença do arguido na audiência”, impondo assim ao mesmo o especial dever de comparência quando devidamente convocado.
6. E de acordo com a letra da lei, “a presença” pressupõe, pelo sentido semântico da palavra, a comparência do arguido no lugar onde decorre a audiência de discussão e julgamento, isto é, a sua aparição física e não meramente virtual, pois se assim não fosse, e se efectivamente a lei permitisse uma participação à distância, o legislador teria usado outra formulação tal como “é obrigatória a participação do arguido na audiência”, o que não fez.
7. Por conseguinte, não cabe ao julgador substituir-se ao legislador na admissão de regras processuais que não tenham “na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, sendo certo que as sucessivas alterações aos artigos 318º e 319º do Código Processo Penal, manteve “o arguido excluído da sua previsão, são também fatores hermenêuticos bastantes para arredar da sua dimensão normativa a silenciada possibilidade legal daquele sujeito processual participar à distância no julgamento e fora do tribunal”, e que em suma, “o Código de Processo Penal é claro quanto à obrigatoriedade da presença física do arguido”.
8. E “sendo a presença do arguido em audiência um seu direito, mas também um seu dever, não é admissível, na ausência de razões substanciais suficientemente relevantes que o imponham, a sua participação na audiência de julgamento mediante recurso a meios de comunicação à distância”, sendo que casuisticamente, inexistia qualquer razão substancialmente relevante para que Tribunal a quo procedesse à audição do arguido através da plataforma denominada WhatsApp, por intermédio do telemóvel da sua Ilustre Mandatária, uma vez que o mesmo reside em território nacional, que dele se ausentou bem sabendo que fora convocado para estar presente em audiência de discussão e julgamento, aliás em violação do seu dever de comunicação estatuído no artigo 196º-3/b do Código de Processo Penal, e que ali regressaria poucos dias depois.
9. Por outro lado, diga-se que o procedimento adoptado pelo Tribunal a quo fere a dignidade da realização da Justiça Penal ao proceder à audição de um arguido prevaricador e desrespeitador das convocações judiciais pelas quais fora anteriormente condenado em multa processual, através do telemóvel da sua Ilustre Mandatária, fazendo com que um julgamento se assemelhe a uma conversa telefónica em violação da legalidade e do prestigio que se impõe na administração da Justiça.
10. Em segundo lugar, estando o arguido fisicamente ausente, o meio de prova da sua confissão é inadmissível, uma vez que “a confissão exige a presença do arguido em audiência, ou constar de declarações validamente produzidas e que possam ser lidas em audiência”.
11. Assim, a mencionada ausência do arguido em audiência de discussão e julgamento, exigido a lei a respectiva comparência constitui uma nulidade insanável nos termos do artigo 119º/c do Código de Processo Penal, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, com os efeitos decorrentes do disposto no artigo 122º do mesmo diploma legal.
12. Por conseguinte, violou o Tribunal a quo o estatuído nos artigos 61º-6/a, 119º/c, 332º-1, 333º-1 e 334º-1 e 2 do Código de Processo Penal, bem como no artigo 9º-2 e 3 do Código Civil.
Termos em que, nos melhores de Direito, e sempre com o mui douto suprimento desse Venerando Tribunal ad quem, deverá o presente recurso merecer provimento, e em consequência, conforme o motivado:
- Ser declarada a nulidade insanável prevista no artigo 119º/c do Código de Processo Penal, determinando a repetição de todos os actos a partir da abertura da audiência de discussão e julgamento;
Fazendo-se desta forma a já acostumada Justiça.
III. Após realização de audiência de discussão e julgamento foi, então, proferida sentença em 24-04-2025, com a refª ...01, através da qual o arguido AA foi condenado nos seguintes termos: “VII: DISPOSITIVO Por todo o exposto, o Tribunal julga a acusação pública totalmente procedente e, em consequência, decide: A) CONDENAR o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, previsto e punido, pelo artigo 227.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal na pena de 180 (cento oitenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), perfazendo o montante global de 1.080,00 € (mil e oitenta euros). B) Manter o arguido AA sujeito ao Termo de Identidade e Residência já prestado, bem como às obrigações dele decorrentes, nos termos do artigo 214.º, n.º 1, al. e) do Código de Processo Penal. C) Condenar o arguido no pagamento das custas criminais fixando a taxa de justiça em 2 UC (duas unidades de conta), reduzida a metade (1 UC – uma unidade de conta) atenta a confissão dos factos, em conformidade com os artigos 344.º, n.º 2, alínea c), 513.º e 514.º, do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.” IV. Inconformado, veio o MºPº interpor recurso em 23-05-2025, com a refª ...26, através do qual, pugnando pela existência de nulidade do artº 119º al. c) do CPP por o arguido não ter estado fisicamente presente no julgamento, pede a revogação da sentença e repetição do julgamento, tendo rematado com as seguintes conclusões:
1. O recurso ora interposto incide sobre a sentença condenatória proferida por a mesma ter sido afectada pela nulidade insanável decorrente dos despachos proferidos em sede de audiência de discussão e julgamento, pelos quais o Tribunal a quo deferiu, em violação da legalidade, a audição do arguido através da plataforma denominada WhatsApp, por intermédio do telemóvel da sua Ilustre Mandatária, indeferiu a nulidade insanável arguida pelo Ministério Publico, e admitiu a confissão integral e sem reservas do arguido através daquele meio.
2. No primeiro despacho recorrido, o Tribunal a quo permitiu, frisando a título excepcional, a audição do arguido através da plataforma denominada WhatsApp, por intermédio do telemóvel da sua Ilustre Mandatária, fundamentando a sua ausência no estrangeiro.
3. No segundo despacho recorrido, o Tribunal a quo a nulidade insanável estatuída no artigo 119º/c do Código de Processo Penal arguida pelo Ministério Público argumentando, em suma, que assiste ao arguido o direito de estar presente em todos os actos que lhe digam respeito e que foi o próprio a renunciar à sua presença física.
4. No terceiro despacho recorrido, o Tribunal a quo admitiu a confissão integral e sem reservas operada através da plataforma denominada WhatsApp, por intermédio do telemóvel da sua Ilustre Mandatária.
5. Em primeiro lugar, nos termos da lei processual, “é obrigatória a presença do arguido na audiência”, impondo assim ao mesmo o especial dever de comparência quando devidamente convocado.
6. E de acordo com a letra da lei, “a presença” pressupõe, pelo sentido semântico da palavra, a comparência do arguido no lugar onde decorre a audiência de discussão e julgamento, isto é, a sua aparição física e não meramente virtual, pois se assim não fosse, e se efectivamente a lei permitisse uma participação à distância, o legislador teria usado outra formulação tal como “é obrigatória a participação do arguido na audiência”, o que não fez.
7. Por conseguinte, não cabe ao julgador substituir-se ao legislador na admissão de regras processuais que não tenham “na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, sendo certo que as sucessivas alterações aos artigos 318º e 319º do Código Processo Penal, manteve “o arguido excluído da sua previsão, são também fatores hermenêuticos bastantes para arredar da sua dimensão normativa a silenciada possibilidade legal daquele sujeito processual participar à distância no julgamento e fora do tribunal”, e que em suma, “o Código de Processo Penal é claro quanto à obrigatoriedade da presença física do arguido”.
8. E “sendo a presença do arguido em audiência um seu direito, mas também um seu dever, não é admissível, na ausência de razões substanciais suficientemente relevantes que o imponham, a sua participação na audiência de julgamento mediante recurso a meios de comunicação à distância”, sendo que casuisticamente, inexistia qualquer razão substancialmente relevante para que Tribunal a quo procedesse à audição do arguido através da plataforma denominada WhatsApp, por intermédio do telemóvel da sua Ilustre Mandatária, uma vez que o mesmo reside em território nacional, que dele se ausentou bem sabendo que fora convocado para estar presente em audiência de discussão e julgamento, aliás em violação do seu dever de comunicação estatuído no artigo 196º-3/b do Código de Processo Penal, e que ali regressaria poucos dias depois.
9. Por outro lado, diga-se que o procedimento adoptado pelo Tribunal a quo fere a dignidade da realização da Justiça Penal ao proceder à audição de um arguido prevaricador e desrespeitador das convocações judiciais pelas quais fora anteriormente condenado em multa processual, através do telemóvel da sua Ilustre Mandatária, fazendo com que um julgamento se assemelhe a uma conversa telefónica em violação da legalidade e do prestigio que se impõe na administração da Justiça.
10. Em segundo lugar, estando o arguido fisicamente ausente, o meio de prova da sua confissão é inadmissível, uma vez que “a confissão exige a presença do arguido em audiência, ou constar de declarações validamente produzidas e que possam ser lidas em audiência”.
11. Assim, a mencionada ausência do arguido em audiência de discussão e julgamento, exigido a lei a respectiva comparência constitui uma nulidade insanável nos termos do artigo 119º/c do Código de Processo Penal, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, com os efeitos decorrentes do disposto no artigo 122º do mesmo diploma legal, afectando, nessa sequência, irremediavelmente a sentença condenatória recorrida.
12. Por conseguinte, violou o Tribunal a quo o estatuído nos artigos 61º-6/a, 119º/c, 122º-1, 332º-1, 333º-1 e 334º-1 e 2 do Código de Processo Penal, bem como no artigo 9º-2 e 3 do Código Civil.
13. Nos termos do artigo 412º-5 do Código de Processo Penal, especifica-se que se mantem interesse no recurso anteriormente interposto, admitido e retido pelo despacho proferido no dia 16 de Maio de 2025 com a referência ...44.
Termos em que, nos melhores de Direito, e sempre com o mui douto suprimento desse Venerando Tribunal ad quem, deverá o presente recurso merecer provimento, e em consequência, conforme o motivado:
- Ser declarada a nulidade da sentença condenatória preferida face ao estatuído no artigo 122º-1 do Código de Processo Penal, determinando-se a repetição de todos os
actos a partir da abertura da audiência de discussão e julgamento;
Fazendo-se desta forma a já acostumada Justiça.”
V. O recurso referente aos despachos proferidos em 04-04-2025, foi admitido por despacho de 16-05-2025, com a refª ...01, tendo sido fixado efeito devolutivo.
O recurso referente à sentença foi admitido por despacho de 29-05-2025, com a refª ...18, tendo sido fixado efeito suspensivo.
VI. Respondeu o arguido em 27-06-2025, com a refª ...06 pugnando pela improcedência do recurso, tendo concluído da seguinte forma:
“O tribunal de primeira instância decidiu bem ao proferir, quer o douto despacho que admitiu a audição do arguido através da plataforma WhatsApp, quer o despacho que inferiu a nulidade arguida pelo recorrente - por considerar não se verificar, in casu, a nulidade prevista no art.º 119, al. c,) porquanto, o arguido esteve presente, apenas não fisicamente, antes, através de meios de comunicação à distância -; quer na decisão que admitiu a confissão, por aquele, integral e sem reservas dos factos de que vinha acusado, porque prestada presencialmente (ainda que de forma virtual), de livre vontade e sem coação, em cumprimento do disposto no artigo 344º do C.P.Penal. Assim, a douta sentença recorrida, porque materialmente justa e tecnicamente irrepreensível, deve ser mantida, negando-se provimento ao recurso, fazendo-se a acostumada JUSTIÇA!”
VII. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo a Exmª Srª. Procuradora-Geral Adjunta proferido douto parecer em 30-09-2025, com a refª ...77, no qual pugna pela improcedência dos recursos, por não acompanhar a posição do MºPº a quo, tendo tecido as seguintes doutas considerações:
“Antecipamos que não se adere à fundamentação dos recursos e se entende que os mesmos não devem merecer provimento pela seguinte ordem de razões:
Não se ignora que a questão admite discussão e que pode ser defensável a tese propugnada pelo recorrente.
Entendemos, contudo, que devem as normas legais em causa ser alvo de uma interpretação actualista.
Evidenciando a problemática, podemos ver o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30710/2024- processo 757/22.8T9OAZ-A.P1, onde se decidiu que: “…, inexiste norma que preveja a audição dos arguidos na fase do julgamento através dos adequados meios de comunicação à distância, ao contrário do que acontece com os assistentes, as partes civis, as testemunhas, os peritos ou os consultores técnicos (cfr. art.º 318.º, n.º 1, do CPP)[1]. Todavia, como assinala igualmente, também nenhuma norma o impede expressamente. Não deve, pois, sem mais, retirar-se a conclusão de que a falta de expressa previsão legal impede sempre, de forma absoluta, o recurso a meios de comunicação à distância para garantir a (adequada) presença de um acusado em audiência de discussão e julgamento onde e quando tal se mostre inequivocamente necessário[2]. Em suma, não afastamos a hipótese de, excecionalmente e quando razões suficientemente ponderosas o justifiquem, os arguidos poderem participar na audiência de julgamento através do uso de meios de comunicação à distância. No caso concreto, residindo em ..., a arguida pode optar por não intervir de todo no julgamento, requerendo que a audiência de julgamento seja realizada na sua ausência. Por maioria de razão, não vemos que não possa, também, intervir à distância, através de video-chamada, desde que realizada em direto. Com efeito, o Tribunal a quo não considerou indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença física, indispensabilidade que, aliás, o Ministério Público não invoca. Por outro lado, não estamos perante uma acusação de crimes graves, circunstância que, em nossa opinião, afastaria, em princípio, a possibilidade de intervir à distância “
E, em sentido contrário, o voto de vencido do senhor desembargador BB, sobre tal decisão: “As sucessivas alterações aos art.s 318º e 319º, do Código Processo Penal, mantendo o arguido excluído da sua previsão, são também fatores hermenêuticos bastantes para arredar da sua dimensão normativa a silenciada possibilidade legal daquele sujeito processual participar à distância no julgamento e fora do tribunal. A leitura conjugada do nº1 e 5, do art.318º, art.325º e 332º, todos do Código Processo Penal, deixam claro que a presença a que ali se alude corresponde à comparência física e no tribunal, sem prejuízo das normas que expressa e excecionalmente dispensem o arguido de comparecer ou permitam à sua audição à distância e noutro lugar. A presença física em julgamento e no tribunal constitui um direito e dever fundamental do arguido, que tem subjacente razões de politica criminal que se prendem com irrenunciáveis exigências das mais amplas e efetivas garantias de defesa, imediação, contraditório, assistência jurídica com o advogado e de descoberta da verdade na administração da justiça penal. Daí que a falta de regulamentação da audição do arguido à distância e fora do tribunal não traduza uma lacuna em sentido próprio que careça de suprimento pelo juiz. “Razões político-jurídicas ponderosas podem estar na base da abstenção do legislador. Esses «silêncios eloquentes da lei» não têm de ser supridos pelo juiz, ainda que este, porventura, em seu critério entenda o contrário. Diz-se, por isso, que tais faltas de regulamentação constituem lacunas impróprias (de lege ferenda, de jure constituendo, político-jurídicas, críticas, etc.), que eventualmente poderão vir a desaparecer em futuros desenvolvimentos do sistema, a cargo dos órgãos normativos competentes” – cfr. sobre omissão própria e imprópria Acórdão STJ n.º 2/95, de 12 de junho, D.R. n.º 135/1995, Série I-A de 1995-06-12. No caso estamos perante uma omissão em sentido impróprio, insuscetível de integração por analogia. No respeito pelo princípio da legalidade, apenas nos casos previstos na lei deve ser autorizada a participação do arguido à distância e fora do tribunal. Foi o que ocorreu, a título de exemplo, no regime transitório, durante a pandemia COVID 19, nele incluída a tomada de declarações ao arguido, conforme o art.6º-B, nº7 a 9, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março. Contudo, querendo o arguido participar no julgamento, como aqui sucede, mas encontrando-se a residir em ..., o art.35º, nº2, Lei n.º 88/2017, de 21 de agosto (que aprovou o Regime da Decisão Europeia de Investigação (DEI) em Matéria Penal), prevê a audição do arguido por videoconferência ou outros meios de transmissão audiovisual perante a autoridade de execução nas condições ali estabelecidas. Os casos que vêm sendo admitidos na jurisprudência superior citada relacionam-se com atos de audição isolada do arguido. Argumentar que o arguido, a residir no estrangeiro, até podia estar ausente do julgamento, em nada o dispensa, quando manifesta vontade de nele participar, de o fazer à distância nas condições de forma e lugar excecionalmente previstas na lei. Não cabe ao julgador substituir-se ao legislador na admissão e regulação de novos procedimentos, ainda que de jure constituendo se intua o seu pragmatismo, relativos ao uso de meios de comunicação à distância como forma de participação dos acusados na audiência de julgamento. O direito a estar presente no julgamento é um dos direitos fundamentais dos arguidos, donde o dever de os tribunais adotarem as condições necessárias a assegurar tal presença, no sentido de garantir o direito de um arguido a estar presente na sala de audiências, o que constitui um dos requisitos essenciais do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Por essa razão, o mesmo TEDH vem adotando uma posição restritiva relativamente ao uso de meios de comunicação à distância como forma de participação dos acusados na audiência de julgamento. A propósito, o sumário preparado pelos serviços do referido Tribunal, Article 6 (criminal limb): Hearings via video link, disponível online em https://ks.echr.coe.int/documents/d/echr-ks/hearings-via-video-link, concluindo que “o uso de videoconferência em julgamentos não é automaticamente considerado uma violação do direito a um julgamento justo, mas precisa ser justificado por objetivos legítimos e deve ser implementado de modo a respeitar as garantias processuais fundamentais”. O direito do acusado a estar fisicamente presente na audiência, fora dos casos expressamente ressalvados na lei (art.32.º, nº6, da C.R.P.), tem sido considerado essencial para a correta administração da justiça penal, como também para a concretização das garantias de defesa, do contraditório, da assistência jurídica com advogado e da imediação da prova. Por conseguinte, não havendo razões substanciais suficientemente relevantes que legitimem o afastamento dos mecanismos de cooperação internacional com vista à audição à distância, nas condições previstas no art.35º, nº2, Lei n.º 88/2017, de 21 de agosto, acompanhando a jurisprudência do ac RP 24.01.2024, processo 588/19.2PAESP.P1, www.dgsi.pt, daria provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida.].
Independentemente de se tratar de um caso de lacuna - não está prevista em lado algum a audição do arguido em audiência através de meios de comunicação à distância - a preencher por analogia ou de uma omissão em sentido próprio e que é insusceptível de integração por analogia, o certo é que também não existe normativo legal a proibir tal possibilidade.
Na falta do arguido, a audiência só é adiada se o Tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência – artigo 333º nº 2 do CPP
Quer isto dizer, que na falta do arguido não fica inviabilizada a realização da audiência de julgamento, como em regimes processuais anteriormente vigentes sucedia, sendo as audiências sucessivamente adiadas.
Agora a realização da audiência só fica prejudicada se o juiz considerar que a presença do arguido é absolutamente indispensável para a obtenção da almejada descoberta da verdade material.
No caso, se o juiz poderia considerar que a presença do arguido não era absolutamente indispensável para a realização da audiência, considerando o mais, será que poderia, considerando o menos, admitir que o arguido podesse prestar as suas declarações via WattsApp?
Pensamos que sim.
O que preside à norma é garantir que o arguido possa exercer os seus direitos de defesa em audiência.
A audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência, conforme artigo 333º nº 1 do CPP.
O arguido não se encontrava em Portugal, tendo junto declaração da sua entidade patronal, fazendo constar que não pode estar presente em audiência porque se encontra a laborar no estrangeiro. In casu, o que está em causa é saber se o arguido tinha de estar fisicamente presente em audiência, quando ele próprio requereu a prestação de declarações através de meios de comunicação à distância: via WattsApp.
Ora, se a audiência poderia prosseguir sem a presença física do arguido, já que o tribunal não considerou nunca a essencialidade da sua presença para o início da audiência, por maioria de razão há-de poder prosseguir com a presença do arguido através de meios de comunicação à distância.
É que o arguido esteve efectiva e fisicamente presente, só que não o fez na sala de audiências, mas através de meios de comunicação à distância, em directo e onde o Tribunal e o arguido têm oportunidade de, reciprocamente, assistir a todas as condicionantes que envolve o prestar de declarações na sala de audiências: os tons de voz, as hesitações, as contradições, as reações emocionais …
O contacto direto e pessoal do tribunal com a prova, especialmente a prova oral, nunca deixou de lhe permitir uma melhor apreciação da realidade dos factos e da credibilidade dos depoimentos, o que não foi posto em causa porque garantido pelas declarações do arguido, ainda que prestadas pela via que o foram.
Ou seja:
Face à ausência física do arguido na sala de audiências poderia o Tribunal não ter considerado essencial a sua presença e realizar o julgamento na mesma.
Então, que razões de legalidade impõem que o Tribunal não pudesse considerar que o arguido poderia prestar declarações via WattsApp e considerar válida a sua confissão integral e sem reservas?
Há que atentar na ratio das normas.
O que se pretende com a norma que o recorrente entende ser violada?
Que o arguido possa exercitar inteiramente os direitos à salvaguarda da sua defesa.
Ora, foi o arguido que pretendeu estar – dessa forma – em audiência e confessar por, essa via, integralmente e sem reservas, os factos que lhe eram imputados na acusação.
Algum direito que, hipoteticamente pudesse estar postergado – que não vemos qual – o arguido renunciou ao exercício do mesmo.
As garantias de defesa, imediação, contraditório, assistência jurídica com o advogado e de descoberta da verdade na administração da justiça penal, não nos parecem resultar postergadas.
Exigir, no caso vertente – sem prejuízo de entendermos que em abstracto tal seja exigido se o arguido não se disponibilizar a ser ouvido através de meios de comunicação à distância e residir no estrangeiro - os mecanismos de cooperação internacional com vista à audição à distância, nas condições previstas no art.35º, nº2, Lei n.º 88/2017, de 21 de agosto, ou que o arguido compareça fisicamente em audiência , parece-nos redundar numa visão demasiadamente paternalista da posição do arguido, que ele e o seu defensor saberão os melhores meios de ser acautelada.
A confissão praticada pelo arguido, para ser válida, há de ter carácter eminentemente pessoal e há de ser efectuada em liberdade, como nos parece que foi.
Como refere José António Rodrigues da Cunha – A colaboração do Arguido com a Justiça – A confissão e o Arrependimento no sistema Penal Português, pag 55, disponível em pesquisa livre na Web: “Contrariamente ao que acontece noutros sistemas penais, o português não exige que a confissão seja corroborada por outros meios de prova. Basta que convença o tribunal, isto é, que seja verdadeira. Sendo-o, valerá por si só no que aos factos confessados diz respeito, todos os imputados ao arguido ou apenas uma parte dos mesmos. Importa, porém, fazer a seguinte ressalva: a declaração confessória apenas releva relativamente ao arguido que a faz. Implicando outros, funciona a regra do n.º 4 do artigo 345.º do Código de Processo Penal.”
No caso, não vemos que tais princípios tenham sido ofendidos, pelo que entendemos não se ter verificado a apontado nulidade que afectaria a sentença prolatada.
Com efeito, das nulidades do artº 119º do C.P.P. vem reclamada a da al c) que dispõe que “Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: (…) c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;” Ora, no caso concreto, não está em causa a ausência do arguido. Está em causa saber se a sua presença deve ser física, na sala de audiência, ou pode ser física, em directo, mas através de meios de comunicação à distância: videochamada que mais não é do que uma chamada de voz, com áudio e vídeo, com comunicação em tempo real entre o arguido e o Tribunal.
Não nos parece, pois que esteja em causa a ausência do arguido a um acto em que a lei exija a sua comparência e a pretendida nulidade.
Somos, pois, de parecer que os recursos não merecem provimento, devendo ser mantidos os despachos exarados em acta e a sentença condenatória proferida a final e com base na confissão integral e sem reservas dos factos da acusação, por parte do arguido.” VIII. Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do CPP, nenhuma resposta foi oferecida. IX. Foram colhidos os vistos e realizada a Conferência.
X. Analisando e decidindo.
O objecto dos recursos, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões dos mesmos, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no artº 410º do CPP e das nulidades previstas no artº 379º do mesmo CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso, quando está em causa recurso de uma sentença ou de um acórdão.[1]
Das disposições conjugadas dos artºs 368º e 369º, por remissão do artº 424º nº 2, e ainda o disposto no artº 426º, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:
1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, aqui incluindo-se as nulidades previstas no artº 379º e os vícios constantes do artº 410º, ambos do CPP;
2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do artº 412º do CPP;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.
O digno recorrente, insurgindo-se contra os três despachos prolatados na sessão de julgamento de 04-04-2025 e ainda contra a sentença proferida nos autos, concentra o seu entendimento em torno da questão de saber se se pode considerar que o arguido esteve presente no seu julgamento quando essa presença é apenas assegurada por meios à distância, como o WhatsApp, ou se, a falta física do mesmo não gerará a nulidade prevista no artº 119º al. c) do CPP.
Vejamos.
O artº 119º do Código de Processo Penal, subordinado à epígrafe “nulidades insanáveis” diz o seguinte: “Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição; b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência; c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência; d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade; e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º; f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.”
A audição do arguido embora, por princípio, seja obrigatória - cfr. dispõe o artº 332º nº 1 CPP – admite como excepções as previstas nos nºs 1 e 2 do artº 333º CPP.
Ora diz o artº 333º do CPP, cuja epígrafe é "Falta e julgamento na ausência do arguido notificado para a audiência" o seguinte:
"1. Se o arguido regulamente notificado não estiver presente na hora agendada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência. 2. Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos nºs 2 a 4 do artigo 117º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no nº 6 do artigo 117º. 3. No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do nº 2 do artigo 312º. 4. O disposto nos números anteriores não prejudica que a audiência tenha lugar na ausência do arguido com o seu consentimento, nos termos do nº 2 do artigo 334º. 5. No caso previsto nos nºs 2 e 3, havendo lugar a audiência na ausência do arguido, a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente. O prazo para a interposição de recurso pelo arguido conta-se a partir da notificação da sentença. 6. Na notificação prevista no número anterior o arguido é expressamente informado do direito a recorrer da sentença e do respectivo prazo. 7. É correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 116º, no artigo 254º e nos nºs 4 e 5 do artigo seguinte."
A redacção do artº 333º do CPP acabado de citar provém do DL nº 320-C/2000 de 15-12 que, no seu preâmbulo, nos informa acerca da ratio legis, pode ler-se, entre outras coisas, o seguinte: "Atendendo ao facto de uma das principais causas de morosidade processual residir nos sucessivos adiamentos das audiências de julgamento por falta de comparência do arguido, limitam-se os casos de adiamento da audiência em virtude dessa falta, nomeadamente quando aquele foi regularmente notificado. Com efeito, a posição do arguido no processo penal é protegida pelo princípio da presunção de inocência, prevista no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, que surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo, o qual implica a absolvição do arguido no caso de o juiz não ter certeza sobre a prática dos factos que subjazem à acusação. Se o arguido já beneficia deste regime processual especial, não pode permitir-se a sua total desresponsabilização em relação ao andamento do processo ou ao seu julgamento, razão que possibilita, por um lado, a introdução da modalidade de notificação por via postal simples, nos termos acima expostos, e, por outro, permite que o tribunal pondere a necessidade da presença do arguido na audiência, só a podendo adiar nos casos em que aquele tenha sido regularmente notificado da mesma e a sua presença desde o início da audiência se afigurar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material. Para tanto, no despacho que designa a data da audiência, é igualmente designada data para a realização da audiência em caso de adiamento nos termos do artigo 333.º, n.º 1, ou para audição do arguido a requerimento do seu advogado ou defensor nomeado ao abrigo do artigo 333.º, n.º 3. E se no processo existir advogado constituído, o tribunal deve diligenciar pela concertação da data para audiência, de modo a evitar o conflito com a marcação de audiência por acordo feita ao abrigo do artigo 155.º do Código de Processo Civil. Com efeito, se o tribunal considerar que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º Nestes casos, o arguido mantém o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência e se esta ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor pode requerer que seja ouvido na segunda data designada pelo juiz nos termos do n.º 2 do artigo 312.º" - sublinhado nosso
Ora esta ratio legalé importante porquanto revela a intenção do legislador quando o mesmo previu esta excepção à regra de obrigatoriedade da presença do arguido em sede de julgamento.
Intenção essa que revela que a administração da justiça, no seu todo, tem de ser igualmente ponderada a par dos direitos do arguido.
Sendo igualmente relevante que a presença do arguido visa garantir a este uma defesa directa e pessoal com recurso ao contraditório que advém da imediação da prova.
Contudo, se o arguido não puder estar presente, tendo sido regularmente convocado, pode o Tribunal a quo entender que essa presença não é absolutamente essencial.
Fazendo a ponte com o caso em apreço, se o legislador autoriza o Tribunal a avançar com um julgamento na ausência do arguido, desde que verificados certos requisitos, por maioria de razão terá de autorizar a presença do arguido por meios virtuais.
Quem pode o mais, pode o menos.
Não havendo dúvida, em nosso modesto entendimento, que mais vale o arguido ser ouvido, ainda que através de meios à distância, do que não ser sequer ouvido.
É que, nos termos do artº 61º nº 1 al. b) do CPP, a par de estar presente em actos que o afectem, é igualmente direito do arguido:
“b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.”
Não resulta daqui que a audição tenha de ser presencial.
Ora, o que é fundamental na defesa do direito do arguido de estar presente no seu julgamento em tribunal, ao ponto de uma ausência determinar uma nulidade insanável, é precisamente o facto de garantir que o arguido se possa defender perante toda a prova que venha a ser produzida, sendo dado a oportunidade de confrontar as declarações das testemunhas e apreender toda a prova que contra si corre.
A norma em causa foi, assim, criada para o arguido e não para o Tribunal, embora o arguido também tenha um dever de estar presente quando convocado, esse dever é secundário ao direito que lhe assiste de participar em todos os actos que directamente o afectem.
Ora, no caso em apreço, foi o próprio arguido que pediu para ser ouvido por meios à distância.
Pergunta-se, assim, qual é a situação mais censurável:
Avançar com o julgamento e proferir uma decisão à sua revelia?
Ou incluir o arguido no julgamento, ainda que por meios à distância, e permitir ao mesmo participar activamente na audiência?
Em face da ratio do sistema processual penal seguimos de perto a decisão do Acórdão da Relação do Porto de 30-10-2024 (apesar do voto vencido)[2] que sumariza o seguinte:
“I - Em processo penal, por via de regra, é obrigatória a presença física do arguido na audiência de julgamento, mas essa obrigatoriedade não é absoluta, prevendo a lei exceções, permitindo o início e a realização de julgamento na ausência do arguido, bem como permitindo que a audiência se realize na total ausência do arguido. II - Inexiste norma que preveja a audição dos arguidos na fase do julgamento através dos adequados meios de comunicação à distância, ao contrário do que acontece com os assistentes, as partes civis, as testemunhas, os peritos ou os consultores técnicos. III - Todavia, como assinala a parca jurisprudência conhecida, também nenhuma norma o impede expressamente, pelo que não deverá afastar-se a hipótese de, excepcionalmente, e quando razões suficientemente ponderosas o justifiquem, os arguidos poderem participar na audiência de julgamento através do uso de meios de comunicação à distância, nomeadamente através de video-chamada, desde que realizada em direto. IV - Tal será o caso de o arguido residir no estrangeiro, desde que o tribunal não considere indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença física e, por via de regra, não estarmos perante uma acusação de crimes graves.”
Aliás, é fundamental o disposto no artº 334º nº 2 do CPP que determina o seguinte: “2 - Sempre que o arguido se encontrar praticamente impossibilitado de comparecer à audiência, nomeadamente por idade, doença grave ou residência no estrangeiro, pode requerer ou consentir que a audiência tenha lugar na sua ausência.”
Ora se o arguido pode consentir que o julgamento se faça na sua ausência, por maioria de razão deve-se poder admitir a sua presença “mitigada” através de meios de comunicação à distância.
Pois há que perguntar:
Qual das duas possibilidades assegura de forma mais adequada os direitos do arguido:
a) Realizar-se o julgamento na ausência autorizada do arguido?
ou
b) Permitir o arguido assistir ao julgamento e activamente nele participar ainda que o mesmo não esteja fisicamente presente?
A resposta afigure-se-nos clara.
Aliás, esta mesma Relação já se pronunciou em recente Acórdão datado de 05-06-2024 (relatora Anabela Varizo Martins) em que se afirma[3]: “A jurisprudência em termos uniformes tem entendido que quando a lei fala em audição presencial pretende distingui-la da “audição” por escrito, que não permite ao arguido o confronto completo nem a fácil compreensão das razões de facto e direito que precedem determinada decisão jurisdicional, não permitindo ainda que ele se pronuncie de forma oral e imediata, ou seja, é no sentido de exigir a participação directa do arguido de forma a poder intervir e contraditar todos os elementos de prova e argumentos jurídicos que serão considerados na mesma decisão. Por esse motivo, a mesma jurisprudência tem considerado que a audição do arguido por vídeo-conferência integra-se no conceito de “audição presencial”, pois não ocorre diferença relevante com a audição do arguido em tribunal, desde que se entenda, como normalmente se entende, que esta implica a sua realização em directo e com recurso a equipamento tecnológico que permita comunicação visual e sonora em simultâneo, permitindo que o arguido veja e ouça o tribunal e vice-versa, em boas condições técnicas de transmissão.[10] Neste sentido Ac. da Rel. de Évora de 8-11-2022[11] em que se escreveu « a audição presencial não se opõe a audição por vídeo-conferência, que não deixa de ser uma audição presencial, embora com presença à distância, em “directo”». Perfilhamos desse entendimento. Na verdade, não se vislumbra qualquer diferença relevante entre a audição do arguido em tribunal ou por vídeo-conferência que, desde que realizada em boas condições técnicas, é equiparada para todos os efeitos como tendo tido lugar na presença do juiz ou do tribunal. Também não se verifica qualquer violação dos princípios da oralidade e do contraditório, pois, como é consabido, permite que a comunicação seja feita, em tempo real, não somente por áudio, como também por vídeo.”
Por fim, concorda-se com o douto parecer oferecido pela Exmª Srª PGA o qual aqui damos por reproduzido por economia processual.
Na realidade, tendo o arguido estado presente por videoconferência através de WhatsApp, não há a apontada nulidade pelo que tanto a audiência de discussão e julgamento, como a confissão integral e sem reservas do arguido, como a sentença se mostram juridicamente válidas.
Improcedem, assim, e salvo o devido respeito,os recursos apresentados pelo MºPº.
Decisão:
Em face do acima exposto decidem os Juízes Desembargadores da Secção Penal emnegar provimento aos recursos interpostos pelo MºPº e, em consequência, confirmam os despachos prolatados na sessão de julgamento de 04-04-2025 bem como a sentença recorrida.
Sem custas.
Guimarães, 11 de Novembro de 2025.
Florbela Sebastião e Silva (Relatora) Paulo Correia Serafim (1º Adjunto) Paulo Almeida Cunha (2º Adjunto)
[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”. [2] Consultável em: https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/034d6d53e289116280258bd300562643?OpenDocument [3] Consultável em: https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/80ad248715441b2b80258b410046bc0a?OpenDocument