RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
EMBATE EM CADEIA
Sumário


1. Não pode afirmar-se como provada a ocorrência de um embate em cadeia que envolveu quatro veículos se tal descrição do acidente consta apenas da declaração escrita que determinado condutor apresentou à autoridade policial e fez constar da participação do acidente à companhia de seguros quando o mesmo não foi ouvido em audiência de julgamento e tal versão é negada pelos demais três condutores intervenientes que efetivamente prestaram declarações.
2. Estando apenas demonstrado que o veículo seguro embateu na traseira de um veículo, não é possível responsabilizar-se a respetiva seguradora pela reparação dos danos que esse mesmo veículo sofreu pelo embate que também se verificou entre a respetiva parte frontal e a traseira de um terceiro veículo e, deste, num quarto veículo.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório:

Fundo de Garantia Automóvel intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra EMP01..., SA e subsidiariamente, contra AA e BB, pedindo a condenação da 1.ª ré a pagar-lhe a quantia de € 5.334,21, acrescida de juros vincendos à taxa legal em vigor, acrescidos de 25% contados desde a citação até efetivo e integral pagamento e, subsidiariamente, caso se verifique a inexistência de seguro válido e eficaz, a condenação do 2.º e 3.º réus no pagamento da mesma quantia.

Alegou para tanto que ocorreu um embate que envolveu quatro veículos, sendo responsável pela sua ocorrência os 2.º e 3.º réus, respetivamente condutor e proprietário de um dos veículos intervenientes.
Tendo sido transferida para a 1.ª ré a responsabilidade civil emergente da circulação desse veículo, exige desta as quantias que pagou às pessoas lesadas com o acidente perante a alegação que aquela efetuou, extrajudicialmente, de não existir o contrato de seguro invocado.
Caso se confirme a inexistência do contrato de seguro, exige o pagamento da quantia despendida dos demais réus, respetivamente, enquanto condutor e proprietário do veículo que esteve na origem do embate.
Devidamente citada, a 1.º ré contestou confirmando a existência do contrato de seguro e impugnando a dinâmica do embate, descrevendo a sua ocorrência de forma diversa da alegada na petição inicial.
Os réus AA e BB também apresentaram contestação afirmando a existência de contrato de seguro válida e eficaz, à data do acidente, e impugnando a alegada dinâmica do embate.
Foi realizada audiência de discussão e julgamento, tendo então sido proferida sentença que julgou a ação procedente, condenando a 1.ª ré a pagar ao autor a quantia de € 5.334,21 acrescida de juros vincendos à taxa legal em vigor, acrescidos de 25% contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Inconformada, veio a 1.ª ré apresentar recurso de apelação, apresentando as seguintes conclusões:
“1) A sentença apelada representa um erro de julgamento no que a apreciação da prova produzida diz respeito com evidentes consequências ao nível da qualificação jurídica dos factos.
2) Foram ouvidos três dos quatro intervenientes no acidente em discussão nos presentes autos, nomeadamente a condutora do veículo IJ, o condutor do veículo LV e o condutor do veículo QU, este na qualidade de parte e no âmbito de depoimento e declarações de parte.
3) Os depoimentos dos intervenientes no acidente dos presentes autos apontam para um primeiro embate do veículo OT na traseira do veículo LV com a consequente projeção deste para a frente e embate na traseira do veículo IJ. Somente depois, quando os veículos OT, LV e IJ se encontravam imobilizados, ocorre o embate do veículo QU na traseira do veículo OT.
4) No depoimento gravado em ata no dia 13.02.2025, entre as 10:20 e as 10:37 o Réu, AA, confirmou que o veículo QU embateu na traseira do veículo OT, mas negou a projeção do mesmo,
5) Mencionando que um dos outros intervenientes, na data e local do acidente dos presentes autos, referiu que antes do embate do veículo QU no OT, já este havia embatido no veículo LV.
6) Salientou que o embate no veículo OT foi leve e que este veículo é manifestamente mais pesado o que nunca possibilitaria a sua projeção contra o veículo LV.
7) No dia 13.02.2025 foi ouvida a condutora do veículo IJ, CC, cujo depoimento ficou gravado em ata das 10:38 as 10:46, tendo esta referido que o veículo OT, o mais pesado, embateu no veículo LV e que por sua vez, este embateu no veículo IJ.
8) A testemunha reconhece que se trata de uma especulação, mas que para ela, o acidente foi causado pelo veículo OT.
9) Foi ainda ouvido o condutor do veículo LV, o Sr. DD, no dia 28.02.2025 entre as 14:22 e as 14:27, estando o depoimento gravado em ata, onde refere que a perceção que tem é a de que, quem embate primeiro é o veículo OT no veículo LV e só depois o veículo QU embate na traseira do veículo OT.
10) Nenhuma testemunha com conhecimento direto dos factos, ou outra, corrobora a tese do choque em cadeia provocado pelo veículo QU.
11) Nenhuma testemunha confirma que os veículos OT, LV e IJ estavam parados devidos a uma fila de trânsito.
12) A fundamentação para decisão da qualificação dos factos 4 e 6 serem dados como provados é absolutamente desligada da realidade, configurando um absoluto erro de julgamento no que a apreciação dos depoimentos diz respeito.
13) Mais nenhuma testemunha ouvida nos presentes autos depôs com conhecimento direto dos factos, além das três atras mencionadas, nem se diga, como se diz na sentença, que o juízo do Tribunal “a quo” no que à qualificação dos factos 4 e 6 como provados, assenta também na prova documental junta pelo Apelado, já que esta, lida e relida, jamais e de forma alguma corrobora a tese do Tribunal.
14) A prova documental não contraria o que os condutores dos veículos QU, LV e IJ, trouxeram de viva-voz ao Tribunal em depoimentos que se mostraram absolutamente isentos e coerentes entre si.
15) Mostram-se erroneamente qualificados como provados os factos 4. – “Os condutores das viaturas »OT«, »LV« e »IJ« circulavam pela Rua ..., no sentido Nascente-Poente, pela sua mão de trânsito e encontravam-se parados devido a uma fila de trânsito” e 6. – “Ato contínuo, o condutor da viatura de matrícula »QU« embateu na traseira da viatura de matrícula »OT«, levando a um choque em cadeia, com esta a embater na traseira da viatura de matrícula »LV« e, por seu turno, esta a embater na viatura de matrícula »IJ«”,
16) Os factos 4. e 6. devem ser retirados do acervo factual dos factos provados, passando a ser julgados como não provados, impugnando-se assim, para todos os devidos e legais efeitos, a decisão quanto matéria de facto, nos termos do disposto no art. 640º do CPC.
17) A procedência total da ação obrigaria a que fosse provada a dinâmica alegada pelo Apelado na petição inicial, isto é, que foi o embate do veículo QU na traseira do veículo OT que provocou todos os outros embates e como se demonstrou, essa realidade não resultou minimamente provada.
18) Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 342º do CC, competia ao Apelado, alegar e provar a existência de danos, o que não fez.
19) Não há qualquer prova de que foi o embate na traseira do veículo OT, por parte do veículo QU, a origem do sinistro dos presentes autos e por conseguinte, a causa de todos os danos peticionados pelo Apelado.
20) Com exceção do embate na traseira do veículo OT pelo veículo QU, onde se verificam preenchidos todos os requisitos do mencionado art. 483º do CC, todos os embates seguintes e danos originados pelos mesmos, carecem de ver preenchidos os requisitos, no que à aqui Apelada diz respeito, da culpa, ilicitude e nexo causal.
21) A Apelada não pode ser responsabilizada e condenada a pagar os danos que não sejam os originados na traseira do veículo OT.
22) O Juiz do Tribunal “a quo” errou na análise à prova produzida e na qualificação jurídica dos factos, errando também na interpretação e aplicação do disposto nos art. 342º e 483º do CC”.
O autor respondeu ao recurso apresentado, pugnando pela manutenção da decisão proferida, sem que tivesse sido efetuada qualquer concreta referência à prova produzida em audiência de julgamento para sustentar a prova dos factos 4 e 6 da decisão da matéria de facto provada, impugnados por via do recurso apresentado pela 1.ª ré.

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II - Questões a decidir:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da 1.ª ré recorrente – arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Civil -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber se:
1. existe fundamento para alterar a decisão da matéria de facto no que se reporta aos factos 4 e 6 da matéria de facto provada;
2. alterada esta decisão, pode manter-se a condenação da 1.ª ré no pagamento da totalidade das quantias peticionadas pelo autor.
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III - Fundamentação de facto:

Os factos considerados como provados na decisão proferida são os seguintes:
“1. No dia 30/11/2022, pelas 13h40, na Rua ..., na União de freguesias ..., ... e ..., Braga, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes:
a. a viatura ligeira de passageiros com a matrícula ..-..-QU, propriedade de BB e conduzido por AA, mediante empréstimo do primeiro;
b. a viatura ligeira de passageiros com a matrícula ..-..-OT, propriedade de EE, residente na Rua ... (Braga), ...61, ......, ... Braga e por ele conduzido;
c. a viatura ligeira de passageiros com a matrícula ..-LV-.., propriedade de DD, residente na Rua ..., ..., Braga e por ele conduzido;
d. a viatura ligeira de passageiros com a matrícula ..-IJ-.., propriedade de CC, residente na Rua ..., ... Braga e por ela conduzido;
2. O local do acidente consiste numa estada de duas vias, sem separador, esquerda, com o regime de circulação nos dois sentidos e com o limite de velocidade de 50Km/h.
3. O estado do tempo era de chuva.
4. Os condutores das viaturas »OT«, »LV« e »IJ« circulavam pela Rua ..., no sentido Nascente-Poente, pela sua mão de trânsito e encontravam-se parados devido a uma fila de trânsito.
5. O condutor da viatura de matrícula »QU«, a qual circulava no sentido Braga-Porto, ao sair do túnel, não se apercebeu da existência de uma fila de trânsito ali existente.
6. Ato contínuo, o condutor da viatura de matrícula »QU« embateu na traseira da viatura de matrícula »OT«, levando a um choque em cadeia, com esta a embater na traseira da viatura de matrícula »LV« e, por seu turno, esta a embater na viatura de matrícula »IJ«.
7. No local, ficaram vestígios constituídos por plásticos partidos espalhados pela via.
8. Na participação do acidente elaborada pela Polícia de Segurança Pública e na Declaração Amigável de Acidente Automóvel, a viatura de matrícula »QU« consta como estando seguro pela apólice ...00, na Companhia de Seguros EMP01..., com início em 01/03/2022 e fim em 16/03/2023.
9. No dia 11/07/2023, a EMP01... declinou a responsabilidade pelo sinistro referido supra com os seguintes argumentos:
Vossa referência: Processo FGA ...98
Exmos Senhores,
De acordo com o vosso pedido, informamos que o pedido de carta verde pelo cliente foi feito a 06/03/2022 e a anulação da apólice por substituição foi pedida posteriormente, a 31/03/2022, conforme documento anexo.
Qualquer uso indevido da carta verde feito pelo cliente é da inteira responsabilidade do mesmo.
10. Em 12/12/2022 a autora questionou por escrito a ré EMP01... para conformar a validade da eficácia da apólice para garantir os danos emergentes do sinistro.
11. Em face da ausência de resposta da autora no prazo de cinco dias, em 12/12/2023, a autora remeteu à ré um email a comunicar que considerava a existência de uma situação de fundado conflito, nos termos do disposto no art 50º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21/08.
12. Do embate referido supra resultaram danos na viatura de matrícula »LV« que implicaram o dispêndio de €3459,46 com a reparação.
13. Em 21/03/2023, a autora pagou ao proprietário da viatura de matrícula »LV« a quantia de €3459,46 a título de reparação e de €150,00 correspondente ao aluguer de viatura.
14. Do embate referido supra resultaram danos na viatura de matrícula »OT« que implicaram o dispêndio de €1657,47 com a reparação.
15. Em 24/01/2023, a autora pagou ao proprietário da viatura de matrícula »OT« a quantia de €1657,47 a título de reparação; em 15/12/2022 pagou €52,26 a título de despesas de avaliação e em 17/01/2023 pagou €15,00 a título de emolumentos.
16. Em 28/06/2023, a autora interpelou os réus por escrito para pagarem a quantia de €5334,21, sem que estes tenham respondido.
17. A ré EMP01... celebrou com o banco Banco 1..., SA, tendo como aderente a sociedade EMP02..., Lda e como condutor AA, um contrato de seguro do Ramo Automóvel, titulado pela Apólice n.º ...71, com início em 09/03/2021 e términus em 28/02/222, anualmente renovável a partir de €01/03/2022, através do qual assumiu a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo de matrícula ..-..-QU”.

IV - Do objeto do recurso:

1. Da impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto provada:

1.1. Em sede de recurso, a 1.ª ré impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância, considerando os factos 4 e 6 da matéria de facto provada
Atendendo ao disposto no art.º 640.º do C. P. Civil, nada obsta à sua apreciação.

1.2. Nos termos do art.º 662.º, n.º 1, do C. P. Civil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Como se refere no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, proc. 2199/18.3T8BRG.G1, in www.dgsi.pt, “a reapreciação da prova pela 2ª Instância, não visa obter uma nova e diferente convicção, mas antes apreciar se a convicção do Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência comum e da lógica, atendendo aos elementos de prova que constam dos autos, aferindo-se, assim, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto.
De todo o modo, necessário se torna que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, conforme a parte final da al. a) do nº 1 do artº 640º, do Código de Processo Civil.
Competirá assim, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, atendendo ao conteúdo das alegações do recorrente, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”.
Quanto aos pontos 4 e 6 da matéria de facto provada foi a seguinte a fundamentação da decisão de 1.ª Instância:
(pontos 4, 6) relativamente a estes pontos, referentes à dinâmica do acidente, o Tribunal valorou as declarações de parte do réu AA, os depoimentos das testemunhas CC e DD, em conjugação com os docs 1, 2, 3 juntos com a p.i.
Em primeiro lugar, importa começar por dizer que todas as pessoas referidas no ponto anterior depuseram com conhecimento direto dos factos, tendo os seus depoimentos sido congruentes entre si; a este respeito, o réu AA (condutor da viatura de matrícula »QU«) confirmou o embate na viatura de matrícula »OT« à saída do túnel e que existia uma fila de trânsito em frente dele; por seu turno, a testemunha DD (condutor da viatura de matrícula »LV«) referiu que estava parado numa fila de trânsito, à saída do túnel e que uma viatura de marca e modelo ... embateu uma viatura de marca e modelo ..., a qual embateu na sua (a viatura »LV«) e levou a que embatesse na traseira da viatura ... (a viatura »IJ«); por seu turno, retira-se do depoimento da testemunha CC (proprietária da viatura ... de matrícula »IJ«) que estava parada numa fila de trânsito e que a viatura anterior embateu na traseira da sua.
Em segundo lugar, muito embora não tenha sido possível ouvir o condutor da viatura de matrícula »OT«, o réu AA (condutor da viatura de matrícula »QU«) tenha referido não acreditar que o embate fosse suscetível de provocar o choque em cadeia e a testemunha CC não tenha sabido identificar as marcas e modelos das viaturas envolvidas (com a exceção da sua, de marca e modelo ..., matrícula »IJ«), cremos que tal não obsta a que o Tribunal dê estes factos como provados; com efeito, começando pelo depoimento do réu AA, note-se que o mesmo é meramente opinativo nesse segmento; ele não negou frontalmente que o embate na viatura de matrícula »OT« tenha provocado o choque em cadeia, simplesmente disse não acreditar que fosse possível; contudo conjugando o depoimento da testemunha DD (condutor da viatura de matrícula »LV«, a segunda a ser embatida), com a identificação das viaturas constante do auto de notícia junto como doc 1 da p.i, retira-se que o mesmo identificou perfeitamente todas as viaturas envolvidas, bem como as circunstâncias em a ordem em que se produziu o choque em cadeia entre as mesmas, o que apenas reforça a credibilidade do seu depoimento; a isto acresce que a testemunha CC referiu que estava parada no trânsito em que a viatura anterior (conduzida pela testemunha DD) é que embateu em si, o que invalidade a credibilidade da opinião do réu AA”.
É inequívoco e não é questionado pela recorrente que o veículo com a matrícula ..-..-QU (doravante QU) embateu com a sua parte frontal na traseira do veículo ..-..-OT (doravante OT), e que este embateu com a sua parte frontal na traseira do veículo ..-LV-.. (doravante LV) e que este, por sua vez, embateu com a parte frontal na traseira do veículo ..-IJ-.. (doravante IJ).
O que a recorrente questiona é que se possa dar como provado que foi o embate entre a parte frontal do veículo QU com a parte traseira do veículo OT que causou o embate da parte frontal deste com a parte traseira do veículo LV e deste, na sua parte da frente, com a traseira do veículo IJ, afirmando que essa prova não foi realizada, incumbindo ao autor o respetivo ónus da prova.
A versão que foi considerada como provada é a que consta da declaração amigável junta como documento 2 com a petição inicial e que constava já da participação do acidente, correspondendo às declarações do condutor do veículo OT, então identificado como veículo n.º 2, prestadas perante a autoridade policial.
Está assim em causa a versão do acidente fornecida por EE que, estando arrolado como testemunha, não foi ouvido em audiência por não ter sido localizado.
Os danos sofridos por este OT, na frente e retaguarda, estão evidenciados no documento 13 junto com a petição inicial, sendo possível verificar a dimensão do veículo quando comparado com o veículo em que embateu (LV) ou com o que lhe causou os danos na retaguarda (QU). O veículo OT é um veículo de transporte de mercadorias ... (furgão como surge referido no documento n.º 13 junto com a petição inicial, carrinha de caixa aberta nas palavras do réu AA).
Estamos, assim, perante um veículo de dimensões e peso superiores aos demais veículos envolvidos que entre si embateram (o QU era um ..., o LV um ... e o IJ um ...).
Ora, este Tribunal de recurso ouviu integralmente a prova produzida e que se refere à dinâmica do embate. Foram ouvidos três dos intervenientes no acidente: o réu AA, condutor do veículo QU, em depoimento e declarações de parte, e as testemunhas CC, condutora do veículo IJ e DD, condutor do veículo LV.
Contrariamente ao que afirma o Mm.º Juiz a quo estas duas testemunhas não infirmam as declarações do réu AA e não podem, por isso, retirar-lhe credibilidade.
Nenhum destes condutores refere que foi o embate da frente do veículo QU na traseira do veículo OT que provocou que este embatesse com a sua frente na traseira do veículo LV e, depois, este, com a sua frente na traseira do no veículo IJ (e foi este o facto provado, que exige, naturalmente que a prova produzida assim permita concluir).
Pelo contrário, todos referiram como plausível coisa diversa, ou seja, que o embate da frente do veículo OT na traseira do veículo LV (e da frente deste com a traseira do veículo IJ) se tivesse verificado antes do embate da frente do veículo QU na retaguarda do veículo OT.
O condutor do veículo QU afirmou mesmo que o veículo OT não foi projetado para a frente, pois que o embate que se verificou não era suficiente para tal.
E não colhe o argumento de não ter negado frontalmente o que consta do facto alegado pelo autor na petição inicial. Ao réu AA, na sua qualidade de parte, foi-lhe pedido, apenas, que respondesse se era “verdade ou mentira” o que constava daquele articulado. E este respondeu que não era verdade que, na sequência do embate da frente do QU na traseira do OT, este tivesse embatido com a respetiva frente na traseira do LV.
Os demais intervenientes no acidente, que naturalmente não viram o que aconteceu à retaguarda do OT, afirmaram que, considerando os danos sofridos pelos veículos, seria pouco provável que o ... (QU) pudesse, por embater na retaguarda do veículo ... (OT), provocar a sua projeção para a frente de modo a que a frente deste embatesse na retaguarda do veículo LV e a frente deste na retaguarda do veículo IJ, causando então os danos que os veículos sofreram.
Não há como, partindo destes depoimentos, concluir que a sua análise conjugada permite a prova dos factos 4 e 6 nos termos em que foram fixados.
Foram estes os únicos depoimentos prestados em audiência sobre a dinâmica do embate e, assim, a versão que consta dos factos provados 4 e 6 resulta apenas das declarações escritas que constam da participação do acidente, efetuada à companhia de seguros do veículo OT e à autoridade policial, e que é imputada ao condutor deste veículo que, repete-se, não foi ouvido em audiência de julgamento.
Esta declaração escrita, de quem estava também naturalmente interessado em afastar a sua responsabilidade pela verificação do embate, não pode, pois, ser suficiente para que se afirme como provada a versão que o autor apresentou nestes autos.
Incumbindo ao autor a prova dos factos alegados, na dúvida sobre as circunstâncias relativas à intervenção do veículo QU na dinâmica do embate da frente do veículo OT na traseira do veículo LV e da frente deste na traseira do veículo IJ, aquela tem de ser decidida em desfavor do autor, nos termos do art.º 414.º do C. P. Civil.
Daqui não se retira, porém, que se deva considerar não provada toda a factualidade que consta dos factos 4 e 6.
De facto, dúvidas não há que os condutores dos veículos OT, LV e IJ circulavam pela Rua ..., no sentido nascente e poente, pela sua mão de trânsito e que pelo menos os veículos LV e IJ estavam parados devido a uma fila de trânsito.
Se a prova produzida é, toda ela, inequívoca quanto à primeira parte deste facto, a segunda resulta com clareza dos depoimentos das testemunhas que conduziam aqueles veículos LV e IJ e que, de forma recíproca, afirmaram que estavam ambos parados na fila de trânsito quando o veículo LV foi embatido na retaguarda pela frente do veículo OT e embateu, aquele veículo LV, na retaguarda do veículo IJ.
Quanto ao OT existe a dúvida, como se referiu, se estaria parado como havia a fila de trânsito (versão do autor) ou porque tinha já embatido no veículo LV (versão das testemunhas ouvidas e do réu AA), não podendo, por isso, considerar-se tal facto provado, nessa parte.

Altera-se, assim, em conformidade, a redação deste facto 4:
4. Os condutores dos veículos OT, LV e IJ circulavam pela Rua ..., no sentido Nascente-Poente, pela sua mão de trânsito e os veículos LV e IJ encontravam-se parados devido a uma fila de trânsito.
Mantendo-se a redação do facto 5, que não foi impugnada:
5. O condutor da viatura de matrícula QU, a qual circulava no sentido Braga-Porto, ao sair do túnel, não se apercebeu da existência de uma fila de trânsito ali existente.
Em conformidade com a prova produzida e, nos limites do que supra se referiu, impõe-se apenas considerar provado o facto relativo ao embate da frente do veículo QU na traseira do veículo OT, mas, também, sem os relacionar, o embate da frente deste veículo na traseira do veículo LV e da frente deste na traseira do veículo IJ.
6. Ato contínuo, o condutor do veículo de matrícula QU embateu com a parte frontal deste na traseira do veículo de matrícula OT.
6A. O condutor do veículo OT embateu com a parte frontal do veículo na traseira do veículo de matrícula LV e, por seu turno, este embateu com a sua parte frontal na traseira do veículo de matrícula IJ.
Impõe-se, assim, julgar parcialmente procedente a impugnação da decisão da matéria de facto, no que se refere aos factos provados 4 e 6, afirmando-se como não provado que o veículo OT estava apenas parado na fila de trânsito quando foi embatido e que foi o embate do veículo QU na sua traseira que provocou o choque em cadeia que estava afirmado no facto provado 6.  

2. Os factos a considerar na presente decisão são assim aqueles que foram descritos, tendo os factos provados 4 e 6 esta nova redação e a que se aditou como facto 6A.

3. Da fundamentação jurídica da decisão:

A questão controvertida nesta apelação prendia-se, essencialmente, com a alteração da matéria de facto, aceitando a 1.ª ré que era responsável pelo reembolso ao autor da quantia paga para ressarcimentos dos danos causados pelo veículo QU na retaguarda do veículo OT, mas não já os que este sofreu na sua parte da frente ou os verificados no veículo LV.
Não está em causa o enquadramento jurídico invocado na decisão proferida em sede de 1.ª Instância, que expressamente foi aceite, no âmbito do instituto da responsabilidade civil extracontratual (art.º 483.º do C. Civil) e do disposto no DL. 291/2007, de 21/08, aqui no que diz respeito ao direito de reembolso do autor.
Cabe ao Fundo de Garantia Automóvel o dever de garantir perante terceiros lesados as indemnizações devidas em consequência de acidentes de viação quando, nomeadamente, o responsável direto, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz - cfr. art.º 49.º do DL 291/2007, de 21/08 – estabelecendo este diploma as circunstâncias em que deve fazê-lo em caso de fundada dúvida sobre a existência daquele seguro (art.º 50.º do mesmo diploma).
Com a satisfação da indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica legalmente sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso – art.º 54º do diploma citado.
O Fundo de Garantia Automóvel não adquire, pois, com o pagamento das indemnizações, um direito novo, tendo por conteúdo o seu ressarcimento à custa dos responsáveis civis.
Pelo contrário, com a satisfação dos direitos do lesado e na medida dessa satisfação, adquire o Fundo os poderes que ao lesado competiam, através da figura da sub-rogação legal prevista nos arts.º 592.º e 593.º, do C. Civil. Verifica-se, com o pagamento da indemnização pelo Fundo, uma verdadeira transmissão para esta entidade do direito de credito que, na esfera jurídica do lesado, se constituíra em consequência do acidente.
 Do exposto resulta que para a resolução da questão essencial dos autos importa, antes de mais, averiguar se o lesado (aqui os proprietários dos veículos OT e LV) adquiriram, em sede de responsabilidade extracontratual, qualquer direito de indemnização sobre o condutor / proprietário do veículo QU.
Só neste caso o autor poderá exigir da 1.ª ré o seu reembolso, por ser esta, por via do contrato de seguro celebrado e relativo a este último veículo, a responsável civil pelos danos causados a terceiros resultantes da sua circulação, ficando a mesma constituída na obrigação de proceder à reparação dos danos por aquele causado, nos termos do citado DL n.º 291/2007, de 21/08.
Alterada que foi a decisão da matéria de facto, não pode manter-se a condenação da 1.ª ré nos termos em que foi proferida.
Como resulta claro, foi eliminado o facto que permitia estabelecer o nexo causal entre a conduta do condutor do veículo seguro na 1.ª ré e os danos verificados quer na parte da frente do veículo OT, quer no veículo LV.
Não se verificando tal pressuposto da responsabilidade civil extracontratual, o lesado, o proprietário do veículo OT, apenas poderia exigir da 1.ª ré o ressarcimento dos danos que sofreu na sua traseira e o proprietário do veículo LV não poderia exigir daquela o ressarcimento de quaisquer dos danos por si sofridos.
E, assim, a circunstância de o autor ter indemnizado os proprietários do veículo OT, pelos danos verificados na sua parte frontal, e do veículo LV não lhe confere qualquer direito de reembolso sobre a 1.ª ré.
A ação tem, pois, de ser julgada improcedente em relação às quantias peticionadas de € 3.459,46 e € 150,00 que se reportam aos danos sofridos pelo proprietário do veículo LV.
Já no que se refere à quantia que se demonstrou ter sido paga pelo autor ao proprietário do veículo OT a título de indemnização, € 1.657,47, não foi apurado o valor concreto necessário para reparar apenas os danos que se verificaram na traseira do veículo.
Esta determinação é, naturalmente, ainda possível.
Assim, o autor tem o direito de exigir da 1.ª ré o reembolso da quantia que se vier a liquidar em incidente ulterior, daquele valor de € 1.657,47, e que foi necessária para a reparação dos danos sofridos na traseira do veículo, nos termos do art.º 564.º, n.º 2, parte final, do C. Civil.
Restam-nos as quantias peticionadas a que se reporta o facto provado 15.
Sabemos que o autor pagou €52,26 a título de despesas de avaliação e €15,00 a título de emolumentos. E sabemos que este facto se reporta também ao veículo OT, pois que tal menção consta como provada no facto que se reporta ao custo de reparação desse veículo.
Veja-se que a 1.ª ré nada refere em concreto em relação a essas despesas, no recurso de apelação que foi por si apresentado.
Ora, o reembolso de despesas de instrução e regularização do sinistro suportadas pelo autor está expressamente previsto no art.º 54.º, n.º 1, do DL. 291/2007, de 21/08, pelo que a 1.ª ré é ainda responsável pelo seu pagamento, ainda que seja apenas responsável por parte dos danos sofridos pelo proprietário do veículo OT.
Impõe-se, assim, revogar parcialmente a sentença proferida, condenando apenas a 1.ª ré no pagamento das quantias de € 52,26 e € 15,00 e a quantia que se vier a liquidar em incidente ulterior relativa aos danos causados pelo veículo QU na traseira do veículo OT, até ao limite de € 1.657,47.
O autor peticionou ainda juros de mora vincendos à taxa legal em vigor, acrescidos de 25%, contados desde a citação (nada tendo pedido quanto a juros já vencidos).
Esta pretensão do autor foi julgada procedente sem que tenha sido apresentado qualquer fundamento de recurso que coloque em causa este segmento da decisão proferida.
Assim, não há que alterar o que foi decidido em 1.ª Instância, invocando para o efeito os arts.º 805.º, n.º 2, alínea b), do C. Civil, 50.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21/08, cumprindo apenas esclarecer que os juros em causa são de 4%, nos termos do art.º 559.º do C. Civil e Portaria nº291/03, de 08/04.
Esta revogação parcial implica a alteração da decisão proferida quanto a custas da ação.
As custas da ação deverão ser fixadas na proporção do respetivo decaimento, nos termos do art.º 527.º do C. Civil, sendo que o autor está isento do seu pagamento, nos termos do art.º 4.º, n.º 1, alínea o) do Regulamento das Custas Processuais.
Considerando a decisão proferida que obriga ainda a liquidação da indemnização, fixa-se o decaimento do autor em metade do valor peticionado (€1.657,47:2) a que se somam os valores de € 52,26 e € 15,00 e, assim, no montante de € 896,00.
Admitindo a 1.ª ré na apelação apresentada que era responsável pelo reembolso ao autor das quantias pagas que se referiam aos danos sofridos na traseira do veículo OT, não teve decaimento no recurso. As custas seriam, assim, integralmente da responsabilidade do autor que, porém, como se referiu supra, está legalmente dispensado do seu pagamento, não sendo, por isso, devidas.
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V – Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação apresentado e, em conformidade, revogam parcialmente a decisão proferida, condenando a 1.ª ré:

1. no pagamento da quantia que se vier a liquidar em incidente ulterior relativamente aos danos causados na traseira do veículo ..-..-OT, até ao valor limite de € 1.657,47 (mil seiscentos e cinquenta e sete euros e quarenta e sete cêntimo);
2. no pagamento das quantias de € 52,26 (cinquenta e dois euros e vinte e seis cêntimos) e € 15,00 (quinze euros);
3. no pagamento de juros de mora, à taxa legal de 4%, acrescida de 25%, desde a data da citação;
4. absolvendo a 1.ª ré quanto ao mais peticionado.
As custas da ação serão suportadas pela 1.ª ré na proporção do respetivo decaimento, que se fixa quanto à quantia de € 896,00 (oitocentos e noventa e seis euros), estando o autor isento das que seriam da sua responsabilidade.
Sem custas quanto ao recurso, pois que o autor está isento do seu pagamento.
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Guimarães, 04/12/2025

(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)
Relator: Paula Ribas
1.º Adjunto: Luís Miguel Martins
2.ª Adjunta: Maria Amália Santos