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PROCESSO DE INVENTÁRIO
REQUERIMENTO INICIAL
ÓNUS ALEGATÓRIO E INSTRUTÓRIO
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário
I – No actual processo especial de inventário, as exigências legais de conteúdo do requerimento inicial não são as mesmas quer o requerente se apresente como cabeça de casal a nomear (que deve observar o disposto no art.º 1097.º do C.P.C.), ou como mero interessado, sendo substancialmente atenuadas neste último caso, como resulta do simples confronto daquela norma com o art.º 1099.º do mesmo código. II – Quando não competir ao requerente o exercício das funções de cabeça de casal, apenas lhe é pedido no requerimento inicial um mero “esforço alegatório”, embora com observância dos deveres de verdade e zelo e dos princípios da cooperação e boa fé. III – Não se verifica a deserção da instância se o requerente observou no requerimento inicial o ónus de alegação e instrução que lhe é imposto pelo art.º 1099.º do C.P.C., uma vez que não recai sobre si qualquer outro impulso processual, não lhe podendo ser imputável uma inércia ou um comportamento negligente que tivesse obstado ao normal andamento do processo.
Texto Integral
O recurso foi admitido na espécie, com o efeito e com o regime de subida adequados.
Nada obsta ao seu conhecimento.
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De harmonia com o disposto no n.º 1 do art.º 652.º do C.P.C., ao relator a quem o processo é distribuído cabe deferir todos os termos do recurso até final, incumbindo-lhe, de acordo com a alínea c), julgar sumariamente o objeto do recurso, nos termos previstos no art.º 656.º.
Por seu turno, de acordo com este último preceito, pode o relator proferir decisão sumária quanto ao recurso quando entender que a questão a decidir é simples, designadamente, por ter já sido jurisdicionalmente apreciada de modo uniforme e reiterado, ou que o recurso é manifestamente infundado.
Ora, no caso em apreço, a questão a decidir é manifestamente simples, reconduzindo-se a saber se se verificam, no caso concreto, os pressupostos da deserção da instância.
Assim, irá passar a ser proferida decisão singular sumária do presente recurso, dispensando-se a intervenção da conferência.
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I – Relatório AA, residente no Largo ..., ..., ..., veio requerer que se proceda a inventário judicial para partilha da herança aberta por óbito de BB, residente que foi na Av. ..., ....
Indicou os nomes dos respectivos herdeiros legitimários, sem no entanto mencionar outros elementos identificativos dos mesmos (com excepção no que toca a si e à pessoa por si indicada como cabeça de casal).
Juntou certidão do assento de óbito da inventariada e do seu assento de nascimento.
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Por despacho de 20/05/2024 foi o requerente notificado para juntar aos autos certidão de nascimento e de casamento dos restantes interessados na partilha, bem como a morada dos mesmos com vista a permitir a respectiva citação.
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Na sequência desse despacho, o requerente veio informar que não conseguiu obter mais elementos para além dos que constam dos autos, devendo o cabeça de casal a nomear ser incumbido dessa tarefa.
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Foi, então, proferido despacho determinando que os autos ficassem a aguardar o impulso processual do requerente, sem prejuízo do decurso do prazo de deserção da instância, despacho este que foi notificado ao requerente em 30/10/2024.
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Em 21/02/2025 o requerente veio invocar ter dado cumprimento ao disposto no art.º 1099.º do C.P.C. e reiterou o desconhecimento dos elementos em falta.
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Foi proferido em 18/06/2025 o despacho sob recurso que declarou extinta a instância por deserção, considerando-se aí decorrido o prazo previsto no art.º 281.º n.º 1 do C.P.C. sem qualquer impulso processual do requerente, apesar de notificado das respectivas consequências.
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Inconformado com esta decisão, dela interpôs o requerente o presente recurso, pugnando pela revogação daquela decisão e pela sua substituição por outra que ordene a citação do cabeça de casal indicado.
Formulou as seguintes conclusões:
a) O Requerente intentou processo de inventário judicial para partilha da herança aberta por óbito de sua mãe, BB, falecida em ../../2021.
b) Indicou os herdeiros legitimários, a última residência da De Cujus, o local do óbito, e quem deveria ser nomeado cabeça de casal.
c) Juntou os documentos que estavam ao seu alcance, conforme o disposto no artigo 1099.º, alínea c), do C.P.C.: “na medida do seu conhecimento”.
d) O Tribunal ad quo entendeu que não foram juntos elementos suficientes para permitir a citação dos interessados, nem certidões que comprovassem a qualidade de herdeiros e a legitimidade para o cabecelato.
e) Após despacho de 24.10.2024, foi proferida sentença que declarou a instância extinta por deserção, ao abrigo dos artigos 281.º, n.º 1 e 277.º, alínea c), do C.P.C.
f) Nos termos do artigo 281.º, n.º 1 do CPC, a deserção pressupõe: A paragem dos autos por mais de seis meses; A inércia ser imputável à parte, por negligência.
g) Ora, o Requerente não se desinteressou da lide, nem deixou de promover o processo por negligência.
h) Pelo contrário, apresentou requerimento inicial com os elementos de que dispunha, e sempre se mostrou disponível para colaborar com o Tribunal.
i) A jurisprudência é clara: “A extinção da instância por deserção exige que a inércia seja imputável à parte, por incumprimento de um ónus legal específico.”.
j) O artigo 1099.º do CPC exige que o requerente junte os elementos “na medida do seu conhecimento”.
k) O Requerente assim o fez: Identificou a De Cujus, indicou a última residência e o local do óbito, nomeou os herdeiros e o cabeça de casal e juntou os documentos disponíveis.
l) Não se pode exigir mais do Requerente, se cumpriu, na medida do possível, o que dispõe o artº1099 do CPC
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Por despacho de 17/09/2025 foi fixada à causa o valor de € 5.000,01 e foi admitido o recurso, tendo sido fixado o regime de subida e o respectivo efeito.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II – Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Assim, como já acima se referiu, a única questão que importa apreciar e decidir, neste recurso, é a de saber se se verificam os pressupostos da deserção da instância.
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III – Fundamentação III – I.Da Fundamentação de facto
Os factos que aqui importa considerar e que, em função dos elementos constantes dos autos, se mostram provados, são os acima descritos no relatório desta decisão, os quais, por razões de economia processual, se dão aqui por integralmente reproduzidos.
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III – II. Do objeto do recurso
Passemos, então, ao tratamento da questão enunciada.
O requerente do presente processo de inventário (aqui recorrente) indicou, no requerimento inicial, os nomes dos herdeiros legitimários da inventariada, sem no entanto mencionar outros elementos identificativos dos mesmos (com excepção no que toca a si e à pessoa por si indicada como cabeça de casal).
Invocou, mais tarde, que não conseguiu obter mais elementos para além dos que constam dos autos, defendendo que deverá ser incumbido dessa tarefa o cabeça de casal a nomear.
O tribunal de primeira instância, porém, entendeu que, apesar de não lhe caber o cabecelato, é ao requerente que compete indicar a morada dos interessados, por forma a permitir a sua citação, bem como a junção das certidões de nascimento que permitam aferir, não só a qualidade de interessados das pessoas indicadas, como também a quem deve ser atribuído o referido cabecelato.
Decorrido o prazo legal de deserção da instância previsto no art.º 281.º n.º 1 do C.P.C., foi a instância declarada extinta.
Vejamos se a decisão do tribunal de primeira instância foi ou não acertada.
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A nova regulamentação do processo de inventário introduzida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, veio alterar de forma substancial o anterior paradigma, aproximando agora este processo especial dos demais, no que respeita às regras gerais e formalismos processuais, embora mantendo ainda alguma maleabilidade formal.
Esta alteração é, desde logo, visível no tocante ao requerimento inicial, embora apenas em algumas situações.
Como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, 2.ª edição – 2025, págs. 588 e 589), “o requerimento inicial assemelha-se, agora, a uma verdadeira petição inicial: para além dos elementos de natureza formal previstos no art. 552.º que se mostrem ajustados ao processo de inventário (v.g. designação do tribunal e juízo, identificação dos sujeitos, forma de processo, valor processual, etc.), o requerente, em função da qualidade que assuma, isto é, como interessado direto (art. 1099.º) ou invocando, simultaneamente ou não, a qualidade de cabeça de casal (art. 1097.º), tem o ónus de expor e demonstrar os elementos referidos em cada uma dessas disposições, tomando designadamente posição sobre as quotas ideais de cada interessado, em função do regime de bens existente no casamento do de cujus ou dos herdeiros, da existência de algum testamento ou das regras sobre a sucessão concretamente aplicáveis, a fim de que possam ser sujeitas ao contraditório. O requerimento inicial deve conter a identificação do autor da herança, a comprovação do seu óbito, através da respetiva certidão, e a indicação do último domicílio e lugar do óbito (elementos relevantes para determinação, quer dos herdeiros, quer da competência internacional e territorial – art. 72.º-A, aditado pela Lei n.º 117/19). Arrogando-se o requerente a qualidade de cabeça de casal, deve justificar tal alegação, em função das regras de direito substantivo, e identificar os interessados diretos na partilha (…), os cônjuges dos herdeiros e os regimes de bens que vigoram nos respetivos casamentos, assim como deve identificar possíveis legatários e, havendo herdeiros legitimários, eventuais donatários. De tudo isso juntará os elementos documentais que forem relevantes”.
As exigências legais de conteúdo do requerimento inicial não são, porém, as mesmas quer o requerente se apresente, desde logo, como o cabeça de casal a nomear (que deve observar o disposto no art.º 1097.º do C.P.C.), ou como mero interessado, sendo substancialmente atenuadas neste último caso, como resulta evidente do simples confronto daquela norma com o art.º 1099.º do mesmo código.
Assim, de acordo com o disposto neste último normativo legal, nos casos em que não compete ao requerente o exercício de funções de cabeça de casal, ao mesmo apenas é exigido que, no requerimento inicial, tenha que:
«a) Identificar o autor da herança, o lugar da sua última residência habitual e a data e o lugar em que haja falecido; b) Indicar quem deve exercer o cargo de cabeça de casal; c) Na medida do seu conhecimento, cumprir o disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 1097.º; d) Juntar os documentos comprovativos dos factos alegados.».
Por sua vez, o art.º 1097º n.º 2 al. c) referido naquela al. c) respeita à obrigação de «Identificar os interessados diretos na partilha, os respetivos cônjuges e o regime de bens do casamento, os legatários e ainda, havendo herdeiros legitimários, os donatários;», sendo neste caso apenas pedido pela lei ao requerente (nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in ob. cit, pág. 598) um mero “esforço alegatório”, embora com observância dos deveres de verdade e zelo e dos princípios da cooperação e boa fé (para além dos autores citados, vd. também no mesmo sentido Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres, in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, 2025, pág. 72).
Quanto à junção de documentos a que alude a al. d) do art. 1099.º do C.P.C., bastará na maior parte das situações a certificação do óbito e a demonstração documental da legitimidade activa do requerente.
Assim, nos casos como o dos autos (e diferentemente do que acontece quando o requerente deva também assumir as funções de cabeça de casal), estamos perante uma excepção ao referido desígnio de aproximação aos demais processos previstos no C.P.C., em particular no que respeita à exigência de identificação completa dos interessados diretos na partilha, os respetivos cônjuges e o regime de bens do casamento, bem como no tocante ao documentos a juntar.
Ora, da análise do requerimento inicial e dos documentos juntos com o mesmo, pode concluir-se de forma clara que o requerente observou o ónus de alegação e instrução que lhe é imposto pelo art.º 1099.º do C.P.C., ao indicar os nomes dos restantes herdeiros legitimários, ao identificar o nome e a morada da pessoa que indica como cabeça de casal e ao juntar as certidões do assento de óbito da inventariada e do seu assento de nascimento.
Nada mais lhe era, assim, exigível por lei, considerando o esclarecimento por si prestado no sentido de que não conseguiu obter mais elementos para além dos que constam dos autos, pelo que nada permite concluir que o mesmo não observou os princípios da cooperação e da boa fé.
Por outro lado, a lei apenas atribui ao requerente o ónus de “indicar” (e não comprovar documentalmente) quem deve exercer o cargo de cabeça de casal, devendo presumir-se que essa indicação é efectuada com observância do dever de verdade.
Em face do exposto e ao contrário do que entendeu a primeira instância, ao requerente, por não ser indicado como cabeça de casal, não cabia qualquer impulso processual, nada obstando ao prosseguimento dos autos para despacho liminar e para as citações (de acordo com o art.º 1100.º do C.P.C.), antecedidas das diligências oficiosas necessárias para a sua concretização, conforme prevê o art.º 226.º do C.P.C. (aplicável ao processo de inventário por força do disposto no art.º 549.º n.º 1 do mesmo código).
O cabeça de casal deverá, igualmente, ser advertido das obrigações previstas no art.º 1102.º do C.P.C.), cabendo-lhe por isso (como bem referiu o requerente) a tarefa de completar (ou corrigir, de for o caso) os elementos que constam do requerimento inicial, requisitando-se, em última análise, os documentos em falta.
A deserção da instância é consequência da falta de impulso processual (quando deva existir) por período superior a seis meses (art.º 281.º n.º 1 do C.P.C.). Tem, assim, por base uma conduta negligente, que se consubstancia “…numa situação de inércia imputável à parte, ou seja, em que esteja em causa um ato ou atividade unicamente dependente da sua iniciativa (…)” (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, ob. cit., Vol. I, 3.ª edição – 2024, pág. 365), denotando um desinteresse da lide e do célere andamento do processo.
Não foi este, como vimos, o comportamento do requerente.
Pelo contrário, o mesmo cumpriu (embora de forma mínima) o exigido pelo art.º 1099.º do C.P.C., não lhe sendo imputável qualquer inércia ou comportamento negligente que tivesse obstado ao normal andamento do processo e que pudesse determinar a deserção da instância.
E, diga-se, não lhe podia ser exigida a junção dos elementos previstos no art.º 1097.º do C.P.C., pois o mesmo não se arrogou a qualidade de cabeça de casal.
Nesta conformidade, impõe-se a revogação da decisão do tribunal de 1.ª instância e o prosseguimento do processo para despacho liminar e posteriores citações, antecedidas das diligências oficiosas que venham a ser necessárias.
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As custas deverão ser fixadas a final (art.º 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
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IV – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
- julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo requerente e, em consequência, revogar a decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos ulteriores termos do processo de inventário despacho liminar e posteriores citações.