VÍCIOS DA DECISÃO JUDICIAL
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE FUNDAMENTAÇÃO - NULIDADE
ANULAÇÃO (OFICIOSA) DA DECISÃO JUDICIAL
OMISSÃO TOTAL DE FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Sumário


I. A omissão total de fundamentação de facto pode ser considerada sob a perspectiva do conteúdo da sentença, como decorre do art.º 607º, n.ºs 3, 4 e 5 do CPC.
II. Tal omissão constitui o grau máximo” da deficiência a que se refere a alínea c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC.
III. Em tal situação não deverá a Relação substituir-se à 1ª instância na integral fixação dos factos, sob pena de não se garantir o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, antes devendo anular-se a decisão nos termos no normativo citado em II..

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

Por sentença de 13/03/2025, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de EMP01... – Sociedade Unipessoal, Ldª.

O Sr. AI apresentou a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, os comprovativos de notificação dos credores e a proposta de graduação.

Embora refira que junta as reclamações de créditos, tal não sucedeu.

O Sr. AI reconheceu os créditos reclamados pelo Estado – Fazenda Nacional, EMP02..., SARL – como garantido -, AA – como comum e sob condição – e não reconheceu o crédito da EMP03..., Ldª.

O credor AA veio apresentar impugnação alegando, em síntese e no que releva ao objecto do recurso, que: a EMP02... SARL reclamou, para além do mais, um conjunto de créditos detidos sobre a insolvente, com fundamento em garantias por esta prestadas para pagamento de dívidas de outras sociedades ou na assunção de dívidas de outras sociedades, que identifica; uma dessas sociedades cedeu as quotas de que era titular na sociedade insolvente à pessoa singular que identifica; com a celebração do referido contrato de cessão de quotas cessou a relação de domínio ou de grupo que justificaria a prestação de garantias da insolvente para pagamento de dívidas dessas outras sociedades; a insolvente não tinha justificado interesse para a prestação dessas garantias, nem este interesse se mostra alegado e justificado nos documentos juntos; e tais actos de assunção de dívidas de outras sociedades ou de prestação de garantias de pagamento de dívidas de outras sociedades, concretamente os referidos nos artigos da reclamação que indica, são nulos nos termos do art.º 294º do CC, uma vez que a lei faz aferir e limitar a capacidade de gozo da sociedade pelo fim lucrativo que lhe é inerente.

Terminou pedindo que a impugnação seja julgada procedente, com o não reconhecimento dos créditos da sociedade EMP02... SARL sobre a insolvente e que digam respeito a garantias prestadas pela mesma para pagamento de dívidas de outras sociedades ou na assunção de dívidas de outras sociedades.

O credor AA veio ainda impugnar a lista de créditos reconhecidos invocando que o seu crédito foi reconhecido como comum quando devia ter sido reconhecido como garantido, com fundamento na matéria de facto e de direito alegada na reclamação de créditos apresentada no Processo Especial de Revitalização - sub-rogação nos direitos do credor originário.

A EMP02..., SARL respondeu:
- à impugnação do crédito que lhe foi reconhecido dizendo, em síntese, que: as garantias mantêm-se válidas até ao respectivo cancelamento, o que não ocorreu; o credor impugnante não pode invocar circunstâncias que têm como propósito justificar a eventual perda de interesse para a prestação das garantias pela insolvente; não pode o credor arguir a nulidade do contrato de assunção de dívida por ausência de cabimento legal e não constituir este o meio próprio;
- à impugnação da qualificação do crédito do credor AA dizendo, em síntese, que: o credor juntou com a sua reclamação um contrato de cessão de créditos celebrado entre BB e o credor impugnante, no qual a primeira cede ao segundo um crédito sobre a sociedade devedora; tal crédito está a ser discutido no âmbito do processo judicial que identifica; o credor não especifica a que título entende que o crédito por si reclamado deverá ser reconhecido como garantido.

O Sr. AI pronunciou-se:
- quanto à impugnação da qualificação do crédito do credor AA como garantido dizendo, em síntese, que não resulta qualquer hipoteca a favor do reclamante ou qualquer tipo de cessão de crédito que permita qualificar o crédito com natureza garantia;
- quanto à impugnação do crédito reconhecido à EMP02..., SARL dizendo que quem deverá responder é o credor visado, oferecendo “o merecimento dos autos”, sendo que, em face dos elementos constantes da reclamação de créditos, reconheceu o crédito e mantêm essa posição.

Foi proferida decisão que:
- em primeiro, e depois de relatar o desenvolvimento dos autos, decidiu:
“Nos presentes autos, as garantias prestadas pela devedora/sociedade insolvente, devidamente identificadas nos documentos juntos pela credora EMP02..., SARL na sua reclamação de créditos, mantém-se válidas até ao seu respetivo cancelamento, o que não se verifica.
Como é referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.09.2013, proc. 213/08.7TJVNF-A.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, “As sociedades podem validamente – sem com isso violar o art. 6.º, n.º 3, do CSC – praticar atos gratuitos, nomeadamente prestar garantias a dívidas de terceiros, quando a esses atos presida um interesse próprio da sociedade garante e ainda que deles não decorra uma vantagem económica imediata; basta que haja o objetivo de ser alcançado um fim conveniente à prossecução de vantagens de cariz económico da sociedade, e não de proporcionar uma vantagem ao credor garantido.”
O credor impugnante não apresentou qualquer argumento específico quanto à eventual inexistência de interesse próprio da sociedade insolvente na assunção das dívidas em apreço, limitando-se a alegar, de forma genérica e desacompanhada de prova documental que o substancie, que a cessão de quotas tituladas pela sociedade EMP04... SGPS, S.A. resultou na cessação da relação de domínio ou de grupo, que justificaria a prestação de garantias da insolvente para pagamento de dívidas.
Esta alegação não é suficiente para infirmar os documentos constantes dos autos, sendo certo que não foram canceladas quaisquer garantias associadas aos créditos em apreço.
Pelo exposto, julgo improcedente a impugnação apresentada pelo credor AA, no que respeita ao crédito da sociedade EMP02..., SARL.
(…)
(iii) Da Reclamação do credor AA relativamente ao seu crédito, no valor total de € 960 087,67
O credor AA impugnou a Lista de Credores Reconhecidos no que respeita ao seu crédito, alegando, no essencial, que o crédito que reclamou deve ser qualificado como garantido (sob condição) porquanto, com a outorga do contrato de cessão de créditos, ficou “sub-rogado nos direitos do credor dando-se uma transmissão do respetivo crédito, acompanhada da transmissão das respetivas garantias”, conforme resulta do artigo 25.º da reclamação de créditos por si apresentada.
A credora EMP02..., SARL e o Sr. Administrador Judicial apresentaram resposta à impugnação em apreciação, pugnando pela improcedência da mesma.
Nos presentes autos, resulta dos documentos juntos com a reclamação de créditos apresentada pelo credor AA, que o Banco 1... concedeu um empréstimo, no valor de €5.000.000,00 à devedora “EMP01... – SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA”, na qualidade de mutuária, e BB, na qualidade de garante e devedora solidária.
Para garantia das responsabilidades assumidas, foi constituída hipoteca voluntária sobre o bem imóvel, sito no Lugar ..., freguesia ..., descrito na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e Automóvel ..., sob a descrição ...11, e inscrito na matriz predial urbana com o nº ...69, sob a AP. ...14 de 2009/05/22. A referida hipoteca foi cedida à aqui Credora EMP02..., SARL, conforme informação predial atualizada junta aos autos.
Foi ainda junto com a reclamação de créditos do credor impugnante cópia do contrato de penhor, no qual a garante e devedora solidária, BB, dá em penhor ao Banco 1..., o depósito a prazo que possuía na referida instituição, no montante de 800.000,00€ (oitocentos mil euros), para garantia das responsabilidades contratadas. Face ao incumprimento das responsabilidades assumidas pela mutuária, ora devedora, no contrato de empréstimo de 14/05/2008, o Banco 1... procedeu, no ano de 2015, à desmobilização antecipada do depósito a prazo, no valor de 800.000,00€, conforme consta de documento junto com a reclamação de créditos.
Resulta também dos documentos juntos, um contrato de cessão de créditos através do qual BB cede a AA um crédito sobre a sociedade devedora, que se encontra a ser discutido no âmbito de um processo judicial, com o nº 5172/24.6T8LSB, o qual corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível, Juiz ....
Ora, os créditos garantidos são aqueles que beneficiam de garantias sobre bens individualizados, incluindo-se, além da hipoteca, do penhor e da consignação de rendimentos, os privilégios creditórios especiais (mobiliários e imobiliários).
Face à factualidade descrita, não assiste razão ao credor impugnante pois, ainda que veja o seu crédito reconhecido no âmbito do mencionado processo, o mesmo não beneficia de qualquer garantia. Atenta a certidão predial do imóvel apreendido nos presentes autos, não resulta qualquer hipoteca a favor do credor impugnante, ou qualquer tipo de cessão do crédito que permita qualificar o crédito com natureza garantida. Tanto mais que o próprio credor impugnante nem invoca a que título entende que o crédito por si reclamado deverá ser reconhecido como garantido.
Não beneficiando de qualquer garantia, deve o crédito do credor impugnante manter-se como crédito comum, sob condição, posto que o seu reconhecimento encontra-se em discussão, no âmbito do processo supra mencionado, devendo permanecer, nesta parte, inalterada a relação de créditos reconhecidos.
Pelo exposto, julgo improcedente a impugnação apresentada pelo credor AA, por ausência de fundamento legal.”

- em segundo lugar, proferiu “Sentença”, composta por:
i) “Relatório”;
ii) “Saneamento”, em que julgou verificados tabularmente os pressupostos processuais e definiu como “Questão a decidir: (…) a verificação e graduação dos créditos reconhecidos no processo de insolvência”, tendo ainda referido que a “questão a decidir é exclusivamente de Direito”;
iii) “Fundamentação”, subdividida em dois items:
- “3.1. Da verificação dos créditos“, em que depois de citar o art.º 130º do CIRE consignou:
“Nos presentes autos, constata-se que houve impugnações à Lista de Credores Reconhecidos, sendo que as mesmas foram julgadas improcedentes, nos termos supra, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos, devendo manter- se inalterada a referida lista.
Face ao exposto, homologo a lista de credores reconhecidos, junta aos autos pelo Senhor Administrador da Insolvência, devendo graduar-se os créditos de acordo com o que consta dessa lista.”
- “3.2 Da graduação dos créditos” em que apreciou a graduação dos créditos reconhecidos.
iv) “Decisão”, com o seguinte teor:
“Face ao exposto, nos termos e pelos fundamentos acima citados: Homologo a Lista de Credores Reconhecidos apresentada pela Senhor Administrador da Insolvência e constante dos autos.
Declaro verificados os créditos supra reconhecidos e graduo-os para serem pagos através do produto da venda dos bem integrante da massa insolvente, pela seguinte ordem:
Graduação Especial
Através do produto da venda do prédio urbano, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ... e distrito ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...11/..., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...69, efectuam-se os pagamentos, pela seguinte ordem:
1º - As dívidas da massa insolvente, sendo que as custas saem precípuas;
2º - Do remanescente,
1.º lugar: dar-se-á pagamento ao crédito privilegiado reconhecido à Fazenda Nacional;
2.º lugar: dar-se-á pagamento aos créditos garantidos por hipoteca da EMP02... SARL até ao limite registado.
3.º lugar: dar-se-á pagamento aos créditos comuns.

Quanto ao crédito sujeito a condição deverá ter-se em conta o artigo 181.º do CIRE.”

O impugnante interpôs recurso, pedindo “a revogação das decisões que julgaram improcedentes as impugnações apresentadas pelo credor / recorrente da lista de créditos reconhecidos e consequente revogação da decisão de homologação da lista de créditos reconhecidos apresentada pelo Senhor Administrador da Insolvência e da sentença de verificação e graduação dos créditos, proferida em conformidade com a decisão tomada relativamente às impugnações apresentadas, e a sua substituição por sentença que leve em conta a procedência do recurso”, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
Primeira: O credor / recorrente não se conforma com as decisões do Tribunal recorrido de julgar improcedentes as impugnações da lista de credores reconhecidos, junta aos autos pelo Senhor Administrador da Insolvência, por si deduzidas relativamente ao crédito da credora EMP02..., SARL e ao seu crédito; de consequente homologação da lista de credores reconhecidos, junta aos autos pelo Senhor Administrador da Insolvência, e graduação dos créditos de acordo com o que consta dessa lista.
Segunda: Começando pela impugnação do crédito da credora EMP02..., SARL, o Tribunal recorrido desconsiderou totalmente que o credor / recorrente, para além de ter alegado que a insolvente não tinha justificado interesse para a prestação das garantias, alegou, também, que este interesse não se mostra alegado na reclamação de créditos e minimamente justificado nos documentos juntos com a reclamação de créditos.
Terceira: Ao contrário do que resulta da decisão recorrida, sobre a credora EMP02..., SARL recaía o ónus de alegar e provar, em concreto, a existência de interesse económico próprio, útil, para a insolvente, decorrente da prestação das garantias e que havia fundamento objetivo – patrimonial ou estratégico – para assumir a dívida (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de novembro de 2017, proferido no âmbito do processo n.º 1721/14.6T8VNG-E.P1.S1, que teve como relatora a Senhora Juíza Conselheira Graça Amaral, e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Quarta: Não foi alegado pela credora EMP02..., SARL o justificado interesse para a prestação das garantias e esse interesse não se mostra minimamente justificado nos documentos juntos com a reclamação de créditos.
Quinta: Nos autos, era a credora EMP02..., SARL que tinha o ónus de alegar e provar o justificado interesse da insolvente na prestação das garantias.
Sexta: Não era o credor / recorrente que tinha o ónus de provar a não verificação desse justificado interesse.
Sétima: Ao ter decidido como decidiu, o Tribunal não respeitou as normas e regras relativas à distribuição do ónus da prova e, com isso, violou o disposto no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil; o que constitui, no que diz respeito a este crédito, o primeiro fundamento do recurso.
Sem prescindir
Oitava: Mesmo que se entenda que era o credor / recorrente que tinha o ónus de provar a não verificação desse justificado interesse, acresce que, sem prescindir do que antecede, da análise da reclamação de créditos, dos documentos juntos com a reclamação de créditos, bem como dos documentos contantes dos autos, resulta conclusão oposta,
Nona: sendo certo que, como decorre do artigo 11.º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas, no processo de insolvência, vigora o princípio do inquisitório, pelo que a decisão do Tribunal pode (a nosso ver, também deve) ser fundada em factos que não tenham sido expressamente alegados pelas partes.
Décima: A sociedade garante não apresentava capacidade para contrair este crédito nem fazer face às suas respetivas despesas, pois o decréscimo do valor em dívida entre prestações é apenas de 1%.
Décima-primeira: Este perfil de amortização não se coaduna com qualquer prática prudente de financiamento bancário tradicional, pois o valor das prestações é substancialmente inferior ao serviço da dívida exigido para uma amortização eficaz; o capital amortizado é mínimo durante quase toda a vigência do contrato; a última prestação concentra, de forma artificial, a esmagadora maioria da dívida.
Décima-segunda: Este padrão configura um contrato que não foi celebrado com vista ao equilíbrio financeiro da sociedade garante, deslocando o risco para uma sociedade com ativos limitados – cerca de um milhão de euros, como resulta da informação constante do inventário junto aos autos - e resultados líquidos anuais inferiores a trezentos mil euros – como resulta do relatório do senhor administrador de insolvência, junto aos autos - sem qualquer contrapartida objetiva recebida.
Décima-terceira: Da assunção da dívida não resultou em qualquer vantagem económica para a insolvente; não existiu qualquer contrapartida, direta ou indireta (entrada de capital, transferência de ativos, reforço patrimonial) para a insolvente; e o negócio teve como único efeito a colocação da insolvente numa situação de asfixia financeira e subsequente insolvência, pois inviabilizou a sua atividade normal, impossibilitou-a de celebrar contratos de arrendamento com terceiros, excluiu-a do acesso ao mercado de capitais e financiamento alternativo.
Décima-quarta: A insolvente foi usada como “mecanismo de garantia”, sem proteção dos seus interesses próprios; foi usada como instrumento de financiamento de outras sociedades, sem justificação clara, violando-se o princípio da autonomia patrimonial das sociedades comerciais. A insolvente afetou o seu único ativo imobiliário, para garantir o pagamento de uma dívida de valor bastante superior ao valor desse ativo imobiliário.
Décima-quinta: Constitui hoje entendimento dominante a interpretação segundo a qual a capacidade de gozo das sociedades comerciais está limitada pelo fim mediato, isto é, pela sua finalidade lucrativa.
Décima-sexta: A leitura completa do preceituado no artigo 6.º permite concluir, a par de autores como Pupo Correia e Osório de Castro, entre outros, que o fim que limita a capacidade de gozo das sociedades comerciais é o lucro.
Décima-sétima: As liberalidades só são admissíveis em razão de uma vantagem indireta que a sociedade retire da sua prática.
Décima-oitava: A prestação de garantias porque envolve a satisfação de dívidas alheias com o património da própria sociedade constitui em princípio um ato que contraria o fim último da sociedade, isto é o lucro.
Décima-nona: Admite-se, porém, a sua prática nos casos em que haja um justificado interesse próprio da sociedade garante ou no caso de sociedades em relação de grupo ou de domínio.
Vigésima: A prática de um ato gratuito, fora das situações excecionais previstas nos números 2 e 3 do artigo 6.º, é, pela sua própria natureza, contrária ao fim da sociedade e, portanto, é sancionado com nulidade, por violação de norma imperativa, nos termos do disposto no artigo 294.º do Código Civil.
Vigésima-primeira: Porque os números 1 e 3 do artigo 6.º têm evidente carácter imperativo, os atos sociais que se revelem contrários ao fim lucrativo (nomeadamente todos os que constituam liberalidades, por ausência de contrapartida equivalente) estão feridos de nulidade, quer se trate de atos do órgão de administração, quer de deliberações de sócios, sendo aplicáveis o artigo 294.º do Código Civil e demais preceitos referentes ao regime da nulidade.
Vigésima-segunda: A sanção da nulidade encontra a sua justificação na defesa dos interesses em presença “que passam pela defesa do interesse da sociedade enquanto tal, dos interesses dos seus sócios e do interesse dos credores sociais, designadamente contra os atos lesivos dos próprios sócios ou da respetiva administração ou gerência.
Vigésima-terceira: A prestação da garantia pela insolvente deve ser considerada nula, nos termos dos artigos 280.º e 294.º do Código Civil, bem como do artigo 6.º, n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais, designadamente com fundamento na ausência de contrapartida ou qualquer forma de compensação; inexistência de interesse próprio legítimo; violação da finalidade económica da sociedade; desequilíbrio contratual evidente; prejuízo real e imediato para os credores e acionistas da empresa.
Vigésima-quarta: Sem prescindir, com os fundamentos que antecedem, do pedido principal de nulidade absoluta do contrato de assunção de dívida, com os mesmos fundamentos, e para a eventualidade de se entender de forma diferente, o crédito da credora EMP02..., SARL deve ser qualificado como subordinado, nos termos dos artigos 47.º, n.º 4, alínea b) e 48.º, alínea d), ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, uma vez que, como se alegou, a insolvente não obteve qualquer contrapartida decorrente da prestação da garantia.
Vigésima-quinta: Quanto à impugnação relativa ao crédito do credor / recorrente, não assiste razão à decisão recorrida, pois esta desconsidera totalmente o regime legal estabelecido no artigo 582.º, n.º 1 do Código Civil, aplicável, por via, do disposto no artigo 594.º do Código Civil: “Na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente.” (nosso relevo).
Vigésima-sexta: A procedência do recurso implica a revogação das decisões de homologação da lista de credores reconhecidos, junta aos autos pelo Senhor Administrador da Insolvência, e graduação dos créditos de acordo com o que consta dessa lista.
Vigésima-sétima: A decisão recorrida violou o disposto no artigo 6.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais; e nos artigos 280.º, 294.º e 582.º (ex vi artigo 594.º), todos do Código Civil.

A EMP02..., SARL contra-alegou, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. Por sentença proferida pelo Tribunal a quo, foi julgada improcedente a impugnação apresentada pelo credor AA, no que respeita ao crédito da sociedade EMP02..., SARL, bem como no que respeita ao seu próprio crédito, por ausência de fundamento legal.
B. Entendeu o Tribunal de 1.ª Instância que “o credor impugnante não apresentou qualquer argumento específico quanto à eventual inexistência de interesse próprio da sociedade insolvente na assunção de dívidas em apreço, limitando-se a alegar, de forma genérica e desacompanhada de prova documental que o substancie, que a cessão de quotas tituladas pela sociedade EMP04... SGPS, S.A. resultou na cessão da relação de domínio ou de grupo, que justificaria a prestação de garantias da insolvente para pagamento de dívidas”.
C. Já quanto à impugnação do Credor, relativamente ao seu próprio crédito, entendeu o Tribunal a quo que “não assiste razão ao credor impugnante pois, ainda que veja o seu crédito reconhecido no âmbito do mencionado processo, o mesmo não beneficia de qualquer garantia (…). Não beneficiando de qualquer garantia, deve o crédito do credor impugnante manter-se como crédito comum, sob condição, posto que o seu reconhecimento encontra-se em discussão, no âmbito do processo [n.º 5172/24.6T8LSSB] supra mencionado, devendo permanecer, nesta parte, inalterada a relação de créditos reconhecidos”.
D. Inconformado, veio o Credor, aqui Apelante, recorrer da douta sentença, pugnando pela sua revogação e consequente substituição por decisão deste Colendo Tribunal em sentido inverso.
E. Andou bem o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, tanto no que respeita à impugnação do crédito do ora Recorrente, como à impugnação do crédito do Apelante, como abaixo se demonstrará.
F. Relativamente à impugnação do crédito do ora Recorrente, o Apelante veio
impugnar os referidos créditos, nos termos e para os efeitos do artigo 130.º, n.º 1 e 2 CIRE, alegando, em síntese, que “a insolvente não tinha justificado interesse para a prestação dessas garantias (…) nem este interesse se mostra alegado e justificado nos documentos juntos”.
G. O Tribunal de 1.ª Instância defendeu que “esta alegação não é suficiente para infirmar os documentos constantes dos autos, sendo certo que não foram canceladas quaisquer garantias associadas aos créditos em apreço”, julgando improcedente a impugnação apresentada pelo Apelante.
H. A ora Recorrente concorda na íntegra com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, na medida em que entende que a mesma foi tomada no estrito cumprimento da lei.
I. Muito embora esteja em causa a prestação de garantias pela Insolvente a outras sociedades, a verdade é que essas “outras sociedades” mantinham com esta uma relação de grupo, já sobejamente demonstrada nos autos.
J. Razão pela qual, e ao contrário do defendido pelo Apelante, não havia necessidade de se provar a existência de justificado interesse próprio da sociedade garante. Este advém da relação de grupo existente.
K. É o que decorre do artigo 6.º, n.º 3 CSC.
L. É o que consta do próprio texto das escrituras de hipoteca.
M. E é o que é defendido pela doutrina e pela jurisprudência dos Tribunais Superiores.
N. Pode colocar-se em causa a legitimidade do Apelante para impugnar as garantias prestadas, na medida em que a jurisprudência é clara no sentido de entender que essa legitimidade se restringe à sociedade garante.
O. No que respeita à assunção de dívidas, o Apelante vem requerer que seja declarada a respetiva nulidade, apresentando os mesmos fundamentos que apresentou para as garantias prestadas.
P. Entende-se que as garantias prestadas com determinadas condições não deixam de existir caso essas condições sejam alteradas unilateralmente.
Q. Ou seja, as garantias existem até serem canceladas e que o respetivo cancelamento carece de consentimento tanto da parte que as presta como da parte credora, o que não se verificou.
R. Por outro lado, o artigo 6.º, n.º 3 CSC apenas se refere a prestação de garantias reais ou pessoais, o que, no caso da assunção de dívidas, não tem qualquer
aplicação e cabimento.
S. E mesmo que se entenda que os contratos de assunção de dívida se poderiam equiparar à prestação de garantias, a verdade é que os argumentos acima
expostos também terão aplicabilidade neste tema uma vez que, à data da celebração dos contratos de assunção de dívida, mantinha-se a relação de grupo entre as sociedades. Prova disso é o resultado do site publicações.mj.pt, quanto à sociedade insolvente.
T. Relativamente ao crédito reclamado pelo Apelante, andaram bem o Senhor
Administrador de Insolvência e o Tribunal de 1.ª Instância ao reconhecerem e graduarem o mesmo como comum sob condição.
U. O crédito cedido ao Apelante não goza de qualquer garantia.
V. Tendo em conta a relação que o Credor Apelante teve com algumas das sociedades envolvidas, chegando a fazer parte dos órgãos sociais da aqui Insolvente, poder-se-ia ainda defender que o respetivo crédito deveria, antes, ser graduado como subordinado!
W. Razão pela qual a Douta Sentença recorrida fez uma correta interpretação do Direito, devendo manter-se.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).

Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, pelo que não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida.

O recorrente invoca no seu recurso que o crédito da EMP02..., SARL deve ser qualificado como subordinado.

O recorrente, na sua impugnação, não suscitou esta questão, pelo que se trata de uma questão nova e, em função disso, a mesma não pode ser conhecida por este tribunal.

A recorrida invoca nas suas conclusões que poder-se-ia defender que o crédito o recorrente deveria, antes, ser graduado como subordinado.

Verifica-se que a recorrida não deduziu qualquer impugnação do crédito do recorrente, pelo que a questão que suscita – ainda que em moldes eventuais – também não pode ser conhecida.

Destarte as questões que cumpre conhecer são:
- era à EMP02..., SARL que cabia alegar e demonstrar que a insolvente tinha interesse económico próprio, útil, na prestação de garantias a outras sociedades e que havia fundamento objectivo para assumir a dívida?
- o que não aconteceu?
- ainda que se entenda que era ao recorrente que cabia alegar e provar a não verificação desse interesse, isso resulta da análise da reclamação de créditos, dos documentos juntos com a mesma e dos documentos constantes dos autos?
- os actos da insolvente, de assunção de dívidas de outras sociedades e a prestação de garantias de pagamento de dívidas de outras sociedades, são nulos nos termos dos art.ºs 280º e 294º do CC, por violação do art.º 6º, n.º 3 do CSC?
- o crédito reclamado pelo recorrente deve ser reconhecido como garantido e não como comum?

Importa, no entanto, e previamente, verificar se estão reunidas as condições para que este tribunal se pronuncie sobre as referidas questões, nomeadamente se está estabelecida a plataforma fáctica para que esta Relação proceda à integração jurídica do caso.

3. Questão prévia

3.1. Enquadramento jurídico
O art.º 205º n.º 1 da CRP dispõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

E o art.º 154º do CPC dispõe, no n.º 1, que “[a]s decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas “ e, no n.º 2, que “[a] justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo, quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.

No que especificamente respeita à sentença, dispõe o art.º 607º, n.º 2 do CPC, que a “sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer” e o n.º 3 que “[s]eguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regras jurídicas, concluindo pela decisão final”.

O n.º 4 do mesmo normativo dispõe que “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados a presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”.

Este n.º 4 respeita quer à fundamentação de facto, quer à respectiva motivação, tendo esta última em vista possibilitar o controlo da decisão, dada a possibilidade que as partes têm de recorrer da matéria de facto, cumpridos que sejam os requisitos do art.º 640º do Código de Processo Civil.

Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, pág. 707 “A fundamentação [da decisão de facto] passou a exercer, pois, a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da Justiça, inerente ao ato jurisdicional.”

No que diz respeito à verificação e graduação de créditos, havendo impugnação de créditos reconhecidos ou de créditos não reconhecidos, nos termos do disposto no art.º 595º, n.º 1, alínea b) do CPC, aplicável ex vi art.º 136º, n.º 3 do CIRE, o tribunal pode proferir saneador-sentença, conhecendo daquela sempre que o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas, o que sucede se toda a prova é documental.

Certo é que o conhecimento de tal impugnação há-de integrar o saneador-sentença e não ser autonomizado do mesmo; e tal saneador-sentença há-de obedecer às já referidas regras do art.º 607º, aplicável ex vi art.º 17º do CIRE, ou seja, conter, necessariamente, a fundamentação de facto, a motivação da mesma e a indicação, interpretação e aplicação das regras jurídicas aplicáveis.

A falta absoluta de fundamentação de facto da sentença, constitui um vício relativo à sua elaboração e estrutura enquanto acto, que determina a respectiva nulidade nos termos do disposto no art.º 615º, n.º 1, alínea b) do CPC.

Tal nulidade não é de conhecimento oficioso, carecendo de ser arguida por quem nisso revelar interesse e, nessa medida, está próxima da anulabilidade (cfr. o Ac. desta RG de 17/05/2018, processo 2056/14.0TBGMR-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg e o Ac. do STJ de 30/11/2021, processo 1854/13.6TVLSB.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj).

Mas a omissão, total, da discriminação dos factos provados e não provados pode ser vista pela perspectiva do conteúdo da própria decisão e, nessa medida, ser apreciado oficiosamente pela Relação, ao abrigo do art.º 662º, n.º 2, al. c), do CPC, o que dispõe: a “Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) c) Anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que (…) permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente (…) a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto (…)”.

A respeito da deficiência da decisão de facto, refere Abrantes Geraldes in Recurso em Processo Civil, 7ª edição, pág. 356-357) (negrito nosso): “As decisões podem revelar-se total ou parcialmente deficientes (…), resultantes da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares, (…) de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso.
Verificado algum dos referidos vícios, para além de serem sujeitos a apreciação oficiosa da Relação, esta poderá supri-los a partir dos elementos que constam do processo ou da gravação.”

Se o citado normativo “permite a anulação oficiosa da decisão proferida na 1.ª Instância quando a decisão de facto respectiva seja deficiente, por maioria de razão tê-lo-á de permitir quando a mesma seja absolutamente omissa, por esta omissão total ser o grau máximo daquela deficiência.
Assim, na expressão «deficiência» caberá, necessariamente, não só a falta de decisão sobre um facto essencial, como a falta absoluta de decisão sobre todos os factos essenciais.
Compreende-se que assim seja, já que «se houver uma total ausência de decisão sobre a matéria de facto, não pode este Tribunal exercer o poder censório, não só quanto à matéria de facto provada, como também sobre o direito aplicado e aplicável».
Dir-se-á mesmo que não será só o Tribunal de Recurso que ficará impedido de exercer a sua função de sindicância, outro tanto sucedendo relativamente a pretendido recorrente, já que «tal procedimento também impede as partes» de cumprirem o ónus de impugnação que lhes está cometido pelo art. 640.º, n.º 1, als. a) e b) do CPC (…).” (cfr Ac. desta RG de 07/06/2023, processo 3096/17.2T8VNF-J.G1 em que é Relatora a aqui Exm.ª Sra. Desembargadora 2ª Adjunta e que seguimos de perto, sendo o negrito nosso).

O art.º 662º, n.º 2, alínea c) do CPC confere à Relação um poder de cassação (“anular a decisão proferida na 1ª instância… “).

Tal poder é subsidiário do poder de reexame da prova, isto é, só haverá lugar à anulação se não constarem do processo todos os elementos - factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente - que permitam a alteração (refere o preceito “quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto“).

E nesse sentido o disposto em tal normativo é tributário do principio da celeridade.

 Mas a esse valor da celeridade há que contrapor o da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, afigurando-se que este valor é mais garantístico e proeminente para a realização de um processo equitativo, na vertente de um processo que permita, num prazo razoável, a descoberta da verdade material e a prolação de uma decisão ponderada (Artigo  20º, nº4, da Constituição; cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I,  2ª ed., p. 441). Havendo que se sacrificar um dos valores, cremos que deverá ser o da celeridade… ( Ac. da RL de 22/03/2022, proc. 2274/19.4T8LSB-A.L1-7).

Note-se que mesmo havendo impugnação da matéria de facto, o legislador não consagrou a realização de novo julgamento na segunda instância nem enveredou pela possibilidade de reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos.

Além disso e como já ficou referido no ponto 2, a Relação não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).

Em consequência, não deverá esta Relação suprir uma deficiência total da sentença de 1ª instância, em virtude da falta de pronúncia sobre a totalidade dos factos relevantes ou, dito de outra forma, não deverá este tribunal substituir-se à 1ª instância na integral fixação dos factos, sob pena de não se garantir o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

Neste sentido afirma-se no já citado Ac. desta RG de 07/06/2023, processo 3096/17.2T8VNF-J.G1:
“Defende-se, assim, que a consideração e aplicação do disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, não pode ser feita de forma tão ampla que pretira a garantia, legal e constitucional, do duplo grau de jurisdição na apreciação, julgamento e decisão da matéria de facto; e, assim, será inaplicável quando tenha ocorrido omissão absoluta de fundamentação de facto (…)
Enfatiza-se, em abono deste entendimento, que o preceito em causa expressamente refere a possibilidade de «alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto», quando do processo já constem todos os elementos necessários para o efeito, e não a simultânea possibilidade de colmatar a omissão da dita decisão (isto é, não refere a possibilidade de «elaboração de uma inédita decisão de facto»).”

3.2. Em concreto

Na situação verifica-se que não só a sra. Juiz a quo conheceu das impugnações deduzidas pelo recorrente AA em momento anterior ao saneador-sentença e, portanto, de forma autónoma, como, e sobretudo, omitiu completamente a discriminação dos factos provados e não provados e respectiva motivação, tendo-se limitado a referir, esparsamente e ao longo da apreciação daquelas impugnações, alguma factualidade, não tendo, assim, dado cumprimento ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 607º do CPC.

E ainda que se seguisse entendimento contrário ao referido - não deve a Relação substituir-se à 1ª instância na integral fixação dos factos, sob pena de não se garantir o duplo grau de jurisdição em matéria de facto -, tal substituição estaria inviabilizada pois não constam dos autos as reclamações de créditos e respectivos documentos, com base nos quais o Sr. AI reconheceu os créditos impugnados.

Destarte, só com a anulação da decisão recorrida e a prolação de nova sentença pelo tribunal a quo, que, tendo por referência todos os factos relevantes alegados pelo recorrente e recorrida nas respectivas reclamações de créditos, impugnações de créditos e resposta a tais impugnações, discrimine os que estão provados e os que estão não provados e fundamente essa decisão, nos termos dos n.ºs 3, 4 e 5 do art.º 607º do CPC, será possível garantir o duplo grau de jurisdição em matéria de facto e estabelecer a plataforma fáctica necessária à integração jurídica do caso.

E a fim de dar cabal cumprimento a tal desiderato e prevenindo a possibilidade de ulterior recurso, impõe-se que seja junta aos autos certidão das reclamações de créditos e os documentos que as acompanham, com base nas quais o Sr. AI reconheceu os créditos impugnados.

Fica por isso, e por ora, prejudicada a apreciação do objecto do recurso acima definido, o que aqui se declara, nos termos do art.º 608.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, do mesmo diploma.

3.3. Custas

Dispõe o art.º 527º n.º 1 do CPC que a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

E o n.º 2 dispõe que “dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.”

A parte será vencida se e na medida em que a sua pretensão em que vê a sua pretensão rejeitada.

No caso não se pode considerar que o recorrente é vencido, porque o conhecimento das questões suscitadas pelo mesmo, com base nas quais defendia a revogação e substituição da decisão recorrida, não chegaram a ser apreciadas, tendo ficado prejudicado o seu conhecimento em função da anulação daquela.

E também não se pode considerar a recorrida vencida, porque não é possível afirmar que o dispositivo da decisão se reflecte negativamente na sua esfera jurídica, não é possível afirmar que esse dispositivo a desfavorece, na medida em que os interesses que a mesma prossegue com a reclamação de créditos não foram rejeitados, havendo apenas um compasso de espera na definição dos mesmos.

Por outro lado, não é possível considerar que alguma das partes tira proveito do recurso.

O certo é que o art.º 1º do RCP dispõe:
1 - Todos os processos estão sujeitos a custas, nos termos fixados pelo presente Regulamento.
2 - Para efeitos do presente Regulamento, considera-se como processo autónomo cada acção, execução, incidente, procedimento cautelar ou recurso, corram ou não por apenso, desde que o mesmo possa dar origem a uma tributação própria.

E nos termos do n.º 6 do art.º 607º, aplicável ex vi art.º 663º, n.º 2, ambos do CPC, o acórdão deve, no final, condenar os responsáveis pelas custas processuais, indicando a proporção da respectiva responsabilidade.

Destarte, à luz destes normativos e não sendo, como não é, caso de isenção objectiva ou subjectiva, o presente recurso tem de ser tributado.

Mas estando em causa, como está, uma decisão interlocutória, acompanha-se o entendimento do  Ac. da RL de 11/01/2011, processo 277/08.3TBSRQ-F.L1-7, consultável in www.dgsi.pt/jtrl que tem o seguinte teor:
“(…) as custas – em particular a taxa de justiça - artigo 3º, nº 1, do Regulamento das Custas Processuais –consubstanciam[-se], grosso modo, na prestação pecuniária que o Estado exige, em regra, aos utentes do serviço judiciário no quadro do exercício da função jurisdicional que desenvolve; [dito] de outra forma, a contrapartida do serviço judicial que seja desenvolvido. (…) Significa isso que há um montante pecuniário que é o tendencialmente ajustado a representar o preço de uma dinâmica processual, desde o seu início até ao seu encerramento. O utente paga um serviço que integra um “pacote” de actos e de termos que, com aproximação, se acham previamente definidos – é a estrutura essencial da instância. Queremos com isto sublinhar a ideia de que todo o processo tem um objectivo primordial, que é o da obtenção de uma regulação jurídica, declarada ou efectiva, de interesses de direito material; e que é o caminho para se lá chegar que tem um custo, em parte representado pelas custas a pagar.
Este núcleo duro de custas tem sempre um responsável final; alguém que se volve em sujeito passivo das custas por se reconhecer que, à luz de tudo, deve ser ele a suportar o encargo; seja por ser vencido; seja pelo proveito obtido; seja, em derradeiro critério, por ser aquele que desencadeou o funcionamento da máquina judiciária. (…)
Ora, do nosso ponto de vista, faz sentido que, na falta de uma outra referência juridicamente atendível, seja a esta derradeira distribuição que venha a aderir toda a restante responsabilidade a que, entretanto, não houvera oportunidade, ou possibilidade, de encontrar ajustado devedor. A autonomia tributária, que porventura houvesse, cede na parte da repartição de responsabilidade; e a quem seja onerado pelo custo global e final da acção acrescerá, na mesma proporção, por se entender que a essa principal responsabilidade devem ter adesão aquelas outras conexas ou meramente instrumentais, a dívida de custas gerada pelo acto ou termo a que antes se não conseguiu conhecer responsável.
A dívida interlocutória de custas adere, nesta óptica, à dívida final, referente à contrapartida global do “pacote” de serviço de justiça prestado; nascendo a respectiva obrigação na esfera daquele que, a final, venha a ser reconhecido como o devedor das principais custas da acção. É o que comummente se chama de dívida de custas pela parte que seja vencida a final; que em inúmeras situações é habitual reconhecer; e que, em consonância, faz relegar para a mesma decisão final – em regra, a sentença ou o acórdão que julguem do mérito da causa – o exacto e pontual cumprimento do mencionado artigo 659º, nº 4 do CPC” [actual n.º 6 do art.º 607º].

Destarte e porque se está perante uma decisão interlocutória, que se insere no iter processual, relativamente à qual não há vencido nem vencedor, nem é possível considerar que alguma das partes tira proveito, as respectivas custas devem ser integradas no custo final da reclamação de créditos e, nessa medida, ficar a cargo daquele que a final for considerado vencido.

4. Decisão

Termos em que acordam os Juízes da 1ª Secção da Relação de Guimarães em:

a) Anular a decisão recorrida, a fim de, após junção aos autos de certidão das reclamações de créditos e documentos que as acompanham, com base nas quais o Sr. AI reconheceu os créditos impugnados, ser proferida nova sentença que, tendo por referência todos os factos relevantes alegados pelo recorrente e recorrida nas respectivas reclamações de créditos, impugnações de créditos e resposta a tais impugnações, discrimine os que estão provados e os que estão não provados e fundamente essa decisão, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art.º 607º do CPC;
b) Declarar prejudicado o conhecimento do objecto do recurso.

Custas da apelação pelo vencido a final.

Notifique-se.

*
Guimarães, 04/12/2025
(O presente acórdão é assinado electronicamente)

Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: José Alberto Martins Moreira Dias
                Maria João Marques Pinto de Matos