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EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
CRIME DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
DECURSO DO TEMPO
Sumário
I. O artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal não exige que se autonomize e se escalpelize a razão de decidir sobre cada facto, nem exige que em relação a cada meio de prova se descreva a dinâmica da sua produção em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível. II. O exame crítico das provas exigido pela lei mais não é do que uma imposição ao tribunal de indicar os motivos que determinaram a que formasse a convicção probatória num determinado sentido e não noutro, porque razão certas provas se mostraram mais credíveis do que outras, explicando num processo lógico e racional a sua decisão. III. O crime de abuso sexual de crianças, que integra o padrão de criminalidade especialmente violenta [cfr. artigo 1º, alínea l), do Código de Processo Penal], demanda, não só, acentuadas exigências de prevenção geral, mas também de prevenção especial, quando estamos perante um arguido que, pese embora sem antecedentes criminais e inserido familiarmente, repete os seus atos e não demonstra qualquer ato concreto de arrependimento. IV. O facto de os primeiros atos que integram a atividade criminosa terem ocorrido há cerca de 11 anos e o último há cerca de 5 anos, sem que haja notícia de, entretanto, o arguido ter adotado qualquer outro comportamento merecedor de censura, por si só, não pode ser considerado como indicador de o arguido ter arrepiado caminho da criminalidade e muito menos um fator capaz de desencadear uma atenuação especial da pena, ao abrigo do artigo 72.º, do Código Penal.
Texto Integral
Acordaram, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I- RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo supra identificado, a 13 de março de 2025, foi proferido acórdão condenatório, no que ora releva, com o seguinte dispositivo [transcrição]: “(…) Por todo o exposto, as Juízas que compõem este Tribunal Coletivo decidem: I. ABSOLVER o arguido AA da prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, agravados, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal; II. CONDENAR o arguido AA pela prática, em autoria material, de: - dois crimes de abuso sexual de crianças, agravados, p. e p. pelos artigos 171º, nºs 1 e 2, e 177º, n.º 1, b), do CP, na pena de 5 anos de prisão, por cada crime; - um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, nº 1, do CP, na pena de 18 meses de prisão (absolvendo-o da forma agravada, pelo artigo 177º, n.º 1, b) e c), por que vinha acusado); Em CÚMULO JURÍDICO, na PENA ÚNICA de 7 (sete) anos de prisão. III. Condenar o arguido na pena acessória, prevista no artigo 69º-B, nº 2, do CP, de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 7 (sete) anos e na pena acessória, prevista no artigo 69º-C, nº 2, do CP, de proibição de assumir a confiança de menor, a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 7 (sete) anos. IV. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e condenar o arguido/demandado a pagar à ofendida/demandante BB a quantia de 20.000,00Euros (vinte mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente decisão, absolvendo-o do mais peticionado. (…) ”. [sublinhado e negrito nossos].
I.2 Recurso da decisão
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]: “(…) 1. Por acórdão condenatório, proferido a fls … ds autos , foi a arguida AA condenado pela prática, em autoria material, de: - dois crimes de abuso sexual de crianças, agravados, p. e p. pelos artigos 171º, nºs 1 e 2, e 177º, n.º 1, b), do CP, na pena de 5 anos de prisão, por cada crime; - um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, nº 1, do CP, na pena de 18 meses de prisão (absolvendo-o da forma agravada, pelo artigo 177º, n.º 1, b) e c), por que vinha acusado); Em CÚMULO JURÍDICO, na PENA ÚNICA de 7 (sete) anos de prisão e, bem assim, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 7 (sete) anos e na pena acessória, prevista no artigo 69º-C, nº 2, do CP, de proibição de assumir a confiança de menor, a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 7 (sete) anos . 2. No essencial, o Tribunal a quo, baseou a sua convicção,essencialmente no depoimento da menor BB, fazendo-o, na perspetiva da defesa, de modo erróneo. Existem provas, juntas aos autos que, interpretadas de forma contextualizada e segundo as normas de experiência comum, quando confrontadas com alegados factos praticados, resultariam numa decisão oposta à proferida. 3.Para a condenação, no âmbito dos presentes autos, do arguido acima identificados e ora Apelante, e no que releva no presente Recurso, o Tribunal a quo motivou a sua decisão, maxime os factos dados como provados, nas declarações para memória futura da menor, apenas e só. 4. Entende a defesa da arguida que: a) Existe nulidade do acórdão, nos termos do n.º 1 do artigo 379 e n.º 2 do artigo 374 do Código de processo penal, por insuficiência no exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, porém, sem conceder, ou; b) Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto por contradição insanável entre a fundamentação e a fundamentação e a decisão, nos termos e para os efeitos da al. b) e c) do n.º 2 do artigo 410 do Código de processo penal, sem conceder, ou; c) Existe violação do princípio do in dúbio pro reo e do princípio de livre apreciação da prova por erro na apreciação da prova conforme artigo 127º e 412 n.º 3 ambos do Código de processo penal 5. Assim, da nulidade do acórdão nos termos do n.º 1 do artigo 379 e n.º 2 do artigo 374 do Código de processo penal, por insuficiência no exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. 6. as nulidades de sentença apesar de enumeradas taxativamente no artigo 379º do CPP podem sê-lo, em motivação de recurso para o tribunal superior, cfr. Assento do STJ 1/94 de 11/02/1994 e BMJ 432, pág. 167. 7. E são de conhecimento oficioso, cfr. Ac. TRP de 29/09/2004, Proc. N.º 0442419, Rel. António Gama. 8. Refere o n.º 2 do artigo 374 do CPP «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.» 9. A fundamentação das decisões dos tribunais tem guarida constitucional – cfr. Artigo 205 n.º 1 da CRP- e encontra, também expressão em diversos normativos do CPP, nomeadamente no artigo 374 n.º 2 e 379 n.º 1. 10. A fundamentação é o alicerce que legitima o acórdão e cumpre duas funções, a endoprocessual visando impor o julgador a verificação e o controle critico da lógica da decisão, permitindo às partes o recurso e ao tribunal superior a possibilidade de se exprimir com alguma segurança de modo igual ou divergente, e outra função a extraprocessual, que visa a transparência para fora dos autos sobre o processo e sobre a decisão (cfr. Página 1059 do manual Código de processo penal, notas e comentários de Vinício Ribeiro). 11. Não é necessário que o julgador exponha pormenorizada e completamente o raciocínio lógico que baseava a sua convicção de dar como provado certo facto, contudo, não pode a conclusão retirada, após aplicação do raciocínio lógico, ser desprovida de um certo rigor no iter lógico usado para se chegar a certa conclusão. O julgador, para chegar a determinada conclusão, quer para a absolvição quer para a condenação deve concretizar o raciocínio de modo a que qualquer homem médio, lendo-os, percecione, sem margem de duvida que o resultado de um certo acto é aquele resultado. 12. O legislador de 1998 alterou a redação do n.º 2 daquele artigo exigindo agora o “EXAME CRITICO” das provas, subsumidas aos factos que permita obter uma transparência no rigor utilizado para condenar alguém. É necessário a reconstituição do processo lógico-mental seguido pelo julgador. cfr. Página 1060 do Manual Código de processo penal, notas e comentários, de Vinício Ribeiro. 13. Nesse sentido o Ac. do TC., processo n.º 281/2005 de 6/07/2005, referia «Como é consabido (…) apesar do dever de fundamentação das decisões judiciais poder assumir, conforme os casos, uma certa geometria variável, o seu cumprimento só será efectivamente logrado quando permitir revelar às partes – e, bem assim, à comunidade globalmente considerada- o conhecimento das razões “justificativas” e ”justificantes” que subjazem ao concreto juízo decisório, devendo, para isso, revelar uma “sustentada aptidão comunicativa ou compreensividade” sustentada na exteriorização dos critérios normativos que presidem à sua resolução e do seu respectivo juízo de valoração de modo a comunicar, como condição de inteligibilidade, a intrínseca validade substancial do decidido. (…) Na indicação de provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não é suficiente a sentença referir, por exemplo, que se baseou nas declarações dos arguidos, nomeadamente quanto aos factos da sua vida pessoal e a alguns factos vertidos na pronuncia e nas respectivas contestações. E que «igualmente se baseou o Tribunal nos factos provados no depoimento prestado pelas testemunhas que foram inquiridas em sede de audiência e julgamento as quais neste particular desiderato depuseram com isenção.» Também não é suficiente para a indicação referida no n.º 2, a referência tão só aos meios de prova sem qualquer justificação porque se lhes deu crédito.» - cfr. Página 1060 e 1061 do Manual Código de processo penal, notas e comentários, de Vinício Ribeiro. 14. É necessário que um acórdão seja claro quanto ao iter lógico trilhado, apresentando-se então este como uma «peça coerente», fundada e à margem de um arbítrio discricionário. E sobretudo: a) Não infirmando de contradições ou lacunas de pensamento. B) Não violando as regras da experiência comum e do bom senso. C) que se imponha aos sujeitos processuais e à comunidade, ambos seus destinatários. 15. Da factualidade, vertida num facto, dado como provado (nº4), resultou na condenação do Arguido, cfr. Fls…. do Douto Acórdão: « pela prática, em autoria material, de: - dois crimes de abuso sexual de crianças, agravados, p. e p. pelos artigos 171º, nºs 1 e 2, e 177º, n.º 1, b), do CP, na pena de 5 anos de prisão, por cada crime; (ponto 4) dos factos provados);» 16. Contudo, nos factos não provados, concluíram os doutos julgadores como não que: « A. Nas circunstâncias aludidas em 4, o arguido aproximou-se e sentou-se no sofá e acariciou o rosto da ofendida, acordando-a. B. Depois puxou para cima a camisola que a ofendida envergava, deixo-lhe os seios desnudados, e de seguida apalpou o corpo da menor, incluindo a zona mamária; C. De seguida puxou para baixo a roupa da menor da cintura para baixo, incluindo as cuecas, deixando a menor desnudada na zona genital e nadegueira. » 17. Ora, como pode o Acórdão concluir que o arguido executou um acto sexual, configurável como crime ao ter introduzido um dedo no interior da sua vagina e efetuou, sucessivamente, movimentos ascendentes e descendentes com os dedos, se não é provado que o arguido puxou para baixo a roupa da menor da cintura para baixo, incluindo as cuecas, deixando a menor desnudada na zona genital e nadegueira? Para este acto sexual ser consumado é necessário expor certas e determinadas partes da fisionomia da mulher. Como poderia o arguido executar tais movimentos e consumar o acto sexual se a menor nao estava desnudada? Existe uma evidente e concreta contradição entre o facto dado como provado e como não provado, isto é, a execução do acto pelo arguido e a menor não estar despieda respetivamente. 18. Se é certo que nem todos os actos sexuais são executados da mesma forma, sendo que muitos nem necessitam que a roupa seja desnudada, quanto a este acto em si, não é possível que aconteça se pelo menos a menor não estiver despida. 19 Para além da evidente contradição dos factos provados e não provados, inexiste exame critico da prova que baseou a convicção do Tribunal quanto a este facto provado (que resulta numa condenação a pena de prisão efectiva!) 10. O julgador do Tribunal a quo, não faz um exame critico da prova que sustenta aquela condenação ao referir apenas: « Ora, este testemunho, não nos deixou dúvidas ou reservas quanto à sua sinceridade e autenticidade. Com efeito, a ofendida apresentou um discurso próprio e adequado à sua idade e imaturidade, num relato que se percebe distinto quando aborda distintas situações. Assim, e quanto ao episódio mais recente, a ofendida produziu um testemunho claro e circunstanciado ao passo que, quanto aos anteriores, assumiu uma postura mais ansiosa, revelando choro e nervosismo, num discurso mais apressado e resumido. Ora, afigura-se-nos que esta diferente postura apenas credibiliza o testemunho da BB. Com efeito, no início das suas declarações, a ofendida começou por recordar a situação mais recente, que descreveu de forma segura, por ser não apenas um episódio recente (e por isso, melhor memorizado) mas também por importar menor intrusão/gravidade; já quando questionada sobre situações anteriores, ocorridas quando tinha cerca de 4 anos, a BB altera-se, e passa a ter um relato choroso e mais “acelerado”, referindo-se-lhe, de forma emotiva, com poucos pormenores, dando conta dos toques (com os dedos do arguido) na sua vagina, um dos quais lhe provocou sangramento e uma ida ao hospital”, tal não configura, à luz dos preceitos constitucionais e do princípio de suficiência de prova, uma fundamentação clara e inequívoca de que o facto aconteceu, por ter iniciado de uma forma, ter sido executado de outra e portanto, ter chegado àquela conclusão. 11. Referir que uma criança de 4 anos disse, em algum momento certa e determinada coisa de forma espontânea, sincera e imparcial é um juízo conclusivo e não é suficiente para preencher a exigência que o normativo expresso no n.º 2 do artigo 374 do CPP exige, porquanto, não é sustentada em nenhuma outra justificação. Quase que demonstrando uma “sensação” que o Tribunal teve, mas porque mais nada existe, não se apresenta o raciocínio, refere apenas ter acontecido. 12. Mais, é suficiente o raciocínio que considera provado o facto 4)– condenando o arguido- e não considerar facto idêntico constante no facto A), B) e C) dados como não provados? (cgr fls….do douto acórdão). Ambos os factos são iguais, mas decide-se condenar por um e não por outro porque razão? 13. Não existe fundamentação, e não basta ter o tribunal a “intuição” de que algo aconteceu para que tal consubstancie e se materialize no princípio da livre apreciação da prova, cfr artigo 127 CPP. 14. Para além da evidente contradição dos factos provados e não provados, inexiste exame critico da prova que baseou a convicção do Tribunal quanto a este facto provado (que resulta numa condenação a pena de prisão efectiva!) 15. O julgador do Tribunal a quo, não faz um exame critico da prova que sustenta aquela condenação, 16. Padece por isso o Acórdão de nulidade, ainda, por dever de patrocínio, sem prescindir, 17. Da Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto por contradição insanável entre a fundamentação e a decisão nos termos e para os efeitos da al. b) do n.º 2 do artigo 410 do Código de processo penal: entende a Defesa da arguida que existem vícios, conforme o n.º 2 al. b) do artigo 410 do CPP, pois resulta do texto da decisão recorrida, conjugada com as regras de experiencia comum. 18. Os vícios que se invocam, estão consubstanciados: a) No facto 4 dado como provado e nos respectivos factos «A,B e C» dados como não provados; 19. No primeiro (facto 4) conclui-se, sem mais, pela pratica de dois crimes de abuso sexual de criança agravadaos, quando em contradição directa com tal certeza existem os factos A, B e C que referem que a menor não foi despida. Para se chegar à primeira conclusão, não poderiam ser considerados não provados aqueles outros factos. 20. Refere a Jurisprudência dos Tribunais superiores quanto a isto que: «Os vícios da sentença – qualquer deles- têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiencia comum, e ser de tal modo evidente que uma pessoa normalmente dotada os pode detectar.», ex vi, Ac. STJ de 23/10/1997, Proc. 97P318 do Rel. Dias Girão. E ainda referem ainda que: «(…) O Tribunal ad quem tem o poder-dever de fundar a boa decisão de direito numa boa decisão de facto, ou seja, numa decisão que não padeça de insuficiências, de contradições insanáveis da fundamentação ou de erros na apreciação da prova, vícios que podem impedir o tribunal de decidir a causa, hipótese que levará então ao reenvio total ou parcial do processo para novo julgamento.», ex vi, Ac. STJ de 21/02/2002, Proc. 368/02-5ª, Rel. Pereira Madeira. 21. Quanto ao vicio que consideramos existir no acórdão recorrido, constante na al. b do n.º 2 do artigo 410 do CPP: «O vicio da contradição insanável da fundamentação ou da fundamentação com a decisão, previsto na al. b) do n.º 2 do art. 410 do CPP, verifica-se quando, de acordo com um raciocínio lógico, por si só ou conjugado com a experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos de convicção do tribunal.» ex vi, Ac. STJ 26/02/2004 Proc. N.º 04P138, Rel. Pereira Madeira. 22. por tudo o supra exposto, deve ser o Arguido absolvido dos crimes, de abuso sexual de menorque lhe sao imputados. Contudo, se assim não entender, e sem conceder, 23.. Existe violação do princípio do in dúbio pro reo e do princípio de livre apreciação da prova por erro na apreciação da prova conforme artigo al. c) do n.º 2 artigo 410º, 127º e n.º 3 do 412, todos do Código de processo penal: sabe-se que é orientação comum na Jurisprudência que, o Tribunal de recurso, salvo casos de exceção, deve adoptar o Juízo valorativo formulado pelo Tribunal recorrido. 24. Contudo, não refere que não o possa fazer quando, a situação for de tal forma evidente que impere uma modificação da decisão recorrida, porquanto a livre apreciação da prova não equivale a prova arbitrária. Cfr. Artigos 127º e n.º 3 do 412, todos do Código de processo penal. 25. O Julgador não pode decidir como bem entende passando por cima de provas, ou da falta delas, como é o caso. «Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).» ex vi, página 345, nota ao artigo 127º do CPP, do Código de processo penal, notas e comentários de Vinício Ribeiro. 26. O limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, cfr. Artigo 127 do CPP, é o princípio do in dúbio pro reo, estando ambos intimamente ligados, impondo a orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos, mas para ser apreciada a violação tem de resultar dos próprios autos e termos da decisão recorrida. 27. Assim, conforma, dá conteúdo e legitima a sua aplicação – no âmbito dos poderes de livre apreciação de prova- a necessidade de concretização e explicitação objectiva e motivada do processo de convicção, de forma a ficar claro não só o acervo condenatório, mas também o processo lógico. Usando as regras da experiencia e da vida há necessidade de controlar a legalidade, impondo ao julgador alguma concretização do texto e da fundamentação. 28. No caso dos autos, decorre, segundo os parâmetros do homem médio, que há erro notório quando não se provam as als. «A,B e C» dos factos não provados, quanto ao facto provado 4. 29. No caso dos autos, o arguido é condenado, com base num depoimento único, da ofendida,á data menor de 4 anos de idade, sem sustentação de qualquer outra prova, acrescida de um evidente erro de apreciação na mesma, por desconformidade da decisão com as regras da experiencia. 30. Mais, entende o Tribunal a quo que o depoimento é “credível”, mas tal consideração é conclusiva e não fáctica porque não sustentada. Não basta alegar que alguém dá um depoimento de modo sério, é necessário que se explique porquê, mormente fazendo-o sustentando em outra prova, ou prova mais concreta. 31. Não é suficiente para condenar alguém, uma única declaração que não se sabe em que momento processual e de que forma foi proferida, sendo apenas declarada como “credível”, isto é, uma característica conclusiva sem mais. 32. Pois, se entende a jurisprudência dos Tribunais superiores que não pode ser atendível uma decisão que não aprecie criticamente a prova, explicando o seu iter lógico-racional, tão pouco pode proferir um acórdão condenatório se as contradições forem insanáveis entre factualidades e sem uma prova forte que sustente o alegado. Como se demonstra no caso concreto. 33. A existência de um depoimento apenas, da vítima, que em razão da idade tem uma linguagem pouco desenvolvida e explícita, não pode ser prova suficiente, nem bastante, para obter, por si só, uma condenação, em cúmulo jurídico de 7 anos de pena de prisão efetiva. Careceria esta prova ser sustentada por outra, que colocasse o arguido no local e explicasse o raciocínio logico que levou o julgador a considerar que os comportamentos que aquela adotou (ou não) consubstanciavam prova bastante de uma condenação. 34. É de uma enorme incerteza, querendo, quer extra processual, criar o Tribunal a quo uma convicção apenas e tão só quanto a declarações não contextualizadas e identificadas quanto ao meio processual. 35. Se é verdade que para proferir acusação se bastam na existência de indícios suficientes, já assim não é para condenar alguém, o juízo que decorre dessa condenação tem de ter uma absoluta certeza de que o facto foi praticado, enquadrando o tempo, modo e lugar em que se cometeu o ilícito. 36. Em ambos os crimes tais circunstâncias não foram apuradas ,pelo que o Tribunal nunca poderia chegar à conclusão de terem sido cometidos, por inexistência de prova suficiente e erro na valoração da prova. E, ai, in dúbio pro reo. 37. Assim, na perspetiva a defesa do arguido, o douto acórdão, ora recorrido, padece de contradição erro na valoração da prova e de uma clara violação do princípio do In dúbio pro Reo e de uma violação dos limites do princípio da livre apreciação da prova. 38 - De acordo com a prova produzida em audiência de julgamento, a mesma, não permite ao tribunal a quo concluir que o arguido tenha praticado qualquer crime. 39 - O douto acórdão recorrido vai mais longe: em cúmulo jurídico condenou o arguido na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão efetiva. 40- O Tribunal a quo não fez quaisquer considerandos nem fundamentou minimamente a aplicação da pena na medida em que atentou o, suposto número de crimes, isto é, dois, mostra-se desadequado e exagerada a fixação de sete anos de prisão efetiva. 41 - Ora, a aplicação da pena mais gravosa, pena limitativa da liberdade do arguido, não se mostra adequada e ajusta ao suposto número de crimes cometidos. 42- Uma vez mais o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 71º do Código Penal, doseando descriteriosamente a medida da pena concretamente aplicável, abstendo-se de tecer quaisquer considerações que fundamentem minimamente a sua decisão. 43- O arguido está inserido social e familiarmente, usufruindo de modesta condição social e cultural. 44- Pelo exposto, mostra-se exagerada a pena aplicada, e em caso de não merecer provimento a reapreciação da prova, absolvendo-se o arguido, deve a mesma ser reduzida ou eventualmente ser-lhe aplicada a suspensão mediante a execução de injunções. 45 - Assim, de toda a prova resulta que não ficou claro que o arguido tenha efetuado os factos dados como provados na sentença. 46- Mesmo, e por mero caso académico, se se considerar os crimes provados, afigura-se-nos que a pena é demasiado elevada, se tivermos em consideração o facto de o registo criminal do arguido não conter qualquer registo de condenações e não haver agravantes que se nos afigurem de relevo. 47- Por último, a condenação do arguido ao pagamento de 20.000,00 euros à pretensa vítima parece-nos, antes de mais, que não está devidamente fundamentada. Pois em sítio nenhum a ofendida fez prova dos danos que teve. 48- Não são referidas na douta sentença quais as particulares exigências de proteção da vítima que dão base a esta reparação. 49 - Mesmo que se admitisse a condenação, seria sempre um valor exagerado considerando as condições sócio-económicas do arguido, já que o não possui quaisquer bens ou rendimentos certos, e não tem meios de proceder a tal pagamento. 50 - Em consequência destas violações, o Apelante foi erradamente condenado, por factos que não cometera. 51 - Pelo que antecede, foram violados no douto Acórdão recorrido, entre outros, os seguintes preceitos: artigos 48.º, 70.º, 71.º, 72º e 73º do Código Penal e 410º-2. b) do CPP, pelo que o mesmo deve ser revogado na parte em que condena o recorrente em prisão efectiva». 52. Por tudo o supra exposto, importa modificar douto acórdão ora recorrido, por outro que absolva a arguida quantos aos crimes de abuso sexual de criança agravado, em autoria material, p. e p. nos artigos 171/1, 177/1 al. a) e 179 al. a) todos do C.P., e como cúmplice, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. nos artigos 171/1, 177/1 al. a) e 179 al. a) todos do C.P. 53. Termos são os expostos, em que se impõe a modificação da decisão recorrida sobre a matéria de facto, tal como dispõe o artigo 431.º do CPP,» 54. As penas parcelares impostas ao ora recorrente são excessivas e devem ser reduzidas para medidas que se aproximam dos respectivos limites mínimos. 55- A pena única resultante do cúmulo jurídico deverá, consequentemente, ser reformada e substancialmente reduzida. 56ª- Foram, assim, violados os artigos 71º do Código Penal, 34º, n.º 1, 35º, ambos do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/01, assim como foi desrespeitado o disposto no artigo 30º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA! (…)”.
I.3 Resposta ao recurso
Efetuada a legal notificação, a Ex.mª Sr.ª Procuradora da República junto da 1.ª instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência[1].
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Ex.ma Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentado parecer no sentido da parcial procedência do recurso, no que respeita à medida da pena e, consequentemente, quanto à sua suspensão, nos termos e pelos fundamentos que aqui se transcrevem: “…Desta exposição, torna-se evidente que o Tribunal a quo, na determinação das penas, contráriamente ao alegado, levou em linha de conta todos os elementos atendíveis para a graduação da pena em função dos parâmetros legais aplicáveis ( art.ºs 40.º, 71.º e 72.º do Código Penal), atendendo à manifesta gravidade da actuação do recorrente, à sua personalidade e todas as circunstâncias atenuativas e agravativas da pena, sem olvidar, como lhe era exigível, as exigências de prevenção geral e especial a salvaguadar. Não obstante, salvo melhor opinião, justificar-se-ia, no caso, dar maior relevância ao decurso do tempo, principalmente por referência aos actos mais gravosos inerentes aos dois crimes de abuso sexual de crianças agravados, previstos pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal ( constantes do facto provado n.º 4 ), que distam cerca de 11 anos e, quanto ao crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal, cerca de 5 anos. Tal circunstância, aliada ao facto de o arguido ser delinquente primário e se encontrar integrado socio-familiarmente, levam-nos a admitir, como adequado e razoável, a redução das penas aplicadas quanto aos crimes agravados para a pena de 4 anos e 6 meses cada um e, para o crime na sua forma simples, a pena de 1 ano e 2 meses de prisão. Por outro lado, como decorre do art.º 77.º 1 do Código Penal, “ Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.” A pena única a aplicar ao arguido, adequada à culpa e atendendo às exigências de protecção do bem jurídico tutelado, deverá ainda considerar a sua reintegração social. Como é evidente, os crimes cometidos reclamam um forte juízo de censura pela forma indiferente e desrespeitosa do recorrente pelo livre desenvolvimento da personalidade sexual da BB, sujeitando-a aos seus instintos lascivos e libidinosos, com especial censurabilidade em relação às duas situações comprovadas no facto n.º 4, tendo-se aproveitado o arguido da sua inocência e imaturidade sexual. Como circunstâncias agravantes, releva-se o facto de o arguido não manifestar arrependimento nem demonstrar que interiorizou o desvalor da sua conduta. A seu favor, para além da aludida distância temporal, deverá relevar-se a ausência de antecedentes criminais e a citada integração socio-familiar e profissional. Assim, sopesando em conjunto a gravidade da actuação do arguido, a sua personalidade e o comportamento anterior e posterior aos factos, numa moldura de 4 anos e 6 meses a 10 anos e 2 meses de prisão e tendo por referência as penas aplicadas em casos similares afigura-se-nos ajustada a pena única de 5 anos de prisão. Caso o Tribunal decida reduzir as penas nestes moldes, deverá, ao abrigo do art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal, equacionar se a suspensão da execução da pena assegurará adequada e suficientemente a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na comunidade, ou seja, as finalidades da punição, previstas no n.º1 do artigo 40º do Código Penal. Não obstante a ( evidente ) gravidade dos crimes cometidos pelo arguido e todas as considerações tecidas pelo Tribunal a quo sobre a sua postura perante o mesmo, não nos repugna aceitar a eventual suspensão da execução da pena, ante a circunstância de o arguido ser delinquente primário, de se encontrar inserido socio-familiar e profissionalmente e os factos terem decorrido há cerca de 11 e 5 anos como sublinhado. Todas estas particulares circunstâncias, bem como o facto de se tratar da primeira vez que o arguido se confronta com o sistema de administração de justiça, permitem, salvo melhor opinião, perspectivar um juízo de prognose favorável, devendo dar-se a oportunidade ao arguido de, futuramente, conduzir a sua vida de modo socialmente responsável e de acordo com a lei, conquanto tal suspensão seja decretada mediante o cumprimento de particulares condições. Pelo que, caso assim venha a ser considerado, afigura-se-nos adequado sujeitar o arguido a um regime de prova ( art.º 53.º do Código Penal), assente num plano de reinserção social e impor-se-lhe a obrigação de, entre outras medidas, frequentar um programa de intervenção técnica dirigido a agressores sexuais e de efectuar visitas a um Estabelecimento Prisional de forma a consciencializa-lo a afastar-se da prática de qualquer ilícito criminal. (…)”.
I.5. Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.
I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[2]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[3].
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, importa apreciar e decidir as seguintes questões:
® Nulidade do acórdão recorrido, nos termos do n.º 1, do artigo 379.º e n.º 2 do artigo 374.º do Código de processo penal, por insuficiência no exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal;
® Impugnação restrita da matéria de facto: Vícios decisórios ínsitos no artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal;
® Impugnação ampla da matéria de facto, ao abrigo do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal[alegada violação do princípio in dubio pro reo e do princípio da livre apreciação da prova ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal];
® Medida da pena/sua suspensão;
® Pedido de indemnização civil/seu montante.
II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]: “ (…) O arguido apresentou contestação, negando a prática dos factos que lhe são imputados; arrolou uma testemunha (cfr. fls. 242), a que posteriormente aditou uma outra (cfr. fls. 245).
*
FUNDAMENTAÇÃO
Factos provados Discutida a causa e com interesse para a sua justa decisão, resultou provada a seguinte matéria de facto: 1. BB nasceu no dia ../../2008, é filha de CC e de DD. 2. O arguido nasceu no dia ../../1973; e em 19 de agosto de 2006, contraiu casamento com a irmã da avó da ofendida, EE, sendo tio-avô materno da ofendida e, em virtude de tal relação familiar, tinha uma relação de confiança com aquela. 3. No período entre meados de maio/junho de 2013 e março/abril de 2014, a ofendida costumava encontrar-se na habitação dos seus bisavós, sita no lugar ..., ..., em .... 4. No aludido período de maio/junho de 2013 e março/abril de 2014, em horas e datas não concretamente apuradas, na habitação referida em 3, em pelo menos duas ocasiões, numa das quais quando a menor estava a dormir no sofá da sala, o arguido aproximou-se da menor, introduziu um dedo no interior da sua vagina e efetuou, sucessivamente, movimentos ascendentes e descendentes com os dedos, provocando-lhe dores. 5. Depois do sucedido, a ofendida evitou estar só com o arguido, procurando sempre estar acompanhada por outra pessoa, com medo de que este voltasse a praticar atos semelhantes aos descritos. 6. Não obstante, no dia 23 de maio de 2020, pelas 18:00 horas, junto à habitação da bisavó materna da ofendida, sita no lugar ..., ..., em ..., a ofendida estava sentada no banco da frente, no lugar do pendura, do veículo automóvel da sua mãe, e o seu irmão sentado no banco de trás, na cadeira auto, e as janelas da viatura estavam abertas. 7. Nessa ocasião o arguido aproximou-se do veículo e debruçou-se sobre a janela do veículo do lado onde estava sentada a ofendida, vestindo uns calções e uma camisola. 8. Seguidamente, com uma das mãos apalpou a zona genital da ofendida, por cima dos calções. 9. Nesse momento a ofendida afastou a mão do arguido e quando se preparava para sair do interior do carro, o arguido trancou-lhe a porta, impedindo a mesma de sair. 10. Em todas as ocasiões o arguido disse à ofendida para não contar a ninguém, incluindo a mãe da menor, porque se o fizesse algo de mal lhe aconteceria. 11. Como consequência das condutas do arguido acima descritas, a ofendida sofreu e, ainda, sofre, de depressão e ansiedade. 12. O arguido sabia que a ofendida à data da prática dos factos, tinha menos de 12 anos de idade, sem experiência e maturidade para se determinar sexualmente, sabia que ao agir da forma descrita prejudicava o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade desta, com reflexos na esfera sexual da personalidade da mesma, quis aproveitar-se da relação familiar e do ascendente que tinha sobre a menor, bem como aproveitar-se da confiança que beneficiava junto dos bisavós, avós e mãe da menor, e que o possibilitava estar sozinho com a ofendida; quis aproveitar-se da inexperiência sexual da ofendida; quis e conseguiu praticar os atos descritos, mormente atos sexuais de relevo com a menor, a fim de satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais, ofendendo assim o sentimento de criança, de inocência, de modéstia e de vergonha desta, bem como a sua integridade física e psicológica. 13. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que tal conduta era proibida e punida pela lei penal. Mais se provou que: 14. Após uma das ocasiões referidas em 4, por se queixar de dores ao urinar e ter sangue nas cuecas, a ofendida foi levada ao serviço de urgência tendo-lhe sido detetada uma infeção urinária. 15. No período aludido em 3 e 4, a mãe da ofendida estava emigrada no estrangeiro. 16. Submetida a perícia de natureza sexual realizada em 25.05.2020, apurou-se, “a nível da região genital e peri-genital” da ofendida, que esta “é impúbere e apresenta um desenvolvimento físico e sexual compatível com a idade real.”; realizado exame na posição ginecológica, concluiu-se que: “não se observavam vestígios de agressão física; não se observaram vestígios compatíveis com a suspeita agressão sexual. Os vestígios físicos atrás referidos são compatíveis com infecção genital por cândida albicans; Não se observaram vestígios não biológicos relacionados com a suspeita agressão sexual”; concluindo-se “Analisando a informação relativa à ocorrência em estudo, antes descrita na “História do Evento”, e às características do exame objetivo efetuado e acima descrito, pode considerar-se que a compatibilidade entre a informação prestada e o exame efetuado, é possível mas não demonstrável.” 17. Realizada, em 06.01.2022, a avaliação psicológica forense à ofendida, a Exm.ª perita considerou que o seu relato, “no que concerne a validade”, apresentou “consistência interna (coerência num mesmo testemunho), consistência inter-declarações (consistência entre a informação central entre informantes), consistência entre relatos (coerência global ao longo das diferentes sessões de avaliação) e persistência das declarações (ao longo do tempo e entre contextos).” 18. Na mesma avaliação, foi observado, “no que concerne à credibilidade do seu relato”, “um número significativo de características habitualmente presentes em relatos credíveis. (…) a narrativa apresentou uma estrutura lógica (…) havendo enquadramento temporal e contextual dos eventos com as suas atividades rotineiras, bem como referências aos antecedentes e aos acontecimentos posteriores aos alegados episódios. (…) o relato da jovem apresentou-se espontâneo e estruturado, incluiu detalhes sensoriais e referências a reações e verbalizações do alegado ofensor e a indução de segredo pelo mesmo”. 19. Sobre a possibilidade de “eventuais processos que pudessem contaminar a credibilidade do testemunho”, a perícia apurou que “não nos parece que estejam presentes distorções significativas de memória ou indicação de eventual mentira da autoria da menor ou induzida por terceiros, sendo de realçar que o discurso produzido por BB se apresenta espontâneo e coerente e inclui um número significativo de detalhes, elementos usualmente associados a relatos credíveis (…)” 20. Na mesma perícia, apurou-se, “relativamente à condição psicológica da BB” “que esta evidencia sintomatologia ansiosa e depressiva clinicamente significativa, a qual se revela compatível com a sintomatologia tipicamente apresentada por vítimas de crimes desta natureza. (…)” Pedido de indemnização civil: 21. Os factos praticados pelo arguido provocaram na ofendida indignação, perturbação e inquietação. 22. Em virtude dos factos praticados pelo arguido, a ofendida sentiu-se triste, humilhada e envergonhada; passou a isolar-se mais, com dificuldade em relacionar-se e interagir com pessoas; 23. A ofendida passou a ter dificuldades em adormecer, tem insónias e pesadelos; sente-se nervosa, angustiada e depressiva, com dificuldades de concentração no estudo. 24. A ofendida sente receio e ansiedade em cruzar-se com o arguido. 25. Depois dos factos, a ofendida tornou-se pessoa triste, receosa, introvertida e com baixa autoestima, com dificuldades em relacionar-se com outras pessoas, principalmente do sexo masculino. 26. A ofendida está a ser acompanhada em consultas de psicologia e psiquiatria; faz medicação para a ansiedade. Dos antecedentes e condições pessoais do arguido: 27. Do certificado de registo criminal do arguido não consta averbada qualquer condenação. 28. O arguido é oriundo de uma família de agricultores, com onze filhos; o arguido abandonou a escola sem adquirir competências básicas de leitura e escrita; trabalhou na agricultura até aos 18 anos, depois numa empresa de cerâmica e, após anos de desemprego, passou a trabalhar na construção civil, onde se mantém. 29. O arguido é casado, não tem filhos; à data dos factos, o arguido vivia com a esposa, com quem está casado há cerca de 20 anos, únicos elementos do agregado, em casa arrendada, com precárias condições de habitabilidade, inserida em meio rural e situada próxima da casa dos sogros e familiares da ofendida. 30. Desde há 3 anos, o arguido vive sozinho, na sequência da institucionalização da esposa na Santa Casa da Misericórdia ..., num quadro demencial grave que a tornou dependente de terceiros. 31. O arguido trabalha na construção civil, aufere o salário mínimo nacional; ocupa os tempos livres com trabalhos agrícolas. Factos não provados Não ficaram por provar quaisquer outros factos, designadamente que: A. Nas circunstâncias aludidas em 4, o arguido aproximou-se e sentou-se no sofá e acariciou o rosto da ofendida, acordando-a. B. Depois puxou para cima a camisola que a ofendida envergava, deixo-lhe os seios desnudados, e de seguida apalpou o corpo da menor, incluindo a zona mamária; C. De seguida puxou para baixo a roupa da menor da cintura para baixo, incluindo as cuecas, deixando a menor desnudada na zona genital e nadegueira. D. Em horas e datas não concretamente apuradas, em pelo menos duas ocasiões, situadas entre meados de maio/junho de 2013 e março/abril de 2014, no interior da garagem da habitação da sua tia FF, sita na Rua ..., ..., em ..., a ofendida estava a brincar com os seus primos, GG e HH. E. Nessa ocasião, o arguido dirigiu-se à garagem e os primos da menor saíram para o exterior. F. Quando a ofendida estava a sair do interior da garagem, o arguido colocou um braço à frente do corpo da menor, impedindo-a de sair. G. Após, apalpou, por cima da roupa que a menor trajava, a zona mamária desta. H. Nas circunstâncias aludidas em 8, o arguido fez pressão com os dedos sobre a vulva da ofendida, causando-lhe dores. MOTIVAÇÃO de facto
A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º, do CPP), sempre no confronto com as regras gerais da experiência e da norma do artigo 127º, do mesmo diploma legal, que estabelece o princípio da livre apreciação da prova. Desde logo, tendo renunciado ao seu direito ao silêncio, o arguido entendeu produzir declarações em que se limitou a negar os factos, em termos que, como melhor explicaremos adiante, nos não convenceram. Assim, o arguido referiu que sempre morou em Santo António, ao lado da casa onde, em tempos, a (ofendida) BB viveu com a mãe e o padrasto. O arguido descreveu então as suas rotinas, referindo que, no fim do trabalho, ia sempre para a casa do sogro trabalhar, negando ter estado alguma vez com a menina ou com a mãe desta. Confirmou que a mãe da BB esteve emigrada num período em que a filha ficou com a avó, em casa do seu sogro (com o que se assentou o facto n.º 15). Negando qualquer das situações referidas na acusação, o arguido aludiu a um episódio em que, quando estava com a sua mulher, deu € 5,00 ao irmão da BB, que ali estava sozinho, quando tinha talvez dois anos de idade. De acordo com o arguido, nesse mesmo dia, a mãe da BB, DD, foi à casa do sogro e começou a dizer “umas coisas” de que não gostou, que tinha apalpado a menina pelo que, nas suas palavras, “virou costas” e foi-se embora, porque “não estava para se chatear”. A partir deste episódio, deixou de ir àquela casa. Confrontando com o relato da ofendida, alegou o arguido que ela terá feito queixa dele “por raiva”, para se vingar por ele ter dado dinheiro ao irmão e não a ela. Negados os factos pelo arguido, e dadas as circunstâncias em que os mesmos terão ocorrido – sem a presença de outras testemunhas -, assumiu, como sempre assume, especial relevância o testemunho da vítima, a pequena BB, anteriormente ouvida em sede declarações para memória futura, transcritas a fls. 176 e ss e a que aqui atendemos (ao abrigo da disciplina dos artigos 355.º e 356.º, n. º 2, a), do CPP e em conformidade com o entendimento expresso no AFJ do STJ de 11.10.2017). Ouvida, a menina começou por recordar o dia em que estava “no rio” com a mãe e o irmão quando, a pedido de um tio (II), voltaram a casa dos bisavós onde a mãe entrou e ela ficou com o irmão, no carro, no banco da frente, a jogar no telemóvel, quando o arguido apareceu e a surpreendeu, metendo a mão pela janela aberta, “a apalpar-me”, esclarecendo que “chegou a encostar” na vagina, por cima da roupa, mas “eu dei-lhe um murro”; de seguida, tentou a abrir a porta, mas ele impediu-a, empurrando-a. Entretanto chegou a mãe e o tio, a quem não contou nada, apenas no dia seguinte quando “iam ao chinês” (referindo-se à loja chinesa). Descreveu a roupa que vestia e, perguntada sobre se o arguido fez força, esclareceu “nesse dia não”, o que levou a que fosse questionada sobre outras situações. Então, num discurso emotivo e choroso, recordou o que lhe sucedeu quando tinha 4 anos e vivia com a avó, por a mãe ter ido para a .... Explicou então que, quando a avó ia trabalhar para a casa da mãe dela (sua bisavó), ficava em casa com os primos e, por várias vezes, aparecia o arguido que mandava os primos saírem e “introduzia o dedo” na sua vagina; mais disse que, noutro dia, mais tarde, quando estava a dormir na sala e os primos estavam a jogar futebol lá fora, ele introduziu-lhe os dedos e “começou a botar sangue”; nesse mesmo dia, à noite, teve dores e a avó levou-a ao hospital onde lhe disseram que tinha uma infeção. Perguntada, explicou que isto aconteceu ainda várias vezes, quando o arguido chegava do trabalho e as tias estavam “nos campos”; aconteceu dos 4 até aos 8 anos, até que foi viver com a mãe para .... Afirmou que nunca contou o sucedido a ninguém, até ocorrer a última situação, em 2020, porque o arguido lhe dizia que se contasse à mãe “lhe acontecia alguma coisa”. Perguntada, identificou de forma clara o arguido: o “tio AA, casado com uma irmã da avó”. Sobre o número de vezes em que os toques aconteciam, admitiu que “não tenho a certeza”. Ora, este testemunho, que foi objeto de avaliação pericial – que conclui pela respetiva credibilidade (cfr. factos n.ºs 17 a 20) -, não nos deixou dúvidas ou reservas quanto à sua sinceridade e autenticidade. Com efeito, a ofendida apresentou um discurso próprio e adequado à sua idade e imaturidade, num relato que se percebe distinto quando aborda distintas situações. Assim, e quanto ao episódio mais recente, a ofendida produziu um testemunho claro e circunstanciado ao passo que, quanto aos anteriores, assumiu uma postura mais ansiosa, revelando choro e nervosismo, num discurso mais apressado e resumido. Ora, afigura-se-nos que esta diferente postura apenas credibiliza o testemunho da BB. Com efeito, no início das suas declarações, a ofendida começou por recordar a situação mais recente, que descreveu de forma segura, por ser não apenas um episódio recente (e por isso, melhor memorizado) mas também por importar menor intrusão/gravidade; já quando questionada sobre situações anteriores, ocorridas quando tinha cerca de 4 anos, a BB altera-se, e passa a ter um relato choroso e mais “acelerado”, referindo-se-lhe, de forma emotiva, com poucos pormenores, dando conta dos toques (com os dedos do arguido) na sua vagina, um dos quais lhe provocou sangramento e uma ida ao hospital. Ora, compreende-se que, volvidos 8 ou 9 anos, a criança apenas retenha o que de mais marcante lhe sucedeu numa altura em que não tinha capacidade para entender ou interpretar os atos que relata de forma apressada, para assim rapidamente terminar a tarefa que lhe causa sofrimento; fê-lo aludindo aos toques mais violentos, referindo sem hesitação o período em que ocorreram (por referência à ausência da mãe, emigrada em trabalho) e identificando sem dúvida o seu autor. A genuinidade do testemunho resulta, ainda, da forma simples como a BB se admitiu incapaz de enumerar os diversos ataques que sofreu, donde se extrai a ausência de motivação vingativa ou interesseira (para o que seria fácil dizer/asseverar que foram dez ou vinte os momentos em causa, exagerando/agravando os pormenores da sua descrição). Exigir de uma adolescente o relato preciso de factos que aconteceram quando tinha 4 ou 5 anos é encargo inaceitável, tanto assim que temos por certo que, acaso a BB produzisse a esse respeito um testemunho claro e perfeitamente circunstanciado, o parecer pericial daria nota de sinais indicadores de distorções de memória ou de indução de mentira que, inevitavelmente, contaminariam a sua credibilidade. Acresce que destas declarações da ofendida não consta a alusão a qualquer facto ocorrido no interior da garagem, matéria que, por isso, redundou não provada. É certo que se depreende do relato da vítima que terão sido várias outras as situações em que foi tocada pelo arguido, porventura as que se descrevem na acusação e a que a menina terá aludido em outros momentos, designadamente perante a perita que a ouviu, talvez com um outro tempo e outro modo de inquirição. Porém, a prova que temos é a que resulta das suas declarações prestadas perante Juiz de instrução criminal, as quais, nessa medida e com esse alcance, valoramos e credibilizamos para, com base nelas (mas não só, como veremos de seguida), dar por assente a factualidade nos termos dados por provados. A prova, no entanto, não se limitou à palavra do arguido e da ofendida já que outros testemunhos se produziram que contrariam uma e corroboram outra. Assim, desde logo, DD, mãe da ofendida, sobrinha do arguido (porque casado com uma irmã da sua mãe) que, apesar desta qualidade, produziu um testemunho claro e credível. Começando por aludir ao hábito do passado de, ao fim de semana, ir a casa dos avós com a BB, onde costumava encontrar o arguido, explicou que, entre março de 2013 e março de 2014, esteve emigrada pelo que deixou a BB (então com 4 ou 5 anos) com a sua mãe que, por sua vez, costumava passar o dia em casa dos seus pais (bisavós da menina), onde a menina por isso também ficava. Depois disto, a testemunha recordou o dia, já em 2020, em que estava no rio com os filhos - a BB e o Leandro (então com 2 anos) – e o seu tio II lhe pediu para o levar a farmácia, pelo que foi buscá-lo a casa dos avós, em ..., por volta das 17 horas; aí chegada, enquanto a testemunha entrou para ir à casa de banho, os filhos ficaram no carro, estando o arguido a cerca de 2 ou 3 metros da viatura, a acatar lenha. Quando, minutos depois, voltou ao carro a testemunha achou a filha “estranha”, “agressiva”, mas como lhe disse que estava bem, seguiram para a farmácia. Só no dia seguinte, quando iam os quatro (a testemunha, o companheiro e os filhos) à loja dos chineses, a filha lhe disse ao ouvido que queria contar uma coisa: relatou então que o arguido, no dia anterior, meteu o braço pela janela, apertou-a por cima dos calções e fechou-lhe a porta do carro, estando o irmão no banco de trás a tentar defende-la. Disse a testemunha que, daqui, foi direta confrontar o arguido que negou os factos. Reafirmou ter visto, no dia anterior e junto ao seu carro, o arguido sozinho, já que a mulher estava junto das cabritas. Perguntada, admitiu que o arguido, em dia que não sabe precisar, deu uma nota de € 5,00 ao filho, o que até mereceu reprovação da sua esposa que disse “não é justo dares a um e não dares ao outro”. Depois disto, a testemunha apresentou queixa na GNR e acompanhou a filha no exame no INML. A testemunha explicou então como teve conhecimento do sucedido com a filha no período em que esteve emigrada: por volta do Natal desse ano 2020 (já depois do fim do 1º período e conhecidas as avaliações escolares da filha), a BB mostrava-se muito revoltada, com más notas, pelo que retirou-lhe o telemóvel; em reação ao castigo, a menina disse-lhe “sabes porque é que estou assim?” e começou a contar-lhe o sucedido, quando ela estava na ...: contou os abusos quando estava a fazer a sesta e os ocorridos na garagem, onde estava com os primos. Desta altura, a testemunha recordou ainda a vez em que a sua mãe lhe telefonou e contou que levou a BB às urgências por ter muitas dores “nas partes íntimas” e dificuldade em urinar o que, na altura, não valorizou, mas agora entende como resultado de um dos toques do arguido. Ora, embora sem presenciar os factos – circunstância que não omitiu nem escamoteou – este relato corrobora a versão da ofendida, credibilizando-a: esta testemunha confirma as circunstâncias do toque ocorrido dentro do carro e bem assim a mudança de comportamento que, nessa altura, viu na filha que, a medo e com embaraço, ganhou coragem para lhe contar o sucedido, ainda que “ao ouvido”. Por outro lado, a testemunha aludiu ao confronto com o arguido (o que este admitiu ter acontecido a propósito de ter apalpado a menina) e confirmou a oferta de € 5,00 ao seu filho, assim confirmando a presença dele junto das crianças, ainda que em termos diferentes dos por ele relatados. Já quanto aos episódios vividos pela filha quando estava ao cuidado da avó, a testemunha foi também totalmente credível, sem empolamentos ou exageros: explicou como a revelação lhe foi feita, em termos que facilmente se compreendem, dada a situação psicológica que se apurou na menina, à data. Nesta matéria, a atender também para efeitos de pedido cível, a testemunha foi clara ao descrever as crises de ansiedade da filha, que motivaram múltiplas chamadas à escola onde, depois de ter apresentado queixa, o arguido começou a aparecer, pelo menos uma vez por semana. Esta presença do arguido espoletou várias crises epiléticas na filha que, apesar de estar a ser seguida em psicologia e psiquiatria e a fazer medicação para a ansiedade, ainda agora tem pesadelos com o arguido, mostrando-se muito perturbada, com baixo rendimento escolar, poucos amigos e triste. Fica assim traçado o quadro mental que levou a ofendida a, ao fim de vários anos de silêncio, finalmente relatar o que lhe tinha sucedido: com 12 anos e um aproveitamento escolar que começa a refletir a sua revolta e mal-estar, a adolescente, punida pela mãe, “explode” e conta tudo o que a vem atormentando e cuja gravidade porventura só agora começou a compreender. O estado psicológico da ofendida, pericialmente fixado, apresenta-se com evidente causalidade adequada em face dos relatados episódios traumáticos, por si efetivamente vivenciados; uma mentira ou efabulação não seriam causa da sintomatologia ansiosa e depressiva clinicamente significativa ou, até, das reações físicas que manifesta à presença do arguido, a que a testemunha JJ faria alusão. Não nos quedaram dúvidas, pois, quanto à autenticidade dos relatos de uma e outra em que, por isso, nos baseamos para dar por provados os factos sob os n.ºs 3 a 11, 14, 15, 21 a 26. Também a testemunha EE, avó materna da BB e cunhada do arguido, sem ter presenciado qualquer facto, produziu um testemunho que corroborou a versão da ofendida. Assim, com um evidente sentimento de culpa, começou logo por afirmar que “a menina nunca me contou nada”, para, de seguida, confirmar que, entre 2013 e 2014, teve a neta confiada aos seus cuidados, por a filha ter emigrado. Explicou, depois, que levava sempre a menina quando ia para casa dos seus pais, onde a costumava deixar no sofá a descansar quando saía para o campo. Recordou uma vez que a neta se queixou de “dores a fazer xixi” tendo visto sangue nas cuequinhas, pelo que a levou ao Centro de Saúde, onde o médico a medicou. Repetidamente, a testemunha afirmou que “nunca soube de nada”, “ela nunca contou nada”, embora admitindo que houve uma altura que a neta mudou de comportamento, por estar nervosa e revoltada, “ela até se virava a mim”. Finalmente, a testemunha confirmou que o arguido frequentava a casa dos seus pais (assim corroborando a versão da ofendida quando ali situa os abusos ocorridos em 2013 ou 2014) e não havia qualquer problema entre ele e a filha ou a neta; tendo deixado de frequentar a casa após a última situação, em que foi confrontado pela filha. Por último, JJ, amiga da ofendida que conhece desde que nasceu, produziu um testemunho que, ainda que indireto, se mostrou relevante, na medida em que credibilizou o relato da menina e da sua mãe. Assim, explicou que, há 3 ou 4 anos, estando a mãe da BB (sua prima afastada) em risco de ser despedida – por estar sempre a ser chamada à escola por causa das crises da filha -, ofereceu-se como contacto de urgência da BB, uma vez que, à data, estava desempregada. Relatou então que, nessa qualidade, foi repetidas vezes, algumas na mesma semana, chamada ao ciclo por causa das crises de ansiedade da menina que desmaiava, “espumava-se pela boca”, revirava os olhos, sendo sempre conduzida pelo INEM ao hospital com a testemunha a acompanhar. Por causa disto, sabe (porque tinha de informar aos médicos) a medicação que a BB tomava. A testemunha explicou, depois, como a BB “desabafou” consigo: a chorar muito, contou-lhe o que lhe aconteceu quando era pequenina, a mãe estava no estrangeiro e vivia com a avó, e um tio lhe fez toques que descreveu. De acordo com a testemunha, só mais recentemente, há dois anos (por referência à noitada da festa da freguesia ..., em abril de 2023), é que ficou a saber quem era o homem de quem a BB falava: estando ambas na festa, a dado momento, a BB disse-lhe baixinho e apontou-lhe “a tal pessoa que abusou dela”; ao ver o arguido, a BB ficou muito nervosa e agitada, tanto que a testemunha teve de a sentar, tranquilizá-la e comprar-lhe uma garrafa de água. A testemunha descreveu a ofendida como estando mais nervosa, ansiosa, triste e desconfiada, com medo de sair e baixa autoestima. Ora, este depoimento esclarece, de forma clara, o efeito que a mera presença do arguido (ainda que em local público e com terceiros) provoca na ofendida, o que é demonstrativo do trauma que ele convoca; por outro lado, ainda que de forma indireta, corrobora a versão da menina quanto aos abusos, cujas circunstâncias reitera, de forma consistente, em cada relato que faz. Já a matéria subjetiva (atinente a intenções, motivações, afeções ou paixões), por natureza insuscetível de prova direta, resulta inferida dos aspetos objetivos em que se materializa a ação, através do significado que tais atos têm na respetiva comunidade social. No caso, os atos dados como provados, praticados pelo arguido - de tocar no corpo da menor, nos termos ali expendidos -, permitem ao tribunal concluir, de forma inequívoca, a intenção daquele de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo a idade da vítima, sua sobrinha-neta, nos termos dados por provados em 12 e 13. Finalmente, e complementarmente a toda a prova já aludida e analisada, atendemos aos relatórios de natureza sexual de fls. 22 e ss (ainda que de resultado irrelevante, dada a natureza do contacto – facto n.º 16), de avaliação psicológica de fl. 138 e ss (factos n.ºs 17 a 20); aos assentos de nascimento de fls. 18 a 20, 122, 192 e 193 (factos n.ºs 1 e 2); ao certificado do registo criminal do arguido de fls. 246 (facto n.º 27) e ao relatório social de fls. 250 e ss (factos n.ºs 28 a 31).
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Enquadramento jurídico-penal
Do crime de ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS O arguido está acusado da prática de cinco crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelo artigo 171.º do Código Penal que, na redação atual e em vigor à data dos factos (introduzida pela Lei nº 59/2007 e, nesta parte, inalterada pela Lei n.º 103/2015, de 24.08), preceitua: 1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos. 2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. (…) Por sua vez, o artigo 177º prevê uma agravação de um terço nos limites mínimo e máximo das penas, além de outras, do artigo 171º “se a vítima: a) (…) b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação; (…)” (…) Revertendo ao caso concreto, há que distinguir as diferentes situações apuradas. Assim, I) Quanto aos factos ocorridos em 2013/2014: Nesta parte, dizer que os (dois) crimes imputados ao arguido por referência a toques feitos no corpo (zona mamária) da ofendida, no interior da garagem existente na “habitação da sua tia FF, sita na Rua ..., ..., em ...”, redundaram não provados o que, sem mais, implica a respetiva absolvição da sua prática. Já não assim quanto aos (dois) crimes imputados ao arguido por referência aos toques, no corpo da ofendida, no interior da casa dos bisavós desta, sita no lugar ..., ..., em .... Com efeito, nesta parte, ficou demonstrado que, em pelo menos duas ocasiões, em datas não concretamente apuradas, no interior desta habitação, o arguido aproximou-se da ofendida, à data com 4 ou 5 anos, e introduziu um dedo no interior da vagina desta, fazendo de seguida movimentos, assim provocando-lhe dores. Fê-lo aproveitando-se do livre acesso que tinha àquela casa – pertença dos sogros -, onde a menina se encontrava, no momento sem vigilância de adultos, confiada aos cuidados da avó, ante a ausência da mãe, emigrada em trabalho. O arguido, indiferente à idade e desamparo da criança, sua sobrinha-neta, decidiu assim abordá-la, com o objetivo de a sujeitar àqueles contactos de natureza sexual para satisfação dos seus desejos libidinosos – cf. factos provados sob os nºs 1 a 5 e 12. Tendo presente tudo o que se deixou dito, somos a concluir que as duas condutas do arguido sob análise são, inequivocamente, atos sexuais de relevo agravados, na medida em que, em ambos os momentos, consistem na introdução de dedos na vagina da criança, o que se mostra expressamente previsto na previsão do nº 2. Com as descritas condutas, o arguido preencheu por, pelo menos, duas vezes, os elementos objetivos do tipo legal do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, nºs 1 e 2, do Código Penal, tendo atuado com dolo direto (artigo 14.º, nº1, do Código Penal), pois representou (elemento intelectual) e quis (elemento volitivo) atuar do modo acima descrito, sabendo que a ofendida era sua sobrinha-neta, uma criança pré-púbere, com 4 ou 5 anos de idade, ainda na fase inicial da sua formação física e psíquica, por isso, sem qualquer conhecimento e discernimento para avaliar os atos e comportamentos do arguido. Por conseguinte, o elemento subjetivo do tipo legal do crime em apreço encontra-se igualmente presente nas condutas do arguido. O arguido agiu igualmente com consciência da ilicitude dos factos, pois sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei (cf. facto provado sob o nº 13). Entende-se, assim, que as condutas criminosas integram a prática, em concurso efetivo, do correspondente número de ilícitos, não sendo convocável a figura do crime continuado, como decorre do disposto no artigo 30º, nº 3, do Código Penal (que pressupõe a verificação de uma diminuição considerável da culpa do agente que não ocorre nos crimes eminentemente pessoais, em particular nos crimes sexuais em que são vitimas crianças, já que a reiteração de condutas revela aumento do grau de censurabilidade, incompatível com a diminuição da ilicitude e a diminuição da culpa do agente (cf., entre outros, AC STJ de 30.09.2015 e de 6.04.2016. 27.11.2019 e 5.02.2020, todos disponíveis em www.dgsi.pt.). II) Quanto aos factos ocorridos em 23.05.2020: Nesta parte, apurou-se que, neste dia, pelas 18.00 horas, junto à mesma habitação da bisavó materna da ofendida, sita no lugar ..., ..., em ..., o arguido abeirou-se do veículo automóvel que ali estava estacionado e, pela janela aberta da porta do passageiro da viatura, introduziu o seu braço em direção à ofendida, que ali estava sentada no banco da frente, no lugar do pendura, e apalpou a zona genital da menina, por cima dos calções que esta vestia o que, conforme se deixou dito supra, configura ato sexual de relevo. Também desta vez, o arguido sabia a idade da BB, sua sobrinha-neta, que ali aguardava a chegada da mãe; ao agir desta forma, o arguido surpreendeu a menina, dentro do carro onde se encontrava, para, através do toque do seu corpo, satisfazer os seus desejos sexuais, bem sabendo a censurabilidade da sua conduta. Com esta descrita conduta, o arguido preencheu os elementos objetivos do tipo legal do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, nº 1, do Código Penal, tendo atuado com dolo direto (artigo 14.º, nº1, do Código Penal), pois representou (elemento intelectual) e quis (elemento volitivo) atuar do modo acima descrito, sabendo que a ofendida era sua sobrinha-neta, uma criança com 11 anos de idade, em plena fase de formação física e psíquica. Por conseguinte, o elemento subjetivo do tipo legal do crime em apreço encontra-se igualmente presente. O arguido agiu igualmente com consciência da ilicitude dos factos, pois sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei. A AGRAVAÇÃO do artigo 177º: Cumpre, agora, apreciar as condutas do arguido à luz da agravação prevista no já citado artigo 177º do CP. Com efeito, as comprovadas condutas vêm imputadas ao arguido também pela sua forma agravada, desta feita por força da alínea b) do n.º 1, do artigo 177º, segundo a qual a agravação opera se a vítima se encontrar numa relação familiar (…) do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação. Ora, convocando os ensinamentos da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, temos a considerar que, para este efeito, “relações familiares” são as relações constituídas por factos que, nos termos da lei, constituem fontes das relações jurídicas familiares – o casamento, o parentesco, a afinidade e a adoção (artigo 1576.º do Código Civil). – cfr. ac. do STJ 13.02.2019, in www.dgsi.pt. Enquanto a anterior redação do preceito (na sua alínea a) especificava a relação familiar abrangida pela agravação, incluindo na mesma, ao que aqui interessa, o “parente ou afim até ao segundo grau do agente” (destaque nosso), hoje, o legislador apenas refere em termos latos “relação familiar”, sem a especificar. Como se escreve no Ac. do TRL de 12.05.2016 (disponível no mesmo sítio da internet), a respeito da relação tio-sobrinho, “Esta alteração visou alargar o âmbito da agravação prevista na norma e daí a utilização do conceito relação familiar, quando entre o agente e a vítima exista uma proximidade ou intimidade semelhante à dos parentes, nela se incluindo a relação tio/sobrinho decorrente de afinidade, mesmo sendo em terceiro grau por afinidade na colateral, como é o caso dos autos. O que o legislador exige é que exista uma relação de proximidade entre o agente e a vítima e que o mesmo se aproveite dessa situação, no duplo sentido de que o mesmo tira partido da mesma e ao mesmo tempo lhe era exigível um comportamento mais conforme ao direito, sendo, nessa medida, mais elevado o desvalor da acção. Daí a agravação, quase como que violação do princípio da confiança decorrente da relação de proximidade. (…)” Ora, no caso em apreço, arguido e vítima estão ligados entre si por uma relação familiar de parentesco, no 4º grau, o que, parece-nos, faz acionar a imputada agravante. Sucede que, para o seu preenchimento, a lei exige, para além da relação familiar, que o crime tenha sido praticado com aproveitamento desta relação. Neste aspeto, entendemos que as situações que mereceram a adesão da prova reclamam distinto tratamento.
Assim, I) Quanto aos factos ocorridos em 2013/2014: Ora, atendendo às circunstâncias em que os crimes foram praticados, entendemos que houve, por parte do arguido, um claro aproveitamento da relação familiar que tinha com a vítima. Com efeito, por ser seu tio-avô, casado com uma irmã da avó materna da menina, a cujos cuidados ela estava confiada pela mãe (à data, emigrada no estrangeiro), o arguido tinha livre acesso à casa onde a criança se encontrava, sozinha e indefesa, uma das vezes até a dormir a sesta no sofá, enquanto os adultos se encontravam a trabalhar, “nos campos”. Por ser seu tio-avô, o arguido podia aproximar-se e contactar com a vítima, como fez, sem suscitar reservas nos familiares ou na própria, que não tinha razões para o temer ou evitar. Este convívio próximo destes familiares – que se reuniam todos naquela casa, convivendo regularmente -, permitiu e facilitou a conduta do arguido, que assim logrou abusar da menina, garantindo o seu silêncio, aproveitando-se da proximidade e da intimidade que aquela relação familiar lhe concedia, potenciada pela ausência da mãe e, porventura, pelos múltiplos afazeres que ocupavam a avó, do que ele tinha perfeito conhecimento. Entendemos, assim, quanto a estes dois crimes que se mostra verificada a agravante do artigo 177º do CP. II) Quanto aos factos de 23.05.2020: De acordo com a acusação, são convocadas as agravantes previstas na já citada alínea b) mas também a da alínea c), esta prevendo a agravação se a vítima for “particularmente vulnerável, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez”. Em face das circunstâncias apuradas, entendemos que não ocorre nenhuma das imputadas agravantes. Com efeito, o evento em causa apresenta-se como uma situação isolada, já distanciada dos factos ocorridos anos antes: nesta tarde de maio, o arguido surpreendeu a ofendida no interior do carro onde esta aguardava pela mãe, apanhando-a “desprevenida” com o apalpão que lhe fez, por cima da roupa, na zona genital. A este ato, a ofendida, agora com o discernimento de uma adolescente de 11 anos, logo se opôs, em termos que fizeram o arguido parar e abandonar o local. Daqui, afigura-se-nos que não resulta que tenha havido aproveitamento pelo arguido da relação familiar que tem com a vítima: nestas circunstâncias, a BB era apenas uma menina que estava indefesa, distraída, no carro, vista e usada pelo arguido como um mero instrumento de prazer. Porque a idade da vítima está já atendida no tipo legal – “menor de 14 anos” – também não resulto demonstrado que o crime tenha sido praticado contra vítima particularmente vulnerável, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez. Concluímos, assim, que a conduta em causa integra apenas a previsão do n.º 1 do artigo 171º do CP, sendo como tal punida.
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As PENAS Escolha e medida concreta das penas Com as suas condutas, o arguido praticou: - dois crimes de abuso sexual de crianças, agravados, previstos pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, punidos, cada um, com pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão (dada a agravação em 1/3 dos limites da moldura imposta pelo artigo 177.º, n.º 1, al. b); e - um crime de abuso sexual de crianças, previsto pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal, punido com pena de prisão de um ano a oito anos. Uma vez que os crimes apenas admitem pena de prisão, não há lugar à tarefa de escolha da pena, apenas de fixação da respetiva medida. Aplicando os critérios fixados no artigo 71.º, nº1, conjugado com o artigo 40.º, nº1, do Código Penal, as penas de prisão concretas serão determinadas de modo a promover a tutela do bem jurídico violado, em ordem à estabilização da expectativa comunitária na validade da norma violada (prevenção geral positiva ou de integração), sem que o seu quantum ultrapasse a medida da culpa do arguido, pois esta, não sendo fundamento da pena, é seu pressuposto e limite inultrapassável (artigo 40.º, nº2, do CP), em nome do respeito pela dignidade humana, consagrado no artigo 1.º da CRP. Serão igualmente ponderadas as exigências de prevenção especial que o caso demanda. A este propósito, é de referir que as exigências de prevenção geral positiva que se fazem sentir no presente caso não sobrelevam aquelas que se observam na generalidade destes tipos de crime. As situações retratadas nos autos não deixam, porém, de constituir uma importante fonte de alarme social, porquanto impõe-se sensibilizar a população em geral, sobretudo em contexto familiar (esfera em que a criança e o adolescente procuram e esperam proteção a todos os níveis), para a necessidade de respeitar em absoluto o direito de autodeterminação sexual das crianças e adolescentes. A necessidade de prevenção especial positiva ou de ressocialização do arguido é já moderada, pois, apesar de o mesmo não ter antecedentes criminais, não revelou em qualquer momento autocensura ou sinais de arrependimento, não se evidenciando que o mesmo apresente um juízo crítico adequado quanto aos contactos sexuais que manteve com a ofendida, criança que abordou sempre na casa onde esta se encontrava e onde, legitimamente, se deveria considerar segura. É ainda necessário ponderar, em consonância com o disposto no artigo 71.º, nº2, do Código Penal, as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime em apreço (ou da sua agravação), depõem a favor ou contra o arguido. Assim, sobreleva em desfavor do arguido o elevado grau de ilicitude da sua conduta. Com efeito, o arguido agiu de forma repetida, contra a mesma vítima, primeiro quando tinha 4 ou 5 anos e, mais tarde, com 11 anos, aproveitando-se da circunstância de ela se encontrar desacompanhada de adultos, na casa de familiares e depois dentro do carro da mãe, onde se deveria sentir segura; o arguido prevaleceu-se da inocência e da inexperiência sexual da ofendida, usando-a para satisfazer os seus apetites sexuais, indiferente a dores ou incómodos que, pelo menos a introdução dos dedos, não deixou de provocar na criança, numa das vezes provocando até sangramento e uma ida às urgências. Para além destas lesões físicas, e por certo mais graves que elas, a conduta do arguido causou na vítima graves e profundos traumas psicológicos, que o passar do tempo tem vindo a revelar. Acresce que o arguido atuou com dolo intenso, na modalidade de dolo direto. A favor do arguido pondera-se a sua integração familiar (que, no entanto, não serviu para o afastar da prática criminosa), o tempo decorrido, sem notícia de outros factos censuráveis e a ausência de antecedentes criminais.
Tudo ponderado, julgamos justo, adequado, proporcional e necessário aplicar ao arguido penas parcelares que se fixam no primeiro terço das respetivas molduras, a saber: a) Por cada um dos crimes de abuso sexual de crianças agravado, a pena de 5 anos de prisão; b) Pelo crime de abuso sexual de crianças, a pena de 18 meses de prisão. O CÚMULO JURÍDICO
Em face das penas parcelares encontradas, cabe proceder ao seu cúmulo jurídico, ao abrigo do disposto no artigo 77.º do Código Penal, cujo nº1 preceitua: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. N.º 2 do mesmo normativo estabelece que “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Nos termos do nº 3 da citada norma legal, “se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”, razão porque apenas há a encontrar uma pena única para as penas de prisão parcelares aplicadas. Assim, e quanto à pena única das penas parcelares de prisão, define-se a seguinte moldura: no limite mínimo, em 5 anos, no limite máximo, em 11 anos e 6 meses de prisão. Ponderando os factos na sua globalidade, afigura-se justo, adequado, proporcional e necessário fixar a correspondente pena única de prisão em 7 (sete) anos de prisão. Dada a medida da pena única fixada, não há lugar à ponderação da sua substituição – cfr. artigos 43.º, nº1, 45º, 50º, 58.º, nº1, do Código Penal. (…) Pedido de INDEMNIZAÇÃO CIVIL: A ofendida, constituída assistente e representada pela sua legal representante, deduziu pedido de indemnização civil pedindo a condenação do arguido no pagamento da quantia de 50.000,00 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido até efetivo e integral pagamento, para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos. Nos termos do disposto no artigo 129º, do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, o que faz convocar os preceitos reguladores da responsabilidade por factos ilícitos, em concreto os artigos 483º e seguintes do C. Civil. Dispõe o citado normativo, como princípio geral, que Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Ora, descendo ao caso dos autos, não oferece dúvida que se mostram verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, consagrada no citado artigo 483º, a saber: facto ilícito, nexo de imputação do facto ao agente, dano, e nexo causalidade entre o facto e dano. Com efeito, o arguido, com as suas condutas ilícitas, imputáveis a título de dolo, causou danos na esfera jurídica da vítima que se conexionam com os factos ilícitos praticados numa relação de causalidade adequada. Constituiu-se, assim, o arguido na obrigação de indemnizar a ofendida. A demandante peticiona o ressarcimento de danos morais por si sofridos em consequência da conduta do arguido, que computa em 50.000,00 €. A lei remete a fixação dos montantes indemnizatórios a este título devidos para critérios de equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso – cfr. artigos 496º e 494º do C.C. A indemnização devida para ressarcimento destes danos reveste uma natureza mista, já que, por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada e, por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar, no plano civilístico, e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, pag. 488. Para a formulação do juízo de equidade, que norteará a fixação da compensação pecuniária por este tipo de dano, vale, até ao presente, a lição dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, no «Código Civil Anotado», vol. I, pág. 501: «O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.». Face à factualidade que ficou apurada quanto aos atos praticados pelo arguido, a sua natureza e grau de gravidade e suas consequências, é manifesto que objetivamente tais condutas colocaram em risco, de forma relevante, o direito a um são e livre desenvolvimento da menor ofendida, e a sua saúde psíquica, o equilíbrio emocional, mas também a sua saúde física e integridade. Recorde-se que a conduta criminosa do arguido, primeiro quando a vítima tinha apenas 4 anos e, depois, com 11 anos (talvez fazendo ressurgir imagens e traumas guardados na memória), foi causa de uma perturbação mental que, ainda hoje, faz dela uma jovem triste, ansiosa, receosa, introvertida, com baixa autoestima, isto apesar do acompanhamento médico e farmacológico que mantém. Só a ideia de se cruzar com o arguido aterroriza a ofendida. Das condutas do arguido resultam, como resultaram efetivamente, para além de dores físicas (reportadas aos episódios mais antigos), traumas psicológicos, que afetam o dia a dia da menina, como se disse, tornando-a mais triste, envergonhada e retraída perante terceiros, em especial do sexo oposto. De acordo com a perícia realizada nos autos, a menina “evidencia sintomatologia ansiosa e depressiva clinicamente significativa, a qual se revela compatível com a sintomatologia tipicamente apresentada por vítimas de crimes desta natureza” – cfr. facto n.º 20. Com o seu comportamento, o arguido provocou na BB um estado de insegurança e de instabilidade, um sentimento de fragilização e humilhação por ter sido sujeita a tratamento incompatível com a sua dignidade enquanto ser humano e enquanto criança. Considerando a natureza dos crimes cometidos pelo arguido e o seu grau de culpabilidade, a idade da ofendida/demandante, o período de tempo durante o qual se desenvolveram as condutas delituosas, os concretos e comprovados danos que para a demandante derivaram do comportamento do arguido, sem no entanto olvidar as condições pessoais e precária situação económica do arguido, entende-se, por equitativa e justa, fixar a compensação a pagar pelo demandado/arguido à ofendida no montante de 20.000,00 €, absolvendo-o do mais peticionado. Na fixação deste montante, fixado por equidade, teve-se em conta as condições e o valor monetário atuais, pelo que os juros de mora peticionados, à taxa legal são devidos, desde a data da presente decisão até integral pagamento. Com o deferimento (ainda que parcial) do pedido de indemnização deduzido em nome da vítima, redunda prejudicado o peticionado arbitramento de reparação, ao abrigo do artigo 82.º-A do CPP, pediu o arbitramento oficioso de uma indemnização às vítimas. (…)”.
II.2- Apreciação do recurso
Da invocada nulidade do acórdão recorrido:
Defende o arguido/recorrente que o acórdão recorrido encontra-se ferido de nulidade, nos termos do n.º 1, do artigo 379.º e do n.º 2, do artigo 374.º, ambos do Código de Processo Penal, por insuficiência do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não sendo o acórdão recorrido claro quanto ao iter lógico trilhado, no que se reporta ao ponto 4. dos factos provados, porquanto, no seu entender, referir que uma criança de 4 anos disse, em algum momento certa e determinada coisa de forma espontânea, sincera e imparcial é um juízo conclusivo e não é suficiente para preencher a exigência do normativo expresso no n.º 2 do artigo 374 do CPP, pois não é sustentada em nenhuma outra justificação.
Porém, não lhe assiste qualquer razão.
Vejamos porquê:
Sobre a nulidade da sentença rege o artigo 379.º do Código de Processo Penal, que dispõe o seguinte: “1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º; c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º 3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.”. [sublinhado e negrito nossos].
Por sua vez, o artigo 374.º, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe requisitos da sentença, rege no seu n.º 2 o seguinte: “(…) 2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” (…)”. [sublinhado e negrito nossos].
Tal preceito traduz a consagração legal da imposição constante do artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são, sempre, fundamentadas [nos termos definidos por lei].
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos - para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo. [4]
Como bem se refere no recente acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 10-07-2025, proferido no Processo n.º 348/23.6T9VNF.G1, “... Através da fundamentação da matéria de facto da sentença há-de ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal. Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo[5]. Portanto esse exame crítico deve indicar no mínimo, e não tem que ser de forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal. O que é essencial é que através da leitura da sentença se perceba por que razão o tribunal decidiu num sentido e não noutro, garantindo-se que a decisão sobre a matéria de facto não foi fruto de capricho arbitrário do julgador ou de mero “palpite”. Assim, sob pena de nulidade, a sentença, para além da indicação dos factos provados e não provados e dos meios de prova, há-de conter também “os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal colectivo num determinado sentido”[6]. Nisto se esgota a questão da nulidade da sentença por falta de exame crítico das provas. Esta nulidade só ocorre quando não existir o exame crítico das provas e não também quando forem incorrectas ou passíveis de censura as conclusões a que o tribunal a quo chegou. Percebidas as razões que serviram para a formação da convicção do tribunal podem os sujeitos processuais, com recurso ao registo da prova, argumentar no sentido da alteração da matéria de facto por parte do tribunal de recurso.”.
A indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal consiste na «…enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.»[7]
O mesmo será dizer que “O exame crítico das provas a que obriga o preceituado no art.º 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, comporta o sentido e alcance de impor ao tribunal que indique os elementos que, em razão das regras da experiência ou critérios lógicos, constituem o substrato lógico-racional que conduziu a que a convicção probatória se determinasse num dado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios probatórios.” como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de março de 2006, no Processo nº 06P478, in www.stj.pt., trazido pertinentemente à colação no douto parecer da Ex.ma Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta.
Ora, analisado o acórdão recorrido à luz das considerações acabadas de expender, desde logo se constata que, após enumerar os factos provados e os não provados, o tribunal a quo expôs os motivos, quer de facto, quer de direito, em que fundamenta da decisão recorrida, e, ao contrário do defendido pelo arguido/recorrente, indicou e examinou criticamente as provas que serviram para fundamentar a sua convicção, designadamente quanto à matéria vertida no seu artigo 4.º [dos factos provados], em estrita obediência ao disposto no n.º 2, do artigo 374.º do Código de Processo Penal, num raciocino lógico e escorreito que permite perfeitamente alcançar a razão da sua decisão.
E tanto assim é que o arguido/recorrente bem o entendeu e contra o mesmo se insurge, como o demonstra na peça recursiva ao impugnar a matéria de facto.
Na verdade, a arguida nulidade do acórdão recorrido, por falta de exame crítico da prova, vem sustentada na peça recursiva numa alegada inexistência/insuficiência de prova e até, diga-se, numa contradição entre factos provados e não provados, sendo certo que, como é consabido, tal circunstancialismo, a existir, não conduz a qualquer nulidade da sentença, reportando-se, sim, a uma impugnação ampla/restrita da matéria de facto, questão igualmente suscitada pelo arguido/recorrente que apreciaremos de seguida.
De qualquer forma, não podemos deixar de dizer que, ao contrário do defendido pelo arguido/recorrente, da leitura do acórdão recorrido não se extrai, de todo, que o tribunal a quo tenha sustentado a factualidade vertida no apontado artigo 4. dos factos provados apenas nas declarações da menor BB e muito menos que o fez sem qualquer outrajustificação. Na verdade, após ter assinalado a especial relevância das declarações prestadas pela menor [uma vez que, como é sabido, este tipo de crimes de natureza sexual ocorre, por regra, longe dos olhares de terceiros, sem qualquer prova testemunhal, portanto, e que, não raras vezes, também, nem os exames periciais são capazes de comprovar a realidade vivenciada pela vítima] o tribunal a quo analisou-as e concatenou as mesmas, designadamente, com a “avaliação pericial” a que esse relato foi sujeito e até com prova testemunhal, que ali também elencou, analisou e explicou em que medida se mostrou relevante para conferir credibilidade ao relato da menor BB, num verdadeiro exame crítico da prova, que foi feito, pese embora conducente a uma conclusão que não se mostra do agrado do arguido/recorrente.
Acresce que, como bem se assinada no douto parecer da Ex.ma Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, “contrariamente ao que parece querer transmitir o recorrente, o Tribunal recorrido, não teve dois pesos e duas medidas ao considerar provado o facto n.º 4 e não provados os das alíneas a), b) e c) tendo esclarecido de forma cristalina a razão desta decisão no seguinte trecho: “ ...depreende-se do relato da vítima que terão sido várias outras as situações em que foi tocada pelo arguido, porventura as que se descrevem na acusação e a que a menina terá aludido em outros momentos, designadamente perante a perita que a ouviu, talvez com um outro tempo e outro modo de inquirição. Porém, a prova que temos é a que resulta das suas declarações prestadas perante Juiz de instrução criminal, as quais, nessa medida e com esse alcance, valoramos e credibilizamos para, com base nelas (mas não só, como veremos de seguida), dar por assente a factualidade nos termos dados por provados.”.Na verdade, tal circunstancialismo só reforça a conclusão de que o tribunal a quo fez um efetivo exame crítico da prova.
Em suma, da análise da fundamentação do acórdão recorrido, constata-se que, ao contrário do defendido pelo arguido/recorrente, o tribunal a quo fez um verdadeiro exame crítico da prova, que, diga-se, até foi bem além da exposição concisa exigida pelo n.º 2, do artigo 374.º, do Código de Processo Penal, explicado a sua convicção, num raciocínio lógico, escorreito e coerente face às regras da experiência, como lhe era exigido por lei.
Além disso, como se refere, de forma clara, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30-01-02, proferido no processo nº 3063/01 – 3ª, SASTJ nº 57, 69: “A disposição do artigo 374º-2 do CPP sobre o exame crítico das provas não obriga os julgadores a uma escalpelização de todas as provas que foram produzidas e, muito menos, a uma reprodução do tipo gravação magnetofónica dos depoimentos prestados na audiência, o que levaria a uma tarefa incomportável com sadias regras de trabalho e eficiência, e ao risco de falta de controlo pelos intervenientes processuais da transposição feita para o acórdão. A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”.
O mesmo será dizer que o artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal não exige que se autonomize e se escalpelize a razão de decidir sobre cada facto, nem exige que em relação a cada meio de prova se descreva a dinâmica da sua produção em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível.
O exame crítico das provas exigido pela lei mais não é do que uma imposição ao tribunal de indicar os motivos que determinaram a que formasse a convicção probatória num determinado sentido e não noutro, porque razão certas provas se mostraram mais credíveis do que outras, explicando num processo lógico e racional a sua decisão, e, in casu, o tribunal a quo assim procedeu. Inexiste, portanto, qualquer violação do invocado artigo 374.º do Código de Processo Penal e, consequentemente, qualquer nulidade do acórdão a declarar ao abrigo do artigo 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, improcedendo, quanto a este segmento, o recurso do arguido/recorrente. Da impugnação da matéria de facto [impugnação restrita/impugnação ampla/violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal e do princípio in dubio pro reo, corolário da presunção de inocência do arguido consagrada no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa]:
Da motivação recursiva [mas já não também das conclusões] é possível apreender que o arguido/recorrente pretende impugnar, pelo menos, a factualidade provada vertida em 4., 5. e 14., que, no seu entendimento, deveria ter sido considerada não provada.
E, para tanto, começa, desde logo, por chamar à colação os vícios decisórios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, ínsito no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal e do erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c), do n.º 2 do mesmo preceito legal, ainda que, quanto a este, não o tenha feito de forma tão expressiva, mas, ainda, assim invocado, como decorre da conclusão recursiva n.º 28.
E, em sustento dos invocados vícios decisórios, alega a existência de contradição entre o facto provado vertido em 4. e os não provados vertidos nas alíneas A), B) e C) e a existência de erro notório segundo os parâmetros do homem médio, porquanto, na ótica do arguido/recorrente, o tribunal a quo não podia ter chegado à conclusão vertida no artigo 4. dos factos provados, quando considerou não provado que a menor não foi desnudada, designadamente da cintura para baixo.
Impugna, portanto, a matéria de facto que conduziu à sua condenação pelos dois crimes de abuso sexual de crianças agravado, suportados naquela factualidade e por cuja absolvição propugna, invocando, ainda, em seu sustento a violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal e do princípio in dubio pro reo.
Ora, é incontestável, que a matéria de facto pode ser impugnada em sede de recurso e essa impugnação pode ser feita por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido precito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[8]. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
E, in casu, o arguido/recorrente começa por impugnar a matéria de facto à luz dos vícios decisórios, concretamente da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova, ínsitos, respetivamente, nas alíneas b) e c), do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
Ora, como é sabido, o vício decisório da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, que, desde logo, tem de decorrer do próprio texto da decisão recorrida, só existe quando existe uma incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada, o que, não se verifica, de todo, no presente caso.
Diz o arguido/recorrente que a invocada contradição existe entre a factualidade provada vertida em 4. [relembre-se: “No aludido período de maio/junho de 2013 e março/abril de 2014, em horas e datas não concretamente apuradas, na habitação referida em 3, em pelo menos duas ocasiões, numa das quais quando a menor estava a dormir no sofá da sala, o arguido aproximou-se da menor, introduziu um dedo no interior da sua vagina e efetuou, sucessivamente, movimentos ascendentes e descendentes com os dedos, provocando-lhe dores.”] e a factualidade não provada vertida nas alíneas A) [relembre-se: “Nas circunstâncias aludidas em 4, o arguido aproximou-se e sentou-se no sofá e acariciou o rosto da ofendida, acordando-a.”]; B) [relembre-se: “Depois puxou para cima a camisola que a ofendida envergava, deixo-lhe os seios desnudados, e de seguida apalpou o corpo da menor, incluindo a zona mamária;”] e C) [relembre-se: “De seguida puxou para baixo a roupa da menor da cintura para baixo, incluindo as cuecas, deixando a menor desnudada na zona genital e nadegueira.”], porquanto não tendo sido considerado como provado que o arguido “puxou para baixo a roupa da menor da cintura para baixo, deixando a menor desnudada na zona genital e naguedeira”, não poderia, no mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, ter introduzido um dedo no interior da vagina da ofendida, e ter feito sucessivamente movimentos ascendentes e descentes com os dedos, causando-lhe dor.
Porém, tal argumentação, em sustento do arguido vício decisório, carece de qualquer sentido, bastando para tanto atentar, como bem o refere a Ex.ma Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer, que “… é perfeitamente possível a actuação descrita no facto n.º 4 mesmo sem o recorrente ter puxado para baixo a roupa da menor da cintura para baixo, incluindo as cuecas, deixando a menor desnudada na zona genital e nadegueira, tendo bastado, para tal, que o arguido, em ambos os momentos descritos, tenha afastado as cuecas da criança para proceder como descrito”.
Não existe, portanto, qualquer contradição e muito menos insanável, entre a factualidade provada vertida em 4 e o facto de não ter sido considerado provado que o arguido “puxou para baixo a roupa da menor da cintura para baixo, deixando a menor desnudada na zona genital e naguedeira”, materialidade esta que apenas consta da apontada alínea C) dos factos não provados e não, também, das alíneas A) e B) trazidas à colação pelo arguido/recorrente. Diga-se, aliás, que o arguido/recorrente invoca a existência da mencionada contradição também quanto aos factos considerados não provados constantes das alíneas A) e B), mas não concretiza qualquer incompatibilidade entre estes o vertido no artigo 4. dos factos provados, seguramente, porque a mesma não existe. Na verdade, não se descortina qualquer circunstância capaz de obstaculizar a ocorrência do ato de cariz sexual descrito em 4. dos factos provados, ocorrido no interior da vagina da menor BB, quando a factualidade não provada vertida nas apontadas alíneas A) e B) se reportam a zonas do corpo bem distintas daquela, situadas da cintura para cima, como o são o rosto e a zona mamária.
Não enferma, portanto, o acórdão recorrido do apontado vício decisório de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão invocado pelo arguido/recorrente.
Tal como não enferma, diga-se, desde já, do também invocado vício decisório do erro notório na apreciação da prova, ínsito na alínea c), do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal, pois este apenas ocorre quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis.
Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido[9]. “Com a invocação do vício de erro notório questiona-se, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido”[10].
Resumindo, “o erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo”.[11]
Assim sendo, só nos resta concluir pela inexistência do invocado vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, pois do texto da decisão recorrida não resulta que o tribunal a quo tenha violado as regras da experiência ou que tenha efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, e, muito menos, que tenha violado qualquer regra sobre prova vinculada ou da legis artis, como o defende o arguido/recorrente.
E não se tente sustentar a existência de qualquer vício decisório, designadamente os invocados pelo arguido/recorrente, quanto ao facto provado vertido em 14. [relembre-se: “Após uma das ocasiões referidas em 4, por se queixar de dores ao urinar e ter sangue nas cuecas, a ofendida foi levada ao serviço de urgência tendo-lhe sido detetada uma infeção urinária.”] que se pretende ver considerado não provado, dizendo-se que resulta dos autos que a ida da BB ao hospital naquele circunstancialismo de tempo, teve como diagnostico uma infeção urinaria e não qualquer problema consequência de qualquer ato que alegadamente tenha sido praticado pelo arguido e que não existe nos autos qualquer prova de que como resultado do alegado toque na vagina da ofendida por parte do arguido, lhe tenha provocado sangramento, e trazendo-se à colação trechos das declarações para memória futura da ofendida, transcritos na motivação recursiva, pois, como já o referimos supra, os vícios decisórios devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar. Improcede, portanto, a pretendida alteração da matéria de facto à luz dos invocados vícios decisórios.
E analisadas as conclusões recursivas constata-se que o arguido/recorrente também não impugna a decisão sobre a matéria de facto em conformidade com o disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, porquanto não cumpriu o ónus da especificação.
Com efeito, como é sabido, porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal: “3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.”
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo [cfr. artigo 430.º do Código de Processo Penal].
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens [das gravações] em que se funda a impugnação [não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos], pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes [n.º 4 e 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal][12].
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal] [sublinhado nosso].
Em suma, para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, quais as provas [específicas] queimpõem decisão diversa da recorrida, demonstrando-o, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as [se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados] ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos [quando na ata da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens]. “Importa, portanto, não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova susceptível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente [sublinhado nosso]. [13] In casu, analisadas as conclusões do recurso facilmente se constata que o arguido/recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada, em obediência ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal, não satisfazendo as conclusões apresentadas, nem sequer num patamar mínimo, a exigência da tríplice especificação legalmente imposta, nos casos de impugnação ampla.
Na verdade, o arguido/recorrente nem sequer indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados [que apenas indica na motivação e já não nas conclusões] e das suas declarações [que alega ter o tribunal a quo desprezado] e dos depoimentos das testemunhas de acusação [que diz consistir apenas em depoimentos indiretos] que chama à colação, não indica os segmentos/passagens que, na sua ótica, impõem decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo, e muito menos relaciona o conteúdo específico de cada um desses meios de prova que traz à liça com o facto individualizado que considera incorretamente julgado, como se lhe impunha.
Era necessário que o arguido/recorrente desenvolvesse um quadro argumentativo demonstrativo, através da análise da prova por si especificada, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto que pretendia impugnar, é impossível ou desprovida de razoabilidade[14], o que este não fez.
Tal circunstancialismo inviabiliza a reapreciação da matéria de facto pela via da impugnação ampla.
E nem sequer cumpria convidar o arguido/recorrente a aperfeiçoar as conclusões do recurso nesse sentido, pois dizendo-se que as conclusões resumem as razões do pedido, nada pode ser resumido que não se contenha no arrazoado da motivação, de que as conclusões constituem uma síntese essencial, sendo que, no caso dos autos, da motivação apenas seria possível apreender, como já o referimos supra, os factos provados que pretende impugnar, mas já não as demais exigências legais ora indicadas, com vista à completude no cumprimento do ónus da impugnação especificada.
Neste sentido, vem sendo a tomada de posição constante do Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, de que o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto, tanto na motivação como nas conclusões desta, não justifica o convite ao aperfeiçoamento, uma vez que só se pode corrigir o que está deficientemente cumprido e não o que se tem por incumprido. [15]
Na verdade, não podemos deixar de recordar que o texto da motivação do recurso – reservado aos respetivos fundamentos – é imodificável e, como tal, insuscetível de ser aperfeiçoado, o que bem se compreende, pois, o contrário, equivaleria, no fundo, à concessão de um novo prazo para recorrer, pelo que não cabia a este Tribunal fazer qualquer convite ao aperfeiçoamento, pois estamos perante uma deficiência da estrutura da própria motivação, equivalente a uma falta de motivação na plenitude dos seus fundamentos, que coloca até em crise a delimitação do âmbito do recurso e esse procedimento equivaleria, na verdade, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso[16].
Em suma, o artigo 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, impõe o dever de convite ao aperfeiçoamento tão só quando “a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º”. Se o recorrente não faz, como no presente caso, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, nos seus precisos termos, não há lugar ao convite à correção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite.
De qualquer forma, mesmo que se defendesse posição diversa, o facto é que in casu, o que o arguido/recorrente pretende é contrapor a sua posição à prova que foi produzida em audiência de julgamento, é fazer vingar a sua própria leitura da referida prova, insurgindo-se contra a forma como o Tribunal a quo apreciou a mesma, tecendo considerações em que manifesta, essencialmente, a divergência entre a sua convicção pessoal sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, o que, como é consabido, se prende com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal.
Saliente-se que a censura quanto à forma como ocorreu a convicção do tribunal não pode assentar, simplisticamente, no ataque da fase final de tal convicção, antes havendo que residir na violação de passos para a formação da mesma, sob pena de inadequada interpretação do disposto naquele artigo 127.º do Código de Processo Penal, não obstante não se esqueça que a liberdade de apreciação esteja limitada por critérios de legalidade, da lógica, da experiência, dos conhecimentos científicos e, assim, configurando uma liberdade de acordo com um dever[17] e que, de forma alguma, aqui se encontra violada, como o sustenta o arguido/recorrente.
Acresce que, in casu, o caminho trilhado pelo tribunal a quo apresenta-se lógico e inteligível, de acordo com os critérios legais de admissibilidade e de apreciação da prova e também não lhe cabia chamar à colação o princípio in dubio pro reo, em obediência ao princípio constitucional, decorrente da presunção de inocência do arguido, consagrada no artigo 32.º, n.º 2, da CRP, no que se reporta aos factos que deu como provados, como o argumenta o arguido/recorrente, pois não se deparou com quaisquer dúvidas, nem, diga-se, se impunha que as tivesse.
Não esquecemos que no que respeito ao tipo de crime de cariz sexual imputado ao arguido/recorrente e pelo qual acabou por ser condenado, porque na sua maioria praticado longe dos olhares de terceiros, em regra, a sua prova terá de se alicerçar no depoimento da vítima, que por ter vivenciado os factos está em melhor posição para os descrever.
E, naturalmente que as declarações da vítima, per si, poderão não ser bastantes para fazer um juízo de culpabilidade do agente do crime, pelo que importa, sempre, fazer uma concatenação de toda a prova produzida, aliadas às regras da experiência comum e do normal acontecer.
E, in casu, foi isso que foi feito pelo tribunal a quo.
Na verdade, ao contrário do argumentado pelo arguido/recorrente, da análise do acórdão recorrido constata-se que o tribunal a quo não formou a sua convicção baseada apenas nas declarações da menor BB, mas sim nas declarações destas corroboradas, desde logo, com a prova pericial e testemunhal que elencou e analisou, de forma concatenada, em estrita obediência aos ditames legais, designadamente ao princípio da livre apreciação da prova, ínsito no apontado artigo 127.º do Código de Processo Penal e às regras da experiência comum, que, ao contrário do defendido pelo arguido/recorrente, não se encontram aqui violados.
Relembre-se que o adágio jurisprudencial testis unus testis nullus não tem aplicação no nosso ordenamento jurídico em que a prova, como já o dissemos, é livremente apreciada pelo Tribunal. Daí que, atendendo às particularidades do crime de cariz sexual a que se reporta os presentes autos, praticado longe dos olhares de terceiros, se o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, maior ou menor idade, opostas, em maior ou menor medida, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso, sem que tal viole o princípio da presunção da inocência constitucionalmente consagrado.
Veja-se, a este respeito, o acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 12-04-2010, Processo n.º 42/06.2TAMLG.G1, relatado pelo saudoso Desembargador Cruz Bucho, disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado, no que aqui releva: “I- Em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais. II- A experiência científica nesta área ensina que as vítimas de crimes sexuais tendem a não verbalizar o sucedido remetendo-se a um penoso silêncio, recatando a traumática experiência e quando a revelam fazem-no de forma sentida e muitas das vezes com retalhos de memória selectivos. É neste contexto muito especial, ademais agravado pela idade do menor, pela sua situação de filho do abusador e pelas suas limitadas capacidades intelectuais decorrentes da desordem de desenvolvimento da personalidade de que padece, que deve ser apreciado o depoimento da vítima. …”.
Não se diga que foi violado o princípio in dubio pro reo porque o tribunal a quo atentou nas declarações da menor BB para considerar provados uns factos, mas já não lhe concedeu inteira credibilidade para considerar provados outros, que fez transpor para a matéria de facto não provada. Na verdade, ao fazê-lo, só demonstra que analisou a prova com o rigor que a lei impõe e que se socorreu, precisamente, do princípio in dubio pro reo, quando se deparou com dúvidas que não conseguiu ultrapassar, posição que explicou no acórdão recorrido, como o demonstra o seguinte trecho que aqui se transcreve: “Acresce que destas declarações da ofendida não consta a alusão a qualquer facto ocorrido no interior da garagem, matéria que, por isso, redundou não provada. É certo que se depreende do relato da vítima que terão sido várias outras as situações em que foi tocada pelo arguido, porventura as que se descrevem na acusação e a que a menina terá aludido em outros momentos, designadamente perante a perita que a ouviu, talvez com um outro tempo e outro modo de inquirição. Porém, a prova que temos é a que resulta das suas declarações prestadas perante Juiz de instrução criminal, as quais, nessa medida e com esse alcance, valoramos e credibilizamos para, com base nelas (mas não só, como veremos de seguida), dar por assente a factualidade nos termos dados por provados.”.
Não se defenda, também, que foi violado o princípio in dubio pro reo porquanto foi considerado provado que “10. Em todas as ocasiões o arguido disse à ofendida para não contar a ninguém, incluindo a mãe da menor, porque se o fizesse algo de mal lhe aconteceria.”, quando do exame de clínica forense datado de 25.5.2020 resulta que “A ofendida “nega aliciamento, ameaças ou agressão física” e “especifica que trata-se de episodio isolado”.
Ora, como o arguido/recorrente bem sabe tal relatório da perícia de natureza sexual em direito penal, datado de 25-05-2020, reporta-se apenas e tão só ao evento ocorrido a 23-05-2020 [e não também aos anteriormente vivenciados pela menor BB quando tinha 4/5 anos de idade], e o que consta da HISTÓRIA DO EVENTO foi relatado não apenas pela menor mas também pela sua mãe que a acompanhava, sendo certo que a análise dos autos permite concluir que até então a menor BB ainda não tinha contado a ninguém os factos anteriormente por si vivenciados, pelos seus 4/5 anos de idade, o que faz apenas aquando da sua inquirição perante a PJ ocorrida a 08-06-2021 [cfr. fls. 89 a 91], sendo, por isso, compreensível que naquele primeiro momento [em que tem de partilhar com terceiros as suas vivencias de cariz sexual, como as descritas no ponto 4 da factualidade provada], as tenha omitido, bem como as “ameaças” que lhe eram dirigias pelo arguido/recorrente e que constam do ponto 10 dos factos provados.
Aliás, o mesmo já não ocorre em momento mais avançado do processo, pois aquando do seu exame de perícia médico legal psicológica, efetuado a 06-01-2022 [constante a fls. 138 a 144 verso] a menor BB já descreve não apenas os atos de que foi vítima ocorridos aquando dos seus 11 anos de idade, mas também quando tinha 4/5 anos de idade, tal como refere que “Ele depois dizia que se eu dissesse à minha mãe depois acontecia-me alguma coisa. Então eu ficava com medo e não dizia à minha mãe”, ou seja, consta a materialidade provada vertida no ora questionado artigo 10.º dos factos provados.
E porque, como vimos, o mencionado relatório da perícia de natureza sexual em direito penal, datado de 25-05-2020, reporta-se apenas e tão só ao evento ocorrido a 23-05-2020 e não aos anteriormente vivenciados pela menor BB, não se descortina de que forma a conclusão ali vertida de que “analisada a informação relativa à ocorrência do estudo, antes descrita na “História do Evento”, e às características do exame objectivo efetuado e acima descrito, pode considerar-se que a compatibilidade entre a informação prestada e o exame efetuado é possível, mas não demonstrável” possa criar qualquer dúvida no espírito de julgador, capaz de fazer desencadear o recurso ao princípio do in dubio pro reo, quando nada haveria a demonstrar pelo simples facto de que o ali referido eventoreporta-se a atos de cariz sexual cometidos pelo arguido por cimados calções da menor BB.
Ora, como resulta claramente da motivação da matéria de facto constante do acórdão recorrido, o tribunal a quo considerou provados os factos que conduziram à condenação do arguido/recorrente, explicando, de forma razoável, lógica, racional e plausível, porque assim o fez. No caso, explicou porque considerou os factos em apreço como provados e, designadamente, de que forma valorou a prova, bem como as razões que o levaram a atentar nas declarações da menor BB, sobre as quais, ao contrário do argumentado em sede recursiva, não se limitou a declarar, de forma conclusiva, que eram credíveis, mas antes as concatenou com os demais elementos/meios de prova que elencou e de forma crítica analisou, nos termos supra explicados.
Não se descortina, portanto, qualquer violação do princípio in dubio pro reo, nem do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, que impusesse a este Tribunal reconhecer, inexistindo qualquer fundamento para se alterar a matéria de facto nos termos em que foi fixada pelo tribunal a quo que, como tal, permanecerá intocável. Improcede, portanto, o recurso, também quanto a este segmento e, consequentemente, a pretendida absolvição que por este meio o arguido/recorrente pretendia alcançar.
Medida da pena/sua suspensão: Dosimetria das penas parcelares e, consequentemente, da pena única:
Pugna o arguido/recorrente pela redução das penas parcelares para medidas que se aproximem dos respetivos limites mínimos legais e, consequentemente, pela redução substancial da pena única.
Argumenta, para o efeito, que face ao número de crimes em causa, à sua integração social e familiar, à sua modesta condição social e cultural, à ausência de antecedentes criminais e não haver agravantes de relevo, não se justificam as penas aplicadas pelo tribunal a quo, que, na sua ótica, são desadequadas e exageradas, tendo sido aplicadas sem qualquer fundamentação e em violação do disposto nos artigos 48.º, 70.º, 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal; 34º, n.º 1 e 35º, ambos do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/01, assim como foi desrespeitado o disposto no artigo 30º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Porém, não lhe assiste qualquer razão.
Expliquemos porquê:
No que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1.ª instância, cumpre atentar, seguindo o paralelismo da jurisprudência quanto à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no seguinte: “A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”. A censura que o tribunal de recurso pode opinar sobre a decisão respeitante à determinação da sanção, incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou “adquiridos” (e porque considerou adquiridos uns e outros não) e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses factores na decisão final. É função do recurso - nos casos, o de Revista -, antes de tudo, analisar criticamente, os “parâmetros” da determinação de sanções.[18] “Os poderes cognitivos do STJ, como se sabe, abrangem no tocante a esta matéria, entre outras, a avaliação dos factores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou de moldura da culpa, a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, ao menos quando se encontrarem violadas regras de experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada”[19].
Perante tais considerandos, forçoso será concluir que o Tribunal de 2ª Instância apenas deverá intervir, alterando o quantum da pena concreta, quando ocorrer manifesta desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
Ou seja, mostrando-se respeitados os princípios basilares e as normas legais aplicáveis no que respeita à fixação do quantum da pena e respeitando esta o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir, alterando a pena fixada na decisão recorrida, pela simples razão de que, nesse caso, aquela decisão não padece de qualquer vício que cumpra reparar.
Aqui chegados:
Em primeiro lugar, porque se refere às finalidades das penas, importa ter em conta o disposto no artigo 40.º, nº 1 do Código Penal do qual decorre que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, decorrendo, por sua vez, do seu n.º 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Por sua vez, do invocado artigo 71.º, n.º 1, do citado diploma legal decorre que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos respetivos preceitos legais, far-se-á “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” geral e especial, determinando o n.º2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio “ne bis in idem”, uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstrata), “considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”.
Decorre, por fim, do n.º 3 do citado preceito legal, que “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-09-2005[20], “na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
A culpa traduz-se num juízo de reprovação da conduta do agente, censurando-a em face do ordenamento jurídico-penal.
Com efeito, o facto punível não se esgota na desconformidade da conduta do agente perante o ordenamento jurídico-penal, com a ação ilícita-típica, sendo, ainda, necessário que a conduta do agente seja culposa, isto é, que o facto por si praticado possa ser pessoalmente censurado, traduzindo-se, assim, numa atitude pessoal e juridicamente desaprovada, pela qual o agente terá de responder.
Por seu lado, as exigências de prevenção têm a ver com a proteção dos bens jurídicos [prevenção geral] e a reintegração do agente na sociedade [prevenção especial], as quais nos termos do disposto no artigo 40º, n.º 1 do Código Penal constituem as finalidades da aplicação das penas e das medidas de segurança, conforme já referimos supra. “A medida da pena há de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e ser definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização, não podendo ultrapassar em caso algum a medida da culpa. É o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – proteção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exata, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (ótima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”.[21] Em suma, o limite mínimo da pena deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral que no caso se façam sentir, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva, ao passo que o limite máximo não deve exceder a medida da culpa do agente revelada no facto, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do mesmo; e, dentro desses limites mínimo e máximo, a pena deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível, sendo, pois, as razões de prevenção especial que servem para encontrar o quantum de pena a aplicar.”[22]
Assim sendo, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente.
Conclui-se, portanto, que estaremos perante uma pena justa e proporcional quando esta satisfizer as exigências de prevenção geral e especial, atentando-se no caso concreto, e não exceder a medida da culpa do agente.
Vejamos:
Analisando o caso concreto, à luz dos considerandos acabados de expor, constata-se que o arguido/recorrente foi condenado nas penas parcelares de 5 anos de prisão, pela prática de cada um dos dois crimes de abuso sexual de crianças, agravados, p. e p. pelos artigos 171º, nºs 1 e 2, e 177º, n.º 1, b), do Código Penal; na pena parcelar de 18 meses de prisão, relativamente a um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, nº 1, do Código Penal e na pena única de 7 anos de prisão.
E, de facto, para encontrar a medida concreta da pena aplicada, o tribunal a quo atendeu a todos os elementos que a lei impõe, designadamente aos apontados no artigo 71.º do Código Penal, que o arguido/recorrente, sem razão, diz ter sido violado.
Na verdade, quanto ao grau de ilicitude do factoconcorda-se com o tribunal a quo quando refere que este é elevado: “Com efeito, o arguido agiu de forma repetida, contra a mesma vítima, primeiro quando tinha 4 ou 5 anos e, mais tarde, com 11 anos, aproveitando-se da circunstância de ela se encontrar desacompanhada de adultos, na casa de familiares e depois dentro do carro da mãe, onde se deveria sentir segura; o arguido prevaleceu-se da inocência e da inexperiência sexual da ofendida, usando-a para satisfazer os seus apetites sexuais, indiferente a dores ou incómodos que, pelo menos a introdução dos dedos, não deixou de provocar na criança, …. Para além destas lesões físicas, e por certo mais graves que elas, a conduta do arguido causou na vítima graves e profundos traumas psicológicos, que o passar do tempo tem vindo a revelar.”.
Importa referir, ainda, a pouca idade da menor, bem inferior aos 14 anos que o tipo legal exige, uma vez que na data dos factos em causa tinham 4/5 anos e 11 anos de idade, respetivamente.
Estamos perante um dolointenso [dolo direto], que qualifica a culpa como elevada, sendo o dolo direto a forma mais grave da culpa.
As exigências de prevenção geral são elevadas, tendo em conta a frequência com que este tipo de crime vem ocorrendo na sociedade, causando grande alarme social e uma projeção negativa na sociedade em geral, atendendo à reprovação e repulsa que nela provocam, o que significa uma maior necessidade de assegurar a proteção do bem jurídico que a norma visa proteger [que é também uma das finalidades da pena afirmadas no referido artigo 40.º n.º 1 do Código Penal], por forma a incentivar nos cidadãos a convicção que comportamentos deste jaez são punidos, pois, na realidade, não podemos deixar de realçar que assistindo-se, atualmente, com uma frequência preocupante e em crescendo, à violação do direito à autodeterminação sexual e, consequentemente, à formação da personalidade das crianças, urge combater de forma persuasiva e firme este tipo de criminalidade.
Já quanto às exigências de prevenção especial é verdade que as mesmas não se revelam tão acentuadas como aquelas, porquanto o arguido/recorrente encontra-se, de facto, inserido familiarmente e não tem antecedentes criminais, o que abona a seu favor e, diga-se, assim foi tido em conta pelo Tribunal a quo.
Porém, e pese embora os primeiros atos tenham ocorrido há cerca de 11 anos e o último há cerca de 5 anos, sem que haja notícia de, entretanto, ter adotado qualquer outro comportamento merecedor de censura, o facto é que o decurso do tempo não pode ser considerado como indicador de o arguido/recorrente ter arrepiado caminho da criminalidade e muito menos um fator a ponderar ao abrigo do artigo 72.º, do Código Penal [que o arguido/recorrente também diz ter sido violado, sem concretizar, porém, de que forma o foi]. Com efeito, basta atentar que entre a data da prática dos dois primeiros atos ocorridos [entre maio/junho de 2013 e março/abril de 2014] e a data da prática do último ato [ocorrido a 23 de maio de 2020] mediaram cerca de 6 anos e, pese embora tal distância temporal, sem que nada, portanto, o fizesse prever, o arguido/recorrente voltou a reincidir na atividade delituosa de idêntica natureza - de cariz sexual - e contra a mesma menor, já para não falar que não se lhe conhece a adoção de qualquer comportamento revelador de ter interiorizado o desvalor das suas condutas.
Como bem o concluiu o tribunal a quo “… apesar de o mesmo não ter antecedentes criminais, não revelou em qualquer momento autocensura ou sinais de arrependimento, não se evidenciando que o mesmo apresente um juízo crítico adequado quanto aos contactos sexuais que manteve com a ofendida, criança que abordou … na casa onde esta se encontrava e onde, legitimamente, se deveria considerar segura.”.
Em suma, atentando nas circunstâncias supra enunciadas, à respetiva moldura penal abstrata prevista para os tipos de crime em apreço e os referidos critérios de determinação da pena concreta, entendemos que não merece qualquer censura a decisão impugnada, que, ao contrário do defendido pelo arguido/recorrente encontra-se devidamente ponderada e fundamentada, ao impor-lhe as penas parcelaresconcretas de 5 [cinco] anosde prisão para cada um dos dois crimes de abuso sexual de crianças agravados [cuja moldura penal se situa entre 4 e 13 anos e 4 meses de prisão] e de 18 [dezoito] mesesde prisão relativamente ao último crime da mesma tipologia criminal não agravado [cuja moldura penal se situa entre 1 e 8 anos de prisão], já próximas, aliás, do seu limite mínimo legal, e, como tal, as mesmas permanecerão intocáveis.
E porque o arguido pugna pela redução substancial da pena única aplicada como consequência da redução das penas parcelares para próximo dos seus mínimos legais, o que, como acabamos de ver, não merece provimento, a pena única aplicada terá de permanecer, igualmente, intocada.
De qualquer forma, mesmo que o arguido/recorrente pugnasse pela sua redução independentemente da peticionada redução das penas parcelares, sempre seria a mesma de manter, pois foi aplicada em obediência às regras da punição do concurso ínsitas no artigo 77.º do Código Penale a sua fixação encontra-se em consonância com a personalidade do arguido revelada aquando da prática dos factos, que demonstra uma total indiferença para com os interesses legalmente tutelados, resultando patente na sua atuação a evidência da sua personalidade mal formada. Acresce atentar que, posteriormente, não manifestou qualquer ato de arrependimento ou reflexão sobre a gravidade da sua conduta, tendo, antes, optado pela negação dos factos. Além disso, teve como limite a respetiva culpa, bem como todos os demais elementos decisórios subsumíveis aos critérios legais a ter em conta, e até foi fixada muito próxima do mínimo legal. Note-se que estamos a falar de uma pena única de 7 anos de prisão encontrada dentro de uma moldura abstrata situada entre o mínimo de 5 anos e o máximo de 11 anos e 6 meses de prisão. Improcede, portanto, o recurso interposto pelo arguido/recorrente no que respeita à dosimetria das penas parcelares e única.
E, assim sendo, a pretendida suspensão da execução da pena de prisão aplicada soçobra de imediato, desde logo pela inobservância do seu pressuposto formal, ínsito no artigo 50.º do Código Penal, que impunha que a pena de prisão aplicada não fosse superior a 5 anos.
Não se encontra, portanto, violada pelo tribunal a quo qualquer uma das disposições legais/constitucionais invocadas pelo arguido/recorrente.
Diga-se, aliás, que não se descortina de que forma pudesse ter sido violado o apontado artigo 70.º do Código Penal que se refere ao critério de escolha da pena quando a tipologia criminal em causa nestes autos nem sequer prevê a aplicação, em alternativa, de pena privativa e pena não privativa da liberdade, mas apenas a pena de prisão; de que forma possa ter sido violado o artigo 48.º do Código Penal que se refere à substituição da multa por trabalho e muito menos qualquer possibilidade de terem sido violados os artigos 34º, n.º 1 e 35º, ambos do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/01, quando esses normativos se reportam a LEGISLAÇÃO DE COMBATE À DROGA. Crê-se, na verdade, que a sua convocação em sustento do recurso em apreço só poderá dever-se a mero lapso do arguido/recorrente.
Quanto ao pedido de indemnização civil:
Insurge-se, ainda, o arguido/recorrente contra a sua condenação no pagamento à menor BB da quantia de €20.000,00, que foi fixada, a título de indemnização devida, pelo tribunal a quo.
Argumenta, para o efeito, que tal condenação não está devidamente fundamentada, uma vez que em sítio nenhum a ofendida fez prova dos danos que teve; não são referidas no acórdão recorrido quais as particulares exigências de proteção da vítima que dão base a esta reparação e que, mesmo que se admitisse a condenação, seria sempre um valor exagerado considerando as condições sócio-económicas do arguido, já que o não possui quaisquer bens ou rendimentos certos, e não tem meios de proceder a tal pagamento.
Vejamos:
O tribunal a quo fixou a indemnização a pagar pelo demandado/recorrente à demandante/ofendida, a título de danos não patrimoniais sofridos, decorrentes da conduta perpetrada por aquele, no valor de €20.000,00.
E, para assim decidir, refere o tribunal a quo no acórdão recorrido o seguinte: “(…) Ora, descendo ao caso dos autos, não oferece dúvida que se mostram verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, consagrada no citado artigo 483º, a saber: facto ilícito, nexo de imputação do facto ao agente, dano, e nexo causalidade entre o facto e dano. Com efeito, o arguido, com as suas condutas ilícitas, imputáveis a título de dolo, causou danos na esfera jurídica da vítima que se conexionam com os factos ilícitos praticados numa relação de causalidade adequada. Constituiu-se, assim, o arguido na obrigação de indemnizar a ofendida. A demandante peticiona o ressarcimento de danos morais por si sofridos em consequência da conduta do arguido, que computa em 50.000,00 €. A lei remete a fixação dos montantes indemnizatórios a este título devidos para critérios de equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso – cfr. artigos 496º e 494º do C.C. A indemnização devida para ressarcimento destes danos reveste uma natureza mista, já que, por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada e, por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar, no plano civilístico, e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, pag. 488. Para a formulação do juízo de equidade, que norteará a fixação da compensação pecuniária por este tipo de dano, vale, até ao presente, a lição dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, no «Código Civil Anotado», vol. I, pág. 501: «O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.». Face à factualidade que ficou apurada quanto aos atos praticados pelo arguido, a sua natureza e grau de gravidadeesuas consequências, é manifesto que objetivamente tais condutas colocaram em risco, de forma relevante, o direito a um são e livre desenvolvimento da menor ofendida, e a sua saúde psíquica, o equilíbrio emocional, mas também a sua saúde física e integridade. Recorde-se que a conduta criminosa do arguido, primeiro quando a vítima tinha apenas 4 anos e, depois, com 11 anos (talvez fazendo ressurgir imagens e traumas guardados na memória), foi causa de uma perturbação mental que, ainda hoje, faz dela uma jovem triste, ansiosa, receosa, introvertida, com baixa autoestima, isto apesar do acompanhamento médico e farmacológico que mantém. Só a ideia de se cruzar com o arguido aterroriza a ofendida. Das condutas do arguido resultam, como resultaram efetivamente, para além de dores físicas (reportadas aos episódios mais antigos), traumas psicológicos, que afetam o dia a dia da menina, como se disse, tornando-a mais triste, envergonhada e retraída perante terceiros, em especial do sexo oposto. De acordo com a perícia realizada nos autos, a menina “evidencia sintomatologia ansiosa e depressiva clinicamente significativa, a qual se revela compatível com a sintomatologia tipicamente apresentada por vítimas de crimes desta natureza” – cfr. facto n.º 20. Com o seu comportamento, o arguido provocou na BB um estado de insegurança e de instabilidade, um sentimento de fragilização e humilhação por ter sido sujeita a tratamento incompatível com a sua dignidade enquanto ser humano e enquanto criança. Considerando a natureza dos crimes cometidos pelo arguido e o seu grau de culpabilidade, a idade da ofendida/demandante, o período de tempo durante o qual se desenvolveram as condutas delituosas, os concretos e comprovados danos que para a demandante derivaram do comportamento do arguido, sem no entanto olvidar as condições pessoais e precária situação económica do arguido, entende-se, por equitativa e justa, fixar a compensação a pagar pelo demandado/arguido à ofendida no montante de 20.000,00 €, absolvendo-o do mais peticionado. (…)”. [sublinhado e negrito nossos].
Aqui chegados, desde logo cumpre referir que não se descortina de que forma se sustenta a argumentação de que o tribunal a quonão fundamentou a decisão ao condenar o demandado/recorrente na mencionada indemnização por danos não patrimoniais, bastando, para tanto, atentar no trecho da decisão ora transcrito para se concluir o contrário, sendo certo que a discordância que o recorrente possa ter relativamente à sua condenação a esse título, não se prende com qualquer falta de fundamentação, tal como não se prende com a alegada falta de prova dos danos que a menor BB teve em consequência da descrita conduta do arguido/demandado, factualidade essa, aliás, que em momento algum da peça recursiva foi impugnada pelo demandado/recorrente.
Também não descortinamos a que particulares exigências de proteção da vítima carecia o tribunal a quo de fazer referência para sustentar a ora contestada condenação do demandado/recorrente, pois que este não as concretiza.
Prosseguindo, diremos que a condenação em causa encontra sustento nos invocados artigos 129.º do Código Penal e artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1, ambos do Código Civil, tal como, e bem, assim o entendeu o tribunal a quo.
Na verdade, os pressupostos legais que dali decorrem encontram-se verificados no caso em apreço, não havendo necessidade de tecer quaisquer outras considerações, não se questionando, sequer, que a situação dos autos preenche os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos e a obrigação de o arguido/demandado indemnizar a ofendida/demandante pelos danos não patrimoniais por esta sofridos em consequência dos crimes de abuso sexual, pelo qual o arguido/demandado foi condenado, danos esses cuja gravidade e necessidade de tutela do direito encontra-se indubitavelmente reconhecida [cfr., respetivamente, artigos 483.º e 496.º, n.º1, do Código Civil].
Quanto à discordância reportada ao montante indemnizatório fixado, que o demandado/recorrente entende ser exagerado, considerando as suas condições sócio-económicas, cumpre atentar que, como é consabido, a indemnização, além de sancionar o lesante pelos factos que praticou e que causaram danos a terceiro, visa permitir atenuar, minorar e de algum modo compensar o lesado pelos danos que sofreu, permitindo-lhe a satisfação de várias necessidades de teor monetário. Pretende compensar o lesado, na medida do possível, dos danos que suportou e que se mantêm [artigos 562.º e 564.º do Código Civil].
E, porque neste tipo de danos é evidente a impossibilidade de reparação natural dos mesmos, no cálculo da respetiva indemnização deve recorrer-se à equidade [artigo 566.º, n.º 1 do Código Civil], tendo em conta os danos causados, o grau de culpa, a situação económica do lesante e do lesado e as circunstâncias do caso [artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil]. Estes danos – que tradicionalmente eram designados de danos morais - resultam da lesão de bens estranhos ao património do lesado (a integridade física, a saúde, a tranquilidade, o bem-estar físico e psíquico, a liberdade, a honra, a reputação,…), verificando-se quando são causados sofrimentos físicos ou morais, perdas de consideração social, inibições ou complexos de ordem psicológica, vexames, etc., em consequência de uma lesão de direitos, maxime, de personalidade[23]. Abrangem, assim, prejuízos como as dores físicas, o sofrimento psicológico, os desgostos morais, os vexames e os complexos de ordem estética de cada lesado que, não sendo suscetíveis de avaliação pecuniária, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente.
Como salienta o Supremo Tribunal de Justiça,[24]“sendo certo que nestes casos a indemnização não visa propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido, é mister que tal compensação seja significativa, e não meramente simbólica. A prática deste Supremo Tribunal acentua cada vez mais a ideia de que está ultrapassada a época das indemnizações simbólicas ou miserabilistas para compensar danos não patrimoniais. Importa, todavia, sublinhar que indemnização significativa não quer dizer indemnização arbitrária. O legislador manda, como vimos, fixar a indemnização de acordo com a equidade, sem perder de vista as circunstâncias, já enunciadas, (…) – o que significa que o juiz deve procurar um justo grau de “compensação”.
Sendo o grau da culpa do lesante relevante na fixação do quantum indemnizatório, necessariamente se terá de concluir que a responsabilidade civil em causa, de natureza compensatória, reveste-se, ainda, de uma função punitiva[25].
Ou seja, “(…) a responsabilidade civil deve assumir uma postura mais avançada, retribuindo o mal e prevenindo ofensas (…). Há, pois, que facilitar a imputação aquiliana, no tocante a danos morais (…) reforçando as indemnizações (…)”[26]
No que concerne à componente ressarcitória / punitiva da compensação por danos não patrimoniais, ensinam, entre outros: Menezes Cordeiro, [27], “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”; Galvão Telles, [28], sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma “pena privada, estabelecida no interesse da vítima – na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”.
No caso em apreço, como vimos, não se coloca sequer em causa quanto a ter a menor BB sofrido danos - no caso de natureza não patrimonial -, sendo igualmente inquestionável que estes assumem gravidade suficiente para justificar a intervenção reparadora do direito e o tribunal a quo fixou a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima, com recurso a critérios de equidade, o que podia fazer, porque previsto legalmente, como vimos.
E, não se esquece que pese embora os tribunais de recurso possam alterar o valor da indemnização pelo dano fixado com recurso a critérios de equidade, só o devem fazer quando o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida, sempre tendo presente, ainda, que essa indemnização deve ser atual, conforme decorre do artigo 566.°, n.° 2, do Código Civil e Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2002, Diário da República, I Série A, n.º 146, de 27/09/2002.
Ora, atentando nos considerandos supra expostos, verifica-se que não assiste qualquer razão ao recorrente ao entender que a indemnização fixada pelo tribunal a quo [a saber: €20.000,00] se afigura exagerada como compensação devida.
Com efeito:
É inegável a extensão e gravidade dos danos sofridos pela vítima, nos termos em que resultam espelhados na factualidade provada, decorrentes da conduta do arguido/demandado/recorrente, nos termos em que já se analisou supra e que deixam marcas para a sua vida. Na verdade, a ofendida BB, menor de idade, com 4/5 anos e 11 anos, respetivamente, aquando da prática dos factos, viu invadida a sua privacidade de forma flagrante, desde tenra idade, sendo obrigada a manter contactos de natureza sexual com o arguido/demandado, homem adulto, seu tio-avô.
Não se pode esquecer que não estamos perante crimes de pequena gravidade, mas sim perante crimes de abuso sexual de uma menor, que integram o padrão de criminalidade especialmente violenta [cfr. artigo 1º, alínea l), do Código de Processo Penal], e que não constituiu um ato isolado, mas sim repetido, ocorrido por duas vezes, quando a menor BB contava com a tenra idade de 4/5 anos e do qual foi novamente vítima, quando já tinha perfazido os seus 11 anos de idade, volvidos cerca de 6 anos, portanto, sem que nada fizesse prever que fosse novamente vitimizada.
O grau de culpa do demandado/lesante é intenso, na sua forma mais gravosa - dolo direto -, tendo o ato lesivo sido intencionalmente praticado com consciência da sua ilicitude penal em todas as circunstâncias [artigo 14º, nº1, do Código Penal].
A situação económica que é conhecida ao arguido não se pode, de facto, de caracterizar de desafogada, mas também não o é miserável, decorrendo dos factos provados, ao contrário do que alega, que se encontra a trabalhar, na construção civil, auferindo um rendimento, ainda que correspondente ao salário mínimo nacional.
Acresce que, pese embora não tenha antecedentes criminais, não assumiu os seus atos, manifestando falta de consciência autocritica e uma ausência de empatia para com a ofendida.
Aqui chegados, tendo em conta as circunstâncias em que os factos ocorreram, a extensão e consequências dos danos, a situação económica do arguido/demandado, única que se conhece, e a dimensão punitiva da indemnização por danos não patrimoniais, entendemos que a indemnização fixada pelo tribunal a quo afigura-se adequada e justa, não merecendo qualquer reparo e que, por isso, se mantem.
Consequentemente, improcede o presente recurso também quanto a este particular segmento recursivo.
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido/demandado e, em consequência, confirma-se o acórdão recorrido.
Custas pelo arguido/demandado/recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 UCS [artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique.
Guimarães, 11 de novembro de 2025
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]
Os Juízes Desembargadores
Isilda Pinho [Relatora]
Paulo Almeida Cunha [1.º Adjunto]
António Teixeira [2º Adjunto]
[1] Não apresentou conclusões. [2] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt. [3] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95. [4] Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 19-12-2019, Processo nº 10/18.1GBFTR.E1, acessível em www.dgsi.pt. [5] Acórdão do STJ de 12/4/2000, Proc. n.º 141/2000 - 3ª, SASTJ, n.º 37, pág. 83. [6] Acórdão do STJ de 13/2/92, Colectânea de Jurisprudência, Ano XVII, Tomo I, pág. 36; Acórdão do Tribunal Constitucional de 2/12/98, DR, IIª Série, de 5/3/1999. [7] Ac. do STJ, de 15-10-2008, citando o acórdão do mesmo Tribunal, de 03-10-2007, Proc. n.º 07P1779 -3.ª. [8] Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.. [9] Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pág. 74. [10] Acórdão do TRC de 24-04-2018, P. n.º 1086/17.4T9FIG.C1, in www.dgsi.pt [11] Acórdão do STJ, de 98-07-09, Proc. 1509/97, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 77. [12] Conforme acórdão do S.T.J, n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012. [13] Acórdão do TRL, da 5.ª Secção, datado de 16-11-2021, Processo n.º 1229/17.8PAALM.L1-5, in www.dgsi.pt [14] Neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 06-06-2017, Processo 224/13.0PTFUN.L1-5, in www.dgsi.pt [15] Cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ, de 04-10-2006, Processo n.º 812/06-3.ª; de 08-03-2006, Processo n.º 185/06-3.ª; 04-01-2007, Processo n.º 4093-3.ª e de 10-01-2007, Processo n.º 3518/06-3.ª. [16] Neste sentido, entre outros, veja-se o Acórdão do STJ, de 07-10-2004, Proc. nº 3286/04, 5ª Secção; Além do acórdão já citado do TRL, ainda o Acórdão do TRL, datado de 05-04-2019, Processo n.º 349/17.3JDLSB.L1-9, ambos in www.dgsi.pt e Acórdãos do Tribunal Constitucional, nºs 259/2002, de 18-06-2002 e 140/2004, de 10-03-2004, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos. [17] Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, 1.º vol., pág. 202. [18] Cfr. Acórdãos do STJ de 09-05-2002, in CJ do STJ, 2002, Tomo 2, pág. 193 e de 27-05-2009, Processo n.º 09P0484, acessível em www.dgsi.pt [19] Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime”, pág. 197 [20] In CJ do STJ, ano 2005, Tomo III, pág. 173. [21] De acordo com os ensinamentos de Anabela Miranda Rodrigues, in “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, abril/junho de 2002, págs. 147 e ss. [22] Cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 227 e ss. [23] Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, págs. 85 e 86. [24] Acórdão de 25 de outubro de 2007, Processo n.º 07B3026, in www.dgsi.pt. [25] Neste sentido, entre outros, Pereira Coelho, in Culpa do lesante e extensão da reparação, RDES, ano VI, 1950/51, pág.68; Vaz Serra, in Obrigação de indemnização, BMJ 84, 1959, pág.126, e Menezes Leitão, in Direito das obrigações, vol. I, 6ª edição, Almedina, pág.338. [26] Menezes Cordeiro, in Da responsabilidade civil …, Lisboa, 1997, pág.482. [27]In Direito das Obrigações, 2° vol., pág. 288. [28]In Direito das Obrigações”, pág. 387.