PROCEDIMENTO CONTRA-ORDENACIONAL
NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
NULIDADE DA ACUSAÇÃO
DEVOLUÇÃO À AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
ARQUIVAMENTO
Sumário


1. O Direito de Mera Ordenação Social tem origem nas contravenções, inicialmente abrangidas pelo Direito Penal, e posteriormente transferidas para àquele campo específico, da competência, em primeira mão, das autoridades administrativas.
2. Procedeu-se deste modo atenta a neutralidade axiológica destas infrações, e também com o fim de diminuir a enorme carga de trabalho que o seu julgamento aportava aos tribunais comuns.
3. Todavia, assegurou-se a possibilidade de recorrer aos tribunais comuns, caso não exista aceitação da sanção fixada através da decisão administrativa.
4. Caso essa aceitação não ocorra, e seja apresentada impugnação judicial, aquela decisão (toda ela) deixa de o ser, e passa a ter a natureza de acusação. Ou seja, como o destinatário se sentiu prejudicado nos seus direitos individuais, e pediu a intervenção do tribunal, tudo se reconfigura, e este órgão de soberania reganha a originária competência para decidir a questão, postergando-se assim todo o percurso de trasladação de competências acima descrito, tudo se passando como se de um processo comum se tratasse, com uma acusação a submeter a julgamento, só de direito ou de direito e de facto (sem prejuízo da restrição constante do art.º 75.º, n.º 1, do RGCO).
5. Assim, as imperfeições da decisão administrativa devem ser encaradas como imperfeições da acusação.
6. Ocorrendo a referida impugnação judicial, estas imperfeições devem ser resolvidas nos termos aplicáveis à acusação em processo penal, não permitindo a lei a devolução dos autos à autoridade administrativa para respetiva sanação.
7. Apresentada a impugnação judicial, se a decisão/acusação for omissa em relação a factos indispensáveis para a integração típica, a situação é configurável como inviabilidade substantiva da acusação, o que conduz à classificação esta como manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.º, 2 alínea b), do Código de Processo Penal, e ao consequente arquivamento dos autos.

Texto Integral


I RELATÓRIO

1 No processo n.º1463/25.7T9BRG, do Juízo Local Criminal de Braga - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi proferido despacho do seguinte teor:

Pelo exposto, e ao abrigo dos normativos citados, decido declarar nula a decisão administrativa recorrida, bem como todos os atos subsequentes, ordenando-se a repetição dos actos necessários da autoridade administrativa por forma a suprir as deficiências acima apontadas.

2 Não se tendo conformado com a decisão, a arguida apresentou recurso, formulando as seguintes conclusões:

a)
O presente Recurso vem interposto da decisão do Tribunal a quo que, na sequência do Recurso de Impugnação Judicial da Recorrente, declarou, e bem, a nulidade da decisão administrativa com fundamento em: (i) omissão de pronúncia; (ii) falta de indicação do elemento subjetivo; (iii) falta de especificação de factos que pudessem preencher os elementos objetivo e subjetivo imputado à ora Recorrente; e (iv) não cumprimento dos pressupostos de imputação à pessoa coletiva.
b)
Apesar de assim, e bem, ter decidido, o Tribunal a quo, erradamente, ordenou a repetição dos atos necessários da autoridade administrativa por forma a suprir as referidas deficiências.
c)
Na verdade, perante tais vícios, ao Tribunal a quo incumbia, apenas, determinar o arquivamento do processo.
d)
O artigo 64.º, n.º 3, do RGCO, aplicável ex vi artigo 79.º do RJCE, permite ao Tribunal apenas uma de três decisões: (i) arquivar; (ii) absolver; ou (iii) manter/alterar a condenação proferida pela autoridade administrativa
e)
No confronto com a letra da lei e a vasta jurisprudência dos Tribunais Nacionais Superiores, a Decisão acaba, assim, por gerar incerteza e insegurança na aplicação do Direito e justificar o efetivo esclarecimento sobre a consequência da declaração de nulidade da decisão administrativa com base nos vícios identificados corretamente pelo Tribunal a quo (artigo 75.º, n.º 2, do RJCE).
f)
A consequência jurídica da nulidade da decisão administrativa (materialmente equivalente a uma Acusação a partir da sua remessa para Tribunal), com fundamento nos vícios supra referidos, não pode ser outra senão o arquivamento dos autos, como tem sido confirmado por vasta e reiterada jurisprudência dos Tribunais Superiores.
g)
Sem pretensões de exaustividade: (i) Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23 de abril de 2024 (processo n.º 1190/23.0T8OLH.E1); (ii) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8 de novembro de 2023 (processo n.º 767/23.8T9VNG.P1); (iii) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19 de novembro de 2024 (processo n.º 362/20.3EABRC.G1); (iv) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19 de setembro de 2024 (processo n.º 1891/23.2T9VRL.G1); (v) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29 de maio de 2023 (processo n.º 485/22.4T9BRC.G2); (vi) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 30 de junho de 2016 (processo n.º 808/16.5T8VCT); (vii) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19 de maio de 2016 (processo n.º 4302/15.3T8VCT.G1); (viii) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 31 de outubro de 2019 (processo n.º 344/19.8T9MFR.L1-9); e (ix) o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de janeiro de 2007 (processo n.º 06P3202).
h)
Assim, violando o artigo 64.º, n.º 3, do RGCO, ex vi artigo 79.º do RJCE, e a natureza do processo contraordenacional (em que a decisão administrativa em tribunal vale materialmente como “Acusação”), a Decisão a quo deve ser revogada na parte em que ordena a repetição dos atos pela autoridade administrativa, e substituída por outra que determine o arquivamento do processo.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, DEVERÃO V. EX.AS:

A)
ADMITIR O PRESENTE RECURSO, JULGANDO-O PROCEDENTE;
B)
REVOGAR A DECISÃO DE QUE SE RECORRE NA PARTE EM QUE ORDENA A REPETIÇÃO DOS ATOS NECESSÁRIOS PELA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA POR FORMA A SUPRIR OS DIVERSOS VÍCIOS;
C)
E, EM CONSEQUÊNCIA, DETERMINAR O ARQUIVAMENTO DO PROCEDIMENTO CONTRAORDENACIONAL, POR FORÇA DA NULIDADE DECLARADA E DA INEXISTÊNCIA DE FUNDAMENTO LEGAL PARA A REPETIÇÃO DO PROCEDIMENTO.

3 O Ministério Público respondeu ao recuso, pugnando pela sua improcedência.

4 Recebidos os autos neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5 Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente apresentou resposta.

6 Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

II FUNDAMENTAÇÃO

1 Objeto do recurso:

Em caso de inviabilidade substantiva da acusação originada em decisão administrativa proferida em processo contraordenacional, pode o tribunal ordenar a devolução dos autos ao decisor para repetição dos atos necessários (…) a suprir as deficiências em que aquela imperfeição se consubstancia?

2 Decisão recorrida:

Por decisão proferida em pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, foi a arguida EMP01..., S.A., ora Recorrente, condenada pela prática da contra-ordenação p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1 al. a), 20.º, n.º 3, 21º e 24.º, n.º 1 al. dd) e n.ºs 3 e 4 do Decreto-lei n.º 95/2011, de 8 de Agosto.
Inconformada com a decisão, a Recorrente interpôs recurso de impugnação judicial para este Tribunal, alegando, para além do mais, que não foi considerado o por si alegado em sede de direito de defesa, o que consubstancia uma nulidade.
Desde já avançamos que entendemos que assiste razão à recorrente.
Vejamos de forma mais pormenorizada.
Em sede administrativa, a Recorrente pronunciou-se acerca das contra-ordenações que lhe eram imputadas, alegando, além do mais, e no que ao caso interessa, que o não expediu o barrote em causa, explicitou o procedimento de aquisição de paletes, as características das paletes que adquire ao seu fornecedor; os procedimentos instituídos para a recepção e verificação das paletes, o armazenamento e expedição dos produtos, bem como quem as conduz até ao seu destino final.
Peticionou, assim, pelo arquivamento dos autos, ou subsidiariamente pela substituição da coima por admoestação ou, caso assim não se entendesse, pela sua atenuação especial.
Todos estes factos, alegados pela ora recorrente, deviam ter sido apreciados em sede administrativa pois são susceptíveis de influir na decisão final.
Porém, e especificamente quanto ao teor da defesa apresentada, na decisão recorrida nada se refere a este propósito, mormente acerca da concreta factualidade alegada (já que a Recorrente não se limita a confirmar os factos, apresentando outrossim factualidade que poderia influir na sua concreta responsabildiade) e concomitante consideração da mesma como provada ou como não provada, em ordem à correcta aplicação do Direito e determinação da medida concreta da coima, ou, em alternativa, à consideração da mesma como irrelevante para a decisão da causa.
A decisão recorrida é, pois, nesta medida, totalmente omissa.
Em idêntico diapasão, e se é certo que a admoestação não pode ser aplicada a infracções graves, o que não dispensa a entidade administrativa de se pronunciar quanto a exacta questão por tal ter sido expressamente e invocado pela recorrente, não se vislumbra em que momento da decisão administrativa a mesma foi ponderada, mesmo que a decisão fosse no sentido da sua não aplicação, o mesmo se aplicando quanto a uma eventual atenuação especial da pena, tal como peticionado pela recorrente.
No sentido da nulidade da decisão em caso de violação do dever processual que a autoridade administrativa tem em relação às partes, de se pronunciar sobre todas as questões suscitadas (como corolário do dever das partes de suscitarem as questões que pretendem ver decididas), mas por reporte ao disposto no art. 379.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal, vide Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra Ordenações, Anotações ao Regime Geral, Vislis, 2005, 3.ª Ed., p. 389. Também no sentido da aplicação do preceituado no CPP em sede de nulidade de sentença, cfr. o Ac. TRL de 07-07-2009 (Processo no 725/08.2TBPNI-5), integralmente disponível em www.dgsi.pt.
Assim, dúvidas não restam de que a decisão administrativa padece de nulidade por não conhecer os apontados pontos da defesa oportunamente deduzida pela Recorrente.
Em face do exposto, julgo verificada a nulidade apontada.
No mais, nos termos do art.º 58.º, n.º 1, als. b) e c), do RGCOC, a decisão administrativa final deve conter a indicação dos factos imputados e a fundamentação da decisão.
Citando António Beça Pereira, em “Regime Geral das Contra-Ordenações e coimas”, 6.ª edição, Almedina, pág. 110, “a decisão condenatória deve especificar quais os factos que considera provados, bem como a prova de que eles resultam.
Não deve a autoridade administrativa substituir essa descrição dos factos, por conceitos jurídicos (nomeadamente os que constam da norma incriminadora) ou por expressões conclusivas”.
Assim e desde logo, para a decisão administrativa estar conforme ao disposto neste artigo, é necessário que contenha a “descrição dos factos imputados”, uma vez que o artigo 1.º do RGCCO dispõe que “constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.”.
 A decisão administrativa que aplique uma contraordenação tem que descrever os factos provados relativos aos elementos em que se consubstancia, quer objectivos, quer subjectivos. Isto porque não se pode, sem mais, presumir que a arguida agiu em violação da norma que prevê a contra-ordenação em questão.
O que atrás fica dito é corroborado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores. De facto, a título de exemplo, pode ler-se no Acórdão do STJ de 10/01/07, (Recurso 06P2829, in www.dgsi.pt), que: “I - Dada a natureza (sancionatória) do processo por contra-ordenação, os fundamentos da decisão que aplica uma coima (ou outra sanção prevista na lei para uma contra-ordenação) aproximam-na de uma decisão condenatória, mais do que de uma decisão da Administração que contenha um acto administrativo. Por isso, a fundamentação deve participar das exigências da fundamentação de uma decisão penal – na especificação dos factos, na enunciação das provas que os suportam e na indicação precisa das normas violadas. II - A fundamentação da decisão deve exercer, também aqui, uma função de legitimação–interna, para permitir aos interessados conhecer, mais do que reconstituir, os motivos da decisão e o procedimento lógico que determinou a decisão em vista da formulação pelos interessados de um juízo sobre a oportunidade e a viabilidade e os motivos para uma eventual impugnação -, e externa, para possibilitar o controlo, por quem nisso tiver interesse, sobre as razões da decisão. III - A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do art. 58.º, n.º 1, do RGCC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efectivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem”.
Também no Acórdão do STJ 21/12/06, (Processo 06P320, in www.dgsi.pt), pode ler-se que “I - A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do art. 58.°, n.º 1, do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contra-ordenacional, pois a própria Constituição estende a este tipo de processos essas garantias (art. 32.°, n.º 10). II - Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem” - cf. Ac. deste STJ de 21-09-2006, Proc. n.º 3200/06 - 5.ª. III - Nesse aspecto, a decisão condenatória em matéria contra-ordenacional, apresentando alguma homologia com a sentença condenatória em processo penal, tem uma estrutura semelhante a esta última, se bem que mais concisa, por menos exigente devido à sua menor incidência na liberdade das pessoas, devendo conter a identificação dos arguidos, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas aplicáveis e a fundamentação da decisão”.
A matéria de facto tida por provada limita-se a descrever o tipo contra-ordenacional, encerrando em si conceitos jurídicos e conclusivos, os quais têm necessariamente que ser concretizados factualmente,
Acresce que é insofismável que as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas colectivas. Contudo, a responsabilização destas últimas apresenta algumas exigências acrescidas em virtude do princípio da culpa que anima, sem excepção, todo o direito sancionatório.
Na verdade, só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência (art. 8.º, n.º 1, do RGCO). Em conformidade com esta exigência da culpa, as pessoas colectivas apenas são responsáveis pelas contra-ordenações ambientais praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções (art. 7.º, n.º 2, do RGCO).
Conforme se lê no aresto do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 11.07.2024, disponível no sítio da internet www.dgsi.pt, que seguimos de perto “(…) as pessoas colectivas só serão responsáveis pela prática de uma contra-ordenação ambiental se forem identificados comportamentos típicos negligentes ou dolosos dos respectivos órgãos no exercício das suas funções.
Dir-se-á que, nesta matéria da responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas, o RGCO segue o modelo de imputação orgânica, isto é, só o acto do órgão cometido no exercício das suas funções responsabiliza a pessoa colectiva (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, “Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações”, 2.ª Edição, 2022, p. 58).
As consequências deste modelo estão à vista: a pessoa colectiva não pode ser responsabilizada sem identificação de qualquer órgão ou titular do órgão que cometeu os factos de conexão (vide, por exemplo: Ac. TRE 18.06.2013, p. 715/12; Ac. TRC 11.01.2023, p. 411/22,  disponíveis em www.dgsi.pt).
Segundo GERMANO MARQUES DA SILVA, “ O conceito de órgão numa sociedade não suscita dificuldades especiais, quando se refere a órgãos de direito. Basta analisar a legislação referente às sociedades e aos respectivos estatutos. Estes órgãos são constituídos por uma ou várias pessoas físicas que actuam colegialmente às quais a lei ou os estatutos atribuem uma função particular na organização da sociedade.” (“Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e representantes”, Editorial Verbo 2009, pág. 228).”.
Voltando ao caso dos autos, desconhece-se quem agiu negligentemente em representação da sociedade recorrente, inexistindo qualquer alusão à comissão ou omissão por parte do gerente da sociedade ou alguém a seu mando.
Para este efeito, bastava a imputação do facto ao órgão da pessoa jurídica efectivamente competente para o cumprimento do dever em causa, bastando para tanto a identificação funcional e não sendo exigível uma identificação individual ou biográfica da pessoa que actuou ou devia ter actuado (AUGUSTO SILVA DIAS/RUI SOARES PEREIRA, “Direito das Contra-Ordenações”, 2.ª Edição, 2022, pp. 117-120).  
E a ausência do que se expôs assume toda a relevância na medida em que impossibilita, desde logo, que seja estabelecido o nexo de imputação objectiva entre o próprio facto típico e a pessoa colectiva. Isto porque, para efeito de imputação de factos culposos à sociedade colectiva é completamente desadequado e insuficiente fazer uso de expressões antropomórficas para alegar e dar como provado que “o(a)s arguido(a)s tinham o dever de cumprir as regras que regem o seu setor de atividade, mais concretamente, de não expedir e transportar, para fora da zona ZR, embalagens de madeira de coníferas que não se encontram processadas e tratadas contra o nemátodo do pinheiro, tendo-se como certo que, ao atuar conforme descrito nos autos, não agiram com o cuidado as que estavam obrigado(a)s e de que eram capazes, através dos seus representantes e no exercício da sua actividade por si prosseguida”. Desconhece-se que o órgão da pessoa jurídica era efectivamente competente para o cumprimento do dever em causa, ou alternativa, sendo um trabalhador, se actuou de acordo com as instruções emanadas por representante da arguida com poderes para tal e no interesse desta última.
O R.G.C.C.O. não contém qualquer disposição relativa às consequências jurídico-processuais da violação do disposto no artigo 58.º. Porém, como ao processo de contraordenação são subsidiariamente aplicáveis os preceitos reguladores do processo penal (cfr. art.º 41.º do regime citado), e face ao paralelismo entre o disposto no artigo 58.º do regime geral das contraordenações e no artigo 374.º do Código de Processo Penal, tem aqui aplicação o preceituado no artigo 379.º, n.º1, alínea a), e n.º 2, do Código de Processo Penal, ou seja, a decisão é nula.
O citado artigo 379.º do Código de Processo Penal não indica qual o regime de arguição das nulidades de sentença que enumera. Porém, se o artigo 380.º do mesmo diploma legal prevê que as irregularidades da sentença podem ser apreciadas oficiosamente pelo tribunal de recurso, a solução não pode deixar de ser a mesma no que respeita às nulidades (mais graves) previstas no artigo 379.º.
Transpondo este raciocínio para o processo de contraordenação, as nulidades da decisão administrativa podem ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal que decide o recurso dela interposto. Assim foi decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17/10/06, recurso 2194/06-1, www.dgsi.pt/jtre, onde se lê que “As nulidades da decisão administrativa são de conhecimento oficioso.”
Pelo mesmo ponto de vista se admite que, ainda que arguida a nulidade pela parte, o Tribunal conheça da mesma com base em fundamentos diferentes dos alegados.
 Pela tese da nulidade, pode ler-se o Acórdão do STJ de 10/01/07, (Recurso 06P2829, in www.dgsi.pt): “IV - A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão - sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material - tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não directa quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva: é o que dispõe o art. 41.º do RGCC sobre «direito subsidiário», que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal. V - Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contra-ordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no art. 374.º, n.º 1, al. a), do CPP para as decisões condenatórias.”
Idêntica opinião é expressa por Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in “Contra-Ordenações Anotações ao Regime Geral”, 2.ª edição, 2002, Vislis Editores, págs. 334 a 336.
Nestes termos, entende-se que, perante a decisão tomada, ora em apreciação, não é possível descortinar todas as razões e o substrato factual objectivo/subjectivo que determinaram a aplicação à arguida da coima, o que desde logo contende com as garantias de defesa da mesma. De harmonia com o preceituado no artigo 122.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, as nulidades tornam inválido o ato em que se verificam, bem como os que dele dependem, sendo que a declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos, ordenando-se, sempre que necessário e possível, a sua repetição.
No caso dos autos, nos termos dos normativos acima referidos, determina-se assim a nulidade da decisão administrativa e atos subsequentes, ordenando-se a repetição dos actos necessários por forma a suprir as deficiências acima apontadas, remetendo-se para o efeito os presentes autos à entidade administrativa.

*
Pelo exposto, e ao abrigo dos normativos citados, decido declarar nula a decisão administrativa recorrida, bem como todos os atos subsequentes, ordenando-se a repetição dos actos necessários da autoridade administrativa por forma a suprir as deficiências acima apontadas.
*
3 O direito.

Atentas as conclusões da recorrente e a resposta apresentada pelo Ministério Público, afigura-se absolutamente claro que é unânime nos autos que as incompletudes atribuídas pela decisão recorrida à decisão administrativa são indiscutidas, e, portanto, aceites por todos.
Assim, a decisão administrativa incorre em:
- Inconsideração de matéria de facto invocada em sede de defesa, com relevância para a determinação da responsabilidade e/ou medida da pena;
- Omissão de pronúncia em relação à sanção da admoestação, bem como à peticionada atenuação especial da coima;
- Inexistência de factos que permitam a responsabilização da pessoa coletiva.

A conclusão a que chegou a decisão recorrida é a seguinte:

Nestes termos, entende-se que, perante a decisão tomada, ora em apreciação, não é possível descortinar todas as razões e o substrato factual objectivo/subjectivo que determinaram a aplicação à arguida da coima, o que desde logo contende com as garantias de defesa da mesma.

Tal conclusão não é posta em causa nos autos, nem nos parece que o devesse ser, sendo absoluto o seu acerto.
Resta agora averiguar se a imperfeição em causa deve ser qualificada como nulidade, tal como faz a decisão recorrida, e qual o destino dos autos em face da situação assim surpreendida.
A situação que se nos depara nos autos tem sido alvo de clivagem Jurisprudencial e Doutrinal, tal como nos dão conta a decisão recorrida, e as conclusões do recurso e da respetiva resposta, todas contendo exuberante recolha de decisões, das quais resultam as diversas posições pertinentemente assumidas.
Em resumida síntese, podemos encontrar três orientações distintas:

-  nulidade, por aplicação do disposto nos artigos 41.º, n. º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10 (RGCO), e 379.º do Código de Processo Penal, havendo decisões que a consideram como sanável, mediante a remessa dos autos à entidade administrativa decisora para suprimento, e decisões que negam essa salvífica remessa, ordenando o arquivamento dos autos;
- irregularidade, também por aplicação do disposto no artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, mas desta feita com recurso ao disposto no artigo 123.º, do Código de Processo Penal – a Jurisprudência tem restringido esta figura aos casos previstos no n.º 2 do art.º 58.º do RGCO (Ac. Tribunal da Relação do Porto, 18/10/2006, disponível http://jurisprudência.csm.org.pt), mas há posições que a estendem a todos os casos naquela norma previstos (Beça Pereira, Regime Geral das Contraordenações e Coimas, Almedina, 13.ª Edição, pag.174;
- rejeição da acusação, ainda por aplicação do aludido artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, desta feita com recurso ao disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal – cfr. também a abrangente resenha Jurisprudencial recolhida por António Beça Pereira, in Regime Geral das Contraordenações e Coimas, Almedina, 13.ª Edição, pag. 174/189.
No tocante ao enfoque da nulidade, parte-se do pressuposto que a decisão administrativa que aplica uma coima no âmbito de um processo de contraordenação apresenta relevante homologia com a sentença penal, pelo que a omissão de previsão no artigo 58.º do RGCO sobre a sanção aplicável ao incumprimento dos requisitos elencados no seu n.º 1, terá de ser a que consta do artigo 379.º do Código de Processo Penal.
No que se refere ao enfoque da rejeição da acusação, atenta-se particularmente em que a impugnação judicial daquela decisão administrativa a metamorfoseia legalmente em acusação, nos termos do art.º 62.º, n.º 1, parte final, do RGCO, pelo que o incumprimento dos mencionados requisitos implica o recurso ao mecanismo de rejeição da acusação, por manifestamente infundada.
O campo do sistema jurídico que ora nos ocupa teve origem remota nas contravenções, domínio da infração criminal surgido na sequência da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, em virtude de a Administração ter assumido em pleno uma atividade policial de “proteção antecipada de perigos para a consistência dos direitos subjetivos particulares. (…) E assim surge um «direito penal policial» - depois crismado de direito penal administrativo -, que se distinguia do direito penal tradicional – ou direito penal de justiça – apenas por constituir uma linha avançada de defesa deste, visando a proteção, não de direitos subjetivos determinados, mas de uma série mais ou menos indeterminada de perigos de violação desses direitos” – cfr. Figueiredo Dias, RLJ, 116 (1983-4), pag.264, e Faria Costa, in O Perigo em Direito Penal, Coimbra Editora, pag. 363. Para distinguir crimes e contravenções era arrolado o crivo do juízo de censura ou do desvalor ético-social da conduta: os primeiros tinham por base condutas axiologicamente relevantes, as segundas derivavam de condutas axiologicamente neutras; os primeiros conferiam aos bens jurídicos uma proteção direta e imediata, as segundas logravam essa defesa de modo indireto, longínquo ou mediato – cfr. Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, AAFDL, 2.ª Edição, pag. 102 e Figueiredo Dias, O Movimento de Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social, Jornadas de Direito Criminal, C.E.J., 1983.
Este movimento de depuração ou purificação do direito penal (cfr. Teresa P. Beleza, ob. cit., pag. 114), como chegou a chamar-se-lhe, alicerçado no princípio da intervenção mínima daquele domínio do Direito, teve o seu epílogo com a criação do direito de mera ordenação social, entre nós inicialmente através do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24/07, que suscitou problemas de inconstitucionalidade, e, pouco depois, com o ainda hoje vigente Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10. “O que se pretendia incluir neste novo ramo do direito? Fundamentalmente aquilo que correspondia à ideia tradicional de contravenção. Isto é: não atos dotados de gravidade significativa, que são punidos também de uma maneira especialmente dura e significativa (…), mas um certo tipo de atuações cuja punição teria mais um significado de prevenção muito genérica de violação de certos bens jurídicos: (…) será o caso de uma pessoa que conduz um automóvel em excesso de velocidade.” – cfr. Teresa Pizarro Beleza, ob. cit. pag. 110.
Nesta sequência, o legislador encetou um caminho de rigorosa destrinça entre o que deveria pertencer a uma categoria ou outra, acabando até, nesse trajeto, por criar uma terceira figura, a contraordenação, sendo certo que através da Leis n.ºs 25/2006, de 30 de Junho, e 28/2006, de 04 de Julho, procedeu à extinção definitiva das contravenções ainda existentes no ordenamento jurídico pátrio. Atualmente, a dicotomia é, portanto, entre crimes e contraordenações.
“Porque é que se tem esta ideia (…) de que seria bom, separar o direito de mera ordenação social do direito penal? (…) as contravenções foram em certa altura incluídas no direito penal justamente para vincar essa ideia de que também em relação a elas era importante uma ideia de garantia, garantia até constitucional. Hoje em dia, pode entender-se que haverá outros meios de assegurar que os direitos individuais não sejam atacados ou violados através desse direito de mera ordenação social, designadamente através da possibilidade de haver sempre recurso contencioso das decisões que tenham a ver com esse ramo do direito; portanto, não se justificaria já aquela ideia de que as contravenções têm de estar submetidas ao direito penal,  o que seria uma ideia pós-Revolução Francesa, de reação contra o absolutismo real nessa altura, estadual em geral. Havendo já, ou sendo já o comum os sistemas os chamados «Estado de direito», haveria outros mecanismos que assegurariam os direitos individuais dos cidadãos. Também o direito administrativo pode pôr, e põe frequentemente, em causa direitos fundamentais. No entanto, a possibilidade de defesa das pessoas é assegurada através da possibilidade de recurso contencioso que, em última análise, é sempre possível, e hoje em dia com força constitucional, de qualquer decisão definitiva e executória. Para justificar esta autonomização do direito de mera ordenação social, voltou-se a falar, como em relação às contravenções, da falta de caráter ético deste tipo de normas, ou, mais corretamente deste tipo de atos que aqui eram englobados, pois se uma pessoa mata outra, faça-o voluntariamente ou faça-o por negligência, em princípio há uma censura social e imediata de toda a gente sobre essa pessoa; se uma pessoa, por exemplo, põe o carro a menos de cinco metros de uma curva, evidentemente hoje em dia ninguém se preocupa muito em saber se há uma censura ético-social em relação a ela (poderia haver no caso de estar a impedir o trânsito, mas de qualquer forma não seria um caso especialmente grave; em princípio, efetivamente, este tipo de atos não tem socialmente essa conotação de violação de princípios fundamentais, ou de censura, em relação a quem os pratica).
(…) hoje volta a acentuar-se essa falta de caráter ético-social, de fundamento de mínimo ético que teriam esse tipo de atos e de normas. Por outro lado, esta ideia de autonomia do direito de mera ordenação social corresponderia também à necessidade prática de libertar os tribunais criminais de um peso muito grande de processos e julgamentos, por causa dos quais eles não conseguem ter em dia o julgamento de uma série de questões. (…)  Os tribunais criminais perdem muito tempo e atrasam processos importantes porque perdem tempo a tratar de questões que no fundo não têm uma grande importância; portanto, seria útil pegar nesse tripo de questões, nesse tipo de casos, passá-los para um outro ramo do direito e, naturalmente, não dar aos tribunais criminais, aos tribunais comuns, o poder para julgar esses casos.
Por isso mesmo é uma ideia essencial (na conceção da autonomia do direito de mera ordenação social) atribuir a outras autoridades a competência para decidirem os casos no âmbito desse direito. A ideia é, concretamente, uma aproximação com o direito administrativo: atribuir às unidades administrativas, portanto já não ao poder judicial, a competência para declarar quem cometeu um ilícito desse tipo de mera ordenação social e para aplicar a sanção que lhe deve corresponder. (…)
Simplesmente, uma vez que se trata ainda de sanções, é fundamental resguardar os direitos e liberdades individuais (até por imposição constitucional), naturalmente terá de haver sempre possibilidade de recurso contencioso. Quando o Prof. Eduardo Correia há alguns anos escreveu um artigo defendendo esta autonomia do direito de mera ordenação social, ele, logicamente, como consequência de todo este pensamento, dizia que esse recurso devia ter sido feito para os tribunais administrativos, uma vez que se tratava de decisões de autoridades administrativas. Deveria seguir-se o regime geral de a essas decisões caber recurso para os tribunais administrativos. Simplesmente (…), a decisão adotada não foi essa, foi a de atribuir aos tribunais comuns a competência para julgar esse recurso. (…).
Isto, no fundo, de certa maneira, revela um compromisso entre essa ideia de total autonomia do direito de mera ordenação social, mais próximo do direito administrativo, e a outra ideia de que, no fundo, mesmo esse direito de mera ordenação social pode pôr em causa os direitos individuais de uma forma idêntica ao direito penal. Nessa medida, a última decisão deveria caber ao sistema judicial, que pelo próprio regime que lhe é imposto (Constituição da República Portuguesa – artigo 220.º e ss.) dará mais garantias de independência e de defesa dos direitos individuais – são os tribunais judicias, isto é, comuns, por oposição aos tribunais administrativos, ou a qualquer outro sistema de tribunais.” – cfr. Teresa Pizarro Beleza, oc. Cit., pag. 111/114.
Por tudo isto, José Lobo Moutinho observa, com inteiro acerto, que o processo de contraordenação “tem uma natureza híbrida muito específica, tornando explicável o surgimento de propostas no sentido de uma leitura dogmática que passa pela desvalorização do sentido e alcance da decisão da autoridade administrativa, tanto mediante a aproximação da fase inicial do processo à fase da investigação anterior à acusação (em processo penal), como mediante a qualificação da decisão final da administração como uma decisão meramente provisória e, afinal, sujeita à submissão voluntária do arguido” – cfr. Direito das Contraordenações, UCE, 2008, pag. 39.

O artigo 58.º do RGCO tem o seguinte teor:

Artigo 58.º
Decisão condenatória
1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.
2 - Da decisão deve ainda constar a informação de que:
a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º;
b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho.
3 - A decisão conterá ainda:
a) A ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão;
b) A indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.

Não previu a lei qualquer sanção para a inobservância destes requisitos.
Entendeu-se, assim, ocorrer aqui uma lacuna, a integrar por aplicação do Código de Processo Penal, nos termos do artigo 41.º do RGCO.
Cumpre, todavia, refletir sobre se ocorre verdadeira lacuna, ou se o legislador pretendeu que o teor da norma fosse exatamente este.
Em primeiro lugar, deve ter-se presente que a nulidade, com que uma das orientações fulmina as decisões que não observem estes requisitos, é uma sanção de extrema gravidade, e de consequências muito vastas, pelo que um legislador avisado não iria certamente remeter para uma busca subsidiária do intérprete tão agudo remédio para a aludida imperfeição. Caso entendesse ser essa consequência, certamente a teria estatuído, bem como o mecanismo processual para a invocar.
Depois, afigura-se-nos difícil considerar que existe uma semelhança categorial entre a decisão administrativa e a sentença penal, quando é a própria lei que, em caso de impugnação judicial da decisão administrativa prevê que deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo o ato como acusação –cfr. artigo 62.º, n.º 2, do RGCO. Na verdade, se a lei atribui assim à decisão administrativa judicialmente impugnada o valor jurídico-processual de acusação, não devemos encará-la, desse ponto de vista, direta ou analogicamente, como uma sentença.
Além disso, o regime da nulidade da sentença previsto no artigo 379.º do Código de Processo Penal, pressupõe, para sua integral aplicação, a hierarquia de tribunais, pois só assim é possível decidir e ordenar (se necessário) o suprimento da dita imperfeição pela instância recorrida – na verdade, não se vê que mecanismo jurídico-processual autoriza o tribunal a dar ordens à administração, tal como faz a decisão de primeira instância que aqui se recursa, designadamente para suprimento da nulidade.
E a inexistência de previsão de sanção para a inobservância dos requisitos elencados no supratranscrito artigo 58.º do RGCO não implica menor força jurídica da norma em causa, nem uma menor adstringência para a administração no seu integral cumprimento.
“A sanção é uma consequência desfavorável que a regra prevê para o caso de violação, e pela qual se reforça a imperatividade. Em todas as ordens normativas há sanções, mas essas sanções variam profundamente de caso para caso.
Não quer isto dizer que toda a regra seja necessariamente assistida de sanção – pode haver regras não sancionadas. Mas a existência de sanções é natural consequência da imperatividade.” – cfr. Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Fundação Calouste Gulbenkian, 3.ª edição pag. 30.
Como o autor citado explana mais desenvolvidamente na aludida obra, a imperatividade da ordem jurídica não está dependente das sanções, pelo que a norma em causa não se torna menos obrigatória para a administração pelo facto de não se ter previsto sanção para a sua inobservância, como já se disse.
E a propósito dos aludidos requisitos, quando compaginados com a dimensão substantiva do direito de mera ordenação social, não será certamente expectável especial fundamentação numa decisão de aplicação de coima (e inibição do direito de conduzir) pela prática de condução em excesso de velocidade, por violação das regras relativas à emissão de ruído, ou do horário de funcionamento de estabelecimento comercial, ou algo semelhante. É certo que atualmente, e cada vez mais, se constatam contraordenações de natureza mais complexa e de punição mais severa, designadamente nas questões económicas, ambientais, proteção do consumidor e similares, sendo certo que a administração se verá compelida pela dita norma a estabelecer pantográfica relação entre a complexidade e a gravidade das contraordenações e o concreto preenchimento dos aludidos requisitos. De qualquer modo, e tendo em conta que as autoridades administrativas não têm, como é natural, a formação e a experiência profissional dos juízes dos tribunais comuns, a Jurisprudência tem considerado de forma unânime que a lei (RGCO) não exige àquelas uma fundamentação com a mesma extensão e abrangência que exige no caso de uma decisão jurisdicional, o que também se justifica pela neutralidade axiológica das matérias ali tratadas.
Assim sendo, todo este percurso nos leva a concluir que o legislador não pretendeu sancionar, qua tale, o incumprimento dos requisitos previstos no artigo 58.º do RGCO, pois entendeu como possível, atenta a inexistência de ressonância ética das infrações aqui abrangidas, que o cidadão atingido pela decisão assim proferida se possa com ela conformar, e que, no expressivo dizer de Lobo Moutinho, voluntariamente se submeta ao seu cumprimento. Terá sido assim lograda a aplicação da justiça, embora de modo formalmente menos perfeito, mas com a anuência do seu destinatário, pressuposto inarredável para a respetiva eficácia.
Caso essa simbiose não ocorra, e seja apresentada impugnação judicial, aquela decisão (toda ela) deixa de o ser, e passa a ter a natureza de acusação. Ou seja, como o destinatário se sentiu prejudicado nos seus direitos individuais, e pediu a intervenção do tribunal, tudo se reconfigura, e este órgão de soberania reganha a originária competência para decidir a questão, postergando-se assim todo o percurso de trasladação de competências acima descrito, tudo se passando como se de um processo comum se tratasse, com uma acusação a submeter a julgamento, só de direito ou de direito e de facto (sem prejuízo da restrição constante do art.º 75.º, n.º 1, do RGCO).
O RGCO diz-nos o que pode fazer o juiz:

Artigo 64.º
Decisão por despacho judicial
1 - O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.
2 - O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.
3 - O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação.
4 - Em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção.
5 - Em caso de absolvição deverá o juiz indicar porque não considera provados os factos ou porque não constituem uma contra-ordenação.

Ou seja, o juiz apenas pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação. Não esqueçamos nunca a vetusta máxima de que no direito público só se pode fazer o que é permitido, ao passo que no direito privado se pode fazer tudo o que não é proibido, e que o direito de que nos ocupamos tem natureza pública. Em lado algum se prevê que os autos possam ser devolvidos, seja para que fim for.
Vistas as coisas deste modo, e recuperando o que acima se sintetizou sobre a decisão recorrida, temos que a (agora) acusação, quando analisada em face dos autos que foram presentes ao tribunal, incorre em:
- Inconsideração de matéria de facto invocada em sede de defesa, com relevância para a determinação da responsabilidade e/ou medida da pena;
- Omissão de pronúncia em relação à sanção da admoestação, bem como à peticionada atenuação especial da coima;
- Inexistência de factos que permitam a responsabilização da pessoa coletiva.
Ou seja, o tribunal reconhece razão ao impugnante no seu inconformismo em relação ao incumprimento por parte da autoridade administrativa de alguns dos requisitos constantes do artigo 58.º do RGCO.
Assim sendo, tudo se passa como se estivéssemos perante uma acusação com imperfeições.
As imperfeições do libelo acusatório não têm todas a mesma gravidade, nem lhes corresponde a mesma consequência processual – p. ex., uma acusação pode ser aperfeiçoada com uma decisão de alteração não substancial de factos, sem que isso implique o seu soçobro processual ou de mérito.
Nesta sequência, as duas primeiras imperfeições acima elencadas poderiam perfeitamente ser resolvidas na decisão jurisdicional reclamada pela coimada, que se não conformou com o seu alijamento nos considerandos da decisão administrativa – assim, o tribunal apreciaria os factos por si alegados mas não apreciados, e suas consequências, e pronunciar-se-ia em relação às pretendidas admoestação e atenuação especial da pena, sem que daí resultasse qualquer entorse às garantias processuais penais e/ou penais. No fundo, trata-se de apreciar apenas meios de defesa esgrimidos tempestivamente, mas desconsiderados pelo decisor originário, sendo que essa apreciação é até, na sede jurisdicional, segundo a autora acima citada, dotada de maior potencialidade protetora ou garantidora dos direitos e liberdades individuais.
Já quanto à inexistência de factos que permitam a responsabilização da pessoa coletiva, nada poderia fazer o tribunal porque estaria a violar os princípios do acusatório e da vinculação temática, que impedem o órgão que julga de indicar os factos fundantes da condenação ou de acrescentar aos alegados os factos omitidos que autorizem a subsunção ao tipo legal de infração imputada.
Estamos, assim, perante um caso de inviabilidade substantiva da acusação.

Vejamos o que prevê a norma a este respeito existente no Código de Processo Penal:
  Artigo 311.º
Saneamento do processo
1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
(…)
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
(…)
d) Se os factos não constituírem crime.

A rejeição da acusação por manifestamente infundada causou no início de vigência do Código de Processo Penal alguma perturbação interpretativa, por se ter entendido, embora não unanimemente, que tal mecanismo constituía um poder/dever do juiz em face de um processo que, em seu entender, não contivesse, de modo manifesto, indícios suficientes dos factos imputados, à semelhança do que ocorria no Código de Processo Penal de 1929, o que originou até a prolação do Assento n.º 4/93 do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do qual a alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária.
A Lei n.º 59/98, de 26/08, esclareceu o conceito aberto manifestamente infundada, com a adição à norma em causa do seu atual n.º 3, que elenca os casos em que tal previsão se pode considerar preenchida, fazendo assim caducar o regime enunciado no Assento atrás citado.
A indagação e análise dos indícios está atualmente vedada ao juiz da fase do julgamento.
A rejeição oficiosa da acusação por ser manifestamente infundada assim reconfigurada avoca as causas de nulidade da acusação, mas não constitui uma nulidade de conhecimento oficioso, por não constar do elenco legal daquela invalidade, constituindo consequência específica, sui generis, dos vícios das alíneas a), b) e c), para além da inviabilidade substantiva prevista na alínea d), do referido n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal – cfr. António José Latas, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2.ª Edição, Tomo IV, pag. 48.
Convém também ter presente que a decisão de rejeição da acusação por manifestamente infundada por inviabilidade substantiva (alínea d) do n.º 3 do art.º 311.º do Código de Processo Penal), não é exclusiva das situações teoricamente incontroversas, traduzindo o entendimento do presidente do tribunal da feição atípica dos factos alegados, numa antecipação da apreciação do mérito do objeto do processo, em ordem a evitar a prática de atos inúteis e a sujeição de alguém à sempre perturbadora  experiência do julgamento, sendo que tal decisão é tão expectável nesse julgador nesta fase como após o julgamento, não se vislumbrando que seja a realização deste ato processual que incline em diferente sentido a abstrata subsunção legal dos factos por si efetuada – cfr. António José Latas, ob. cit., loc., cit., pag. 58. Reconhece-se, contudo, que tal decisão não é aceitável em caso de dúvida de direito, pois, nessa situação o processo deverá sempre prosseguir para uma mais criteriosa e abrangente apreciação, sempre com o intuito de uma mais segura decisão – por isso a lei usa o vocábulo manifestamente. Mas se o julgador estiver intimamente convencido de que os factos não preenchem de modo, para si, evidente, qualquer tipo de crime, a sua decisão de sujeição de alguém a julgamento nestas condições, só para ver o que vai dar, por assim dizer, constituiria ato contranatura ao múnus jurisdicional.
Todo este raciocínio é aplicável, mutatis mutandis, às questões contraordenacionais.
Nessa conformidade, a inviabilidade substantiva da acusação, que é o que agora essencialmente nos ocupa,  deverá ter, por parte do tribunal, o mesmo tratamento que tem nas outras situações em que o processo penal tem origem em decisão do Ministério Público – além disso, e para evitar demandas inócuas, e para além da possibilidade de a própria autoridade administrativa revogar a decisão até ao envio dos autos (art.º 61.º, n.º´2, RGCO), pode ainda o Ministério Público, sempre com o acordo do arguido, note-se bem, retirar a acusação até à sentença em primeira instância ou até ao despacho previsto no artigo 64.º, n.º 2, do RGCO.
A rejeição da acusação por manifestamente infundada implica uma decisão de arquivamento dos autos e não de absolvição do arguido, sobrando, depois, o dilacerante debate sobre a possibilidade da sua reapresentação reformulada com as exigências do tribunal, ou a sua obrigatória e definitiva recolha ao arquivo, tudo em função da visão que sobre a relação entre acusação e o princípio ne bis in idem se tiver – o mesmo se dirá em relação à matéria contraordenacional. Todavia, esse debate é alheio ao objeto do presente recurso.
Assim sendo, a acusação apresentada pelo Ministério Público nestes autos é por nós considerada como manifestamente infundada por dela não constarem os factos que permitam a responsabilização da pessoa coletiva, pelo que deve ser rejeitada, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, devendo ordenar-se o arquivamento dos autos.
O recurso deve, portanto, proceder, ainda que com fundamentação parcialmente diferente.

III DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso apresentado por EMP01..., S.A., revogando a decisão recorrida, e, do mesmo passo, rejeitam a acusação formulada nos autos, por ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, e ordenam o oportuno arquivamento dos autos.

Sem tributação.
Guimarães, 11 de Novembro de 2025

Os Juízes Desembargadores

Bráulio Martins
Fátima Furtado
Armando da Rocha Azevedo