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RELAÇÃO DE NAMORO
RECUSA DE DEPOIMENTO
CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Sumário
I – Só podem recusar-se a depor as pessoas expressa e taxativamente indicadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 134.º do Código de Processo Penal; II - A norma em causa reveste natureza excecional, não consentindo a aplicação analógica, nem interpretação extensiva porque o legislador apenas quis abranger as pessoas ali indicadas; III – A mera relação de namoro sem partilha de “leito, mesa e habitação”, não confere à testemunha qualquer direito de se recusar a depor; IV – Para saber se uma relação entre o arguido e ofendia, é enquadrável na previsão do artigo 152.º, n.º 1, b) do Código Penal, torna-se necessário partir das concretas circunstâncias descritas na factualidade provada pelo Tribunal a quo, independentemente do modo como os próprios envolvidos a caracterizem; V- Para efeitos do disposto no artigo 152.º, n.º 1, b) do Código Penal, integra a prática de um crime de violência doméstica, uma relação afetiva afectiva estável entre o arguido e a ofendida, com encontros uma ou duas vezes por semana, que se desenvolveu durante cerca de 3 anos, relação que motivou e condicionou a atuação do arguido, cujos efeitos foram potenciados pela fragilização da posição da vítima, afetada na sua liberdade de reação precisamente pelo convívio existente e pela exposição da sua privacidade e intimidade perante o arguido, decorrentes da relação de vida em comum, como se salientou na primeira instância.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
A) Relatório:
1) No Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Criminal de Braga – Juiz ..., nos autos de Processo Comum, com intervenção do Tribunal colectivo, com o n.º 897/23.6GCBRG, após a realização da audiência de julgamento, foi proferido acórdão, datado de 23/04/2025, onde se decidiu condenar o arguido AA,na pena única de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão efectiva, pela prática, em autoria material e em concurso real, de:
Ø Um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), 4 e 5 do Código Penal, na pessoa de BB, na pena parcelar de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;
- Um crime de extorsão, previsto e punido pelo artigo 223.º, n.º 1 do Código Penal, por referência aos artigos 14.º, n.º 1 e 26.º, do mesmo Código, na pena parcelar de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
- Um crime de um crime de roubo, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal, por referência aos artigos 14.º, n.º 1 e 26.º, do mesmo Código, na pena de 8 (oito) meses de prisão;
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2) Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o arguido o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões: A. Em todos os momentos em que a Ofendida prestou declarações [dia 10/01/2024 perante o Digno Magistrado do Ministério Público (cfr. fls. 100-103); dia 28-02-2025, em julgamento, em declarações que se iniciaram às 10:10 horas, e terminaram às 11:34 horas] não foi realizada a advertência prevista no art.º 134.º n.º 1 b) e n.º 2 do CPP. B. A omissão da advertência legal, aludida no art.º 134.º n.º 2 do CPP, configura uma autêntica proibição de prova e a consequente proibição de valoração, aproximando-se mesmo da perturbação da liberdade de vontade da testemunha/ofendida pela utilização de meios enganosos, absolutamente proibida pelo art.º 126.º n.ºs 1 e 2 do CPP. C. Estando em causa uma proibição de prova, tal nulidade não é sanável, nem dependente de arguição: é nulo e de nenhum valor probatório o depoimento desta testemunha e todos os atos subsequentes, incluindo a sentença condenatória. D. A preterição do formalismo previsto no art.º 134.º n.º 2 do CPP, atento o regime legal aplicável (art.ºs 122.º e 126.º, ambos do CPP) toma inadmissível e inconcebível a repetição posterior ao ato viciado. E. Decorre do elemento teleológico da norma referente ao art.º 134.º do CPP que a alínea b) do n.º 1 do mesmo tem correspondência direta com o disposto no artigo 152.º n.º 1 alínea b) do CP, pese embora a divergência textual. F. À luz de uma interpretação sistemática e teleológica, existe uma lacuna na Lei, no art.º 134.º n.º 1 b) do CPP, traduzida no facto de não se garantir às pessoas que se envolveram, entre si, num relacionamento amoroso, com “uma proximidade existencial efetiva e de confiança”, o mesmo direito à recusa de depoimento, que se garante às pessoas que tenham sido cônjuges ou convivido em condições análogas às dos cônjuges, e sem que exista razão ponderável, para tal. G. Na falta de Lei expressa que tal regula e, também, na ausência de analogia que o consinta, importa recorrer ao espírito do sistema, e criar, uma norma que nele se ajuste, para aplicar ao caso, e tudo, no quadro do art.º 110.º n.º 3 do CCiv. H. Daí, a evidência, da necessidade de criação de uma norma "ad hoc", para cuja formulação se sugere a seguinte: “Quando a pessoa ofendida nos autos for ouvida pelo tribunal, em qualquer fase que seja, esteja ou tenha estado envolvida numa relação de namoro ou num relacionamento amoroso, com “uma proximidade existencial efectiva e de confiança” com o agente, deverá ser advertida, nos termos do art.º 134.º n.º 1 b) do Código de Processo Penal, da faculdade que lhe assiste de recusar o depoimento, sob pena de nulidade, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito. I. Sem prescindir, invoca-se as seguintes inconstitucionalidades: O Artigo 134.º n.º 1 b) e n.º 2, do CPP, quando interpretado no sentido de que “o depoimento prestado pela testemunha, sobre factos imputados a Arguido no processo, com quem esteja ou tenha estado envolvida numa relação de namoro ou num relacionamento amoroso, com “uma proximidade existencial efectiva e de confiança”, sem que esta tenha sido advertida de que poderia recusar-se a depor, pode ser valorado” pelo Tribunal, é INCONSTITUCIONAL por violação do disposto no artigo 26.º n.º 1 e 32.º, ambos da Constituição da República Portuguesa; Os artigos 134.º n.º 1 b) e n.º 2, 120.º n.º 3 e 121.º, do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de que a omissão da advertência constante do n.º 2 do artigo 134º, do Código de Processo Penal, em momento prévio a “depoimento prestado pela testemunha, sobre factos imputados a Arguido no processo, com quem esteja ou tenha estado envolvida numa relação de namoro ou num relacionamento amoroso, com “uma proximidade existencial efectiva e de confiança”, constitui uma nulidade sanável, que deve ser arguida até ao final do depoimento e não tendo tal ocorrido, esta considera-se sanada, não obstando à valoração das declarações, viola o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 26.º e n.º 8 do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, e estão, por isso, feridos de inconstitucionalidade material, J. Resulta da prova produzida que a exteriorização e manifestação do relacionamento em causa, as circunstâncias concretas demonstradas, não traduz um relacionamento cuja arquitetura seja correspondente ao que, de acordo com normais regras de experiência, lógica e senso comum, poderá traduzir-se em namoro em termos suficientes para suscitar uma ponderação sobre a especial proteção da norma penal aqui em causa. K. Relativamente à caraterização do relacionamento que manteve com o Arguido, a Ofendida afirmou o seguinte, nas declarações prestadas no dia 28/02/2025, entre as 10:10 e as 11:13: Iniciaram uma relação amorosa (gravação áudio 03:40 a 05:47), tinham contactos íntimos e relações sexuais dois três meses depois do contacto pelo Facebook (gravação áudio 07:00 a 07:15); encontravam-se em casa dele duas vezes por semana (gravação áudio 07:20 a 07:30); encontravam-se para terem relações sexuais e para ele pedir dinheiro também (gravação áudio 08:20 a 08:40); tomavam às vezes o pequenoalmoço juntos (áudio 09:00 a 09:40); não dormiam juntos, nunca passaram a noite juntos (gravação áudio 09:40 a 09:48); não tinham intenção de se unir, foi uma aventura, e as coisas foram andando (gravação áudio 09:49 a 10:01); terminou não por ele não ser o homem que ela achava que seria, um companheiro, mas porque era casada (gravação áudio 10:00 a 10:23); nunca pensou em juntar-se com ele (gravação áudio 10:40 a 11:00); teve pena dele (gravação áudio 11:00 a 11:24); não diz que não tenha gostado dele, gostou dele, mas nunca foi intenção dela separar-se ou coisa do género (gravação áudio 11:25 a 11:41); nunca teve intenção de se unir a ele, de juntar-se a ele (gravação áudio 11:42 a 12:06); nunca se considerou namorada dele (gravação áudio 12:07 a 12:22); ele também não a considerava sua namorada e não tinha em vista uma relação futura (gravação áudio 12:40 a 13:30); não diz que não sentia nada, sentia-se atraída (gravação áudio 14:15 a 14:42); não sentia ciúmes dele (gravação áudio 14:40 a 14:55); quando ia ter com ele a casa dele ficava lá uma hora e meia, duas (gravação áudio 15:55 a 16:04); Mais afirmou, nas declarações prestadas no dia 28/02/2025, entre as 11:23 e as 11:34, o seguinte: começou a ajudá-lo com o pagamento das contas antes de iniciarem a relação sexual (gravação áudio 04:00 a 04:29); ele mantinha a relação sexual porque ela o mantinha financeiramente (gravação áudio 05:12 a 05:15); L. Relativamente à caraterização do relacionamento que manteve com o Ofendida, o Arguido afirmou o seguinte, nas declarações prestadas no dia 14//03/2025, entre as 14:28: - Quando questionado se tinha iniciado com a Ofendida um relacionamento amorosa, respondeu: encontrávamo-nos algumas vezes (gravação áudio 06:30 a 06:37) - Quando questionado sobre a razão pela qual se encontravam, respondeu: era para termos relações sexuais (gravação áudio 06:55 a 07:02); Sobre a frequência desses encontros, respondeu: de 15 em 15 dias, dependia, de semana a semana, dependia (gravação áudio 07:10 a 07:21), havia semanas em que se encontravam uma vez por semana e outras não (gravação áudio 07:22 a 07:30); - Não andavam de mãos dadas na rua, não combinavam passeios para ir fazer um piquenique ao parque, nem ver o rio, (gravação áudio 36:22 a 36:50); - Não tinha um projeto de vida com a Ofendida, não imaginava um futuro com ela, nem terem filhos (gravação áudio 37:02 a 36:30); - Aceitava que era uma relação de 15 em 15 dias, de semana a semana (gravação áudio 37:02 a 36:30; - Não era uma relação de namoro, era uma amizade colorida, mais descontraída (gravação áudio 38:05 a 38:15); M. Da conjugação dos elementos de prova, não resultou qualquer estabilidade da relação, nem a constância da companhia mútua. Aliás, resultou provado que a Ofendida é casada, com filhos, e que nunca nem esta nem o Arguido equacionaram um projeto de vida comum. N. Não resultou provada que entre o Recorrente e a Ofendida houvesse laços afetivos e emocionais demonstrativos de estabilidade relacional. Inexistem mensagens carinhosas próprias de uma relação ativa e emocional. E não bastará, para que se considere a existência da mesma, que os envolvidos tenham assumido ser amigos e gostarem um do outro e se encontrassem para ter relações sexuais. O. O Recorrente e a Ofendida nunca dormiram juntos, nunca passaram férias juntos, aquele não conheceu os filhos desta, esta não conheceu a família daquele, não participaram conjuntamente em festas ou eventos sociais ou familiares. Houve intimidade entre ambos e pouco convício ocorreu para além dos encontros com natureza sexual. P. Nenhum deles considerou ser possível que a relação evoluísse para vida em comum; não houve qualquer compromisso monogâmico, até porque a Ofendida já é casada. Q. Em suma, não resultou demonstrado que tenha existido, entre ambos, no período em causa, um vínculo afetivo que excede a mera amizade e as relações sexuais meramente ocasionais, fortuitas, ainda que com uma periodicidade em função da disponibilidade de ambos. R. O relacionamento assentou não tanto num vínculo afetivo/sentimental, mas sobretudo de conveniência: a ofendida procurava no Arguido a companhia que faltava no seu casamento e este recebia ajuda financeira para as suas despesas, designadamente de consumo de estupefacientes. S. O Tribunal recorrido alheou-se da própria exteriorização e manifestação do relacionamento em causa, atribuindo-lhe uma natureza que não só não foi atribuída pelos próprios envolvidos, como também não tem correspondência na prova produzida. T. Atentos os contornos desse “relacionamento”, supra descritos, inviabiliza-se que o mesmo seja caracterizado como integrando uma relação de namoro, com o que se arreda a aplicação ao caso decidendo da norma constante do artigo 152.º, nº 1, alínea b), do CP. U. Também sem prescindir, nem toda a conduta ilícita ocorrida numa relação protegida pelo tipo do art.º 152.º n.º 1 b) do CP é punida pelo tipo incriminador, mas tão somente aquela que é atentatória do núcleo essencial da dignidade humana. V. Por não se verificar, no caso em apreço, nem a relação típica protegida nem o bem jurídico protegidos pela norma, inviabiliza-se que a conduta do recorrente seja caracterizada como integrando a tipicidade do artigo 152.º n.º 1, alínea b), do CP, pelo que, importa concluir pela absolvição do arguido da prática do crime de violência doméstica por que vem acusado. W. Ainda sem prescindir, resulta do acórdão de condenação pelo menos uma condenação que já não devia constar do CRC e que só dele consta por inoperância do sistema informático da DGAJ, pois a pena do processo 774/10.0GCVCT extinguiu-se em 08.08.2013. X. Nestes termos, deverá considerar-se como inexistente, para efeitos de valoração do CRC, a condenação do processo 774/10.0GCVCT, uma vez que a condenação do processo 1289/16.9T9VNF, pese embora tenha sido sentenciada em 13.11.2017, o crime desse processo foi praticado em 03.11.2013 – não sendo este processo considerado uma nova condenação por crime novo na medida em que os factos são de 2013 mas julgados anos depois, sob pena de se prejudicar o arguido na falta de celeridade processual no direito ao julgamento no mais curto prazo possível. Y. Em conclusão: percorridos 5 anos sem ter sido cometido novo crime contado desde 03.11.2013 (1289/16.9T9VNF) e contados os 5 anos da data da extinção da pena em 08.08.2013 no processo 774/10.0GCVCT sem que tivesse cometido, após esses 5 anos, um novo crime, ocorreu o cancelamento definitivo da condenação proferida nos autos 774/10.0GCVT em 03.11.2018 – o que se invoca. Z. Constituindo a ponderação das declarações da Ofendida prova proibida, atenta a omissão das advertências legais, nos termos do art.º 134 n.º 2 do CPP, resulta que o Recorrente deve ser absolvido do crime de violência doméstica e do crime de roubo simples, na forma tentada! AA.No que respeita o crime de extorsão, pelo qual o Recorrente veio já condenado, concordamos com o Tribunal recorrido, considerando justa e adequada a pena parcelar determinada de 1 ano e 6 meses de prisão. Relativamente ao crime de perseguição agravada, consideramos justa e adequada a pena parcelar de 2 anos de prisão. Em cúmulo, reputa-se por adequada e justa a aplicação ao Recorrente de uma pena única 2 anos e 3 meses de prisão. BB. A pena de prisão aplicada – quer aquela medida pela qual a Defesa pugna, quer aquela em que o Recorrente foi concretamente condenado - porque em quantum inferior a 5 (cinco) anos, e por se verificarem os demais pressupostos, deveria ser suspensa na sua execução, por período não superior a 3 (três) anos.
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3) Notificado do requerimento de interposição de recurso o Ministério Púbico respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência e confirmação do acórdão recorrido, concluindo que: 1. No caso dos autos a ofendida e o arguido nunca foram casados entre si nem nunca conviveram em condições análogas às dos cônjuges, nomeadamente com coabitação. 2. Nessa medida, a relação amorosa que demonstradamente mantiveram não se subsume a nenhuma das situações acauteladas pelo artigo 134º, n.º 1, do Código de Processo Penal. 3. Em suma, a ofendida não foi advertida nos termos do disposto no artigo 134º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, nem tinha que o ser. 4. O seu depoimento foi validamente prestado e de acordo com todos os preceitos legais. 5. Em todo o caso, e ao contrário do alegado, a falta de advertência aos parentes e afins do arguido acerca da faculdade de recusarem o depoimento integra uma nulidade de prova (tal como expressamente previsto no n.º 2 do referido normativo) e não uma proibição de prova. 6. Tal nulidade, porque não cabe no âmbito das nulidades insanáveis (previstas no artigo 119º do Código de Processo Penal) sempre se constituiria como nulidade sanável dependente de arguição e a arguir, estando presente a parte (como esteve), até o acto terminar - artigo 120º n.º e 3, alínea a), do Código de Processo Penal. 7. Como o arguido presente não arguiu tal nulidade em devido tempo tendo-a presenciado, a mesma sempre estaria sanada. 8. No caso em apreço, reitera-se, não foi cometida qualquer nulidade. 9. A motivação do acórdão recorrido está fundamentada de forma coerente e objectiva, sendo perfeitamente possível reconstituir e apreender o caminho lógico seguido pelo Tribunal para chegar às conclusões a que chegou, sempre orientada pelas regras da experiência comum. 10. O Tribunal da Relação só pode modificar a decisão recorrida em termos de facto quando a prova imponha decisão diversa daquela que foi tomada pelo tribunal recorrido. 11. Se a prova indicada no recurso permitiria, eventualmente, uma decisão diversa da recorrida, mas não a impõe, o recurso não pode merecer provimento, por não poder o Tribunal de recurso, em casos destes, bulir na decisão recorrida. 12. A perspectiva que o recorrente traz da prova, admitindo-se como defensável, não é única; e não o sendo, não impõe decisão diversa da recorrida. 13. Em todo o caso, não assiste razão ao recorrente em relação ao ponto de discordância por si apresentado. 14. Na verdade, o recorrente nem indica os concretos pontos que, no seu entender, se encontram incorrectamente julgados e que devem ser dados como não provados. Também não indica, como lhe competia nos termos do disposto no artigo 412º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, os elementos probatórios que no seu entender impunham decisão diversa, neste caso de absolvição, limitando-se a divagar genericamente sobre as razões da sua discordância. 15. O acórdão nenhuma censura merece no que à apreciação da prova feita em audiência de discussão e julgamento e no que aos factos de tal prova retirados respeita. 16. Encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de violência doméstica. 17. O “cancelamento dos registos” significa que as sentenças canceladas se consideram extintas no plano jurídico, não se lhes ligando quaisquer efeitos, designadamente quanto à medida da pena. 18. Uma vez verificada a hipótese que determina o cancelamento, o registo da condenação deixa de poder ser considerado contra o arguido, assim sucedendo independentemente da circunstância de se ter ou não procedido prontamente à real efetivação do cancelamento. 19. No caso dos autos, atendendo às penas aplicadas, é de cinco anos o prazo de cancelamento do registo criminal. 20. No entanto, considerando as datas relevantes constantes do C.R.C., em nenhuma das condenações decorreu cinco anos desde a extinção da pena anterior e a condenação ulterior. 21. Logo, todas as referidas condenações encontram-se devidamente averbadas no certificado de registo criminal do recorrente. 22. Segundo o artigo 71º, n.º 1, do Código Penal, a determinação da pena far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 23. A culpa reflecte a vertente pessoal do crime, assegurando que a pena não irá violar a dignidade da pessoa do arguido. 24. As exigências de prevenção na determinação da pena reflectem-se em dois domínios: - no domínio da sociedade, visando restabelecer nela a confiança na norma violada e a sua vigência (prevenção geral positiva); - no domínio pessoal do agente, tentando a sua reintegração e o respeito pelas normas jurídicas (prevenção especial positiva). 25. Os vectores da medida da pena previstos no artigo 40º do Código Penal são concretizados pelos factores de determinação da medida concreta da pena que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. 26. Alguns desses factores são elencados no artigo 71º, n.º 2, do Código Penal, a título exemplificativo. 27. Sendo assim, na determinação da medida concreta da pena valorar-se-ão o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste, a gravidade das suas consequências, a intensidade dolosa do agente, as suas condições pessoais, a sua conduta anterior e posterior ao facto, as exigências de prevenção e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, tendo em conta as exigências de futuros crimes. 28. Considerando os critérios estabelecidos, não merece qualquer reparo a medida das penas parcelares e da pena única de três anos e dois meses de prisão aplicada ao arguido, ora recorrente, atendendo ao grau de culpa por si revelado, à intensidade do dolo e grau de ilicitude, bem como às exigências de prevenção geral e especial que ao caso se fazem sentir. 29. Nos termos do disposto no artigo 50º do Código Penal o Tribunal pode suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 30. O pressuposto formal da aplicação desta medida é a que a medida da pena de prisão a aplicar não seja superior a 5 anos. 31. O pressuposto material é que o Tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente. 32. Necessário é, pois, que se conclua que a simples censura do facto e a ameaça da pena – ainda que, porventura, acompanhadas de deveres e/ou regras de conduta – sejam suficientes para afastar o delinquente da criminalidade. 33. No caso dos autos, face aos antecedentes criminais do arguido, verifica-se que o mesmo praticou os factos em causa nos presentes autos durante o período de suspensão da pena de prisão em que foi condenado pelo crime de violência doméstica no processo comum singular nº 68/19.6T9VNF, sendo que tal condenação e ameaça de cumprir uma pena de prisão efectiva não foram suficientes para os afastar de voltar a praticar novos ilícitos criminais. 34. De valorar também a ausência de integração social e, sobretudo, laboral. 35. Com efeito, atendendo ao que se deixa exposto não se vê como se possa formular um juízo de prognose positivo, dado que tal juízo já foram efectuados anteriormente e foram manifestamente defraudados com o cometimento de novos crimes (os crimes nestes autos em apreciação), inclusivamente, de semelhante natureza. 36. Bem andou, por isso, o Tribunal a quo ao não suspender a execução da pena de prisão aplicada. 37. Nada há, por isso, a censurar à decisão recorrida.
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4) O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416.º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Senhor Procurador – Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.
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5) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido apresentou resposta, mantendo o alegado na motivação do recurso.
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6) Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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Cumpre apreciar e decidir.
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B) Fundamentação:
1. Âmbito do recurso e questões a decidir:
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal)[1].
Acresce que da conjugação das normas constantes dos artigos 368.º e 369.º, por remissão do artigo 424.º, n.º 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objeto do recurso pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pelos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a que se segue impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412.º, do mesmo diploma;
Por último, as questões relativas à matéria de Direito.
No caso dos autos face às conclusões da motivação apresentadas pelo arguido, as questões a decidir são as seguintes:
1.ª : Nulidade por omissão de advertência prevista no artigo 134.º, n.º 1), b) do Código de Processo Penal; inconstitucionalidade;
2.ª : Qualificação jurídica dos factos quanto ao crime de violência doméstica por inexistência de relação de namoro;
3.ª : Cancelamento definitivo de anterior condenação;
4.ª : Excessividade das penas parcelares e única;
5.ª : Suspensão da execução da pena única.
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2. A Decisão recorrida:
Naquilo em que o mesmo releva para o conhecimento do objeto do recurso, é o seguinte o teor do Acórdão recorrido (matéria de facto e respectiva motivação): 1. Factos provados Discutida a causa provaram-se os seguintes factos com relevo para a decisão: Da acusação pública 1. O arguido AA é consumidor regular de produtos estupefacientes. 2. O arguido AA conheceu a vítima BB, residente na Rua ..., em ..., ..., no ano de 2002, tendo trabalhado juntos em ..., pese embora não tenham mantido contacto regular até finais do ano de 2019 e inícios do ano de 2020. 3. Entre finais do ano de 2019 e inícios do ano de 2020, BB e arguido retomaram o contacto, via “Facebook”, sendo que, após o arguido anunciar que passava dificuldades financeiras, a ofendida começou a ajudá-lo, oferecendo-lhe bens alimentares, pagando-lhe as contas de telefone e electricidade, e arranjando-lhe emprego na empresa “EMP01...”, sita em ..., ..., local de trabalho de BB. 4. Nesse período, BB e arguido iniciaram um relacionamento amoroso, não obstante a ofendida já ser casada, encontrando-se ora semanalmente, ora de quinze em quinze dias para terem relações sexuais, para tomarem o pequeno almoço juntos, partilhando carinho e afecto um pelo outro. 5. Após o arguido ter cessado trabalho na empresa “EMP01...”, a ofendida continuou a ajudá-lo monetariamente da forma supra descrita. 6. Por altura do despedimento do arguido, já no ano de 2021, BB manifestou ao arguido que pretendia terminar o relacionamento amoroso. 7. Contudo, o arguido disse a BB que, caso o fizesse, contaria ao seu marido e filhos acerca do relacionamento que mantinham, motivo pelo qual a ofendida acedeu em manter o relacionamento, pelo receio sentido, o que sucedeu até Agosto de 2023. 8. Até esta data, vítima e arguido encontravam-se uma ou duas vezes por semana ou, por vezes, de quinze em quinze dias, na área do concelho ..., área de residência do arguido e de trabalho de BB, sendo que, em todos os encontros que mantinham, o arguido, que não trabalhava, exigia à vítima a entrega de quantias monetárias, sob pena de, caso o não fizesse, divulgar ao seu marido e filhos o relacionamento que mantinham. 9. Com receio, BB entregava ao arguido sempre quantias monetárias em numerário, sendo 20,00€, 30,00€ ou 40,00€ de cada vez, consoante a sua disponibilidade financeira, tendo entregue, no total, quantia monetária globalmente aproximada a 1.000,00€. 10. Além do mais, entregava-lhe alimentos, fazendo a respectiva entrega em ..., ... e, de três em três meses, e porque o arguido lhe pedia, carregava-lhe o saldo do telemóvel e pagava-lhe a conta da electricidade. 11. Para tanto, o arguido enviava a BB, via mensagem de texto, as respectivas entidades e referências, sendo que esta dirigia-se ao multibanco e procedia ao pagamento exigido pelo arguido. 12. Sucede que, em dia não concretamente apurado do mês de Agosto de 2023, em encontro que manteve com o arguido na habitação deste, em ..., BB terminou o relacionamento amoroso com o mesmo e disse-lhe que não mais lhe iria dar dinheiro. 13. Em seguida, o arguido remeteu à vítima mensagens escritas, provenientes do telemóvel ...85, dizendo-lhe: “vou-te matar; vou-te partir os dentes todos se não me deres dinheiro; vou para a porta da EMP01... gritar e contar”, referindo que ia divulgar o relacionamento que tinham mantido. 14. Em 31 de Agosto de 2023, cerca das 14h00, BB dirigiu-se, após o trabalho, ao estabelecimento comercial “EMP02...”, em .... 15. O arguido, que se encontrava naquele local, avistou a vítima junto a terminal multibanco e abordou-a pedindo-lhe que lhe carregasse o saldo do seu telemóvel. 16. Em seguida, o arguido pediu à vítima que lhe entregasse a quantia de 20,00€, sendo que, uma vez que a vítima negou a pretensão do arguido, aquele retirou do bolso uma navalha branca, abriu a lâmina corto-perfurante e encostou a mesma à zona da barriga da ofendida, dizendo: “se não me deres, eu espeto-te”. 17. A vítima conseguiu fugir do arguido, entrando no “EMP02...”, tendo o arguido se ausentado daquele espaço. 18. Passados cerca de 15 dias, o arguido voltou a contactar a vítima, pedindo-lhe novamente ajuda para comer, sendo que esta voltou a auxiliá-lo da forma descrita, carregando-lhe o saldo do telemóvel, pagando a conta da electricidade e a entregando-lhe alimentos, o que fez até Janeiro de 2024. 19. Em 26 de Novembro de 2023, cerca das 07h30, o arguido deslocou-se até junto da habitação da vítima, sita na Rua ..., em ..., ..., e endereçou-lhe inúmeras mensagens escritas, provenientes do seu número de telemóvel ...85, para o telemóvel da vítima, número ...99, entre as quais: pelas 07:58:49: “porca tou a veira do carro”; pelas 08:00:40: “não vens cabra vais já ver”; pelas 08:06:53: “anda ca fora vou tocar”; pelas 08:12:28: “empresta 20 para ir para baixo”; pelas 08:17:34: “anda dar boleia”; pelas 08:22:12: “empresta o dinheiro”; pelas 08:41:26: “atira 10”; pelas 08:42:02: “atira da janela da cosinha”; pelas 09:25:38: “eu tou aqui não vou sair daqui”; pelas 10:09:23: “cabra vou te foder e ainda vai ser hoje puta”; pelas 10:11:16: “foge puta”; pelas 10:31:34: “vou chegar fogo”; pelas 11:33:48: “vou pegar na preta e vou levala aí para partir o resto dos dentes preparate”; pelas 11:43:01: “vou tentar traser ainda hoje a preta mereces uma boa coça porca”; pelas 12:07:43: “a preta vai tar a tua espera na EMP01... para todos verem”; pelas 14:02:46: “ó minha grande filha da puta atende tas em vídeo”. 20. Entretanto, e quando ainda se encontrava junto da habitação da ofendida, uma vez que a mesma, receosa, não saía para o exterior, o arguido começou a atirar pedras para a janela do quarto da mesma. 21. No dia 2 de Dezembro de 2023, cerca das 06h00, o arguido dirigiu-se novamente ao exterior da habitação da vítima, começando a gritar: “essa puta do caralho, tu és um corno manso, vou-te partir toda, não me apareças à frente”. 22. Concomitantemente, o arguido enviou inúmeras mensagens de texto à vítima, provenientes do seu número de telemóvel ...85, para o telemóvel da vítima, número ...99, entre as quais: pelas 06:50:30: “2m para me ligares e vir falar comigo”; pelas 08:16:37: “50 no pneu conto tudo ao CC”; pelas 10:57:14: “até as 2 parto o teu carro todo juro”, solicitando novamente dinheiro à vítima sob condição de não divulgar ao marido desta a relação que manteve com a mesma. 23. Desde Setembro de 2023 e até, pelo menos, 10 de Janeiro de 2024 o arguido efectuou inúmeros contactos telefónicos com periocidade quase diária, provenientes do seu número de telemóvel ...85, para o telemóvel da vítima, número ...99, bem como remeteu inúmeras mensagens à ofendida, entre as quais: - Em 25.11.2023: pelas 13:18:52: “aguarda baca vou a tua casa”; pelas 17:51:27: “tens 5m para atenderes se não preparate”; pelas 17:57:48: “vais te arrepender”; pelas 19:20:52: “se te apanho”; pelas 21:35:17: “já tas no teu bou partirte o resto dos dentes cabra”; pelas 21:36:41: “puta de merda vais desaparecer cabra”; pelas 21:38:42: “vais morrer queimada porca”; pelas 21:50:25: “não durmas porca vais morrer queimada cabra”. - Em 27.11.2023: pelas 00:32:28: “vais levar um balázio na perna”, pelas 00:54:16: “é mesmo muito a sério estrago a tua vida e a minha”; pelas 05:00:52: “puta”. - Em 28.11.2023: pelas 04:54:44: “és uma puta, não prestas, havias de morrer”; pelas 04:56:13: “a preta vai a EMP01... hoje cabra”; pelas 05:08:11: “puta de merda vai desparecer porca”. - Em 03.01.2024: pelas 17:07:21: “podes meter 10 eu doute”. - Em 07.01.2024: pelas 21:20:31: “consegues fazer um fabor o ultimo”; pelas 21:21:49: “vou ficar sem luz amanhã cedo eu doute no fim do mês”. 24. Além do mais, e sobretudo nas noites de fim de semana, o arguido telefonou de forma incessante, quer para o número de telemóvel da vítima, quer para o número de telemóvel do seu marido CC e, quando este atendia, o arguido dizia-lhe: “estás em casa e a puta da tua mulher está no monte com os gajos da EMP01...”. 25. Entre Novembro/Dezembro de 2023, o arguido enviou várias mensagens de texto para os colegas de trabalho da vítima, DD e EE, referindo-se à ofendida como: “anda com os homens todos da EMP01..., vai para o monte para estar com os homens e nem vai trabalhar”. 26. No dia 9 de Janeiro de 2024, dia em que a ofendida se deslocou às instalações da Guarda Nacional Republicana, cerca das 13h30, e estando a mesma a almoçar juntamente com o seu cônjuge na sua habitação, o arguido telefonou, através de número privado, ao marido da vítima, sendo que o mesmo, assim que atendeu, colocou o telefone em alta voz, tendo o arguido dito: “ela apresentou queixa mas vai-se arrepender; posso ir preso mas ela vai morrer, nem que seja a última coisa que eu faça na vida”. 27. Nessa noite, e uma vez que a vítima bloqueou o contacto do arguido, este enviou à vítima, cerca das 01h30, uma mensagem de voz dizendo que ia apanhar naquele momento o comboio e que ia para a sua porta. 28. Cerca das 03h30, enviou nova mensagem de voz dizendo que estava em frente a sua casa, determinando que a mesma lhe desse boleia, se não seria pior para ela, dizendo-lhe mesmo: “não ouses deixar-me aqui”. 29. Em face do comportamento do arguido a vítima passou a alterar o trajecto que percorre desde sua casa até ao seu local de trabalho, com receio de encontrar o arguido. 30. O arguido agiu, assim, com o propósito reiterado de, através das condutas supra descritas, provocar inquietação e medo à ofendida, fazendo-a recear pela sua vida, bem como prejudicar e limitar os seus movimentos, bem sabendo que desse modo a lesava na sua liberdade pessoal, como pretendeu e conseguiu. 31. Mais actuou, ao contactar a ofendida pela via telefónica, por mensagens e telefonemas, de forma persistente, reiterada e sucessiva, visando com tal comportamento perturbar a vida privada daquela, afectando a respectiva paz e sossego, desiderato que alcançou. 32. O arguido agiu, ainda, com o propósito concretizado de obter para si um enriquecimento que sabia ser ilegítimo, criando para o efeito a ideia de que divulgaria, junto da família e colegas de trabalho da ofendida, o seu relacionamento extraconjugal, bem como que atentaria contra a sua integridade física e mesmo contra a sua vida. 33. O arguido previu e quis atemorizar BB do modo acima descrito, utilizando para o efeito uma navalha, para impedir que aquela resistisse aos seus propósitos e lhe entregasse a quantia de 20,00€, com o intuito, não concretizado, de se apoderar e integrar no seu património de tal quantia monetária, apesar de saber que tal quantia não lhe pertencia e que agia contra a vontade e sem autorização de BB 34. Ao actuar pelo modo descrito, teve o arguido o propósito conseguido e reiterado de lesar a saúde da vítima, humilhá-la e condicionar a sua liberdade, actuando sempre de modo a atingir a sua dignidade, pese embora não ignorasse que devia à vítima dos seus actos especial respeito e consideração tendo em consideração a relação namoro que mantiveram. 35. Agiu ainda o arguido deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Dos antecedentes criminais 36. O arguido tem averbados antecedentes criminais no seu registo criminal, designadamente: - Foi condenado no âmbito do processo comum singular nº 402/11.7GBSTS, por sentença proferida em 06/02/2014, transitada em julgado em 22/04/2014, pela prática em 13/08/2011, de um crime de furto simples, na forma tentada, na pena 120 dias de multa, à taxa diária de 8,00, que perfaz o total de 960,00€. Tal pena foi extinta por despacho datado de 07/08/2017; - Foi condenado no âmbito do processo comum singular nº 1289/16.9T9VNF, por sentença proferida em 13/11/2017, transitada em julgado em 12/03/2018, pela prática, em 03/11/2013, de um crime de desobediência, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de 6,00€, o que perfaz o total de 420,00€. Tal pena foi extinta por despacho datado de 03/12/2018; - Foi condenado no âmbito do processo comum singular nº 774/10.0GCVCT, por sentença proferida em 15.06.2012, transitada em julgado em 23.01.2013, pela prática, em 21.12.2010, de dois crimes de ofensa à integridade física simples, na pena de 160 dias de multa à taxa diária de 5,00€, o que perfaz o total de 800,00€. Tal pena foi extinta por despacho datado de 08/08/2013; - Foi condenado no âmbito do processo comum singular nº 68/19.6T9VNF, por sentença proferida em 10/07/2019, transitada em julgado em 09/08/2019, pela prática, em 01.12.2018, de um crime de violência doméstica, na pena de 2 anos e 11 meses de prisão, suspensa por igual período com regime de prova. Tal suspensão foi prorrogada por um ano. - Foi condenado no âmbito do processo comum singular nº 720/21.6PAVNF, por sentença proferida em 13.12.2022, transitada em julgado em 13.01.2023, pela prática, em 21.11.2021, de um crime de furto simples, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 5,50€, o que perfaz o total de 550,00€. 37. Consta no relatório social elaborado pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), quanto à inserção familiar e socioprofissional do arguido AA, com o objetivo de auxiliar no conhecimento da personalidade do arguido e na correta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, além do mais, o seguinte: “1 – CONDIÇÕES SOCIAIS E PESSOAIS No período dos factos, tal como atualmente, AA vivia com um irmão, em meio comunitário onde também reside uma outra irmã. Embora esta mantivesse postura de suporte, o arguido demonstrava baixa vinculação e uma relação mais distante. Com a crescente reorganização emocional do arguido, descrita pela irmã como iniciada no final de 2024, AA passou a manter uma relação de maior proximidade com a família. Atualmente, mantém apoio por parte dos irmãos, especialmente ao nível habitacional e financeiro, uma vez que não tem qualquer rendimento. AA manteve relação de namoro com a ofendida nos autos, sendo que, em 2021, o próprio descrevia a mesma como positiva e compensadora. Do ponto de vista da ofendida, a interação do casal era comprometida pelas características pessoais do arguido e pela problemática aditiva deste. Aquela confirma que o arguido não a tem procurado nem estabelecido quaisquer contactos, sobretudo desde novembro/dezembro de 2024. Nesse sentido, a mesma acredita que a existência do processo judicial pode ter configurado fator dissuasor e que o arguido não tencionará nova reaproximação. Do percurso de vida do arguido, importa salientar que, em 2011, AA iniciou uma relação afetiva, da qual resultou uma descendente, marcada por um contexto de instabilidade e conflitos, ruturas de reconciliações. A instabilidade pessoal/comportamental do arguido, com repercussões ao nível laboral e financeiro, à qual não terão sido alheios os hábitos aditivos, potenciavam a emergência de conflitos que determinaram o término da relação em 2018. Deste contexto relacional disfuncional resultou um processo-crime e condenação do arguido, pela prática de crime de violência doméstica – processo 68/19.6T9VNF. Importa salientar, ainda, que o crescimento do arguido foi inserido no agregado de origem, cuja relação dos progenitores foi marcada pela instabilidade e situação de alegados maus tratos do pai em relação à mãe do arguido. No que respeita a situação profissional, no período dos factos, AA mantinha uma situação de instabilidade, pautada maioritariamente por períodos de desemprego. Em agosto de 2024 retomou atividade laboral, em empresa onde havia trabalhado no passado, como torneiro mecânico, mas durante um curto período. Nos últimos meses, o arguido mantém situação de inatividade laboral, sem rotinas estruturadas. AA está habilitado com o 6º ano de escolaridade e ingressou na vida ativa aos 16 anos de idade, como torneiro mecânico, que manteve até aos 21. Posteriormente, intercalou o percurso de trabalho com períodos de desemprego e mobilidade laboral. Detém historial de problemática de consumo de produtos estupefacientes, iniciado por volta dos 25 anos de idade. Procurou apoio clínico junto do serviço de saúde. No âmbito do acompanhamento em suspensão de pena, AA sujeitou-se a acompanhamento pelo CRI, em março de 2024. De acordo com o médico psiquiatra do CRI, FF, o arguido encontra-se em acompanhamento devido a dependência de múltiplas substâncias, tendo sido medicado com buprenorfina e quetiapina. Em 26-06-2024, o arguido foi internado para desabituação de consumos, durante dez dias, até 05-07-2024. Atenta a falta de motivação para ingressar em comunidade terapêutica, o arguido teve alta, com continuidade de acompanhamento terapêutico em ambulatório. Porém, em agosto’24, o arguido recaiu no consumo de produtos estupefacientes e voltou a faltar às consultas no CRI, as quais alegadamente retomou no final de 2024. De acordo com o proferido pela irmã, o arguido continuará a aderir ao tratamento proposto, nomeadamente medicamentoso. Esta acredita, ainda, que o arguido se manterá afastado do consumo de produtos estupefacientes. No entanto, esta posição carece de avaliação específica. No meio social de residência, a imagem do arguido encontra-se associada a um percurso ligado às drogas, ainda que sem sentimentos de rejeição significativos. AA detém anteriores contactos com o sistema de justiça penal, o primeiro dos quais em 2014, quando foi condenado pela prática de um crime de furto na forma tentada, numa pena de multa que pago. Regista outras condenações posteriores, pela prática de um crime de desobediência, e crime de violência doméstica, em pena de multa e pena de prisão suspensa com regime de prova, respetivamente. Entre 2020 e 2025, AA foi acompanhado pela DGRSP, no âmbito do processo 68/19.6T9VNF, tendo revelado baixo comprometimento com a medida aplicada, faltando sucessivamente às entrevistas que lhe eram agendadas. Em dezembro de 2023, a medida foi prorrogada por um ano, no entanto, não se verificaram alterações significativas, à exceção do acompanhamento clínico/terapêutico pelo CRI. 38. No relatório social referido em 38. consta a seguinte “Nota prévia: Não foi possível realizar entrevista ao arguido, por o mesmo não ter colaborado. Foi efetuado contacto telefónico com o arguido e agendada entrevista na DGRSP para o dia 10-03-2024. Nesse mesmo dia, o arguido contactou telefonicamente a solicitar o reagendamento para o dia seguinte, alegadamente por se encontrar doente. O pedido foi atendido e foi reagendada a entrevista para 11-03-2024, mas o arguido voltou a não comparecer nem apresentou qualquer justificação. Assim, levantam-se vários constrangimentos na elaboração do presente documento, sobretudo ao nível da avaliação das repercussões da situação jurídico penal e posicionamento do arguido face ao processo, assim como não nos é possível sumariar as conclusões e emitir parecer quanto a uma eventual condenação. Para a elaboração do presente relatório social, foram utilizadas as seguintes fontes e procedimentos metodológicos: - Contacto telefónico com irmã do arguido, GG; - Contacto telefónico com a ofendida nos presentes autos, BB; - Articulação presencial com Técnica Superior da Equipa de Vigilância Eletrónica de Braga, HH, que supervisiona a medida de coação aplicada nos presentes autos; - Articulação presencial com Técnica Superior da Equipa Porto-Santo Tirso, II, que acompanhou o arguido no âmbito de uma suspensão de pena, até janeiro’25; - Consulta do despacho de acusação do presente processo; - Consulta dos elementos constantes no dossiê da DGRSP relativo ao arguido, nomeadamente: informações clínicas do Centro de Respostas Integradas (CRI) de ... (datadas de 23-12-2024, 15-05-2024); relatórios da execução de SEP elaborados pela Técnica Superior da DGRSP II (em 18-12-2024, 25-06-2024) para o processo 68/19.6T9VNF; e relatório social para determinação da sanção, elaborado para o processo 584/18.7PAVNF pela Técnica Superior II (datado de 09- 01-2020).”
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2. Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão (note-se que o Tribunal não se pronuncia quanto a juízos conclusivos e/ou de direito e/ou repetidos), designadamente:
a) Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referido em 14. a vítima acedeu ao pedido do arguido, carregando o telemóvel deste com 10,00€. b) Após o referido em 15., de imediato, a vítima afastou-se e entrou no estabelecimento comercial, tendo o arguido seguido no seu encalço e agarrando a mesma pela zona do queixo.
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3. Motivação da convicção do Tribunal
Nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador. A convicção do Tribunal fundou-se em todos os meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º, do CPP). Note-se que a prova produzida deve ser analisada atenta a segurança oferecida por cada elemento probatório (considerado individualmente, nomeadamente, quanto à sua credibilidade, isenção e fundamentação da razão de ciência), e bem assim ponderada de acordo com o seu confronto com os demais elementos de prova constantes nos autos (v.g., prova documental, pericial e testemunhal), por forma a que o resultado final não produza uma decisão injusta, insuficientemente segura em termos de corroboração factual, ou incoerente com a realidade e o normal acontecer dos factos. Nesta apreciação não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador. Assim sendo, compreende-se que uma testemunha contribua ativamente para alicerçar o Tribunal na formação da convicção da realidade de um facto pela mesma relatado, atenta a sua isenção e fundamentação da razão de ciência quanto a esse mesmo facto, mas também pode acontecer que essa mesma testemunha transmita ao Tribunal outros factos que, quando confrontados com os demais elementos de prova produzida (e legalmente admissíveis), não sejam bastantes para fundamentar a resposta em determinado sentido dada pelo Tribunal à matéria factual em análise nos autos. Veja-se que a apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, não se funda num mero exercício arbitrário por parte do julgador, pelo contrário, funda-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros. Se por um lado, o julgador é livre, ao apreciar as provas, por outro, tal apreciação tem que ser “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”. Para Cavaleiro Ferreira “a livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores”. Trata-se da liberdade de decidir segundo o bom-senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou, nas palavras de Castanheira Neves da liberdade para a objectividade A este propósito refere Figueiredo Dias que “(…) [u]ma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e, portanto, arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há-de se, em concreto, recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo”. Ao nível jurisprudencial, veja-se o Acórdão do STJ , de 09 de Fevereiro de 2012, onde se pode ler no seu sumário: “IX – A necessidade de controle dos instrumentos através dos quais o juiz adquire a sua convicção sobre a prova visa assegurar que os mesmos se fundamentam em meios racionalmente aptos para proporcionar o conhecimento dos factos e não em meras suspeitas ou intuições ou em formas de averiguação de escassa ou nula fiabilidade. Igualmente se pretende que os elementos que o julgador teve em conta na formação do seu convencimento demonstrem a fidelidade às formalidades legais e às garantias constitucionais. X – As regras da experiência, ou regras de vida, como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtêm mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária. XI – O princípio da normalidade, como fundamento que é de toda a presunção abstracta, concede um conhecimento que não é pleno mas sim provável. Só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno. Só este convencimento alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária – quando é este tipo de prova que está em causa – pode alicerçar a convicção do julgador. XII – Num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer. Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova (sublinhado nosso). Aqui chegados, cumpre analisar os elementos probatórios disponíveis nos autos e produzidos em sede de audiência de julgamento. No que toca à prova documental, não foi feita prova bastante que afaste a genuinidade dos documentos juntos aos autos, pelo que relativamente aos documentos não autênticos (cfr. artigo 169.º do Código de Processo Penal, o qual refere que “consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa”), o seu teor pode ser valorado livremente pelo Tribunal, conjugando os mesmos com a demais prova produzida e as regras de experiência. Assim sendo, o Tribunal teve em consideração os documentos juntos aos autos, designadamente: - Auto de notícia de fls. 4 a 5. - Impressões de fls. 10 a 18. - Relatório de análise ao telemóvel da vítima de fls. 46 a 69. - Informação bancária de fls. 180 a 201. - Informação da EMP03... de fls. 212. - Auto de notícia do Apenso A. - Certidões de nascimento de fls. 28 a 31 do Apenso A. - Certificado de registo criminal actualizado do arguido de refª ...23; - Relatório Social elaborado pela DGRSP de refª ...56; Teve-se em consideração o teor da jurisprudência plasmada no Ac. do STJ de 31/05/2006, proc. n.º 06P1412, in www.dgsi.pt, de acordo com a qual “Os documentos juntos aos autos não são de leitura obrigatória na audiência, considerando-se nesta produzidos e examinados, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida.” e no Ac. do TRC de 06/01/2010, proc. n.º 20/05.9TÀGD.C1, in www.dgsi.pt, segundo a qual “É permitida, mas não obrigatória, a leitura em audiência de julgamento dos documentos existentes no processo, independentemente dessa leitura, podendo o meio de prova em causa ser objecto de livre apreciação pelo tribunal, sem que resulte ofendida a proibição legal prevista no art. 355.º do Código de Processo Penal”. No que toca à prova testemunhal, cumpre salientar que tendo a mesma sido gravada, de modo algum se deve aqui reproduzir o teor da mesma, por tal não corresponder à letra e ao espírito da lei e ser inexequível na prática, mas sim frisar os pontos essenciais (nomeadamente no que respeita à fundamentação da razão de ciência, isenção, coerência, segurança e emotividade que pautaram em concreto cada depoimento) que determinaram que a convicção do julgador (relativamente ao qual a prova se produziu presencialmente) se formasse no sentido em que consta do elenco dos factos provados.
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Cumpre, ainda, ter em consideração que os crimes de violência doméstica – como aquele que se aprecia nestes autos – são praticados, por regra, na reserva da privacidade, pelo que raramente são presenciados ou observados por terceiros. São, por isso, crimes em cuja revelação do facto assume particular importância o depoimento ou declaração da vítima, isto é, tratam-se de crimes relativamente aos quais a prova se resume, muitas vezes, à pessoa da vítima. Na verdade, como se afirma no Acórdão da Relação de Lisboa, de 06.06.2001, (...) a criminalização das condutas inseridas na chamada “violência doméstica”, e consequente responsabilização penal dos seus agentes, resulta da progressiva consciencialização da sua gravidade individual e social, sendo imperioso prevenir as condutas de quem, a coberto de uma pretensa impunidade resultante da ausência de testemunhas presenciais, inflige ao cônjuge (...) maus-tratos físicos ou psíquicos. Assim, neste tipo de criminalidade, as declarações das vítimas merecem uma ponderada valorização, uma vez que maus-tratos físicos e psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservada da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada dum casal – sublinhado nosso (acessível em www.dgsi.pt/jtrl, Processo nº0034263, relator Adelino Salvado). E como se escreve no Acórdão da Relação de Évora, de 10.05.2016, (…) nada obsta, por princípio, a que a convicção do tribunal se forme exclusivamente com base no depoimento de uma única testemunha ou nas declarações de um único assistente (ou de um único demandante) ou de um único arguido. Esse depoimento e estas declarações, como qualquer meio de prova oral, estão sujeitos ao princípio da livre convicção, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal. Ou seja, e no caso destes autos: acreditar o tribunal (quer este tribunal ad quem, quer o tribunal a quo) na versão, naquilo que é essencial, da assistente B., é uma questão de convicção e entronca no princípio da livre apreciação da prova. A prova, no tipo legal de crime de violência doméstica, não é catalogada, nem os factos agora em análise (que se resumem a injúrias, ameaças verbais, empurrões e bofetadas) necessitam de qualquer outra prova que os sustente, para além das declarações, consistentes e convincentes, da própria vítima (acessível em www.dgsi.pt/jtre, Processo nº73/11.0JAPTM.E2, relator João Amaro). No caso vertente, as declarações da ofendida revelaram-se fulcrais para o apuramento da verdade, como se alcança, aliás, do elenco dos factos tidos por demonstrados. A mencionada BB, na medida do que a sua memória lhe permitiu, aludiu à factualidade que se discute de forma que se reputou por espontânea, linear, lógica e credível. A descrição que efectuou dos acontecimentos em que teve intervenção foi suficientemente circunstanciada e dotada de consistência. A ofendida BB relatou assim ao Tribunal que ela e o arguido AA conhecem-se desde os tempos de escola, onde foram colegas, contudo, foi por volta do final de 2019 que ele lhe pediu amizade através da rede social Facebook e ela aceitou. A partir de tal altura começaram a trocar mensagens entre eles. Esclareceu que além de ser casada, trabalha para a empresa EMP01..., onde exerce funções de supervisora. Como o arguido se encontrava desempregado, ele pediu-lhe ajuda para arranjar emprego, tendo ela conseguido que ele fosse integrado na empresa onde ela trabalhava, ou seja, na EMP01.... Assim, ele começou a trabalhar na EMP01..., por volta do Natal de 2019, sendo que eles encetaram um relacionamento amoroso pouco tempo antes dessa data. Porém, o arguido apenas trabalhou na EMP01... por 4 a 5 meses, tendo sido despedido por faltar muito. Mais referiu que ele era consumidor de estupefacientes, mas na altura que iniciou o relacionamento com ele não sabia. Relatou que ela e o arguido encontravam-se maioritariamente na casa do arguido, dado que ela era casada, cerca de duas vezes por semana, para terem relações sexuais e estarem juntos. Por vezes, ela ia mais cedo para o trabalho para tomarem o pequeno-almoço juntos antes de ela começar a trabalhar, o que ocorria cerca de duas vezes por semana (esclareceu que o seu horário de trabalho era das 06:00 horas às 14:00 horas). Mais referiu que ele lhe pedia dinheiro, dizendo que estava desempregado e que passava fome, e ela com pena dele dava-lhe dinheiro, pagava-lhe as contas da luz, água e etc., bem como lhe fazia compras no supermercado, fazendo-o por pena e preocupação. Referiu que gostava dele, de estar com ele, mas que por ser casada e ter filhos não fazia intenções de se divorciar. Mais referiu que à semana trabalhava na EMP01... e na EMP04... (qui entrava às 18:00 horas e saía às 21:00 horas) e que ao fim-de-semana trabalhava em um restaurante. Referiu que a partir de 2021 ele começou a demonstrar ciúmes, não do marido, mas de outros homens. Quando estava com ela a primeira coisa que fazia era pegar no telefone dela e ver os números de telefone para os quais tinha ligado, bem como começou a ir esperá-la no horário de saída da EMP04.... Contou que como o carro dela não trancava a porta ele chegou a introduzir-se no mesmo quando ela estava a trabalhar na EMP04... e o carro estava no parque de tal empresa. A partir de 2021 começou a entregar-lhe menos dinheiro, e ele sentia que ela não se entregava como antes. Referiu que de manhã dava-lhe 30 a 40€ e á tarde ele já lhe estava a pedir mais 20,00€. Quando começou a diminuir as entregas de dinheiro ele começou a ameaça-la que ia contar do relacionamento deles a toda a família e a toda a gente, bem como começou a esperá-la ao fim do trabalho na EMP01.... Ele chegou a telefonar ao marido dela (sabia o número dele pelo telefone dela). Esclareceu que o seu número de telemóvel é o ...99 e o dele é o ...85. Referiu que as coisas foram escalando, a partir de determinada altura ele já a ia esperar ao restaurante onde trabalha ao fim de semana, para ela lhe dar dinheiro. Chegou a dar-lhe cerca de 100,00€ por semana, e de cada vez que lhe dava era aos 30/40€. Ela dava-lhe dinheiro, pois senão o fizesse ele contava ao marido do relacionamento deles. Isto durou cerca de 2 anos. No período que esteve com ele, chegou a entregar-lhe ao todo cerca de 1000,00€. Em julho de 2023, ele queria dinheiro e ela disse-lhe que não lhe dava e se ele quisesse contar ao marido do relacionamento deles que o fizesse. Então ele colocou-lhe a mão no pescoço e disse que a matava, e ela deu-lhe então dinheiro. Neste período de 2 anos continuou a dar-lhe dinheiro, mas também mantinha o relacionamento amoroso com ele, tendo designadamente relações sexuais com ele. Refere que gostava dele. Acresce que ele também lhe mandava mensagens a ameaça-la e a insultá-la, dizendo-lhe “Vou-te matar, partir os dentes, és uma vaca, andas com os homens todos” (sic!). Quando ele lhe dizia isto exigia-lhe ao mesmo tempo dinheiro. No dia 31 de Agosto de 2023 – último dia do mês em que recebe o ordenado – foi ao EMP02... fazer compras (já não estava com ele à cerca de 15 dias mas ele continuava a mandar-lhe mensagens) e encontrou-o nesse local. Ele veio ter com ela e pediu-lhe dinheiro e ela disse que não lhe dava, ele pediu-lhe então para lhe carregar o telemóvel e ela disse-lhe que não. Encostou-lhe então uma navalha à barriga e exigiu que ela levantasse 20,00€ e lhe entregasse, e ela desviou-se dele, e veio o segurança do supermercado que a protegeu. Esclareceu que quando o arguido lhe apontou a navalha lhe disse que a espetava se ela não lhe levantasse dinheiro. Depois deste episódio passou um tempo sem falar com ele, até que a irmã dele lhe telefonou a dizer-lhe que não conseguia contactá-lo e a pedir-lhe para ela lhe ligar. Refere que ficou preocupada e ligou-lhe e ele disse-lhe que estava nas feiras novas a trabalhar com os feirantes. Quando ele voltou começou a ligar-lhe atencioso e amoroso, e uma semana depois de ele voltar começou a encontrar-se novamente com ele. Até finais de Novembro de 2023 andaram bem, só que depois desta data recomeçaram as ameaças. No dia 26 de novembro de 2023, um sábado, ele enviou-lhe uma mensagem a dizer que estava à porta dela, mas ela achou que era bluff. Confrontada com o teor das mensagens de fls. 13 a 20, confirmou que ele nessa noite lhe enviou essas mensagens. Ele só escrevia insultos. Ema casa dela, estava ela, o marido e 3 filhas com 17, 13 e 7 anos. Inicialmente ele enviou mensagens para ela e para o marido. Refere que já há cerca de meio ano que o arguido tinha ligado ao marido a contar do relacionamento amoroso, mas o marido não acreditou. Quando o marido a confrontou com tal facto ela negou, disse-lhe que era alguém que trabalhou na EMP01... e foi despedido e culpava-a a ela do despedimento. Nesse dia, ela espreitou pela persiana e viu o arguido no exterior, e daqui chamava-a de a ela de vaca, ao marido de corno, dizia que ela andava com todos os homens na EMP01..., e começou a tocar-lhe à campainha e as filhas acordaram. Chamou a Polícia e enviou-lhe uma mensagem a dizer que ia chamar a policia, ao que ele lhe respondeu para ela colocar uma nota de 50,00€ em cima do pneu do carro e ele ia embora, o que ela não fez. Quando chegou a Policia ele já não lá estava. As mensagens a insultá-la passaram a ser habituais, bem como os telefonemas. Chegou a ter que colocar o telefone em silêncio, para não ouvir os insistentes telefonemas. Quando ela atendia ele insultava-a, ameaçava contar do relacionamento deles a todos se ela não lhe desse dinheiro. No dia 9 de Janeiro de 2024 deslocou-se à GNR para apresentar queixa. Nesse dia, quando ela estava a almoçar com o marido em casa, o arguido telefonou, através de número privado, ao marido dela, sendo que o mesmo, assim que atendeu, colocou o telefone em alta voz, tendo o arguido dito: “ela apresentou queixa mas vai-se arrepender; posso ir preso mas ela vai morrer, nem que seja a última coisa que eu faça na vida”. Nessa noite, e uma vez que ela bloqueou o contacto do arguido, este enviou à vítima, cerca das 01h30, uma mensagem de voz dizendo que ia apanhar naquele momento o comboio e que ia para a sua porta. Cerca das 03h30, enviou nova mensagem de voz dizendo que estava em frente a sua casa, determinando que a mesma lhe desse boleia, se não seria pior para ela, dizendo-lhe mesmo: “não ouses deixar-me aqui”. O Ministério Público requereu ao abrigo do art. 356º, nº3, al. a), e 5, do CPP, a leitura das declarações prestadas por tal testemunha perante o Digno Magistrado do Ministério Público, em sede de inquérito, para avivamento da memória e face às discrepâncias entre as declarações prestadas em sede de inquérito e em sede de julgamento, o que foi deferido; Nas declarações prestadas por tal testemunha no dia 10/01/2024 perante o Digno Magistrado do Ministério Público (cfr. fls. 100-103) a mesma referiu: “Começou por dizer que conheceu o denunciado no ano de 2002, quando trabalhou com o mesmo, em empresa de trabalho temporário, em ...; contudo, não mais o viu, sendo que apenas há cerca de 3 anos se reencontraram via Facebook, entre os anos de 2019/2020; uma vez que o mesmo tinha dificuldades financeiras, ia-lhe dando ajuda, dando-lhe comida, pagando-lhe as contas de telefone e luz. Nessa altura, mais lhe arranjou emprego na EMP01..., em ..., ..., onde a ofendida ainda trabalha; o denunciado apenas aí trabalhou durante cerca de quatro a cinco meses, sendo que, como faltava muito, foi despedido. Nessa fase, iniciou relacionamento amoroso com o denunciado, mantendo relação extraconjugal com o mesmo e continuou a ajudá-lo. Quando o denunciado foi despedido, a ofendida queria terminar o relacionamento, mas o denunciado logo a começou a ameaçar que, caso o fizesse, ia contar ao seu marido e filhos do relacionamento que mantinham. Assim, manteve o relacionamento com o denunciado até Agosto de 2023, encontrando-se uma ou duas vezes por semana ou, por vezes, de quinze em quinze dias, com o mesmo na área de .... Em todos os encontros que mantinham, o denunciado, que não trabalhava nem trabalha, pedia-lhe dinheiro, caso contrário, contaria ao seu marido e filhos do relacionamento que mantinham; com receio, a ofendida entregava-lhe sempre quantias em numerário, fossem 20,00 €, 30,00 € ou 40,00 € de cada vez, consoante podia. Além do mais, dava-lhe alimentos, fazendo a respectiva entrega na zona de ..., e, ainda que não todos os meses, mas de dois em dois ou de três em três meses, e porque o denunciado lhe pedia, carregava-lhe o telemóvel e pagava-lhe a conta da luz; o denunciado, para tanto, enviava-lhe, via mensagem de texto, as respectivas entidades e referências, sendo que a ofendida dirigia-se ao multibanco e pagava, ora em ..., ora em .... Para tanto, utilizava um cartão pré-pago do Banco 1..., com o nº ...06, entidade ...12 e referência ...04, que carrega para efeito de pagamentos; bem como o cartão associado à sua conta do Banco 2... com o IBAN ...34. Sucede que, em Agosto de 2023, ganhou coragem e terminou o relacionamento amoroso com o denunciado, em sede de encontro que manteve com o mesmo na habitação do mesmo em ...; além do mais, disse-lhe que não mais lhe iria dar dinheiro, sendo que o mesmo logo reagiu mal. Como tal, o denunciado, que consome produto estupefaciente, começou a enviar-lhe mensagens de teor ameaçador, o que fez desde então, dizendo que lhe ia partir os dentes todos se não lhe desse dinheiro e que ia para a porta da EMP01... gritar e contar do relacionamento que tinham mantido, que a ia matar. Ademais, em 31.08.2023, e uma vez que recebe o ordenado no último dia do mês, dirigiu-se ao EMP02...; logo viu o denunciado no parque de estacionamento e ficou com receio; dirigiu-se ao multibanco para levantar dinheiro e o denunciado abordou-a; pediu-lhe que lhe carregasse o telemóvel, havendo a ofendida acedido, carregando com 10,00 €, ao que crê; mais lhe pediu 20,00 € e, uma vez que a ofendida não acedeu, retirou do bolso uma navalha branca pequena, abriu-a e encostou a mesma à zona da barriga da ofendida, dizendo: “se não me deres, eu espeto-te”; logo a ofendida se afastou, com muito medo, e entrou para o EMP02..., sendo que o denunciado agarrou na sua face, zona do queixo, com violência, havendo uma funcionária da zona da caixa central visto, bem como o porteiro, perguntando-lhe se queria que chamassem a polícia, ao que a ofendida respondeu afirmativamente; quando a PSP chegou ao local o denunciado já dali fugira. A PSP ainda acompanhou a ofendida ao seu veículo, sendo que, quando já haviam abandonado o local, a ofendida veio a reparar que tinha a porta do lado do condutor toda riscada, suspeitando do denunciado. Após o sucedido, e durante cerca de 15 dias, o denunciado nada lhe disse; volvido esse tempo, ligou-lhe, a chorar, a pedir ajuda para comer, sendo que a ofendida voltou a carregar-lhe o telemóvel, a pagar a conta da luz e a dar-lhe alimentos, o que fez até Janeiro deste ano, até alguns dias antes de ser ouvida pela GNR; os alimentos eram entregues, por norma, junto à farmácia de ...; em Dezembro, chegou a ir com o mesmo ao ... e fez-lhe compras. Nunca se encontraram em ... e nesta fase, sempre que se encontravam, era para a ofendida lhe dar alimentos. Nessa fase, num telefonema, confrontou o denunciado com os riscos que tinha no carro, tendo o mesmo admitido ter sido ele. mensagens que lhe enviou desde então (Setembro de 2023), e quando lhe pede comida, o denunciado não a ameaça porque a ofendida cede; quando quer dinheiro, e como a ofendida nega, ameaça-a de morte, deixando a ofendida com muito receio. Ao fim de semana, durante a noite, e desde então, ligava inúmeras vezes, quer para o nº de telefone da ofendida, quer para o nº de telefone do seu marido CC; quando este atendia, o denunciado dizia-lhe: “estás em casa e a puta da tua mulher está no monte com os gajos da EMP01...”, até que o seu marido bloqueou o contacto dele; ligava também de nºs fixos e de nºs de telemóvel diversos. A primeira vez que o denunciado foi a sua casa, sita em ..., ..., foi num Domingo, pensa que em Dezembro, cerca das 06h30, sendo que o mesmo lhe mandou mensagem a dizer que estava à sua porta; logo começou a atirar pedras para a janela do quarto da ofendida, onde a mesma se encontrava com o seu marido; esta olhou pela persiana e viu-o, pediu por mensagem para se ir embora porque ia chamar a polícia e aquele fugiu; o seu marido não o viu mas escutou o bater das pedras e disse que ia chamar a polícia; quando ali chegaram, o denunciado já havia fugido. A segunda vez foi num sábado, passados cerca de 15 dias, pelas 07h00; nessa altura, o denunciado começou a gritar à sua porta: “essa puta do caralho, tu és um corno manso, vou-te partir toda, não me apareças à frente”, estando o casal dentro de casa, bem como as filhas do casal de 17, 13 e 7 anos, sendo que as duas mais velhas ouviram e ficaram com medo. O denunciado enviou-lhe mensagem, nesse momento, dizendo: “mete 50 no pneu que eu vou-me embora e não conto nada; tens até às 02h00 para me dares um telemóvel novo”. Logo a ofendida ligou para a GNR, sendo que ainda o encontraram em ...; a ofendida apenas saiu da habitação quando a GNR chegou a sua casa, tal era o receio sentido. Além do mais, entre Novembro/Dezembro de 2023, o denunciado enviou várias mensagens para a sua chefe JJ e colegas de equipa KK e EE, todos residentes em ..., com expressões referindo-se à ofendida como: “anda com os homens todos da EMP01..., vai para o monte para estar com os homens e nem vai trabalhar”. Pensa que o denunciado conseguiu tais contactos numa altura em que a ofendida lhe emprestou o seu telemóvel para que o mesmo fosse a uma entrevista de emprego. No dia em que foi à GNR (09.01.2024), cerca das 13h30, o denunciado ligou de número privado ao seu marido, sendo que o mesmo, temendo tratar-se do denunciado, assim que atendeu colocou em alta voz, tendo o denunciado dito: “a tua mulher vai ser morta, nem que seja a última coisa que eu faça na vida”; a ofendida ouviu tais palavras, estando em casa a almoçar com o seu marido, e aquele logo desligou, reconheceu perfeitamente a sua voz e ficou com muito medo. Nessa noite (de 09 para 10.01), e uma vez que a ofendida bloqueou o contacto do denunciado, este enviou de nº desconhecido/privado, cerca das 01h30, mensagem de voz dizendo que ia apanhar naquele momento o comboio e que ia para a sua porta; cerca das 03h30, enviou nova mensagem de voz a dizer que estava em frente a sua casa, para lhe dar boleia, se não ia ser pior para ela. Disse-lhe: “não ouses deixar-me aqui”, que apenas queria conversar. Uma vez que sai todos os dias às 05h00 para ir trabalhar, quando saiu não o viu mas alterou o percurso que faz para o trabalho com receio de o encontrar. Terminou dizendo que tem muito receio que o denunciado concretize as ameaças, sendo que sai às 05h00 da manhã de casa para ir trabalhar e o denunciado conhece todas as suas rotinas, sendo consumidor de estupefaciente e encontrando-se muitas vezes alterado, pelo que pretende que o mesmo seja impedido de a contactar, desejando ter paz.” Confrontada com tais declarações confirmou as mesmas. Acrescentou que o arguido era consumidor de produtos estupefacientes, e quando precisava de consumir começava a ficar agitado. Do relato da ofendida não ressaltou – pelo menos de forma patente – uma qualquer elaboração mental destituída de correspondência com a verdade. Pelo contrário, a descrição do suceder dos acontecimentos foi ponderada e coesa. A postura da ofendida afigurou-se genuína, não se logrando descortinar que recorresse a qualquer artifício ou exagero que se mostrasse eventualmente não consentâneo com as regras da experiência comum, nem tampouco que procurasse ampliar os factos que descreveu, revelando-se, antes, contida. Também não foi seu propósito denegrir o arguido, pelo que a abordagem da mencionada BB não se revelou hostil, o que contribuiu, decisivamente, para que o tribunal se convencesse da veracidade das declarações produzidas em julgamento. Acresce que no seu discurso não resultaram evidenciadas contradições, pelo menos, flagrantes. Poder-se-á argumentar – e é legítimo que se faça – que o que afirmou a ofendida deve ser apreciado com precaução, pois que tem um interesse natural no desfecho do processo. No entanto, sem prejuízo das necessárias cautelas que relatos desta natureza merecem, atento o interesse (in)directo na causa, a verdade é que os mesmos constituem um meio de prova livremente valorável. A valoração dependerá, naturalmente, do modo como forem prestados, isto é, se forem produzidos de forma que se afigure séria, honesta e dotada de verosimilhança, serão atendíveis. Foi, precisamente, o que sucedeu com a identificada BB, cujas declarações foram prestadas de modo concordante com a possibilidade de ocorrência de factos da natureza daqueles que descreveu e que se mostram alegados na acusação pública. Além disso, o que descreveu a ofendida mostra-se sustentado noutros elementos de prova, designadamente nas demais testemunhas ouvidas em sede de julgamento. Assim: A testemunha KK, trabalha na fábrica charcutaria EMP01... desde 2019, relatou ao Tribunal, de forma objectiva, clara e sem animosidade que conhece apenas a ofendida, sendo colegas de trabalho. Referiu que começou a receber mensagens a dizer que a BB estava a ter um relacionamento que não era o marido. Isto ocorreu em 2024. Dizia que ela tinha um relacionamento com outro homem, e ela dizia que ia trabalhar e não ia, ela ia ter com outro homem. Por vezes, ele ligava de um número privado não identificado. Refere que as mensagens e os telefonemas duraram cerca de um mês. Referiu que o arguido chegou a dizer-lhe que a BB que ela era uma cabra e uma puta. Contou isto à BB. Depois soube pela polícia que a D. EE também recebia mensagens do mesmo teor. Referiu que a inquirição na polícia foi em janeiro de 2024 pelo que o ocorrido sucedeu cerca 2 a 3 meses antes. Refere que depois de Janeiro de 2024 ainda recebeu mensagens da pessoa em causa. Quando prestou declarações na policia ainda estavam a decorrer as mensagens e os telefonemas. A Ilustre Defensora do arguido requereu ao abrigo do art. 356º, nº2, al. b), e 5, do CPP, a leitura das declarações prestadas por tal testemunha perante Órgão da Polícia Criminal, em sede de inquérito, para avivamento da memória e face às discrepâncias entre as declarações prestadas em sede de inquérito e em sede de julgamento, o que foi deferido; Nas declarações prestadas por tal testemunha no dia 22/01/2024 perante a Guarda Nacional Republicana (cfr. fls. 120-103) a mesma referiu: “Não conhecer o suspeito. A ora testemunha afirma que a cerca de dois meses o ora arguido contactou a mesma telefonicamente a afirmar a última a difamar a vítima dizendo que a mesma era uma “mentirosa”, “ela vai ter com outros homens e deixa o marido em casa”. A testemunha afirma que ia responder mas nesse momento o suspeito desligou a chamada, não tendo o mesmo até aos dias de hoje contactado mais. Desconhece como obteve o número da testemunha bem como o nome da mesma.” Confrontado com tais declarações confirmou as mesmas. Referiu que acabou por bloquear o número de telemóvel do arguido, mas depois recebia chamadas dele de números privados. A testemunha EE, operária há cerca de 18 anos na EMP01..., conhece apenas a ofendida, sendo que esta é chefe dela. Relatou ao Tribunal, de forma objectiva, clara e sem animosidade, que nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidos no ponto 26 dos factos provados, referiu que recebeu uma chamada a dizer que a chefe dizia que ia trabalhar, mas não ia nada, estava era com ele (a pessoa que lhe ligou). Esclareceu que quem lhe ligou foi um homem, que pela voz, deveria ter cerca de 40 anos. Pelo teor da conversa ligaram-lhe para dizer que a chefe tinha um amante. A testemunha LL, solteira, estudante de contabilidade, filha da ofendida, relatou ao Tribunal, de forma objectiva, clara e sem animosidade, que viu o arguido cerca de uma vez. Mais referiu que recebeu chamadas e mensagens de um homem, cuja voz era de um homem português com cerca de 40 anos, a partir de Abril de 2023, que proferia insultos contra a mãe, chamando-a de “puta”, “que anda metida com os colegas de trabalho, com os policias. Também recebeu chamadas de um número privado da mesma pessoa. Referiu que ele ligava até atenderem, eram chamadas insistentes, tendo chegado a bloquear o número. As mensagens eram do mesmo teor, diziam que ela dizia que saía para trabalhar mas ela ia era ter com amantes. Chegou a assistir chamadas que eram feitas para o telemóvel do pai com o mesmo teor. Contou à mãe o sucedido e ela disse que já tinha apresentado queixa. Mais soube que havia ameaças à mãe. Ele chegou a ir a casa deles tocar à campainha insistentemente num domingo de manhã, espreitou pela janela e viu de que homem se tratava. A mãe chamou a Polícia. Descreveu o homem que vira, como magro, de estatura média (1,70/1,75m), com cerca de 40 anos. A testemunha CC, eletricista, marido da vítima, referiu que apena viu o arguido uma vez. Relatou ao Tribunal, de forma objectiva, clara e sem animosidade, que o arguido não é do círculo de amigos nem conhecido dele. Referiu que a esposa e o arguido eram colegas de trabalho, e que ele culpava a esposa por ter sido despedido. O arguido por vingança começou, a partir do início de 2023, a telefonar-lhe e a enviar-lhe mensagens. No primeiro telefonema que lhe fez ele disse-lhe que a mulher “lhe andava a pôr os cornos” “que não ia trabalhar, que estava com outros homens “(sic!). Contudo, não lhe dizia com quem a mulher andava, não se recorda se lhe disse se era com ele próprio. Chegou a ligar-lhe de números não identificados, mas a voz masculina era sempre a mesma. Quando atendia o telemóvel e via que era a voz dele, desligava a chamada. A voz de quem lhe ligava era a voz daquele que foi a casa dele. Enviava-lhe também mensagens a dizer que ele era um corno. Confrontada a esposa, ela dizia-lhe para não lhe passar cartão. Ela contou-lhe que trabalhava com ele, e que ele foi despedido e que ele culpava a esposa por isso. Referiu que quando ele ligava estava junto da mulher e ela também ouvia. Chegou a ameaçar a esposa: ”Posso ir preso mas vou-te matar” (sic!). A partir de determinado momento já não ligava aos telefonemas era sempre a mesma coisa. Às vezes ligava de madrugada 2 a 3 vezes seguidas. No dia em que o arguido foi a casa deles, tocou insistentemente à campainha, chamou a mulher de puta e disse que a ia matar. Nesse dia, foi o arguido que os acordou, além de tocar à campainha, atirou pedras para as persianas. Chamaram a Polícia – a GNR -, que chegou por volta das 7:00/8:00 horas. Quando viu o carro da polícia o arguido fugiu. O depoimento das supra testemunhas afigurou-se espontâneo, despretensioso e dotado de simplicidade, não se denotando que pretendessem ampliar os factos que descreveram, pelo que convenceram o tribunal de que falavam com verdade, assim tendo sido considerada provada a factualidade pertinente. Relativamente ao arguido AA, também quis prestar declarações quanto aos factos que lhe são imputados pela acusação pública. Confirmou o ponto 1 e 2 da acusação pública. Ponto 3. da acusação: referiu que a BB só o ajudou a pagar as contas a partir do ano de 2022, quando ele ficou desempregado. Referiu que ela lhe arranjou emprego na EMP01..., e que antes desta trabalhava como serralheiro mecânico em uma empresa. Ponto 4. da acusação: Referiu que tiveram um relacionamento amoroso coma BB, passaram a encontrar-se algumas vezes para terem relações sexuais. Refere que os encontros dependiam, por vezes uma vez por semana, por vezes de 15 em 15 dias. Ponto 5., 6., 8., 11, 25, 27, 28, 29 da acusação: Referiu que não se recorda. Ponto 7 da acusação: Confessa o mesmo, menos que lhe exigia dinheiro. Ponto 9 da acusação: Confessa o mesmo. Refere que ela o ajudava porque ele também já a tinha ajudado, designadamente já lhe tinha emprestado dinheiro. Ponto 10, 12, 19, 20, 23, 24 da acusação: Confessa os mesmos. Ponto 16, 17, 18, 26 da acusação: Negou os mesmos. Ponto 21 da acusação: Confessou o mesmo, mas referiu que só atirou uma pedra; Mais referiu que nunca quis mal à ofendida, e que está arrependido. Mais disse que eram bons amigos e que gostava dela, havia afetividade entre eles, bem como partilhavam coisas entre eles. Esclareceu que teve problemas com drogas há 12/13 anos atrás, e que a meio da relação que teve com a BB recaiu outra vez. Recaiu nas drogas passados cerca de 6 meses de ter sido despedido da EMP01..., dado que não conseguia arranjar emprego. Referiu que no período em que não tinha rendimentos e que recaiu nas drogas os irmãos e a ofendida davam-lhe dinheiro. Admite que a ofendida lhe possa ter dado ao todo cerca de 1000,00€. Mais disse que a última vez que teve com a BB foi no dia 2 de Dezembro de 2023. Refere que ela nunca acabou o relacionamento com ele. Veja-se que o arguido apenas confessa os factos de que já há uma vastíssima prova a confirmá-los. Os factos que ocorreram no recato da intimidade do casal, tais como os insultos e ameaças, esses ele nega-os. * No que concerne ao elemento subjetivo, a comprovação do mesmo em qualquer ilícito faz-se, ou pela confissão do agente, ou pela existência de elementos fácticos objetivos dos quais aquele elemento se extrai por aplicação das regras da experiência e do normal acontecer dos factos. Tal como nos ensina Germano Marques da Silva, na valoração da prova intervêm deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, sendo certo que se as inferências não dependem substancialmente da imediação, terão de basear-se na correcção do raciocínio, o qual se alicerçará nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência. A este propósito refere ainda o Acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de Maio de 2012: “(…) tratando-se de factos de ordem subjectiva (do mundo dos pensamentos e das representações mentais do agente: os seus conhecimentos e intenções) são insusceptíveis de prova directa, havendo que retirar a convicção da sua verificação da análise dos factos objectivos praticados à luz das regras da experiência comum”. No caso concreto em análise a comprovação do elemento subjetivo resultou, sobretudo, da conjugação dos depoimentos das testemunhas e dos demais elementos documentais constantes nos autos, e das regras de experiência e do normal acontecer dos factos, uma vez que se afigura sobejamente conhecido que o arguido ao proceder do modo com está exarado nos factos provados implica o preenchimento dos crimes em questão. A respeito da existência de antecedentes criminais, foi determinante o teor do certificado do registo criminal juntos aos autos. A comprovação da situação pessoal, familiar e profissional do arguido, bem como a situação económico-financeira e dos seus encargos pessoais, decorreu do relatório social junto aos autos (o qual mostra-se cabalmente fundamentado, com indicação expressa das respetivas fontes, coerentes e imparciais, e cujo conteúdo não foi posto em causa pelo arguido). Na parte em que os factos não resultaram provados, tal circunstância deve-se quer à inexistência ou insuficiência de prova produzida, quer à circunstância de se terem provado factos contrários, ou à análise da prova supra descrita.
*
3. Apreciação do recurso
Primeira questão: Nulidade por omissão de advertência prevista no artigo 134.º, n.º 1), b) do Código de Processo Penal; inconstitucionalidade:
Alega o recorrente que em todos os momentos em que a ofendida prestou declarações na audiência de julgamento, não foi realizada a advertência prevista no artigoº 134.º n.º 1 b) e n.º 2 do Código de Processo Penal o que, na sua perspetiva, configura uma nulidade insanável. Entende o recorrente que estando em causa uma relação de namoro entre o arguido e a ofendida, “com uma proximidade existencial efectiva e de confiança”, tinha a faculdade de recusar prestar depoimento, devendo o Tribunal ter advertido a mesma dessa faculdade.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 134.º, n.º 1) b), do Código de Processo Penal que se podem recusar a depor como testemunhas, «quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação». Segundo o n.º do mesmo artigo, «a entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento».
Como escreve o saudoso colega deste Tribunal da Relação de Guimarães, Desembargador Cruz Bucho (in A Recusa de Depoimento de Familiares do Arguido: o Privilégio Familiar em Processo Penal (notas de estudo) Cruz Bucho, 1-6-2015), “o reconhecimento do direito de recusa em depor, representa uma forte limitação à obtenção e priva e à administração da justiça”, mas esta limitação é compressível e justificada porque “o Interesse público inerente a uma eficaz investigação penal deve ceder face ao interesse da testemunha de não ser constrangida a prestar declarações num processo dirigido contra um seu familiar”. Por isso, como acrescenta o mesmo Desembargador, “no direito português só podem recusar-se as pessoas expressa e taxativamente indicadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do citado artigo 134.º (…), “porque a norma constante do artigo 134.º reveste natureza excepcional, não consentindo aplicação analógica (artigo 11.º do Código Civil) nem sequer interpretação extensiva por o legislador apenas ter querido abranger as pessoas indicadas no referido preceito”.
Como se entendeu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 154/2009, Diário da República 2.ª Serie, n.º 104 de 29 de maio, citado por Cruz Bucho na obra citada “(…) a razão de ser da norma é, não só a de obstar ao conflito de consciência que resultaria para a testemunha de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um seu familiar ou afim, mas também e sobretudo proteger as relações de confiança e solidariedade, essenciais à instituição familiar – verdadeiramente, é esta a sua raiz última (…)”. Como se acrescenta no mesmo acórdão, que está em causa na norma legal em causa é fundamentalmente “prevenir … formas indirectas de auto-incriminação; preservar a integridade e a confiança nas relações de maior proximidade familiar; proteger o alargado espectro de valores individuais e supra-individuais pertinentes à área de tutela da incriminação da violação de segredo profissional ou de segredos para este efeito equivalentes, como, v. g., o segredo de ministro de religião; poupar as pessoas concretamente envolvidas às situações dilemáticas de conflito de consciência de ter de escolher entre mentir ou ter de contribuir para a condenação de familiares ou de clientes” (M. COSTA ANDRADE, “Bruscamente no verão passado”, a reforma do Código de Processo Penal – Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137º, n.º 3950, pág. 280) (…)...a possibilidade de recusa a prestar depoimento por parte dos familiares, cônjuge e afins do arguido (bem como por parte do ex-cônjuge de quem com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação), tem o propósito imediato de evitar situações em que tais pessoas sejam postas perante a alternativa de mentir ou, dizendo a verdade, contribuírem para a condenação do seu familiar. Entendeu aqui a lei que o interesse público da descoberta da verdade no processo penal deveria ceder face ao interesse da testemunha em não ser constrangida a prestar declarações. Mas, além de pretender poupar a testemunha ao conflito de consciência que resultaria de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um arguido com quem tem parentesco ou afinidade próximos, o legislador quer proteger as “relações de confiança, essenciais à instituição familiar”(…).
Aderindo à Doutrina alemã, o Dr. Cruz Bucho, entende que está em causa a protecção da confiança ou solidariedade familiar, visando o direito de recusa “proteger a estabilidade do núcleo familiar”.
No que diz respeito à parte final da alínea b) do n.º do artigo 134.º, escreve o Dr. Cruz Bucho que “viver em condições análogas às dos cônjuges significa, para além da relação sexual duradoura, aparecer publicamente como se casados fossem” falando a doutrina e a jurisprudência a este respeito de “viver em comunhão de mesa, leito e habitação”. Nesse sentido entendeu o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 22/03/2018 (processo n.º 6380/16.9T8CBR.C1.S1, consultado em www.dgsi.pt), que “a união de facto pressupõe uma comunhão de vida análoga à dos cônjuges, ou seja, uma coabitação, na tripla vertente de comunhão de leito, mesa e habitação”, estando em causa, “uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos”, tal como existe na vida conjugal.
No caso dos autos, consta da matéria de facto que depois de terem conhecido em 2002 e trabalhado juntos em ..., iniciaram um relacionamento amoroso entre o arguido e ofendida entre finais do ano de 2019 e inícios do ano de 2020, “não obstante a ofendida já ser casada, encontrando-se ora semanalmente, ora de quinze em quinze dias para terem relações sexuais, para tomarem o pequeno almoço juntos, partilhando carinho e afecto um pelo outro”.
Assim, o arguido e a ofendida não foram casados um com o outro, não tiveram uma comunhão de vida análoga à dos cônjuges, não tendo coabitado, nem partilhado “leito, mesa e habitação”, apenas tendo tido uma relação de namoro que até é negada pelo recorrente noutro momento do recurso.
Sendo assim, é claro como a água que a ofendida não tinha qualquer direito de se recusar a depor porque também não tinha qualquer interesse em “não ser constrangida a prestar declarações num processo dirigido contra um seu familiar” ou com pessoa com quem vivesse em condições análogas às dos cônjuges.
Como é sabido, decorre das regras básicas de interpretação da lei previstas no artigo 9.º do Código Civil, que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º1), não podendo porém, «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2). Ora ao determinar o universo de pessoas que se podem recusar a depor como testemunhas, o legislador na alínea b) do artigo 134.º, previu apenas «quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convido em condições análogas às dos cônjuges…», não sendo possível ao intérprete, no caso, ao recorrente, alargar o âmbito da previsão legal a relacionamentos que manifestamente não têm na letra da lei, “um mínimo de correspondência verbal”.
Está em causa uma norma excepcional, não consentindo, ao contrário do defendido pelo recorrente, aplicação analógica (artigo 11.º do Código Civil), “nem sequer interpretação extensiva por o legislador apenas ter querido abranger as pessoas indicadas no referido preceito”. A ausência de qualquer referência legal às meras relações de namoro, quando noutros preceitos considera esse tipo de relacionamento, revela a intenção do legislador de não estender o regime previsto no artigo 134.º a esse tipo de relações.
Acresce que estão em causa realidades diferentes. Como esclarece Cruz Bucho na obra citada, “embora com relevância criminal no âmbito do crime de violência doméstica (cfr. artigo 152.º, n.º1 alínea b) do Código Penal, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 19/2013), enquadramos a relação de namoro nas situações de facto porquanto, o namoro, por si só, não gera direitos e deveres nem consequências patrimoniais, isto é, não produz qualquer consequência jurídico-civil, não tendo efeitos pessoais, obrigacionais, reais, de família ou sucessórios”.
Numa mera relação de namoro como a que está em causa nos autos, não está presente o objectivo legal de protecção “das relações de confiança, essenciais à instituição familiar”, inexistindo qualquer conflito de consciência por parte da ofendida que seja de salvaguardar e que justifique a compressão do interesse público de descoberta da verdade – cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 154/2009 acima citado.
Resulta do exposto que como refere o Ministério Público na resposta ao recurso, “a ofendida não foi advertida nos termos do disposto no artigo 134º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, nem tinha que o ser”, pelo que inexiste qualquer proibição de prova, nem qualquer nulidade.
Duas notas finais se impõem ainda acrescentar quanto à primeira questão suscitada no recurso.
A primeira é para dizer que mesmo que se considerasse a existência de uma nulidade, a mesma seria sanável por não estar expressamente prevista na lei como “insanável”. Assim, como refere o Ministério Público na resposta ao recurso na primeira instância, mesmo que se considerasse não ter sido feita de forma válida a advertência em causa, tal consubstanciaria uma nulidade que ficou sanada porque não foi arguida até ao termo das declarações da ofendida. Na verdade, como refere Vinício A. P. Ribeiro (in Código de Processo Penal, notas e comentários - Quid Juris, 3.ª edição, anotação ao artigo 134.º), está em causa uma nulidade sanável (posição que parece a mais aceitável) que depende de arguição até à conclusão do depoimento, não resultando assim qualquer proibição de prova como pretendida o recorrente. No mesmo sentido, Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques (in Código de Processo Penal anotado, I volume, 3.ª edição) e José Manuel Saporiti Machado da Cruz Bucho (inA recusa de depoimento de familiares do arguido: o privilégio familiar em processo penal, notas de estudo). Qualquer outra solução seria incompreensível porque estando a defesa do arguido presente na audiência de julgamento, assistindo ao início da tomada de declarações da ofendida que o poderiam eventualmente prejudicar, se quedasse inerte, só reagindo no recurso da sentença.
A segunda nota é para afastar qualquer juízo de inconstitucionalidade ao contrário da tese defendida em sede de recurso, com base numa suposta violação dos artigos 26.º, n.º 1 e 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa, com base numa suposta “proximidade existencial efetiva e de confiança”, bastando para o efeito fazer referência, uma vez mais, ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 154/2009 acima citado e à sua eloquente fundamentação, para se perceber que seguramente não está em causa a protecção de uma mera relação “existencial efetiva e de confiança”, cujo conteúdo, em bom rigor, se ignora, sob pena de a ser seguido o entendimento do recorrente, dificilmente poderem ser ouvidas como testemunhas, os ofendidos que tenham uma qualquer relação com os arguidos, seja de amizade, seja de qualquer outra natureza.
Improcede o recurso neste segmento recursivo. Segunda questão: qualificação jurídica dos factos quanto ao crime de violência doméstica por inexistência de relação de namoro:
Alega o recorrente que o relacionamento entre o arguido e a ofendida, não pode ser caracterizado como “integrando uma relação de namoro, com o que se arreda a aplicação ao caso decidendo da norma constante do artigo 152.º, nº 1, alínea b), do Código Penal”.
Vejamos.
A Lei 19/2013 de 21 de Fevereiro, acrescentou ao tipo legal previsto no artigo 152.º do Código Penal, um novo elemento objectivo passando a integrar também as relações de namoro, relações de pessoas que vivam, ou tenham vivido uma relação de namoro e que não envolva uma vida conjugal ou uma vida análoga à dos cônjuges. Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal - Universidade Católica, 5.ª edição actualizada, Lisboa 2022), ficam excluídas da previsão legal as pessoas envolvidas “em relações afectivas ou mesmo sexuais passageiras, ocasionais ou furtuitas”.
O legislador não definiu o conceito de “namoro”, provavelmente pelo seu carácter “dinâmico, necessariamente ajustado à realidade actual”, podendo o mesmo ser entendido como “um compromisso entre duas pessoas que se relacionam durante um lapso de tempo indeterminado, com partilha e comunhão de afetos e interesses pessoais” – cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/02/2022 (processo n.º 666/20.5PIPRT.P1, consultado em www.dgsi.pt). Numa outra tentativa de definição do conceito de relação de namoro, o mesmo Tribunal da Relação do Porto no Acórdão de 04/12/2024 (Processo n.º 405/23.9GBAGD.P1 consultado em www.dgsi.pt) entendeu a propósito que contendo o conceito em causa, “alguma imprecisão, na sua interpretação para o efeito de definição do tipo de crime de violência doméstica, será de ter em consideração a ratio dessa incriminação e, por isso, o relacionamento em causa há de corresponder a uma proximidade existencial efetiva a que é inerente uma relação de confiança geradora de uma expetativa de um vínculo de acrescido dever de respeito e de abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro ou parceira”.
No caso dos autos, o recorrente alega que nem ele, nem a ofendida entendiam que tinham uma relação de namoro, que ambos não tinham qualquer intenção de ter um projecto de vida em comum, não dormiam juntos, não passavam férias juntos, tudo não passando de uma “mera relação de amizade” que incluía relações sexuais, “meramente ocasionais, fortuitas”, tendo o seu relacionamento, “não tanto um vínculo afectivo/sentimental”, mas “sobretudo de conveniência”.
Não deixa de ser contraditório, negar uma relação de namoro para efeitos de subsunção dos factos no crime de violência doméstica, depois de na primeira parte do recurso, se defender a existência de uma nulidade por incumprimento do disposto no artigo 134., n.º 2 do Código de Processo Penal, invocando “um relacionamento amoroso” e uma “proximidade existencial efectiva e de confiança” entre o arguido e a ofendida. Na verdade, o recorrente afirma uma coisa e o seu contrário, consoante os fundamentos recursivos que vai utilizando, pretendendo ao mesmo tempo, “sol na eira e chuva no nabal” como diz o povo.
Ora, há que dizer antes de mais, que para o preenchimento deste específico elemento típico do crime de violência doméstica aqui em causa - relação de namoro - “não é aquilo que dela se diz, mas sim aquilo que ela é efectivamente”, como bem se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/06/2024 (Processo n.º 466/21.5PAVNG.P1, consultado em www.dgsi.pt). Na verdade, como escreve a Senhora Conselheira Ana Barata Brito (em “A ‘relação de namoro’ como elemento do tipo de crime violência doméstica” - “Estudos em homenagem ao Juiz Conselheiro António Henriques Gaspar”, ed. 2019), citada neste último acórdão, “para o direito penal pode configurar namoro uma relação que as pessoas que se interrelacionam não denominam nem consideram como tal. E pode também acontecer a hipótese inversa”, acrescentando que não interessa tanto o sentido que a expressão toma no dia-a-dia, porque os sujeitos podem “considerar-se namorados, podem ser vistos como tal pela sociedade, mas a sua relação pode ficar fora do sentido jurídico da expressão; e, no reverso, pode configurar juridicamente "namoro" uma relação que os próprios não assumam como tal».
Assim, para o correcto enquadramento legal da conduta do arguido, torna-se necessário partir das concretas circunstâncias descritas na factualidade provada pelo Tribunal, para saber se independentemente do que os envolvidos na relação digam, estamos ou na presença de uma relação de namoro para efeitos do disposto no artigo 152.º, n.º 1, b) do Código Penal.
No caso dos autos, com utilidade para a caracterização da relação do arguido com a ofendida, há a considerar os seguintes factos: 3. Entre finais do ano de 2019 e inícios do ano de 2020, BB e arguido retomaram o contacto, via “Facebook”, sendo que, após o arguido anunciar que passava dificuldades financeiras, a ofendida começou a ajudá-lo, oferecendo-lhe bens alimentares, pagando-lhe as contas de telefone e electricidade, e arranjando-lhe emprego na empresa “EMP01...”, sita em ..., ..., local de trabalho de BB. 4. Nesse período, BB e arguido iniciaram um relacionamento amoroso, não obstante a ofendida já ser casada, encontrando-se ora semanalmente, ora de quinze em quinze dias para terem relações sexuais, para tomarem o pequeno almoço juntos, partilhando carinho e afecto um pelo outro. 5. Após o arguido ter cessado trabalho na empresa “EMP01...”, a ofendida continuou a ajudá-lo monetariamente da forma supra descrita. 6. Por altura do despedimento do arguido, já no ano de 2021, BB manifestou ao arguido que pretendia terminar o relacionamento amoroso. 7. Contudo, o arguido disse a BB que, caso o fizesse, contaria ao seu marido e filhos acerca do relacionamento que mantinham, motivo pelo qual a ofendida acedeu em manter o relacionamento, pelo receio sentido, o que sucedeu até Agosto de 2023. 8. Até esta data, vítima e arguido encontravam-se uma ou duas vezes por semana ou, por vezes, de quinze em quinze dias, na área do concelho ..., área de residência do arguido e de trabalho de BB, sendo que, em todos os encontros que mantinham, o arguido, que não trabalhava, exigia à vítima a entrega de quantias monetárias, sob pena de, caso o não fizesse, divulgar ao seu marido e filhos o relacionamento que mantinham. 9. Com receio, BB entregava ao arguido sempre quantias monetárias em numerário, sendo 20,00€, 30,00€ ou 40,00€ de cada vez, consoante a sua disponibilidade financeira, tendo entregue, no total, quantia monetária globalmente aproximada a 1.000,00€. 10. Além do mais, entregava-lhe alimentos, fazendo a respectiva entrega em ..., ... e, de três em três meses, e porque o arguido lhe pedia, carregava-lhe o saldo do telemóvel e pagava-lhe a conta da electricidade. 11. Para tanto, o arguido enviava a BB, via mensagem de texto, as respectivas entidades e referências, sendo que esta dirigia-se ao multibanco e procedia ao pagamento exigido pelo arguido. 12. Sucede que, em dia não concretamente apurado do mês de Agosto de 2023, em encontro que manteve com o arguido na habitação deste, em ..., BB terminou o relacionamento amoroso com o mesmo e disse-lhe que não mais lhe iria dar dinheiro. 13. Em seguida, o arguido remeteu à vítima mensagens escritas, provenientes do telemóvel ...85, dizendo-lhe: “vou-te matar; vou-te partir os dentes todos se não me deres dinheiro; vou para a porta da EMP01... gritar e contar”, referindo que ia divulgar o relacionamento que tinham mantido.
Estes factos não foram impugnados pelo recorrente que se limita a transcrever na motivação do recurso, parte do depoimento da ofendida e parte das declarações do arguido, mas tal é manifestamente insuficiente para se poder equacionar uma eventual impugnação ampla da matéria de facto. Com efeito, quando o recorrente opta pela impugnação ampla da matéria de facto, tem que dar cumprimento a um “tríplice ónus”, em obediência ao disposto no artigo 412.º, números 4 e 5 do Código de Processo Penal, como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/09/2012 (processo n.º 45/09.8GBACB.C1, também consultado em www.dgsi.pt): a) Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência; b) Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o n.º 4 do encimado artigo 412.º); c) Indicar que provas pretende que sejam renovadas, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação.
Na verdade, impõe o artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas. Esta especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4 do Código de Processo Penal). Todas estas especificações devem constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas pelo recorrente, sendo que o incumprimento das formalidades impostas pelo artigo 412.º, nºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla.
No caso dos autos, o recorrente nem sequer indica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nem indica em concreto quaisquer passagens que “imponham decisão diversa da recorrida”, como lhe era exigível.
Ora se pretendia “arredar” a aplicação ao caso concreto, da norma constante do artigo 152.º, n.º 1, b), do Código Penal, tinha de impugnar os factos que permitem caracterizar a relação do arguido com a ofendida, não bastando invocar o que estes disseram na audiência de julgamento como acima se disse.
Dos factos acima descritos, resulta que a relação entre o casal, que já se conheciam anteriormente, começou “entre finais do ano de 2019 e inícios do ano de 2020”, tendo a ofendida passado a ajudar o arguido, dando-lhe bens alimentares, pagando-lhe as contas de telefone e electricidade, e arranjando-lhe emprego. Nesse período “BB e arguido iniciaram um relacionamento amoroso, não obstante a ofendida já ser casada, encontrando-se ora semanalmente, ora de quinze em quinze dias para terem relações sexuais, para tomarem o pequeno almoço juntos, partilhando carinho e afecto um pelo outro” – facto 4). Este relacionamento durou mais de um ano (ao todo foram cerca de 3 anos), o que evidencia já alguma estabilidade, até que só em 2021 é que a ofendida manifestou ao arguido que pretendia terminar o relacionamento amoroso – facto 6). Ora não é preciso comunicar a uma pessoa o termo de uma mera relação de amizade, mesmo que a mesma envolva relacionamento sexual: basta simplesmente deixar de falar com o outro. Acresce que resulta do facto 7) que o relacionamento em causa, acabou por durar até Agosto de 2023, relacionamento esse que não podia deixar de ser mais do que uma simples relação de amizade porque se assim não fosse, não se compreenderia nem a pressão do arguido para o manterem, nem para a ofendida sentir a obrigação de prolongar uma mera relação e amizade, com “caracter fortuito”.
Resulta ainda dos factos que o casal se encontrava “uma ou duas vezes por semana” o que também mostra que não era uma relação fortuita ou ocasional, com parece defender o recorrente.
Assim, concordamos com a análise da primeira instância quando concluiu que “resulta claramente do referido quadro factual a existência de uma relação afetiva que se desenvolveu intensamente durante cerca de 3 anos (e que partiu de um conhecimento pessoal anterior de mais de 10 anos), reciprocamente assumida e que, manifestamente, motivou e condicionou a atuação do arguido descrita na matéria provada, cujos efeitos foram potenciados pela fragilização da posição da vítima, afetada na sua liberdade de reação precisamente pelo convívio existente e pela exposição da sua privacidade e intimidade perante o arguido, decorrentes da relação de vida em comum (note-se, ademais, que o arguido não queria terminar o relacionamento que tinha com a ofendida, a significar, certamente, a importância que o mesmo conferia à estabilidade e continuidade da relação que com ela mantinha)”. Como se acrescenta na decisão recorrida, “atentos os factos provados temos de concluir que a relação entre ofendida e arguido, durou três anos, e manifestava um carácter mais ou menos estável de relacionamento amoroso, com “uma proximidade existencial efectiva (…) uma relação de confiança entre agente e ofendido, baseada em fundamentos relacionais mais ou menos sólidos, em que cada uma deles é titular de uma «expectativa» em que o outro, por via desse laço, assume um dever acrescido de respeito e abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro(a)” - citando palavras do Dr. André Lamas Leite, in Revista Julgar, n.º12 Especial: “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, pág. 52.
De tudo resulta, que bem andou a primeira instância quando entendeu pelo “preenchimento do pressuposto do preenchimento do tipo de ilícito da alínea b) do n.º 1 do artigo 152° do Código Penal”, improcedendo o recurso também nesta parte. Terceira questão: cancelamento definitivo de uma anterior condenação:
Alega o recorrente que “resulta do acórdão pelo menos uma condenação que já não devia constar do CRC e que só dele consta por inoperância do sistema informático da DGAJ, pois a pena do processo 774/10.0GCVCT extinguiu-se em 08.08.2013”.
Acrescenta o recorrente que se deverá considerar “como inexistente, para efeitos de valoração do CRC, a condenação do processo 774/10.0GCVCT, uma vez que a condenação do processo 1289/16.9T9VNF, pese embora tenha sido sentenciada em 13.11.2017, o crime desse processo foi praticado em 03.11.2013 – não sendo este processo considerado uma nova condenação por crime novo na medida em que os factos são de 2013 mas julgados anos depois, sob pena de se prejudicar o arguido na falta de celeridade processual no direito ao julgamento no mais curto prazo possível”.
Vejamos.
Nos termos do artigo 11.º, n.º 1, da Lei 37/2015 de 5 de Maio (diploma que entre outros, revogou a Lei 57/98), as decisões cessam a sua vigência no registo criminal, nos seguintes prazos:
a) «Decisões que tenham aplicado pena de prisão ou medida de segurança, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, com respeito aos crimes previstos no capitulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5, 7 ou 10 anos sobre a extinção da pena ou medida de segurança, se a sua duração tiver sido inferior a 5 anos, entre 5 e 8 anos ou superior a 8 anos, respectivamente, e desde que, entretanto, não tenha decorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;
b) Decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, com respeito aos crimes previstos no capitulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha decorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;»
Alega o recorrente que em relação à condenação do processo 774/10.0GCVCT, o marco temporal para o início da contagem do prazo para o cancelamento definitivo, se conta a partir de 03/11/2013, acrescentando que o prazo de 5 anos terminou em 03/11/2018, porque não ocorreu entretanto, “qualquer nova condenação por novo crime”, uma vez que “a condenação do processo 1289/16.9T9VNF, pese embora tenha sido sentenciada em 13.11.2017, o crime desse processo foi praticado em 03.11.2013”.
O Ministério Público, pelo contrário, alega que “todas as referidas condenações encontram-se devidamente averbadas no certificado de registo criminal do recorrente”porque“em nenhuma das condenações decorreu cinco anos desde a extinção da pena anterior e a condenação ulterior”.
Deste modo, a questão a decidir resume-se à de saber se a condenação operada no processo 1289/16.9T9VNF, é ou não, uma “nova condenação” e como tal suscetível de obstar ao cancelamento, nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da Lei 37/2015 de 5 de Maio.
Vejamos.
Como já afirmámos, na interpretação da lei, «não pode, …, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal» - cf. o artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil.
Ora, no caso em apreço, o legislador no artigo 11.º, n.º 1, nas alíneas a), e b) da Lei 37/2015 de 5 de Maio, alude, expressamente, à existência ou não, de uma nova “condenação” por crime de qualquer natureza, independentemente do momento da prática dos factos respectivos. A interpretação do recorrente não tem um mínimo de correspondência verbal com o teor da norma aplicável ao caso dos autos, não permitindo a expressão “nova condenação”, restringir o seu âmbito, sem mais, aos casos em que não ocorreu, no prazo de cinco anos, a prática de novos factos. Se fosse essa a intenção do legislador, não teria sido utilizada a expressão “nova condenação”.
O arguido foi condenado numa pena de 160 dias de multa à taxa diária de 5,00€ no processo comum singular n.º 774/10.0GCVCT, pena é essa que foi declarada extinta por despacho datado de 08/08/2013. Era assim necessário o decurso do prazo de 5 anos para a cessação da sua vigência no registo criminal nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1, a), da Lei 37/2015 de 5 de Maio, prazo que iria decorrer até 08/08/2018 (cinco anos após a extinção da pena). Porém, em 13/11/2017, antes daquele prazo se mostrar exaurido, ocorreu uma nova “condenação” pela prática de um crime de desobediência no âmbito do processo n.º 774/10.0GCVCT. Assim sendo, dúvidas não restam que independentemente de os factos dizerem respeito a 03/11/2013, ocorreu um facto que impediu o cancelamento da decisão condenatória proferida no processo n.º 774/10.0GCVCT.
Por outras palavras, no caso dos autos podemos afirmar que analisando o CRC do arguido não decorreram 5 anos sobre a extinção da última pena, sem que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação do recorrente numa nova pena criminal.
De tudo resulta que os serviços do registo criminal não procederam ao cancelamento do registo de nenhuma condenação do recorrente constantes do seu CRC junto aos autos, porque não decorreu o tempo que determina o seu cancelamento e, não, por causa de uma eventual inoperância do sistema.
Deste modo, sem outros considerandos, conclui-se que improcede o recurso também neste segmento recursivo. Quarta questão: excessividade das penas concretas e eventual suspensão da execução da pena única.
Alega o recorrente que “em cúmulo, reputa-se por adequada e justa a aplicação ao Recorrente de uma pena única 2 anos e 3 meses de prisão”.
Vejamos:
O código Penal contém uma disposição preliminar dentro do Título III, que se ocupa das consequências jurídicas do facto, nos termos da qual a aplicação de uma pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” – cf. o artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal. Nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». Por sua vez, estabelece o artigo 70.º do Código Penal que «se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição». Para a determinação da medida concreta da pena há que fazer apelo aos critérios definidos pelo artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, nos termos dos quais, tal medida será encontrada dentro da moldura penal abstratamente aplicável, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente. Deve o Tribunal na determinação concreta da pena o tribunal atender a «todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».
No caso dos autos, o Tribunal recorrido em sede de medida concreta da pena, ponderou o seguinte (transcrição parcial):
“Neste domínio e no que respeita ao ilícito criminal de violência doméstica, as necessidades de prevenção geral positiva revelam-se fortemente acentuadas, atenta a frequência com que são praticados, designadamente na área geográfica desta Comarca de Braga, traduzindo um problema social de grandes dimensões. Como no dia 07.06.2022 noticiava o jornal “Expresso” online: “Em 2022, já morreram pelo menos 13 mulheres vítimas de violência doméstica em Portugal” (acessível em www.expresso.pt). (…) Com efeito, neste domínio, as necessidades de prevenção geral positiva revelam-se fortemente acentuadas, atenta a proliferação deste tipo de ilícitos, nomeadamente por pessoas dependentes do consumo de estupefacientes – como sucedia, à data, com o arguido –, sobretudo em tempos de dificuldades financeiras, que gera muito alarme social por desencadear insegurança e intranquilidade na comunidade. Na verdade, estes tipos de crime é daqueles que a comunidade mais repudia, precisamente por causa do sentimento de insegurança que para ela se transpõe. Por isso, tais necessidades reclamam sanções de maior gravidade, pois que vivemos tempos em que se afigura cada vez mais difícil a convivência comunitária de acordo com os ditames do respeito que a cada um é devido, nomeadamente, do respeito pelo património alheio. Mostra-se, assim, indispensável reprimir manifestações de indisciplina agressivas, como a protagonizada pelo mencionado AA. Deste modo, os propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada reclamam uma intervenção forte do direito penal sancionatório, por forma a que a aplicação da pena, no seu quantum, responda às necessidades de tutela dos bens jurídicos supra identificado, assegurando a manutenção, apesar da violação daquelas normas, da confiança (comunitária) na prevalência do direito. Quanto às exigências de prevenção especial positiva ou de ressocialização, assume primordial importância que o arguido AA compreenda o desvalor do seu comportamento nos acontecimentos que se apreciam nestes autos, de forma a prevenir a prática de futuros actos delinquentes. O arguido, com a sua conduta, revelou indiferença para com valores cuja importância é unanimemente reconhecida a nível comunitário, assim revelando um défice ao nível da ressonância ético-jurídica. Sem prejuízo do aludido AA apresentar retaguarda familiar, as necessidades de prevenção especial resultam, de certo modo, elevadas na medida em que o arguido não se mostra devidamente integrado profissional e socialmente, além de que lhe são conhecidos antecedentes criminais (conta já com cinco condenações: por furto simples tentado, desobediência, ofensa à integridade física, violência doméstica e furto). Assim, ponderando todos os critérios legais de determinação da pena concreta, aqui convocando o que acima expendemos em sede de prevenção geral positiva, depõe contra o arguido AA, o grau de ilicitude do facto e o modo de execução deste, que é acentuado, atendendo aos actos praticados (que configuram violência emocional e psicológica, bem como atentam contra o património da ofendida ) e ao valor e à natureza dos bens jurídicos atingidos, havendo que ponderar a violação do bem-estar físico e psíquico, a liberdade e a dignidade pessoal, bem como o património da ofendida BB (que foi sua namorada) – cfr. artigo 71º, nº2, alínea a), do CP. Os comportamentos levados a cabo pelo arguido e que ora se censuram traduzem-se em maus-tratos concretos e, como se deixou provado, não foram praticados isoladamente, mas antes de modo implicado e como um todo, o que se verificou quanto à ofendida por um período de tempo de cerca de 3 anos - cfr. artigo 71º, nº2, alínea a), do CP. O arguido, com os seus comportamentos, abusou e atingiu a relação de proximidade estabelecida com a ofendida/vítima (cfr. artigo 71º, nº2, alínea a), do CP). Acresce, relativamente ao crime de extorsão este perdurou entre setembro de 2023 a 10/01/2024, com uma periodicidade quase diária, o que revela o desajustamento da conduta do arguido com os valores da comunidade, o que aumenta as necessidades de prevenção especial. Em conformidade com o que se expôs supra, haverá que ter em consideração a violação dos deveres impostos ao arguido de cuidado, respeito e solidariedade pela pessoa da aludida BB e da sua dignidade humana, o seu património sendo grave tanto o desvalor da acção, como o desvalor do resultado (cfr. artigo 71º, nº2, alínea a), do CP). Importa, também, considerar que o identificado AA, no já indicado período temporal, teve a possibilidade de amadurecer os seus propósitos e, apesar disso, não os abandonou (cfr. artigo 71º, nº2, alínea a), do CP). Depõe, igualmente, contra o arguido a intensidade do dolo nos crimes cometidos, consubstanciada na sua modalidade mais grave – o dolo directo –, projectando a sua actuação e as suas imediatas consequências e conformando-se com a sua actuação ilícita (cfr. artigos 14º, nº1 e 71º, nº2, alínea b), do CP), facto que, fazendo elevar a ilicitude inerente à sua conduta (é menor a sensibilidade à pena que lhe venha a ser aplicada), acentua o grau de premência das referidas exigências de prevenção, ao mesmo tempo que acentua o juízo de censurabilidade penal a fazer impender sobre aquele AA. Os sentimentos manifestados pelo arguido no cometimento dos crimes sob apreciação são egoísticos e socialmente desajustados, revelando a sua incapacidade de respeitar a ofendida/vítima, fazendo-se valer da sua postura autoritária e controladora, designadamente com o intuito de ela lhe entregar dinheiro (cfr. artigo 71º, nº2, alínea c), do CP). Por sua vez, depõe a favor do arguido a sua integração familiar (cfr. artigo 71º, nº2, alínea d), do CP). Porém, depõe em seu desfavor o facto de não se encontrar inserido profissional, económica e socialmente. Com efeito, como avulta do respectivo relatório social: “Detém historial de problemática de consumo de produtos estupefacientes, iniciado por volta dos 25 anos de idade. Procurou apoio clínico junto do serviço de saúde. No âmbito do acompanhamento em suspensão de pena, AA sujeitou-se a acompanhamento pelo CRI, em março de 2024. De acordo com o médico psiquiatra do CRI, FF, o arguido encontra-se em acompanhamento devido a dependência de múltiplas substâncias, tendo sido medicado com buprenorfina e quetiapina. Em 26-06-2024, o arguido foi internado para desabituação de consumos, durante dez dias, até 05-07-2024. Atenta a falta de motivação para ingressar em comunidade terapêutica, o arguido teve alta, com continuidade de acompanhamento terapêutico em ambulatório. Porém, em agosto’24, o arguido recaiu no consumo de produtos estupefacientes e voltou a faltar às consultas no CRI, as quais alegadamente retomou no final de 2024. De acordo com o proferido pela irmã, o arguido continuará a aderir ao tratamento proposto, nomeadamente medicamentoso. Esta acredita, ainda, que o arguido se manterá afastado do consumo de produtos estupefacientes. No entanto, esta posição carece de avaliação específica. No meio social de residência, a imagem do arguido encontra-se associada a um percurso ligado às drogas, ainda que sem sentimentos de rejeição significativos. AA detém anteriores contactos com o sistema de justiça penal, o primeiro dos quais em 2014, quando foi condenado pela prática de um crime de furto na forma tentada, numa pena de multa que pago. Regista outras condenações posteriores, pela prática de um crime de desobediência, e crime de violência doméstica, em pena de multa e pena de prisão suspensa com regime de prova, respetivamente. Entre 2020 e 2025, AA foi acompanhado pela DGRSP, no âmbito do processo 68/19.6T9VNF, tendo revelado baixo comprometimento com a medida aplicada, faltando sucessivamente às entrevistas que lhe eram agendadas. Em dezembro de 2023, a medida foi prorrogada por um ano, no entanto, não se verificaram alterações significativas, à exceção do acompanhamento clínico/terapêutico pelo CRI.” Em sede de julgamento não houve confissão (integral e sem reservas) dos factos, nem arrependimento que se possa valorar. Nos termos do artigo 71º, nº2, alínea e), do CP, depõe a desfavor do arguido a existência de condenações à data da prática dos factos, conta já com 5 condenações, designadamente por violência doméstica. Aliás os presentes factos foram praticados durante o período de suspensão da pena em que foi condenado pelo crime de violência doméstica. (…)
Antes de mais há que dizer que como escreve Figueiredo Dias (inDireito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pág. 196-197, §255) e como se tem vindo a pronunciar de forma uniforme o Supremo Tribunal de Justiça[2] (v.g. os Acórdãos 09/11/2000, in Sumários STJ de 29/1/2004, processo n.º 03P1874, e de 27/5/2009, processo n.º 09P0484, ambos disponíveis em www.dgsi.pt), a intervenção do tribunal de recurso pode incidir na questão do limite ou da moldura da culpa assim como na actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não na determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo se tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. Neste sentido se pronunciou Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (processo n.º 201/10.3GAMCD.P1), entendendo que “acerca da questão da cognoscibilidade, controlabilidade da determinação da pena, no âmbito do recurso, há que dizer que a intervenção do tribunal nesta sede, de concretização da medida da pena e do controle da proporcionalidade no respeitante à sua fixação concreta, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada. Vem-se entendendo que se pode sindicar a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro de prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”.
No caso dos autos, aderimos à fundamentação das medidas concretas das penas que acima transcrevemos, sendo de considerar para além da ilicitude dos factos, as elevadas exigências de prevenção especial tendo em conta os antecedentes criminais do arguido que incluem a condenação por crime de violência doméstica e que evidenciam, com clareza, que as sucessivas condenações não o impediram de seguir um comportamento desconforme ao Direito, revelando “indiferença para com valores cuja importância é unanimemente reconhecida a nível comunitário, assim revelando um défice ao nível da ressonância ético-jurídica”, como bem se salientou da decisão recorrida. Acresce que como também ali se escreveu, “assume primordial importância que o arguido AA compreenda o desvalor do seu comportamento nos acontecimentos que se apreciam nestes autos, de forma a prevenir a prática de futuros actos delinquentes”. Pondera-se também o acentuado “grau de ilicitude do facto e o modo de execução deste”.
A favor do arguido há apenas a considerar a sua inserção familiar, mas esta não pode justificar um elevado grau atenuativo tendo em conta que a mesma não o impediu de praticar os factos em causa nestes autos.
Quanto às exigências de prevenção, as mesmas são elevadíssimas, mormente no que diz respeito ao crime de violência doméstica. Na verdade, segundo o “Executive Digest” (publicação de 8 de Maio de 2023, https://executivedigest.sapo.pt/), “em 2022, as queixas por violência doméstica registaram o valor mais elevado dos últimos quatro anos, com as polícias a contabilizarem 30.389 ocorrências no ano passado”. Face a esta triste realidade, não podem deixar de se considerar como elevadíssimas as exigências de prevenção geral: como entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 13/09/2018 (proferido no processo n.º 372/17.8PBLRS.L1.S1 e consultado em www.dgsi.pt), “no crime de violência doméstica são elevadas as exigências de prevenção geral tendo em conta a frequência com que ocorre a prática deste ilícito, com consequências muito nefastas para a saúde, física e psíquica, das pessoas violentadas”.
Tudo ponderado, entendemos que as penas parcelares fixadas de 2 anos e 3 meses de prisão para o crime de violência doméstica, de 1 ano e 6 meses de prisão para o crime de extorsão e de 8 meses de prisão para o crime de roubo simples, na forma tentada, se mostram equilibradas.
Quanto à pena única de 3 anos e 2 meses de prisão, também nada há a apontar, considerando além do mais, a indiferença revelada pelo arguido para com valores socialmente basilares e a “personalidade desajustada com o dever-ser social”.
Como salientou o Tribunal recorrido, na pena única há a ponderar “a natureza dos crimes cometidos, as circunstâncias em que foram realizados, o desvalor da acção e do resultado, o facto de ter registos criminais e a personalidade do arguido, numa imagem global e unificada, reflecte situações de pluriocasionalidade”.
De tudo resulta que não vemos motivo para censurar a decisão recorrida, pelo que se impõem a improcedência do recurso também nesta parte.
Quinta questão: da suspensão da pena de prisão.
Entende o recorrente, sempre de forma genérica, que sendo inferior a 5 (cinco) anos, a pena única deveria ser suspensa na sua execução, por período não superior a 3 (três) anos por se verificarem os demais pressupostos.
Pela nossa parte, adiantamos desde já que quanto à suspensão da execução da pena de prisão também não encontramos motivos para divergir da decisão da primeira instância.
Vejamos.
Decorre do disposto no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal que «o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição». Como decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra no acórdão de 24/01/2018 (processo n.º 50/17.8GBTCS.C1, consultado em www.dgsi.pt), “a suspensão da execução da pena de prisão é uma pena de substituição em sentido próprio, uma vez que que o seu cumprimento é feito em liberdade e pressupõe a prévia determinação da pena de prisão, em lugar da qual é aplicada e executada: tem como pressuposto formal da sua aplicação que a medida da pena imposta ao agente não seja superior a cinco anos de prisão e como pressuposto material a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento daquele, em que o tribunal conclua que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as respectivas circunstâncias, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal)”. De salientar que como escreveu o professor Jorge de Figueiredo Dias (in As Consequências Jurídicas do Crime, §§ 519, pág.343), “o juízo de prognose favorável reporta-se ao momento em que a decisão é tomada e pressupõe a valoração conjunta de todos os elementos que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, no sentido de que irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando o eventual cometimento de novos crimes prevenido com a ameaça da prisão, daí se extraindo, ou não, que a sua socialização em liberdade é viável. Levando-se aqui em linha de conta que a finalidade político-criminal visada com o instituto da suspensão da execução da pena reside no “afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novo crimes”, sendo, pois, decisivo “o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização traduzida na «prevenção da reincidência”.
No caso dos autos, o Tribunal recorrido afastou, e bem, a suspensão da execução da pena de prisão, considerando, além do mais, os antecedentes criminais, sendo certo que o arguido “praticou os factos em causa nos presentes autos durante o período de suspensão da pena de prisão em que foi condenado pelo crime de violência doméstica no processo comum singular nº 68/19.6T9VNF”.
O arguido tem problemática aditiva, não parecendo resultar do relatório social junto aos autos, uma efectiva intenção de a ultrapassar porque apresentou “falta de motivação para ingressar em comunidade terapêutica”, que o poderia ajudar a manter-se afastado no futuro do consumo de produtos estupefacientes e a seguir outro caminho, conforme o Direito.
Entendemos, assim, que o acima exposto não nos permite realizar um juízo de prognose favorável quanto à futura conduta do recorrente, não se perspetivando a alteração comportamental num futuro próximo, resultando claro como a água que o Tribunal recorrido analisou de forma correta os elementos, formal e material do instituto da suspensão da execução da pena de prisão, nenhum reparo nos merecendo a decisão recorrida quanto à não suspensão da execução da pena de prisão.
De tudo resulta que também nesta parte, se impõe a improcedência do recurso.
Em suma, face ao acima exposto conclui-se que não merece censura a decisão da primeira instância, devendo, por conseguinte, ser negado provimento ao recurso.
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C) Decisão:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, decidem manter o acórdão recorrido.
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Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 UCs a taxa de justiça devida – artigos 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa.
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Notifique.
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Guimarães, 11 de Novembro de 2025 (o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
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Carlos da Cunha Coutinho (relator); Fátima Furtado (1.ª Adjunta); Ana Wallis de Carvalho (2.ª Adjunta).
[1]O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 7/95, de 19/10/1995 e ainda, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11/7/2019 (consultado em www.dgsi.pt); de 25/06/1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03/02/1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28/04/1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193 [2] Jurisprudência aplicável ao tribunal da Relação como se entendeu nos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 31-10-2019, processo n.º 989/17.0PZLSB.L1-9, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2/10/2013, processo n.º 180/11.0GAVLP.P1 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 13/5/2019, processo n.º 348/18.7GAVLP.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt).