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CRIME PARTICULAR
NULIDADE DE FALTA DE PROMOÇÃO DO PROCESSO
Sumário
I. Se num processo por crime de natureza particular, o MP, terminado o inquérito, deduzir acusação pública sem previamente notificar o denunciante para se constituir assistente e para, eventualmente, deduzir acusação particular, existe uma “falta de promoção do processo pelo Ministério Público”, que conforma a nulidade insanável prevista no art. 119º/b) do CPP. II. De acordo com o estabelecido no art. 122º-1 do CPP, tal nulidade torna inválido o processado dependente do ato omitido, concretamente a acusação e a instrução.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I - RELATÓRIO
1. Decisão recorrida
No processo nº 387/24.0GAEPS, que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Braga, foi proferida a seguinte decisão instrutória, datada de 8mai2025:
“Conhecer e declarar a falta de legitimidade do MP, por verificada a nulidade insanável de falta de promoção do processo, na previsão do artigo 119.º/-b) do CPP, com referência aos artigos 48.º e 50.º/1 do referido diploma legal (a situação não é apenas reconduzida à nulidade prevista no artigo 120.º/2-d) do CPP, omissão de acto legalmente obrigatório, no caso a notificação a que se refere o artigo 285.º/1 do CPP) – cfr., para além dos já citados, acórdão do TRP, de 12/05/2021, proc. 11715/17.4T9PRT.P1. (…) Transitado, devolva os autos ao MP para os fins tidos por convenientes”.
2. Recurso
Inconformado com esta decisão, o assistente AA dela interpôs recurso e concluiu assim a respetiva motivação:
“I. O Tribunal a quo, ao considerar o crime como de natureza particular (furto simples entre afins – artigo 207.º, n.º 1, al. a) do CP), anulou todo o procedimento por falta de notificação para dedução de acusação particular (art. 285.º, n.º 1 do CPP). Contudo, este juízo baseou-se numa requalificação jurídica superveniente, não acompanhada da devida adequação processual que assegurasse os direitos do assistente/ofendido. II. Nos termos do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 9/2024, o acompanhamento da acusação pública pelo assistente – desde que tenha apresentado queixa e se tenha constituído como assistente – supre a falta de notificação para dedução de acusação particular, preenchendo a função material desta. O Recorrente apresentou queixa; constituiu-se assistente e aderiu expressa e integralmente à acusação pública. III. Verifica-se, portanto, cumprida a tríade de legitimidade processual exigida para o prosseguimento da ação penal, mesmo em crimes de natureza particular. IV. A decisão do Tribunal de Instrução padece de formalismo excessivo, violando os princípios da: Proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2 da CRP); Tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º, n.ºs 1 e 5 da CRP) e Igualdade e lealdade processual (art. 13.º e 2.º da CRP). V. Foi negado ao ofendido o seu direito a ver os factos apreciados em sede de julgamento, por uma omissão processual da qual não era parte responsável nem tinha condições de suprir. VI. O jarrão subtraído: estava afeto à veneração da memória dos mortos; situava-se num cemitério público e a subtração foi feita sem autorização do proprietário. VII. Estão assim preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivos do crime de furto qualificado (art. 204.º, n.º 1, al. c) do CP), como bem sustentado na doutrina (Comentário Conimbricense; Figueiredo Dias), o que impõe a qualificação agravada e a natureza pública do crime, afastando a necessidade de acusação particular. VIII. Ainda que não se acolha a qualificação como furto qualificado, os factos vertidos na acusação cumprem os requisitos do crime de furto simples (art. 203.º do CP). A decisão de não pronúncia omitiu fundamentação suficiente e ignora os elementos probatórios carreados que sustentavam a existência de indícios. Deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se o despacho de não pronúncia proferido pelo Tribunal a quo, e determinando-se a prolação de despacho de pronúncia da arguida pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 1, al. c) do Código Penal. Subsidiariamente, caso se entenda não estarem reunidos os pressupostos do furto qualificado, deve ser ordenada a pronúncia pelo crime de furto simples (art. 203.º do CP), considerando que: • Estão reunidos todos os elementos típicos do crime; • A eventual nulidade processual foi sanada pelo comportamento do assistente; • A decisão recorrida comprometeu de forma inadmissível os direitos do assistente e a realização da justiça penal”.
3. Tramitação subsequente
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
No Tribunal de 1ª instância, o Ministério Público e a arguida responderam ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta adotou posição idêntica.
Cumprido o disposto no art. 417º-2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.
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II - FUNDAMENTOS
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no art. 412º do CPP e no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 7/95, de 19out1995, o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410º-2 do CPP.
Cumpre, assim, apreciar e decidir as seguintes questões, pela ordem da sua precedência lógica e prejudicialidade:
a) erro na qualificação jurídica;
b) falta de legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal.
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2. Apreciação do recurso 2.1. erro na qualificação jurídica
O assistente discorda da qualificação jurídica dos factos feita na decisão instrutória, entendendo que a factualidade relatada na acusação – que a decisão instrutória manteve – integra a prática, pela arguida, não de um crime de furto (simples), p. p. art. 203º-1 do CP, mas sim de um crime de furto qualificado, p. p. art. 204º-1/c) do CP, nos termos do qual “Quem furtar coisa móvel ou animal alheios: (…) Afecta ao culto religioso ou à veneração da memória dos mortos e que se encontre em lugar destinado ao culto ou em cemitério”.
De acordo com a descrição da acusação – que a decisão instrutória manteve –:
“No dia 04-05-2024, no período compreendido entre as 15h30 e as 18h00, a arguida dirigiu-se à campa da sua falecida irmã, sita no cemitério da Rua ..., em ..., ..., e daí retirou um jarrão, no valor de 30,00 € (trinta euros), que ali fora colocado pelo ofendido AA. A arguida abandonou o local, levando consigo o referido jarrão, que bem sabia não lhe pertencer e que actuava contra a vontade do seu proprietário. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção concretizada de se apropriar do referido jarrão, como fez, tendo perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei”.
Aceitando que o objeto alegadamente furtado detinha as características exigidas pela qualificativa do referido art. 204º-1/c) do CP, nem por isso há lugar à qualificação do furto uma vez que, atento o seu valor de € 30,00, tem aqui aplicação o disposto no art. 204º-4 do CP, segundo o qual “Não há lugar à qualificação se a coisa ou o animal furtados forem de diminuto valor [definido no art. 202º/c) do CP]”.
Assim sendo, nada há a apontar à qualificação jurídica dos factos acolhida na decisão instrutória, que manteve a imputação à arguida de um crime de furto (simples), p.p. art. 203º-1 do CP.
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2.2. falta de legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal
O assistente insurge-se contra a declaração, feita na decisão instrutória, de falta de legitimidade do Ministério Público (MP) para promover o processo penal.
Vejamos o desenvolvimento processual dos autos. AA apresentou queixa contra BB. Findo o inquérito, o MP, em 2dez2024, deduziu acusação, imputando à arguida a prática de um crime de furto (simples), p. p. art. 203º-1 do CP. Entretanto, AA, em 26jan2025, requereu a sua constituição como assistente e, na mesma data, requereu a abertura de instrução por discordar da qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação; nessa altura (isto é, no próprio requerimento de abertura de instrução = RAI) declarou que “adere, na íntegra, aos factos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público”. O seu RAI foi indeferido com fundamento no facto de visar apenas uma diversa qualificação jurídica dos factos imputados à arguida, tendo sido admitido apenas o RAI formulado por esta. Em sede de instrução, foi decidido que, sendo a arguida afim em 2º grau da vítima, o procedimento criminal dependia não apenas de queixa, mas também de acusação particular (arts. 203º e 207º-1/a. do CP), pelo que, ao omitir-se, no fim do inquérito, a notificação do assistente nos termos e para os efeitos do disposto no art. 285º-1 do CPP (ou seja, para que este querendo, deduzisse acusação particular), foi cometida uma nulidade insanável, carecendo o MP de legitimidade para deduzir acusação. Em consequência, foi determinado que, após o trânsito desta decisão, fossem os autos devolvidos ao MP para os fins tidos por convenientes.
O assistente defende que, tendo o MP assumido que se estava perante de um crime semi-público e não perante um crime particular, e não tendo sido, por isso, cumprido o disposto naquele art. 285º-1 do CPP, tudo se deve passar como se ele próprio tivesse deduzido acusação particular na medida em que, além de ter apresentado queixa e de se ter constituído assistente, aderiu à acusação pública.
O art. 50º-1 do CPP estabelece que “Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular”, dispondo o art. 246º-4 do CPP (relativo à forma, conteúdo e espécies de denúncias) que “O denunciante pode declarar, na denúncia, que deseja constituir-se assistente. Tratando-se de crime cujo procedimento depende de acusação particular, a declaração é obrigatória, devendo, neste caso, a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal a quem a denúncia for feita verbalmente advertir o denunciante da obrigatoriedade de constituição de assistente e dos procedimentos a observar”. Por seu lado, prescreve o art. 68º-2 do CPP que “Tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, o requerimento [para a constituição de assistente] tem lugar no prazo de 10 dias a contar da advertência referida no n.º 4 do artigo 246.º”. E, por fim, lê-se no art. 285º-1 do CPP que “Findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular”.
Nada disto ocorreu no caso concreto: não só o denunciante não foi advertido, na altura da apresentação da queixa, da obrigatoriedade de se constituir assistente, como a investigação se iniciou e prosseguiu sem que o mesmo se tenha constituído assistente e, portanto, sem que o MP tivesse, desde o início, legitimidade para promover o processo penal. Independentemente dos vícios que aquela omissão (de advertência do denunciante da obrigatoriedade de se constituir assistente) e que esta ação (de iniciar eu prosseguir a investigação sem que o ofendido se tenha constituído assistente) possam configurar, não parece sustentável, nesta fase processual, a invalidação dos atos de investigação praticados pelo MP, revertendo o processo à “estaca zero”, solução que, de resto, nenhum dos intervenientes processuais defende. Aliás, a adoção dessa solução apenas para que fosse cumprida a formalidade de notificação do denunciante para se constituir assistente – repetindo depois todos os atos praticados durante o inquérito (porque, mesmo nos crimes particulares, o MP mantém competência para a investigação, nos termos do art. 50º-2 do CPP) – não só afrontaria todos os cânones impostos pelo princípio da economia processual, como não teria nenhum efeito útil dado que, entretanto, já depois da dedução da acusação (datada de 2dez2024), o denunciante constituiu-se assistente (em requerimento datado de 26jan2025).
Qual a consequência desta atuação do MP, concretamente do facto de, terminado o inquérito, ter deduzido acusação pública sem ter previamente notificado o denunciante para se constituir assistente e para, eventualmente, deduzir acusação particular?
Já vimos que, no âmbito dos crimes particulares, o art. 285º-1 do CPP determina que, no fim do inquérito, o MP deve notificar o assistente para que este deduza, querendo, acusação particular: no caso concreto, esta imposição legal não podia ser concretizada porquanto não havia (ainda) assistente constituído. Mas não o havia porque o denunciante não foi, no devido tempo, advertido da necessidade dessa constituição, como impõe o citado art. 246º-4 do CPP, pelo que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada. O que então se impunha era que o mesmo tivesse sido, nessa altura do fim do inquérito, notificado para se constituir assistente e para, querendo, deduzir acusação particular.
Estamos, assim, não perante uma “insuficiência do inquérito”, determinante de da nulidade sanável prevista no art. 120º-2/d) do CPP (a omissão da notificação em falta ocorre depois de findo o inquérito), mas sim perante uma “falta de promoção do processo pelo Ministério Público”, que conforma a nulidade insanável prevista no art. 119º/b) do CPP, numa situação paralela à que ocorre quando, havendo já assistente constituído, não é observado o disposto naquele art. 285º-1 do CPP (no sentido de que, nesta última hipótese, ocorre tal nulidade insanável, cf., entre outros, AcRG 22nov2021, proc. 217/19.4T9EPS.G1, www.dgsi.pt). Ao contrário do que defende o assistente, não tem aqui aplicação a orientação firmada no AcSTJ-AUJ 9/2024, de 9jul – segundo a qual “O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público” – uma vez que a ilegitimidade do MP para o exercício da ação penal é, no caso agora em apreciação, de natureza “originária” (a acusação particular era necessária desde o início do processo) e não de natureza “superveniente” (a acusação particular só se torna necessária após a produção de prova).
De acordo com o estabelecido no art. 122º-1 do CPP, tal nulidade torna inválido o processado dependente do ato omitido, concretamente a acusação e a instrução. Considerando que o denunciante, entretanto, se constituiu assistente, restará a sua notificação nos termos e para os efeitos daquele art. 285º-1 do CPP, devendo, para tanto, serem os autos devolvidos ao MP.
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III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso e, em consequência, determinar que os autos sejam devolvidos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes, designadamente para que seja cumprido o disposto no art. 285º-1 do CPP.
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) Uc’s.
Guimarães, 11 de novembro de 2025.
João de Matos Cruz Praia (Relator)
Fátima Furtado (1º Adjunto)
Ausenda Gonçalves (2º Adjunto)