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CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
MEDIDA DA PENA ACESSÓRIA
Sumário
1. A TAS daquele que, apesar desta, consegue conduzir, embota os sentidos e a acutilância do raciocínio, mas não tolhe o pensamento ético, nem oblitera deste o sistema normativo fundamental regulador da condução de veículos, que abrange a proibição de conduzir sob o efeito de determinados níveis daquela substância. 2. O primeiro passo que se deve dar na determinação da medida da pena consiste na fixação do grau de culpa do agente: alto, baixo, médio, médio/alto, médio baixo, etc., para deste modo se encontrarem as balizas superiores da punição. Deste nível, a pena não pode passar, sob pena de se desobedecer ao disposto no artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal – em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa do agente. 3. Por outro lado, não se deve confundir a culpa com a ilicitude, derivando apenas esta e não já aquela da TAS detetada. 4. Do mesmo modo, não deve ocorrer a fixação paritária da culpa do agente ao dolo deste, designadamente através do entendimento de que, sendo direto, torna a culpa elevada. 5. A culpa do agente, ou seja, o quanto é censurável a sua conduta, deve ser buscado através de outros parâmetros, como, por exemplo, em que medida está condicionado pelo meio, em que contexto decidiu, que alternativas tinha, de que experiência anterior dispunha. 6. A principal dimensão em que a prevenção geral atua não é a da dissuasão criminal, mas antes a da estabilização (integração) social, pelo que não devemos depositar muitas esperanças na integral realização da primeira das dimensões citadas através das penas individualmente fixadas, não sendo, assim, o sacrifício individual imposto proporcionalmente compensado pelo almejado desincentivo transgressivo geral. 7. Devendo sempre garantir-se alguma proporcionalidade, porque ambas se balizam pela culpa, deve recusar-se a ideia de necessária e estrita proporcionalidade entre pena principal e pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.
Texto Integral
I RELATÓRIO
1
No processo n.º 93/25.8GAMNC, do Juízo de Competência Genérica de Monção, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, teve lugar a audiência de julgamento, durante a qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
A. Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292º, nº 1 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), no valor total de €675 (seiscentos e setenta e cinco euros); B. Descontar um dia de pena, por conta do período de detenção sofrido aquando da detenção do arguido, para efeitos de cômputo de liquidação da pena de multa aplicada, nos termos do disposto no artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal; C. Ao abrigo do preceituado no artigo 69.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de seis meses e quinze dias;
2
Não se tendo conformado com a decisão, o arguido apresentou recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. No caso “sub judice” temos que considerar que o arguido, ora recorrente, naquele instante da prática dos factos possuía uma imputabilidade diminuída, pois que a"anomalia psíquica" de que era portador (2,594 g/l de alcoolemia no sangue) - afectava, naquele momento, necessariamente, tanto a sua capacidade para avaliar a ilicitude deste como, sobretudo, a sua capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação; 2. O processo penal português segue o modelo acusatório integrado pelo princípio da investigação, através do qual, como ensina Figueiredo Dias, “se pretende traduzir o poder-dever que ao tribunal pertence de esclarecer e instruir autonomamente – isto é, independentemente das contribuições da acusação e da defesa – o “facto” sujeito a julgamento, criando ele próprio as bases necessárias à sua decisão” 2; 3. Com tal integração, pretende-se acentuar convenientemente o carácter indisponível do objecto e do conteúdo do processo penal, a sua intenção dirigida à verdade material, o que ressuma do arts. 32º, nº5, da CRP, e 340º do CPP;´ 4. Impunha-se que o Tribunal “a quo” averiguasse, a saber se a arguida, ao tempo em que incorreu na conduta, pela qual foi condenada em primeira instância, não tinha a capacidade de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação ou, pelo menos, tinha tal capacidade sensivelmente diminuída, por força das disposições conjugadas dos arts. 20º, nºs 1 e 2, do CPenal, e 351º, nºs 1 e 2, do CPP; 5. A pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, fixada em 4 (quatro) meses entende-se equilibrada e ajustada aos níveis da culpa e da ilicitude refletidas na conduta do arguido, bem como das exigências de prevenção especial e de prevenção geral; 6. Assim, no presente caso, a sentença devia ter considerado o arguido como primário, o que, aliado à confissão parcial dos factos e não ter contribuído para qualquer acidente, bem como, à prova de que o mesmo se encontra bem integrado social e profissionalmente, deviam ter sido bastante para concluir que as exigências de prevenção geral são as normais e as exigências de prevenção especiais são diminutas; 7. Na verdade, a medida de sanção revela-se exagerada, desproporcional e violadora dos arts. 65.º, n.º 1, 69.º, n.º 2, e 71.º, todos do C. Penal; 8. Assim, pode concluir-se que, na escolha e determinação da pena, a sentença recorrida violou os princípios da culpa, as finalidades de prevenção e os critérios relevantes para a escolha e determinação da medida, previstos nos artigos 40.º, 50.º, 70.º, 71.º, nº 1 e 2, 72.º, n.º 2, al. c) do C. Penal. NESTES TERMOS e nos mais de direito aplicáveis, que Vªs. Exªs melhor e doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, anular-se a douta sentença recorrida, ou, caso assim se não entenda, seja aplicada ao arguido/recorrente uma pena acessória de inibição de condução de condução inferior, no entanto, ao decidirem e como decidirem farão JUSTIÇA!
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O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões:
I. Entende o Recorrente os factos dados como provado pelo Tribunal a quo são insuficientes para a conclusão jurídica a que chegou, vulgo, condenação por prática de factos susceptíveis de consubstanciar a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez. II. A alegação do recorrente afigura-se-nos, com o devido respeito, contraditória nos próprios termos. Se por um lado, aflora a conduta do arguido, com uma confissão integral e sem reservas da prática do crime de condução do veículo em estado de embriaguez como reveladora de uma atitude de autocensura e de colaboração com a Justiça, por outro, pretende que a factualidade, tida por provada, seja considerada insuficiente para a subsunção e ilação jurídica retirada (condenação pelo crime predito). III. A confissão livre, integral e sem reservas, como meio de prova, percepcionada pelo tribunal na audiência e mandada exarar em acta, constitui um facto inelutavelmente provado. IV. Ao confessar integralmente os factos, o arguido aceita o teor da acusação e que sejam dados como provados todos os factos nela constantes, em conformidade com o teor da alínea a) do n.º 2 do art. 344.º do Código de Processo Penal. V. Não existe nenhuma norma jurídica, ou outra não jurídica, designadamente científica, que estabeleça que um condutor sujeito a teste de alcoolemia, realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito, apresentando uma taxa superior a 1,2 g/l, não tem capacidade de compreensão e de declaração de que não deseja ser submetido a exame de contraprova. VI. “A invocação da incapacidade acidental para se determinar aquando da declaração de que não desejava contraprova, apenas em sede de recurso, aproxima-se da figura do “venire contra factum proprium”, pois o arguido poderia ter confrontado em julgamento os agentes de autoridade sobre a sua incapacidade para declarar que não pretendia a realização de contraprova e, com a com a confissão integral e sem reservas, evitou não só a produção de prova em audiência sobre os factos relativos à TAS e como beneficiou das consequências legais da confissão integral e sem reservas dos factos- AC.TRC de 23.11.2016”. VII. A criminalidade rodoviária tem um peso desproporcionado no âmbito do leque de crimes que ocupam o sistema penal e exigem, por isso, uma percepção específica por parte de quem aplica as leis, nomeadamente em termos de valoração da prevenção. VIII. Na fixação da medida concreta que deve ser estabelecida num determinado caso, face à ampla moldura da pena, o Tribunal deve seguir o critério normativo fixado no Código Penal para a determinação concreta da pena a que se alude no artigo 71.º do mesmo Código. IX. A alcoolémia superior a 1,50 gramas por litro caracteriza-se por alterações muito marcadas a nível de pensamento, da atenção, da esfera sensorial, da sensibilidade, da coordenação motora e do equilíbrio. X. O art. 69.º do Código Penal resulta de uma clara opção política criminal que reconhece que as finalidades da punição, atenta a reconhecida pouca eficácia da pena de multa, se obtêm, neste tipo de crime rodoviário, essencialmente, através da pena acessória de proibição de conduzir. XI. E, nessa medida, não se pode compreender como o Recorrente parta da premissa de que a taxa de alcoolemia apresentada (de, pelo menos 2,594 g/l), ou seja, mais do dobro do limite legal admissível efectuado o respectivo desconto, para chegar à conclusão de que ao arguido deve ser fixada, ainda perto do mínimo, a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizado (4 meses). XII. Pelo exposto, bem andou o Tribunal a quo a dar como provada toda a factualidade descrita e condenar o Recorrente nos termos exactos que o fez. Nestes termos e nos demais de Direito, deverá o presente Recurso ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se a decisão recorrida, assim se fazendo Justiça.
4
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
5
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do Código de Processo Penal, nada mais foi acrescentado.
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Colhidos os vistos, foram os autos á conferência.
II FUNDAMENTAÇÃO
1 Objeto do recurso:
A A decisão recorrida padece do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão?
B A pena acessória deve ser reduzida?
2 Despacho de acusação:
1º. No dia 04.04.2025, pelas 18h:47, o arguido conduzia na Avenida ..., em ... - ..., o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, marca ...”, modelo ”...”, com a matrícula ..-CM-... 2º. Antes de iniciar a condução, o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas, em quantidade e qualidade não concretamente apuradas. 3º. O arguido encontrava-se, na data e hora referidas, com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 2,594 gramas por litro, efectuado o desconto de taxa de erro admissível. 4º. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, no exercício da condução do veículo automóvel acima referido, na via pública, não obstante saber que antes havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para acusar uma TAS no sangue igual ou superior a 1,2 gramas por litro. 5º. O arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se abstendo de a levar a cabo.
3 Decisão recorrida (excertos relevantes): Factos provados: 1º. No dia 04.04.2025, pelas 18h:47, o arguido conduzia na Avenida ..., em ... - ..., o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, marca ...”, modelo ”...”, com a matrícula ..-CM-... 2º. Antes de iniciar a condução, o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas, em quantidade e qualidade não concretamente apuradas. 3º. O arguido encontrava-se, na data e hora referidas, com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 2,594 gramas por litro, efectuado o desconto de taxa de erro admissível. 4º. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, no exercício da condução do veículo automóvel acima referido, na via pública, não obstante saber que antes havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para acusar uma TAS no sangue igual ou superior a 1,2 gramas por litro. 5º. O arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se abstendo de a levar a cabo.
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Mais se provou que: Confessou integralmente e sem reservas Não tem antecedentes criminais Está arrependido. Trabalhador agrícola por conta própria, auferindo em média 700/800 € mensais. Reside com companheira que é lojista, e aufere o salário mínimo. Residem em casa própria, Não têm filhos. Estudou até ao 12.º ano
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(…) Escolha da pena. Pena de multa (confissão mais falta de antecedentes) Mediada pena: Atenuantes: - Confissão, inserção Agravantes: - Dolo direto/ TAS muito elevada Pena: - 90 dias x 7,50 € Proibição de conduzir (mesmos critérios – ilicitude elevada): - 6 meses e 15 dias
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4 O direito.
A A decisão recorrida padece do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão?
A matéria de facto dada como provada numa decisão jurisdicional pode ser escrutinada em recurso por dois modos: o primeiro, que é também de verificação oficiosa, está previsto no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e consubstancia uma imperfeição do texto da própria decisão e/ou do raciocínio nele expendido, por si só considerado ou conjugado com o objeto do processo e as regras da experiência, desdobrando-se nos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova; o segundo, previsto no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, através do qual, e mediante a reanálise de segmentos probatórios testemunhais ou outros, devidamente circunscritos e identificados, se discute a bondade do juízo efetuado na decisão, igualmente em relação a pontos factuais específicos devidamente individualizados, quer por imparidade entre o selecionado conjunto probatório existente e o que foi julgado como assente, quer por incorreta aplicação do principio da livre apreciação da prova.
Vejamos o que consta do Código de Processo Penal a respeito do primeiro modo, que é o que aqui está em causa, designadamente a respeito de um dos vícios elencados na pertinente norma:
Artigo 410.º Fundamentos do recurso 1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. 3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada
Para melhor compreender o disposto neste artigo 410.º convém analisar a sua história.
O artigo 410.º do Código de Processo Penal corresponde quase na íntegra à versão original desta norma – a única exceção é o acrescento da alínea b) “(…) ou entre a fundamentação e a decisão”.
E na versão original do Código de Processo Penal, os tribunais superiores conheciam, em regra, de direito – o Supremo Tribunal de Justiça, por natureza, dir-se-ia, e os tribunais da relação por causa do disposto nos artigos 364.º , n.ºs 1 e 2, e 389.º, n.º 2, que fazia depender o recurso da matéria de facto da declaração no início da audiência de julgamento de que se não prescindia da documentação em ata das declarações ali prestadas oralmente, o que só era possível perante tribunal singular e/ou em processo sumário, que, como todos sabemos, raramente ocorria, por corresponder a um julgamento com depoimentos escritos, naturalmente demorado. Ainda na versão original do Código, os recursos apresentados das decisões do tribunal coletivo e de júri eram da competência do Supremo Tribunal de Justiça – cfr. art.º 432.º, alínea c), dessa versão original.
Por isso, o artigo 410.º do Código de Processo Penal constituía, por assim dizer, uma válvula de segurança do sistema, uma salvaguarda extrema, para situações gritantes e absolutamente evidentes, através da qual a lei processual garantia ao tribunal de recurso, que apenas tinha poderes de cognição em relação à matéria de direito, algumas competências excecionais para entrar no campo da matéria de facto, naqueles casos, como se disse, gritantes e incontornavelmente óbvios. Foi por isso que se passou a chamar este mecanismo “revista alargada”, pois, o Supremo Tribunal de Justiça, que, tradicionalmente, apenas conhecia de revista, passou a ter alguns poderes de cognição em sede de matéria de facto; claro que esses poderes também estavam ao alcance da relação quando conhecia apenas de direito, que como se viu, também era a regra, mas neste caso não se tratava de revista alargada porque a recurso para a relação nunca foi designado por recurso de revista – cfr. sobre o tema, o interessantíssimo estudo do Prof. Paulo Merêa Bosquejo Histórico do Recurso de Revista, in BMJ, n.º 7, 1948, pag. 43 e segs,. e Damião da Cunha, in O Caso Julgado Parcial, UCE, Porto, 2002, pag. 512 e segs.
E, quer na altura, quer agora, precisamente por se tratar de tão grave e evidente imperfeição da decisão, a consequência consistia e consiste, regra quase geral, no reenvio, que obriga a novo julgamento, total ou parcial, com outros juízes (isto mais tarde) – cfr. art.º 426.º, 39.º (original) e 40.º (atual) do Código de Processo Penal, sendo certo que a redação original do primeiro sofreu apenas alterações de pormenor (é certo que o art.º 430.º do Código de Processo Penal prevê a possibilidade de o tribunal da relação, perante a existência de um dos vícios elencados no n.º 2 do art.º 410.º, ordenar, a requerimento, a renovação da prova se tiver razões para crer que isso permitirá evitar o reenvio do processo, mas, como é consabido, esse não é o procedimento habitualmente seguido pelos tribunais superiores, não obstante autorizadas posições doutrinárias clamarem em sentido oposto – cfr. Helena Morão, in Pela renovação da renovação da prova, Prof. Augusto Silva Dias, In Memoriam, AAFDL, Vol. II, pag. 369 e segs.).
Todavia, os excecionais (como acima se explicou) fundamentos de recurso previstos no art.º 410.º, designadamente no seu n.º 2, do Código de Processo Penal tornaram-se atualmente, de modo absolutamente incompreensível, quase invariável e sistematicamente invocados, quando é certo e seguro que o cerne do recurso de facto se encontra previsto no art.º 412.º, n.º 3, do mesmo Código, que contém apertados e exigentes requisitos no que se refere à sua invocação, nem sempre respeitados e cumpridos pelos recorrentes – dir-se-ia até que o vício do erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quase perdeu razão de ser, atendendo à atual dimensão da impugnação do julgamento de facto prevista no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do mencionado Código, ficando assim ainda mais restringida a aplicação do respetivo regime.
Este é mais um dos processos onde se brande em via principal uma destas excecionalíssimas invalidades; recorde-se que são excecionalíssimas porque gravíssimas e evidentíssimas, do ponto de vista técnico – a matéria de facto que padeça deste vícios está ” (…) ostensivamente divorciada da realidade das coisas, quer por ser insuficiente, quer por ser contraditória, quer por erroneamente apreciada.” – cfr. Conselheiro Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, pag. 1356/7. Ainda por isso, o seu conhecimento é oficioso.
E é preciso ter bem presente que a “(…) indagação, por parte do tribunal ad quem dos vícios a que se refere o art.º 410.º (…)” constituiu “ (…) uma tarefa puramente jurídica, de matéria de direito afinal, já que mais nenhuma prova é necessária ao tribunal respetivo para que possa concluir pela eventual existência ou não dos falados vícios. (…). Já a eventual correção dos vícios aqui elencados, implica sempre uma decisão sobre a matéria de facto a levar a cabo nos termos do art.º 426.º, n.ºs 1 e 2, quer pelo próprio tribunal de recurso com jurisdição em matéria de facto, ou, tal não sendo possível, pelo tribunal reenviado para o efeito.” - Cfr. Conselheiro Pereira Madeira, ob. cit., loc. cit.
No que concerne à configuração técnica teórica dos vícios previstos no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, passamos a transcrever os ensinamentos do Conselheiro Pereira Madeira na obra acima citada, que são sintéticos e absolutamente esclarecedores:
“Tem causado alguma dificuldade de perceção em alguns interlocutores judiciários a precisão e alcance da expressão <<insuficiência da matéria de facto para a decisão>>.
Deve notar-se antes de mais, que a fórmula não se refere ou especifica o tipo de decisão <<decisão condenatória>> ou decisão <<absolutória>>. A formulação legal é abrangente <<para a decisão>> e compreende toda e qualquer que seja a natureza da decisão. Assim para ser <<insuficiente para a decisão>> a matéria de facto apurada no seu conjunto há de ser incapaz de a suportar em abstrato, isto é, seja ela condenatória ou absolutória. Quando se afirma, como se vê fazer muitas vezes, que a matéria de facto provada é insuficiente para a condenação proferida pelo tribunal, não se está a proceder à invocação deste vício, antes, em suma, a afirmar que o tribunal errou na aplicação do direito aos factos provados, o que nada tem a ver com os vícios da matéria de facto. Na verdade, sob esta perspetiva, a matéria de facto seria sempre <<insuficiente>>: pois, em caso de absolvição ela seria insuficiente para a condenação … e em caso de condenação, sê-lo-ia para a absolvição…
A afirmação do vício ora em causa, importa, sempre, uma adequada perspetiva do objeto do processo, cujos confins são fixados pela acusação e ou pronúncia complementada pela pertinente defesa. A partir daí impõem-se o confronto de tal objeto processual com o que o tribunal de julgamento em concreto indagou, independentemente de o resultado dessa indagação ter tido ou não êxito, isto é, independentemente de os factos indagados terem sido dados como provados ou não provados. Importa, sim, que esses factos pertinentes ao objeto do processo tenham sido averiguados em julgamento do facto e obtido a necessária resposta, seja positiva seja negativa. Se se constatar que o tribunal averiguou toda a matéria de facto postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objeto do processo – ainda que toda ela tenha porventura obtido resposta de <<não provado>>, então, o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão.
Já assim não será se o tribunal de julgamento deixou de dar resposta a um facto essencial postulado pelo referido objeto do processo, isto é, deixou por esgotar o thema probandum. É o caso, por exemplo, num julgamento por homicídio doloso, não haver qualquer referência nos factos provados e ou não provados, ao elemento subjetivo da ação do acusado pronunciado. Num caso destes, tenha sido condenatória ou absolutória a decisão, ela assenta em matéria de facto insuficiente, já que sem se saber qual a intenção ou atuação subjetiva do agente, a decisão condenatória peca por excesso, pois o arguido pode não ter agido com intenção de matar, e a decisão absolutória por defeito, pois o arguido pode ter agido com essa intenção. Nenhuma daquelas decisões (condenatória ou absolutória) é segura, daí o vício.” - cfr. ob. cit., loc. cit., pag. 1357/9.
Retenha-se, ainda, a não menos lúcida explicação de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2.ª Edição, atualizada, pag. 1055: “a insuficiência para a decisão a matéria de facto corresponde materialmente ao vício previsto nos artigos 712.º, n.º 4, e 729.º, n.º 3, do CPC. Contudo, o alargamento do objeto do processo obedece em processo penal a regras muito restritas (artigos 358.º e 359.º do CPP) e o controlo do vício da insuficiência não pode constituir um artifício para subverter estas regras.” – note-se que, atualmente, a referência deve considerar-se como sendo efetuada para os artigos 662.º e 682.º do Código de Processo Civil.
No mesmo sentido, ainda, Simas Santos/Leal Henriques, in Recursos Penais, Rei dos Livros, 9.ª Edição, pag. 75 e segs., com abrangente citação de concordante Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça “ (…) só existe insuficiência quando (…) há omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados todos os factos que, sendo relevante para decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.”
A insuficiência pressupõe, portanto, por assim dizer, sempre, um alargamento da análise do objeto do processo.
A este respeito, diz o recorrente: 4. Impunha-se que o Tribunal “a quo” averiguasse, a saber se a arguida, ao tempo em que incorreu na conduta, pela qual foi condenada em primeira instância, não tinha a capacidade de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação ou, pelo menos, tinha tal capacidade sensivelmente diminuída, por força das disposições conjugadas dos arts. 20º, nºs 1 e 2, do CPenal, e 351º, nºs 1 e 2, do CPP;
Ora, como acertadamente afirma o Ministério Público, o arguido confessou integralmente e sem reservas os factos constantes da acusação, como se constata da ata da audiência de julgamento, tendo afirmado que o fazia de livre vontade e fora de qualquer coação, pelo que o Mmo. Juiz considerou válida e eficaz a dita confissão, pelo que deu como provados os factos confessados.
Na acusação constava o seguinte: 4º. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente (…); 5º. O arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se abstendo de a levar a cabo.
Tendo confessado estes factos, que, por conseguinte, foram dados como provados na sentença, não pode agora o recorrente invocar que houve omissão de diligências de investigação. É verdade que não houve diligências nesse sentido, por facto originado no próprio recorrente, que aceitou, por via dos factos confessados, que tinha a capacidade de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação. O objeto do processo foi conhecido de modo exauriente, tendo sido proferida pronúncia sobre todos os factos que o integram, pelo que nenhuma insuficiência se vislumbra.
De qualquer modo, e rememorando o que o Ministério Público afirmou na resposta ao recurso, a ingestão de bebidas alcoólicas a este nível caracteriza-se por alterações muito marcadas a nível de pensamento, da atenção, da esfera sensorial, da sensibilidade, da coordenação motora e do equilíbrio, mas não se alcandora ao patamar da consciência da ilicitude. O álcool a este nível embota os sentidos e a acutilância do raciocínio, mas não tolhe o pensamento ético, nem oblitera deste o sistema normativo fundamental regulador da condução de veículos, que abrange a proibição de conduzir sob o efeito de determinados níveis daquela substância.
Assim sendo, esta pretensão recursiva só pode soçobrar.
B A pena acessória deve ser reduzida?
Sobre a medida da pena prevê o Código Penal o seguinte:
Artigo 71.º Determinação da medida da pena 1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. 3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
“Através do requisito de que sejam levadas em conta exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária de punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional do respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente, - limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção. – cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, Reimpressão, 2005, pag. 215.
A enumeração legal das circunstâncias elegíveis para este raciocínio não é taxativa, como facilmente se depreende do vocábulo “nomeadamente”, que consta do n.º 2 do preceito legal citado, sendo certo que as circunstâncias arroladas pelo tribunal para a efetivação deste cálculo podem até ter dimensão ambivalente ou antinómica, isto é podem ser simultaneamente valoradas como elementos graduadores da culpa e da prevenção, ou assumirem direções opostas na concretização desses vetores – cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., loc. cit. pag. 220.
Temos como certo que a determinação concreta da pena é, a par do julgamento da matéria de facto, a mais árdua tarefa do julgador criminal, não havendo orientações infalíveis ou indiscutíveis para a sua realização, havendo sempre que considerar um relativo subjetivismo neste campo, balizado, todavia, pelas fronteiras legais.
Contudo, podemos dizer que a fixação da medida concreta da pena é um raciocínio jurídico-penal, temperado por uma sempre dificilmente alcançável finura na ponderação global do circunstancialismo apurado, através do qual o julgador, partindo sempre do mínimo da moldura penal, avança no quantum punitivo contabilizando as agravantes em direção ao limite superior da pena, para, depois, retroceder, mediante a consideração das atenuantes, em direção ao limite inferior desta, sem prejuízo de, neste percurso, efetuar operações simultâneas num sentido ou noutro, em virtude de eventualmente poderem surgir circunstâncias ambivalentes ou antinómicas, tudo isto nunca ultrapassando a culpa do agente e nunca fazendo perigar as necessidades de prevenção geral e especial, tarefas estas (consideração dos graus de culpa e de prevenção) que constituem o imprescindível passo prévio a partir do qual se desenvolvem aqueloutras operações.
Além disso, seguimos convictamente a orientação pacífica do Supremo Tribunal de Justiça a respeito da ingerência do tribunal de recurso na dosimetria penal, de que é exemplo, mo Acórdão de14/07/2010, Processo 364/09.0GESLV.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt: Quanto ao controle da fixação concreta da pena a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça tem de ser necessariamente “parcimoniosa”, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de fatores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efetuada”. (Neste sentido cfr. acórdãos do STJ de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 - 3ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 - 5ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 - 3ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 - 3ª e 4832/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 - 3ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 - 3ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 - 5ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 - 5ª e processo n.º 999/08-3ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 - 3ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 - 5ª; de 03-09-2008 no processo n.º 3982/07-3ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 - 3ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08-3ª; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08-3ª).
Isto é, a severidade ou a brandura não são, só por si, fundamentos para que o bisturi recursivo se intrometa na dosimetria penal – terão de ser aquelas características tão exuberantes que consubstanciem ou revelem violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efetuada.
O crime aqui em causa é punido com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias, bem como com a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor de 3 meses a 3 anos – cfr. artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
Nesta operação, o tribunal recorrido considerou os seguintes parâmetros: Atenuantes: - Confissão, inserção Agravantes: - Dolo direto/ TAS muito elevada Pena: - 90 dias x 7,50 € Proibição de conduzir (mesmos critérios – ilicitude elevada): - 6 meses e 15 dias
O primeiro passo que se deve dar na determinação da medida da pena consiste na fixação do grau de culpa do agente: alto, baixo, médio, médio/alto, médio baixo, etc., para deste modo se encontrarem as balizas superiores da punição. Deste nível, a pena não pode passar, sob pena de se desobedecer ao disposto no artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal – em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa do agente.
Por outro lado, não se deve confundir a culpa com a ilicitude, derivando apenas esta e não já aquela da TAS detetada.
Ora, na sentença recorrida não se fala sequer, expressamente, da culpa do agente e da sua medida, o que bem se compreende, por um lado, por causa do esforço intelectual que a lei impõe ao juiz em ditar para uma gravação digital a decisão, bem como as contingências de concentração que isso determina, e, por outro, a genética rapidez e natural míngua factual obtenível num julgamento em processo sumário.
Constata-se muitas vezes a fixação paritária da culpa do agente ao dolo deste, entendendo-se que, sendo direto, torna a culpa elevada.
Ora, como sabemos, não é unânime na doutrina que a culpa seja integrada ou apreciável pelo dolo, defendendo a escola finalista que o dolo deve ser arrumado, enquanto categoria dogmática, no tipo, neste caso no tipo subjetivo, constituindo a culpa, já não uma ligação psicológica entre o facto e o agente, mas um puro juízo normativo de censura deste, a partir da factualidade dada como provada – cfr. Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, 2.º Volume, AAFDL, pag. 45 e segs., designadamente, pag. 72 e 75. Por outro lado, como quase sempre o dolo é direto, sempre teríamos culpas elevadas nos crimes.
Assim, a paridade entre dolo direto e culpa elevada é profundamente controversa – não parece que assim seja, pois pode acontecer até que um facto praticado com dolo direto (numa perspetiva finalista) culmine numa absolvição em virtude de uma causa de exclusão da culpa, ou até da ilicitude.
Assim sendo, a maior dificuldade neste tipo de decisões, consistirá em determinar a medida da culpa com rigor. Claro que se pode sempre seguir o raciocínio de que a culpa aumenta em proporção com o aumento da TAS (bebeu muito, tem mais culpa), como já se disse, mas talvez isso seja algo redutor.
A culpa deverá ser avaliada por outros parâmetros: por que bebeu, onde e com quem - muitas vezes, as companhias participam, e muito da culpa, especialmente na juventude; qual a experiência do agente com o consumo de bebidas alcoólicas; por que motivo decidiu conduzir e onde e com quem se encontrava quando tomou essa decisão – podia haver, ou não, uma alternativa de tripulante sóbrio; qual o seu meio social e como é nele entendido o consumo de bebidas alcoólicas – muitas vezes, como sabemos, isso é sinal ou pressuposto de integração no grupo -, não sendo raras as pessoas que foram formatadas, até pela família, no sentido de que “uns copos até fazem bem”; que tipo de bebidas ingeriu e se as conhecia – é muito diferente ser, por exemplo, convidado por uns amigos para beber umas “minis” ou para integrar uma frisa para emborcar shots de Absinto ou Tequilla, desmando que, infeliz e tragicamente, está hoje muito em voga entre os jovens e até entre os menos jovens.
São estas e muitas outras questões do género que nos permitem avaliar a culpa do agente, o quanto é censurável a sua conduta, ou seja, em que medida está condicionado pelo meio, em que contexto decidiu, que alternativas tinha, de que experiência anterior dispunha, e não apenas a constatação da TAS ou do tipo de dolo e a assunção da decorrente e proporcional culpa.
Reconhece-se que num julgamento em processo sumário é difícil alcançar todo este conhecimento do caso. Mas isso não nos deve desanimar, sendo sempre possível saber um pouco mais, mesmo que apenas pelo que o arguido diga (querendo, naturalmente) a respeito, e, quando tal é, de todo, impossível, o que também pode acontecer, avançar sempre com muita prudência na graduação da culpa – por exemplo, a juventude do agente é, geralmente, um indício de culpa baixa, que pode ser infirmado, por exemplo, por condenações anteriores por este mesmo crime. E a dita prudentiae justifica-se também, e ainda, precisamente pelo desconhecimento de grande parte do enquadramento do facto submetido a julgamento, que deverá operar como um aconselhador de particular cautela punitiva, alijando a quase intuitiva paridade TAS/pena.
E parece de extrema importância o juízo do julgador de primeira instância quando revelador desta prudência, até porque falou com o agente, apercebeu-se da sua reação perante a prática do crime, designadamente a genuinidade do arrependimento e o verdadeiro alcance da confissão, que, geralmente, ocorre nestes casos – é certo que há quem entenda que a confissão, neste e em todos os casos em que a prova é exuberante, tem pouco valor; ora, não parece que assim seja, sendo certo que, essencialmente, é o juiz de primeira instância que, olhando nos olhos o arguido, se apercebe devidamente da existência ou não de verdadeira contrição e que daí retira as devidas consequências em sede de medida da pena, designadamente de prevenção especial.
Ora, no caso em análise, e atenta a escassez factual a estes casos inerente, pode afirmar-se que o grau de culpa do agente é baixo, atenta a confissão e a inexistência de antecedentes criminais. Já a ilicitude será alta, atento o valor de TAS. Todavia, uma recidiva criminal implicará, necessariamente, uma elevação do grau de censura, e, portanto, de culpa, uma vez que existirá nessa situação a certeza por parte do julgador que ao agente já foi dado a conhecer o seu limite orgânico e a intolerância do sistema jurídico ao seu comportamento.
Todavia, o grau de ilicitude terá de ser contabilizado sempre dentro dos limites da culpa, por esta ser o limite da pena, nos termos sobreditos, não sendo aceitável o paralelismo pantográfico entre ilicitude e pena (principal ou acessória).
A paridade entre castigo e culpa é algo muito antigo, medieval até – já na absolutamente monumental Divina Comédia de Dante Alighieri, no sétimo círculo do Inferno, num seu subcírculo ou caverna, colocou o poeta os violentos contra o próximo (v.g. Alexandre o Grande), mergulhados num rio de sangue a ferver, vigiados por Centauros que disparavam flechas contra todas as almas que ousavam erguer-se do sangue mais que a sua culpa – cfr. tradução de Vasco Graça Moura, Quetzal, Inf., XII, 73/75, pag. 123, e o brilhante ensaio do Prof. Martim de Albuquerque, Dante, A Divina Comédia e a Fé, Aletheia Editores, pag. 51. Ou seja, o castigo tinha a medida da culpa, não mais, mas também não menos. Era uma pura expiação. Atualmente, sem embrago de se reconhecer uma marcada faceta retributiva no regime legal, ao permitir a paridade culpa/pena concreta, pode ter menos, felizmente, se tal se justificar por questões de prevenção.
E em relação à compatibilização entre a culpa e a prevenção (geral e especial), esta tão frequentemente invocada neste tipo de decisões, designadamente pelo efeito perturbador das estatísticas sobre álcool e condução, podemos encontrar sossego no seguinte texto:
“Se a retribuição não tem qualquer palavra a dizer em matéria de finalidades da pena, a ela pertence, segundo a sua história e segundo o seu conteúdo (como acima se acentuou já), o mérito indeclinável de ter posto em evidência a essencialidade do princípio da culpa e do significado deste para o problema das finalidades da pena. Segundo aquele princípio «não há pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa». A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento da pena mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é, por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa humana e de garantia de livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.
Na realidade das coisas, conflitos frequentes podem surgir entre a culpa e a prevenção especial, seja negativa ou mesmo positiva, bem como entre a culpa e a prevenção geral de intimidação. Mas já não será fácil excogitar hipóteses em que o ponto ótimo ou ainda aceitável de tutela dos bens jurídicos venha a situar-se acima daquilo que a adequação à culpa permite. Com efeito, como insistentemente tem acentuado Roxin, as razões de diminuição da culpa são, em princípio, também, comunitariamente compreensíveis e aceitáveis e determinam que, no caso concreto, as exigências de tutela dos bens jurídicos e de estabilização das normas sejam menores. Em princípio pois não se anteveem conflitos insanáveis entre culpa e prevenção geral de integração.” Cfr. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, pag. 110.
E veja-se o que diz Ulrich Klug, in Culpa e Castigo, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. XXV, 1951, pag. 190: “Seja, todavia, notado que a pena, como mecanismo de segurança ao serviço do fim da prevenção especial, não funciona no âmbito da prevenção geral. Nem a ameaça da pena, nem o castigo podem impedir que o criminoso latente se transforme em criminoso propriamente dito. (…) A confiança na segurança da ordem social, abalada momentaneamente pelo crime, é reforçada com esse ato. Integração, eis, pois, o efeito produzido pela pena, no plano da prevenção geral. Efeito frequentemente esquecido, apesar da sua importância.” Portanto, a principal dimensão em que a prevenção geral atua não é a da dissuasão criminal, mas antes a da estabilização (integração) social, pelo que não devemos depositar muitas esperanças na integral realização da primeira das dimensões citadas através das penas individualmente fixadas, não sendo, assim, o sacrifício individual imposto proporcionalmente compensado pelo almejado desincentivo transgressivo geral.
Tenha-se ainda presente que “as penas acessórias aplicam-se por referência ao conteúdo do ilícito típico; ligam-se, necessariamente, à culpa do agente, que é seu pressuposto e limite.” – cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2.ª Edição, Almedina, pag. 43.
Deve, ainda, recusar-se a ideia de necessária e estrita proporcionalidade também neste caso, se tivermos em devida conta a ampla moldura prevista na lei para a pena acessória, certamente pela razão de ser aplicável a crimes tão diversos quanto à sua gravidade, como o homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos, no exercício da condução de veículo com motor ou no exercício da pilotagem de aeronave com ou sem motor, com violação das regras de trânsito rodoviário ou das regras do ar, por um lado, e aos crimes previstos nos artigos 289.º, 291.º, 292.º e 292.º-A, por outro. Assim, esta moldura está prevista tanto para o piloto de um exuberante Airbus A 320 como para um incauto cidadão que tripula a sua veloz Zundapp XF 17 Super ou a sua inolvidável e muito pachorrenta Casal Boss, de 50 cc. (ambas, ciclomotores de fabrico português), o que nos deverá levar a invocar a proporcionalidade em relação ao concreto crime praticado e aos danos causados, em vez de a referir, desde logo, à TAS, não obstante a natureza abstrata do crime em causa. A este propósito, recorde-se a viva censura que boa parte da Doutrina penalista europeia dirige a estas incriminações, que prescindem de qualquer resultado danoso para punir - cfr., v.g., Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Almedina, Parte Geral I, pag. 319, que afirma que “o conceito de perigo surge, assim, como um conceito plurissignificativo que pretende explicar ou justificar quer uma maior antecipação da tutela penal quer uma agravação da responsabilidade penal dificilmente conciliável ou inconciliável com o princípio da culpabilidade”. Esta avisada advertência sobre a inconciliação entre estes crimes de perigo e a culpabilidade penal, deve interpelar-nos no sentido de, nesta sede, sermos particularmente exigentes na apreciação deste pressuposto da punição. Além disso, deve ter-se também em conta que é muito diferente cumprir uma pena acessória destas numa cidade (metro, autocarros frequentes, TVDE, táxis, amigos, colegas e vizinhos) ou numa recôndita aldeia transmontana, deserta, sendo idosa a escassa população, sem transportes públicos ou privados, ou com muitíssimo parca expressão, especialmente para quem inicie a sua jornada laboral bem cedo pela manhã e certamente longe do seu domicílio, pelo que a fria proporcionalidade TAS/proibição é de muito diferente aspereza para cidadãos em tão diferentes condições.
Nesta conformidade, sendo baixo o grau de culpa do agente, parece-nos equilibrada a medida da pena acessória encontrada – o limite superior do seu sexto inferior é compatível com os graus de culpa e ilicitude acima fixados. E é precisamente a ilicitude elevada que autoriza a sua coincidência com o limite superior dessa fração punitiva, pelo que entendemos que em relação à pena acessória foram convocados e corretamente aplicados todos os parâmetros legalmente alicerçadores das operações de dosimetria punitiva, não se justificando qualquer intervenção desta instância nesse domínio.
É certo que as exigências de prevenção geral positiva ou de integração não são elevadas - o agente não tem antecedentes criminais, não houve qualquer dano concreto imputável à sua conduta e admitiu o seu erro, pelo que o reforço das expectativas comunitárias na validade da norma não reclamam, no caso, particular severidade. Já as exigências de prevenção geral negativa ou de intimidação o são, atenta a fleuma com que muitos dos nossos concidadãos encaram este problema, bem como o consequente elevado número de infrações destas detetadas diariamente, embora essas exigências não autorizem a ultrapassagem do grau de culpa, não havendo sequer unanimidade na Doutrina sobre se as penas, e, portanto, também as penas acessórias, podem ou não, ainda que contidas no dito grau de culpa, materializar no seu quantum um segmento de prevenção geral negativa ou de intimidação – cfr., p. ex. Ulrich Klug, acima citado, e em sentido contrário, p. ex., Figueiredo Dias, ob. cit., pag. 165. Todavia, a marcada ilicitude da conduta, materializada na elevada TAS detetada, não aconselha que a chamada moldura de prevenção acarrete a redução pretendida pelo recorrente.
A pena acessória proposta pelo recorrente apenas se justificaria, eventualmente, se a TAS fosse bem menor, e, portanto, a menor ilicitude do facto autorizasse essa redução, precisamente no âmbito das opções criminais do nosso legislador que permitem a punição abaixo do grau de culpa, e que, nessa medida, se afastam da pura retribuição.
O recurso deve, portanto, improceder também nesta parte.
III DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso apresentado por AA, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça devida em 3 UCs.
Guimarães, 28 de Outubro de 2025
Os Juízes Desembargadores
Bráulio Martins
Pedro Cunha Lopes
Anabela Varizo Martins