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ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE
CASO JULGADO
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
Sumário
I- Tendo em anterior acórdão da Relação sido considerado ter ocorrido irregularidade na notificação do arguido para efeito do disposto no nº 4 al. b) do artigo 105º do RGIT, e que a consequência da irregularidade cometida era proceder-se à notificação pela forma correta, o que assim foi decidido, não pode o recorrente voltar a discutir esta mesma questão, sob pena de violação de caso jugado, no recurso da decisão em que, uma vez efetuada corretamente tal notificação, condenou o arguido pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social. II- No que concerne à prescrição do procedimento criminal, não desmerecendo o mérito dos votos de vencido constantes do AUJ nº 2/2015, DR nº 35/2015, de 19.02.2015, e pese embora alguma dissonância que ainda persiste na jurisprudência, em prejuízo do princípio da igualdade e da segurança jurídica, perfilha-se a jurisprudência no mesmo uniformizada, pelo que «No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, número 1, e 105º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5º, número 2, do mesmo diploma».
Texto Integral
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I- RELATÓRIO
1. No processo comum singular nº 1029/17.5T9BCL, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Barcelos – J..., em que é arguido AA, com os demais sinais nos autos, por acórdão de 05.12.2022, deste Tribunal da Relação, foi decidido, no que para o caso releva, o seguinte:
Conceder parcialmente provimento ao recurso da sentença, a qual se revoga, ordenando que, na primeira instância, se diligencie pela notificação pessoal do arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 105º nº 4 al. b) do RGIT, com referência aos valores referidos em f) dos factos provados da sentença, acrescidos dos montantes atinentes aos respetivos juros e coima. 2. Em obediência ao decidido no sobredito acórdão desta Relação, foi o arguido notificado para proceder ao pagamento dos valores em dívida e dos acréscimos legais, mas não efetuou qualquer pagamento, tendo então sido proferida sentença condenatória, lida e depositada em 30.04.2025, de cujo dispositivo consta o seguinte (transcrição):
1. Condenar o arguido AA, como autora da prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p, pelos arts. 107.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, do RGIT e 30.º, n.º 2, do Cód. Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, no montante global de € 1.200.00 (mil e duzentos euros)
2. Condenar o arguido AA no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça devida em 2 UC. 3. Condenar o demandado AA no pagamento ao Instituto da Segurança Social, I.P. da quantia de € 161.952,58 acrescida de juros moratórios computados sobre cada uma das contribuições descriminadas sob a al. f) do ponto 1.1. que ainda se mostrem por liquidar na presente data, desde o 20.º dia do mês subsequente àquele a que dizem respeito, às taxas sucessivamente estabelecidas para as dívidas de impostos ao Estado, designadamente a fixada no 3º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 73/99, de 16/03, aplicada da mesma forma, no montante máximo, quanto aos vencidos (à data da dedução do pedido cível), de € 2.980,82.
4. Condenar o demandado AA no pagamento das custas cíveis. 3. Não se conformando com a aludida sentença condenatória, dela interpôs recurso o arguido, extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
1- Vem o presente recurso interposto da sentença que condenou o recorrente pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social e bem assim do pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto de Segurança Social, IP.
2- É entendimento do recorrente que a sentença recorrida viola claramente a lei e, designadamente, os arts. 29º, nº 5 e 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, art 6º, nº 1 da CEDH, art. 195º do CPC, arts. 61, nº 1 al. b), 283º, nº 3 al. b) e 311º, nº 2, al. b), nº 3º al, d), todos do CPP, e arts. 21º, nº 1 e o art 105º nº 4, al. b) do RGIT.
3- A presente sentença viola o princípio do caso julgado, já que a mesma, depois de ter sido interposto recurso e o processo ter baixado à 1ª instância para ser suprida uma nulidade – falta de citação do arguido enquanto pessoa singular – limitou-se a dar como provados todos os factos constantes da sentença recorrida da qual o arguido obteve provimento parcial e com as motivações da sentença proferida em 20 de Maio de 2022, altura em que o aqui recorrente ainda não era arguido por falta de cumprimento do disposto nº 4 do art. 105º do RGIT.
4- O arguido foi agora (mal) condenado por factos já erradamente apreciados.
5- O arguido não pode ser julgado duas vezes pelo mesmo crime, pois daí decorre caso julgado, violando-se o artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.
6- A presente sentença serviu-se de uma acusação nula, pois quando a mesma foi proferida o recorrente ainda não havia cometido nenhum crime e, por isso mesmo, não pode o arguido ser condenado por factos inexistentes à data da prolação da acusação.
7- Foi negado ao arguido o pleno exercício do direito de defesa, que não pode apresentar elementos de prova nem se pronunciar sobre factos novos, enquanto arguido com nome individual.
8- Por último, e não menos importante, a presente sentença condena o arguido por um crime que já se encontra prescrito.
9- O recorrente foi notificado para proceder ao pagamento da dívida em 03 de Fevereiro de 2025, o que suspende o prazo de prescrição.
10- Os factos ocorreram até Novembro de 2015.
11- Decorreram mais de 9 anos desde a data da prática dos factos até à constituição como arguido do recorrente, o que terá ocorrido a 05 de Março de 2025.
12- O que em bom rigor, salvo o devido respeito por opinião contrária só se deve considerar (constituição como arguido) a< 5 de Março de 2025, ou seja decorrido trinta dias da notificação para proceder ao pagamento da dívida à Segurança Social.
13- Não ocorreu nenhuma causa de suspensão da prescrição, fosse do procedimento criminal fosse do crime, quanto ao recorrente enquanto pessoa individual.
14- Estando prescrito o procedimento criminal e o crime obviamente esta também prescrita a divida á Segurança Social.
15- A sentença recorrida, ao condenar o arguido por factos ocorridos em 2015, sem que possa ser considerada interrompida a prescrição do crime até 03 de Fevereiro de 2025 – data da constituição como arguido do recorrente –violou o direito de defesa e princípio da legalidade.
16- Por factos já apreciados e decididos por sentença, violou o princípio do caso julgado.
17- A sentença recorrida, ao condenar o arguido com base numa acusação nula, violou o seu direito de defesa.
18- Foram violadas as normas dos arts. 29º, nº 5 e 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, art 6º, nº 1 da CEDH, art. 195º do CPC, arts. 61, nº 1 al. b), 283º, nº 3 al. b) e 311º, nº 2, al. b), nº 3º al, d), todos do CPP, e arts. 21º, nº 1 e o art 105º nº 4, al. b) do RGIT, não podendo, pois, manter-se.
19- Existe, assim, fundamento para recurso, nos termos do art. 410º, nº 1 do CPP.
20- Deve, por isso, a douta sentença ser revista e substituída por outra que absolva o arguido da prática do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social e do pedido de indemnização civil deduzido pelo ISS, IP.
TERMOS EM QUE,
MERITÍSSIMOS Srs. JUÍZES DESEMBARGADORES,
Apreciando melhor, decidirão fazendo a habitual JUSTIÇA.
4. A Exma. Senhora Procuradora da República, na primeira instância, respondeu ao recurso do acórdão interposto pelo arguido, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição):
1ª Dispõe o artigo 619º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 4º do CPP (e sem prejuízo do disposto no seu artigo 467º), que a sentença que decida do mérito da causa fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º;
2ª A exceção do caso julgado pressupõe assim, como decorre do artigo 580º do CPC, a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário;
3ª No caso a causa e o processo são manifestamente os mesmos;
4ª Não há, pois, qualquer atingimento do caso julgado tal como representado nos artigos 619º e 580º do CPC;
5ª O princípio do ne bis in idem, tal como previsto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República, postula que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo crime;
6ª Mas isso não sucedeu com o arguido, ora recorrente;
7ª Com efeito, não foi duas vezes julgado pelo mesmo crime. Foi julgado uma única vez e num único processo: o processo em que esta específica questão se discute, ou seja, este processo;
8ª De outra sorte, a acusação não é nula nem como tal foi declarada;
9ª No acórdão de Tribunal da Relação de Guimarães, proferido nos autos em 5 de dezembro de 2022, considerou-se apenas que a ausência da notificação do arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 105º nº 4 al. b) do RGIT, não estando expressamente prevista como nulidade, se traduzia na irregularidade prevista no artigo 123º, nº 2, do CPP, a qual apenas afetava o valor da sentença então sob recurso - e não outros atos do processo, nomeadamente a acusação;
10ª E julgando verificada tal irregularidade, cuidou o douto acórdão de a mandar reparar;
11º De todo o modo, ao contrário do que se invoca, a acusação não é nula;
12º O que se previne no artigo 283º, n.º 3, al. b), do CPP, sob pena de nulidade, é que a acusação contenha “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”;
13ª No caso, a acusação cumpre todos esses requisitos e incluiu mesmo a menção à notificação do arguido nos termos e para os efeitos do artigo 105º, nº 4, al. b) do RGIT – menção que aliás não seria, por si mesma, compreensiva de factos que fundamentassem a aplicação ao arguido de uma pena, esses ampla e cabalmente descritos na acusação;
14ª É certo que mais tarde essa notificação viria a ser considerada irregular pelo Tribunal da Relação de Guimarães, que, reparando-a, determinou a sua efetivação nos termos que teve como apropriados;
15ª Tal invalidade refere-se, todavia, ao próprio ato e não à menção que dele foi feita na acusação;
16ª Não subsiste, pois, qualquer invalidade, sendo curial trazer-a-lume que que no acórdão a seu tempo proferido pelo tribunal ad quem, se ponderou a natureza dessa invalidade tendo-se concluído que não poderia categorizar-se como nulidade, posto que não integrava o elenco das previstas no artigo 118º, n.º 1, do CPP;
17º E, ao contrário do pretendido, o arguido pôde exercer cabalmente a sua defesa, posto que teve ampla oportunidade de apresentar os eventuais elementos de prova de que dispusesse - nomeadamente para contraditar, complementar ou esclarecer as existentes nos autos - e de impugnar e contraditar todos os factos que lhe haviam sido imputados na acusação;
18º Também ao contrário do pretendido, não se esgotou o prazo de prescrição relativo ao crime pelo qual o arguido foi condenado, o qual aliás ainda se encontra suspenso;
19º Por isso que não está prescrito o procedimento criminal.
Termos em que o recurso não deve ser provido.
Porém, Vossas Excelências, doutamente suprindo, farão, como habitualmente, JUSTIÇA! 5. Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, pelas razões aduzidas na resposta do Ministério Público na primeira instância, defende que o recurso não merece provimento. 6. Cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta. 7. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
II- FUNDAMENTAÇÃO
1- Objeto do recurso
O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso[1] do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º e 412º, nº 1, todos do CPP.
Assim, considerando o teor das conclusões do recurso interposto no sentido acabado de referir, as questões a decidir reconduzem-se ao seguinte:
- Caso julgado, nulidade da acusação, violação do contraditório e das garantias de defesa do arguido; e
- Prescrição do procedimento criminal
2- A decisão recorrida 2.1- Na sentença recorrida foram considerados como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respetiva motivação de facto (transcrição): 1.1. Factos provados.
a) A sociedade EMP01..., SA foi uma sociedade anónima, que teve sede no Parque Industrial ..., lotes ...7, ...8, ...9 e ...0, freguesia ..., concelho ..., e tinha por objecto social a exploração da indústria tipográfica, edição de publicações, comércio de papelaria e objectos de escritório, e quaisquer outros actos comerciais e industriais, com excepção de bancários (CAE 18130-R3).
b) A dita sociedade foi registada e declarou o início da actividade à administração fiscal em 24/11/1923, tendo-lhe sido atribuído, entretanto, para além do número de matrícula e de contribuinte fiscal (n.º ...31), o seguinte número de identificação de contribuinte da Segurança Social: ...56.
c) O arguido AA foi, pelo menos desde 13/09/2010, o único administrador da sociedade mencionada, competindo-lhe e tendo o mesmo, desde então, entre outras funções, tomado todas as decisões inerentes à actividade daquela, incluindo as que se reportavam aos pagamentos dos salários devidos pela sociedade, à retenção, sobre os mesmos, das cotizações devidas, e ao envio e entrega das declarações de remunerações na Segurança Social.
d) Desde o início da sua actividade e, mais concretamente, no período que de seguida se referirá, a sociedade EMP01..., SA teve ao seu serviço um número não concretamente apurado e nem sempre uniforme de trabalhadores, que, mediante contrato para o efeito celebrado com aquela, se obrigaram a prestar a sua actividade à dita empresa, sob a autoridade e direcção desta (e por intermédio do arguido AA), contra o pagamento de uma retribuição.
e) A sociedade EMP01..., SA entregou à Segurança Social as folhas de remunerações contendo os salários que pagou aos trabalhadores, no período respeitante aos meses de Março de 2012 a Agosto de 2014 e Março a Novembro de 2015.
f) Assim, nesses, o arguido AA, por conta e no interesse da sociedade EMP01..., SA, descontou no salário dos trabalhadores, os montantes que a seguir se descriminam:
g) A sociedade EMP01..., SA procedeu ao pagamento dos salários devidos aos seus trabalhadores, com desconto e retenção das cotizações, à taxa de 11%, descriminadas em f).
h) A entrega dos valores assim descontados nos salários dos trabalhadores e remuneração do gerente da sociedade EMP01..., SA não foi efectuado, entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitam as respectivas contribuições, nem nos 90 dias subsequentes.
i) A sociedade EMP01..., SA e o arguido AA, este como administrador dessa sociedade, passaram a dispor desses valores para os gastarem em proveito da mencionada sociedade, integrando tais quantias no património da mesma.
j) O arguido AA actuou no interesse, por conta e em representação da aludida sociedade, bem sabendo que as entidades empregadoras são responsáveis pelo pagamento das contribuições por si devidas e das cotizações correspondentes aos trabalhadores ao seu serviço, devendo descontar, nas remunerações a estes pagas, o valor daquelas cotizações.
k) O arguido AA fez com que a sua representada violasse o direito de crédito da Segurança Social, não tendo efectuado os pagamentos à Segurança Social das contribuições devidas e cotizações correspondentes aos trabalhadores ao seu serviço.
l) O arguido AA sabia ainda que essas contribuições retidas e não entregues à Segurança Social se diluíam nos meios financeiros da empresa, que passava a dispor delas para satisfazer outros compromissos, não ignorando que, por força do pagamento dos salários, tais quantias pertenciam já à Segurança Social, não podendo a entidade empregadora dispor delas como se fossem suas.
m) O arguido AA estava ciente de que a entrega das cotizações à Segurança Social configura uma obrigação legal que nasce no acto de pagamento de salários e que a actuação acima descrita era contrária à vontade da Segurança Social.
n) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por Lei.
o) Pelo menos em 08/03/2020, o arguido AA foi notificado, “na qualidade de membro dos órgãos estatutários da sociedade EMP01..., SA” para pagar os valores referidos em f), acrescido dos montantes atinentes aos respectivos juros e coima.
p) A sociedade EMP01..., SA não tinha liquidez que lhe permitisse proceder ao pagamento integral dos salários e das quantias retidas dos salários dos trabalhadores, entre outras despesas, pelo que o arguido AA decidiu, em representação da dita sociedade, não proceder às preditas entregas das quantias à Segurança Social, optando antes por proceder ao pagamento (total ou parcial) das remunerações dos trabalhadores que ainda estavam a seu cargo.
q) Fê-lo ainda, porque durante todo o período em causa não havia sido fiscalizado ou penalizado pela conduta que reiterou.
1.1.2. Outros factos com possível relevo para a decisão da causa.
r) O arguido AA vive com a sua cônjuge e a filha comum, estando ambos actualmente desempregados; moram na casa sita na morada supra identificada, a qual se encontra, porém, penhorada; têm a seu cargo uma filha de 22 anos de idade, a qual se encontra a concluir os seus estudos; o arguido é licenciado em direito e tem um mestrado em gestão.
s) O arguido já foi condenado no âmbito do processo n.º 6192/13.1TDPRT, que correu termos no Juízo Central Criminal (J...) do ..., por acórdão proferido em 27/04/2015 e transitado em julgado em 02/12/2016, pela prática em 2010 de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 250 dias de multa à taxa diária de € 10,00.
1.2. Factos não provados.
Com eventual interesse para a decisão da causa nenhum outro facto se demonstrou. 1.3. Motivação.
A convicção do tribunal formou-se, no que aos factos respeita, com base na apreciação conjugada e crítica da prova produzida e analisada em audiência de julgamento, com particular destaque para as declarações prestadas pelo arguido e, ainda, pelas testemunhas inquiridas nos termos que de seguida se referirão.
Assim, informou o arguido que a sociedade EMP01..., SA, da qual ele acabou por assumir ser administrador (pelo menos no período a que se reportam os autos), fazia parte de um “grupo de empresas”, que se encontrava sob a dependência da sociedade EMP02...-SGPS, SA, de que ele próprio também era administrador (cfr. aliás acórdão proferido no processo n.º 6192/13.1TDPRT, que o arguido fez juntar aos autos, sendo que no mesmo não se esclarece, de facto, em que medida as sociedades do invocado grupo eram detidas pela aludida sociedade-mãe e de que forma era “agilizada” a gestão do grupo, tal como mencionado na al. z) do referido acórdão). Ao cabo e ao resto, e a despeito das relações de grupo das sociedades, percebeu-se das declarações do arguido, por confronto com a aludida decisão, que a sociedade EMP01..., SA – como aliás resulta do teor do registo comercial junto aos autos – era uma entidade autónoma/independente, que tinha os seus próprios factores de produção e desenvolvia uma actividade independente (ainda que complementar) em relação às demais sociedades do aludido “grupo” editorial (relação de grupo que, em rigor, não foi possível concretizar/descrever com maior detalhe, à míngua de outros elementos documentais, factualidade que, todavia e sem prejuízo do contexto atendido, se mostra na perspectiva do tribunal, e para a apreciação da conduta que é objecto desta causa, inócua, considerando a autonomia legal e fáctica das unidades de produção, como referido e aliás resulta do acórdão a que o arguido se ancora). Quer dizer, de acordo com o assumido pelo arguido, e aliás corroborado pela testemunha BB, funcionário da sociedade EMP01..., SA, no período em causa, era o arguido quem, em última instância, administrava esta sociedade, cabendo-lhe a ele a decisão relativa à alocação dos meios de produção, realização de investimentos (que o próprio arguido caracterizou, explicando que em resultado dos mesmos surgiram perdas significativas que determinaram a falta de liquidez e descapitalização da empresa), processamento e pagamento dos salários, entre o mais. Na verdade, em resultado de problemas relacionados com a expansão (aquisição de pavilhões e máquinas) da sociedade e, no ano de 2007, da crise financeira que obstaculizou o acesso ao crédito (determinando assim a falta de liquidez da empresa), gerou-se uma agudização da situação económica da sociedade arguida (e das demais que integravam o aludido “grupo” de sociedades) e que determinou, inicialmente a homologação de um PER (em 2014) e, já em 2018, a insolvência da EMP01..., SA.
As dificuldades de liquidez da sociedade EMP01..., SA, porém, ao contrário do sustentado pelo arguido, não inibiu (pelo menos no período em apreço nos autos) o pagamento dos salários dos seus trabalhadores no período mencionado na acusação: isso mesmo resulta do depoimento da testemunha BB, que logo o arguido procurou rectificar, mas sem grande convicção. De facto, de acordo com este funcionário, que cessou a prestação de trabalho no início do ano de 2018, a sociedade EMP01..., SA, com maior ou menor atraso, liquidou sempre todos os salários até ao mês de Dezembro de 2017 – o que, aliás, se mostra curial, se bem vistas as coisas houve de ser homologado, em 2014, um Plano de Revitalização (de onde, por força da Lei haveria de estar garantido o cumprimento, mais não seja, destas obrigações salariais), acabando a sociedade em causa apenas por ser declarada insolvente por sentença proferida em 14/05/2018.
Notar que, nas declarações finais, o arguido refere-se a um atraso e/ou falta de pagamento de salários de apenas 3 meses, sem prejuízo da suspensão dos contratos de trabalho (que se mostra reflectido no mapa junto pela Segurança Social a fls. 11, tanto que no período de suspensão dos contratos, e porque os trabalhadores haveriam de ser apoiados pelo Estado para fins da sua subsistência, não houve lugar à entrega das declarações de rendimento). Quer dizer, a tese do arguido, de que existiram salários, reflectidos nos descontos que aqui se tratam, que não foram pagos aos trabalhadores, é facto que se mostra desmentido, ora pelo depoimento da aludida testemunha, ora pela concretização que o próprio arguido faz em relação ao período em que os trabalhadores deixaram de ser pagos, ora porque a explicação apresentada pelo acusado – de que continuou a entregar as declarações de rendimentos de remunerações por insistência da Segurança Social – não merece qualquer crédito. O arguido é licenciado em direito e tem um mestrado em gestão, pelo que se não mostra crível que, ademais não devendo desconhecer das consequências da errada (e/ou falsa) declaração dos rendimentos dos trabalhadores junto da Segurança Social, as declarações de remunerações que foram remetidas à Segurança Social não tenham sido pagas, gorando-se a tese de que foi coagido pela dita instituição a apresentar as ditas declarações (sem, aliás, demonstrar prova cabal, designadamente uma qualquer comunicação/documento feita nesse sentido). Aliás, de acordo com o arguido, os trabalhadores (com pontuais excepções que determinaram a cessação dos contratos de trabalho, circunstância que não poderá deixar de se mostrar reflectido no registos informáticos que constam da Segurança Social, como se refere) sempre prestaram o trabalho devido à sociedade EMP01..., SA, sendo que foi em razão disso mesmo que os trabalhadores continuaram a trabalhar “até ao fim”, como o próprio arguido admitiu e disse ademais a testemunha BB (que, efectivamente, não mostrou qualquer interesse no desfecho do processo). Quer dizer, não se mostra verosímil que os trabalhadores tenham continuado, por mais de 3 meses, nos anos anteriores e durante quase todo o primeiro semestre do ano de 2018 sem receber o seu salário. Admite-se, eventualmente, que já no ano de 2018 e, por benevolência, no final do ano anterior, a entrega dos salários tenha sofrido atrasos e, até, tenha cessado. Mas não é de todo provável que entre o ano de 2012 e até ao final de 2017, ou seja, durante 5 anos, os trabalhadores se tenham mantido a trabalhar sem receber. Por isso, a exactidão do arguido, na parte final das suas declarações, de que existiram atrasos e que os pagamentos terão cessado cerca de 3 meses antes do fim da actividade da empresa, afigura-se-nos mais curial. Ainda: o facto de terem existido, no ínterim (e sem que o arguido tivesse o ensejo de concretizar e que momento), despedimentos ou salários não pagos, atendendo ao cuidado expresso pelo arguido, não pode ter deixado de ser declarado para efeitos de rectificação das declarações de remuneração (- isto, se é que não oficiosamente considerado, até porque os trabalhadores, ora iniciaram o recebimento dos subsídios, suportados pelo Fundo de Garantia Salarial, ora ingressaram noutros postos de trabalho; cfr. ainda, neste sentido, informação de fls. 151/152).
Em síntese, apesar das vagas justificações apresentadas pelo arguido para sustentar um eventual erro na tabela que detalha as cotizações em falta (fls. 11), crê-se que a mesma se mostra exacta, posto que realizada com base nas declarações à Segurança Social que o próprio arguido fez chegar em representação da sociedade que administrava, não sendo curiais as invocadas imprecisões decorrentes de uma espécie de coacção moral que o arguido alega ter sentido com fito de apresentar as aludidas declarações.
Outrossim, já se mostra crível, também de acordo com o que disse a testemunha BB, que a sociedade EMP01..., SA tenha tido dificuldades de tesouraria, o que não a inibiu de continuar a laborar até, pelo menos, o ano de 2017, de onde ressuma que, a despeito das dificuldades financeiras, houve dinheiro para prosseguir com um funcionamento “dos serviços mínimos”
De resto, além das certidões registrais da sociedade juntas aos autos e já mencionadas (fls. 31/38, 73/81 e 154/163) e dos extractos da conta corrente de contribuinte da Seg. Social da sociedade EMP01..., SA (fls. 54/61 e 93/94vº), importa reter da prova documental o teor da notificação de fls. 144/148, de onde resulta ter sido o arguido AA, na qualidade de “órgão estatutário” da sociedade EMP01..., SA – e, por isso, por si e na qualidade de representante da dita sociedade – notificado para proceder ao pagamento em apreço: mais uma vez se nota que o arguido, ademais atendendo à formação académica que possui, não poderia deixar de saber que, como legal representante da sociedade arguida e porque os factos em apreço lhe respeitavam, seria também ele próprio sujeito da aludida notificação.
As declarações complementarmente prestadas pelo arguido serviram para motivar a convicção do tribunal no que concerne às suas condições pessoais, familiares e económicas.
Relativamente aos seus antecedentes criminais, valorou-se o certificado do registo criminal junto a fls. 227/228.
Quanto aos factos não provados cumpre, como se disse, referir não se haver produzido em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para além dos que nessa qualidade se descreveram e que tivesse relevância para a apreciação da causa.
3- Apreciação do recurso 3.1. A questão da alegada violação do caso julgado
O recorrente alega que a sentença recorrida deve ser revogada, e absolvido da prática do crime que lhe foi imputado, por verificação de caso julgado. Na verdade, como decorre das conclusões do recurso:
“2- É entendimento do recorrente que a sentença recorrida viola claramente a lei e, designadamente, os arts. 29º, nº 5 e 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, art 6º, nº 1 da CEDH, art. 195º do CPC, arts. 61, nº 1 al. b), 283º, nº 3 al. b) e 311º, nº 2, al. b), nº 3º al, d), todos do CPP, e arts. 21º, nº 1 e o art 105º nº 4, al. b) do RGIT.
3- A presente sentença viola o princípio do caso julgado, já que a mesma, depois de ter sido interposto recurso e o processo ter baixado à 1ª instância para ser suprida uma nulidade – falta de citação do arguido enquanto pessoa singular – limitou-se a dar como provados todos os factos constantes da sentença recorrida da qual o arguido obteve provimento parcial e com as motivações da sentença proferida em 20 de Maio de 2022, altura em que o aqui recorrente ainda não era arguido por falta de cumprimento do disposto nº 4 do art. 105º do RGIT.
4- O arguido foi agora (mal) condenado por factos já erradamente apreciados.
5- O arguido não pode ser julgado duas vezes pelo mesmo crime, pois daí decorre caso julgado, violando-se o artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.”
Vejamos se lhe assiste razão.
O instituto do caso julgado tem como finalidade a proteção das decisões jurisdicionais, uma vez que, caso assim não fosse, as mesmas nunca seriam vinculativas, pois poderiam ser sempre modificadas.
A lei penal não regula o caso julgado. No entanto, o nº 5 do art 29 da Constituição da República Portuguesa estatui que « Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime», o qual se traduz no que convencionalmente na doutrina se designa como efeito negativo do caso julgado».
Trata-se, como é sabido, de um princípio fundamental do Estado de Direito e, como tal, encontra-se previsto nos principais instrumentos de direito internacional relativos à proteção dos direitos liberdades e garantias, vigentes no ordenamento jurídico português, como é caso do artigo 4º do Protocolo nº 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do artigo 14º, nº 7 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
O caso julgado, a verificar-se, constitui assim um pressuposto negativo, impedindo um novo procedimento. E pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário.
A sentença que decida do mérito da causa fica a ter força obrigatória dentro do processo e as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, cfr. artigos 619º e 620 do CPC, ex vi do artigo 4º do CPP.
No caso vertente, segundo é possível depreender da alegação do recorrente, a sentença recorrida errou ao condenar o arguido, não porque anteriormente tivesse sido absolvido, mas sim porque, tendo este Tribunal da Relação considerado já depois de ter ocorrido o julgamento, que o recorrente nunca havia sido notificado a título pessoal ( tinha sido notificado apenas na qualidade de legal representante da arguida sociedade) nos termos e para os efeitos do disposto no nº 4 alínea b) do art 105 do RGIT, e sendo esta uma condição objetiva de punibilidade, limitou-se a dar como provados os factos da anterior sentença (sentença de 20.05.2022) e a condenar o arguido. Ou seja, dizemos nós, limitou-se a reproduzir a anterior sentença.
A questão assim colocada pelo recorrente nada tem que ver com a violação do caso julgado, quer porque na sentença recorrida o arguido não foi condenado contrariando uma decisão absolutória anterior, quer porque nela se tenha decido em contrário ao que foi determinado por este Tribunal da Relação no acórdão proferido nos autos. Efetivamente, na primeira instância, foi efetuada a notificação do arguido determinada por esta Relação, tendo-se considerado na sentença recorrida que o arguido, apesar de notificado a título pessoal, nos termos e para efeitos do disposto do nº 4 alínea b) do art 105 do RGIT não procedeu a qualquer pagamento.
Porém, como se pode concluir da alegação do recorrente, a sentença recorrida é uma reprodução da anterior, inclusive, quanto à questão da notificação ordenada por esta Relação, tendo em conta que se manteve inalterado o referido na alínea o) dos factos provados, bem como a respetiva motivação de facto, sendo que nenhuma referência foi feita à notificação pessoal do arguido ordenada por este Tribunal da Relação e agora efetivamente efetuada em 03.02.2025, conforme se comprova através da referência citius 194777543, e à ausência de pagamento, conforme informação prestada pela Segurança Social em 12.03.2025 através de requerimento com a referência citius 51645593, o que o recorrente reconhece, constituindo, pois, um facto inquestionável. Ao assim proceder, a sentença recorrida apenas formalmente cumpriu o determinado por esta Relação.
Esta omissão da sentença recorrida, não podemos deixar de salientar, traduz-se num procedimento inusitado que poderia conduzir à prolação de nova sentença na qual fosse relevado a sobredita notificação pessoal do arguido. Na verdade, a sentença recorrida teria de ter extraído as consequências da referida notificação e o consequente comportamento do arguido relativo ao pagamento (à falta de pagamento) das quantias em dívida, procedendo à alteração da alínea o) dos factos provados. E só não tem essa consequência porque tal omissão inquinou a sentença recorrida do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, vício de conhecimento oficioso deste tribunal de recurso, que pode e deve ser sanado por esta Relação, uma vez que o processo contém todos os elementos para o suprir, cfr. artigos 410º, nº 2 al. a) e 431º, al. a), ambos do CPP.
Nesta conformidade, e ao abrigo destes dispositivos legais, decide-se suprir o referido vício, procedendo à alteração da matéria de facto provada constante da sentença, eliminando-se a redação dada à alínea o) dos factos provados, a qual passará a ter a seguinte redação:
“o) Em 03.02.2025, o arguido AA foi notificado, a título pessoal, para proceder ao pagamento, em 30 dias, dos valores referidos em f), acrescidos dos montantes atinentes aos respetivos juros e coima, nos termos e para efeitos do disposto no nº 4 al. b) do artigo 105º do RGIT, e não efetuou qualquer pagamento.”
Em decorrência do exposto, temos como não verificado o caso julgado suscitado pelo recorrente, não tendo sido violados quaisquer normas, designadamente as por ele invocadas, improcedendo, pois, este segmento do recurso.
3.2- Da alegada nulidade da acusação, violação do contraditório e das garantias de defesa do arguido
Questão diversa é aquela que vem suscitada pelo recorrente - que nada tem que ver com o caso julgado - é da de saber se o arguido tendo sido notificado, apenas em julgamento, a título pessoal, para efeitos do disposto no nº 4 alínea b) do art 105 do RGIT, pode ou não ser condenado pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social que lhe foi imputado.
A questão assim colocada poderá antes ser enquadrada, sendo uma das hipóteses possíveis, no âmbito da definição do objeto do processo, com o princípio da vinculação temática, com o princípio do contraditório e, em último termo, com a garantia dos direitos de defesa do arguido.
Segundo o recorrente, estando em causa a não verificação de uma condição objetiva de punibilidade, em conformidade com o acórdão STJ nº 6/2008, sem a qual a conduta não é punível, a acusação deveria ter sido rejeitada. A sua linha de argumentação é a seguinte:
A acusação “por ser manifestamente infundada nos termos do artigo 311 do CPP, nos seus números 2 alínea a) e 3 alínea d) e, por isso, nem devia ter sido recebida já que o sentido literal que resulta da leitura dos documentos de fls 144 a 148 deveria ter levado o Senhor Juiz a quo a considerar, desde logo, que aquele pressuposto de punibilidade não se verificava.
Tendo o processo chegado a julgamento, e tendo ficado provada a inexistência da notificação prevista no art 105 do RGIT , na nossa modesta opinião, a decisão não poderia ser outra que não a da absolvição do aqui recorrente.”.
Porém, não lhe assiste razão, desde logo porque, no caso em apreço, na acusação deduzida pelo Ministério Público foi referido que:
“ Notificados, o arguido, por si e em representação da arguida sociedade, no dia 3 de setembro de 2018, nos termos e para efeitos do disposto no nº 4 al. b) do artigo 105º do RGIT, não regularizou o montante correspondente às prestações devidas” (sublinhado nosso).
Isto é, na acusação foram descritos os factos em que se consubstanciam a referida condição objetiva de punibilidade.
Efetivamente, encontra-se consolidado na jurisprudência que a notificação prevista no artigo 105º, nº 4 al. b) do RGIT constitui uma condição objetiva de punibilidade, cfr. Ac. STJ nº 6/2008, in DR nº 94/2008, I Série, de 15.05, que fixou jurisprudência no sentido de que:
“A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo [alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT]”.
As condições objetivas de punibilidade não integram nem a ilicitude, nem a culpa, não fazem parte da tipicidade, constituindo um elemento que se situa fora do tipo legal de crime previsto na norma por forma a que a conduta do agente tenha consequências penais.
Na verdade, as condições objetivas de punibilidade são pressupostos adicionais da punibilidade que não se ligando nem à ilicitude nem à culpa, decidem ainda da punibilidade do facto, cfr. Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, I, Coimbra Editora, 2004, pg. 617 e Susana Aires de Sousa in os Crimes Fiscais, Coimbra Editora, pág. 136.
Neste sentido, na fundamentação do mencionado aresto do STJ foi referido, nomeadamente, que:
“(…) é inequívoco o entendimento de que a verdadeira essência das condições objectivas de punibilidade como categoria dogmática autónoma no marco dos pressupostos materiais de punibilidade é, na perspectiva substancial, a sua autonomização em relação à ilicitude. O que sucede dado que esta classe de condições se coloca à margem da conduta ilícita e, consequentemente, a sua verificação vem a colocar em relevo tão-somente a questão da necessidade da pena. Nessa sequência, e num plano de conceitos, os elementos do tipo de ilícito e condições objectivas de punibilidade são noções que se excluem mutuamente”.
Em decorrência do entendimento subjacente à jurisprudência fixada, relativamente aos então processos pendentes aquando da entrada em vigor da Lei n.º 53-A/2006, que introduziu a al.b) nº 4 do artigo 105º do RGI, foi entendido que nos processos pendentes competia ao tribunal competente (instrução, julgamento ou de recurso) proceder a tal notificação, ou, naturalmente, ao Ministério Público ou Administração Fiscal ou Segurança Social, caso o processo se mantivesse em inquérito. Entendimento sufragado pelo Tribunal Constitucional. Assim, vide o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 409/2008, em cuja fundamentação se pode ler:
« Quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa notificação, ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas típica da Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto titular da acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar uma decisão de acusação ou de não acusação. Similarmente, quando o juiz de instrução ou o juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se limitam a praticar um acto instrumental necessário à comprovação da existência, ou não, de uma condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia ou não pronúncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é: em todas essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público ou por magistrados judiciais insere-se perfeitamente dentro das atribuições constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração, nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes, invocado pelo recorrente (quanto à alegada violação do “princípio da legalidade”, torna-se impossível proceder à sua apreciação, dada a absoluta falta de substanciação das razões por que o recorrente entende ocorrer tal violação, sendo, aliás, incerto o sentido que ele pretende atribuir a tal princípio, neste contexto).»
A dúvida que se poderia suscitar era a de saber se, relativamente a factos verificados e a processos instaurados em plena vigência do artigo 105.º, n.º4, al. b) do RGIT, a solução seria a mesma. Ou seja, saber se em caso de omissão /irregularidade da sobredita notificação, designadamente quando verificada em sede de julgamento ou recurso, se o tribunal pode e deve mandar efetuar a notificação omitida, sanando a irregularidade, extraindo depois as consequências da notificação e da conduta do arguido relativamente ao pagamento.
A resposta a esta questão, relativamente ao caso concreto deste processo, foi dada por forma afirmativa no acórdão desta Relação proferido nos autos, na medida em que contrariando a pretensão do recorrente, que pugnava pela sua absolvição do crime pelo qual havia sido condenado em primeira instância, tendo reconhecido a irregularidade da notificação, considerou não haver fundamento para absolvição do arguido, revogou a sentença proferida, e ordenou que fosse efetuada, na primeira instância, a notificação do arguido para efeitos do disposto no artigo 105º, nº 4 al. b), ex vi do artigo 107º nº 2, ambos do RGIT.
O sobredito entendimento apoiou-se em jurisprudência julgada pertinente aplicável ao caso, nomeadamente, Ac. RP de 13.05.2009, processo 142/05.6IDPRT.P1; Ac. RP de 26.02.2014, processo 6319/11.8IDPRT.P1; Ac. RL de 17.06.2020, processo 250/18.3IDSTB.L1-3, Ac. RC de 23.10.2013, processo 1231/11.3T3AVR.C1, Ac. RE de 21.03.2017, processo 228/13.3IDSTB.E1, Ac. RP de 22.03.2023, processo nº 2251/17.0T9VFR-A.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Assim, e a título meramente exemplificativo, reproduz-se os sumários destes três últimos arestos, com o seguinte teor:
- Ac. RC de 23.10.2013, processo 1231/11.3T3AVR.C1:
1.- Não atribuindo a lei a uma concreta entidade a competência para ordenar o cumprimento do art.105.º, n.º4, al. b), do RGIT, esta notificação pode ser ordenada pela entidade perante o qual estiver o processo quando a questão do seu cumprimento se vier a suscitar;
2.- Estando o processo na fase de instrução e entendendo a Ex.ma JIC que essa notificação do arguido e que anteriormente havia sido efetuada era irregular, tinha competência para ordenar essa mesma notificação; - Ac. RE de 21.03.2017, processo 228/13.3IDSTB.E1:
“Suscitando-se ao tribunal, em sede de julgamento, dúvidas acerca da notificação dos arguidos, que foi efectuada pela Autoridade Tributária, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 105.º, n.º4, al. b) do RGIT, em virtude dos avisos de receção terem sido assinados por pessoa diversa do destinatário, deve ordenar a repetição dessas notificações.”
- Ac. RP de 22.03.2023, processo nº 2251/17.0T9VFR-A.P1:
“Quando detete uma irregularidade da notificação a que se reporta a alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, o juiz não deverá rejeitar a acusação por manifestamente infundada, mas, oficiosamente, sanar tal irregularidade determinando uma nova notificação.”
No mesmo sentido Tiago Milheiro[2], sendo que este autor, para além do mais, chamado ainda a atenção, e a nossos ver bem, para o facto de “(…) materialmente o crime se consuma com a omissão de entrega”.
Ora, no contexto descrito, o recorrente sustenta, para além do que atrás referimos, que a acusação contra ele deduzida é nula, por no momento em que a mesma foi deduzida ainda não havia sido notificado a título pessoal para efeito no artigo 105º, nº4 al. b) do RGIT, não tendo, por isso, cometido qualquer crime até à verificação desta notificação, invalidando os atos praticados, designadamente a constituição de arguido e a contumácia, tendo sido violado o contraditório e as suas garantias de defesa.
Mas sem razão.
Desde logo porque, na acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos consta que: “Notificados, o arguido, por si e em representação da arguida sociedade, no dia 3 de setembro de 2018, nos termos e para efeitos do disposto no nº 4 al. b) do artigo 105º do RGIT, não regularizou o montante correspondente às prestações devidas” (sublinhado nosso).
Por outro lado, a acusação foi recebida, ou seja, não foi rejeitada e, após realização de audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual foi considerado que a notificação estava corretamente efetuada. E apenas, na sequência de recurso interposto pelo arguido, esta Relação alterou o assim decidido, considerando ter ocorrido uma irregularidade da notificação efetuada, tendo revogado a sentença e ordenado a realização da notificação do arguido a título pessoal.
Isto serve para dizer que os factos relativos à condição objetiva de punibilidade encontravam-se descritos na acusação deduzida, ou seja, a acusação não podia ser rejeitada por ser manifestamente infundada por não conter a narração dos factos, cfr. artigo 311º, nº 2 al. a) e nº 3 al. b) do CPP.
Outrossim, ao contrário do defendido pelo recorrente, também não era manifestamente infundada por os factos não constituírem crime, em conformidade com o disposto artigo 311º, nº 2 al. a) e nº 3 al. d) do CPP.
De facto, como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque[3], “o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objetivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante”.
No caso os elementos objetivo e subjetivos do crime encontram-se descritos na acusação, importando notar, relativamente à consumação dos crimes de abuso de confiança fiscal e contra a Segurança Social, que “(…) a conduta incriminadora consubstancia-se na não entrega à administração fiscal das quantias pecuniárias envolvidas. Significa o exposto que a mesma conduta se traduz numa omissão pura. Na verdade, o crime de abuso de confiança fiscal consuma-se com a não entrega dolosa no tempo devido das quantias deduzidas pelo agente. O n.º 2.º do artigo 5.º do RGIT esclarece que as infracções tributárias omissivas se consideram praticadas na data em que termine o prazo para cumprimento dos respectivos deveres tributários”, cfr. o acima citado Ac. STJ nº 6/2008.
Aliás, o mesmo entendimento foi reafirmado mais recentemente pelo STJ no AUJ nº 2/2015, que uniformizou jurisprudência no sentido de que:
«No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º, número 1, e 105.º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5.º, número 2, do mesmo diploma».
Na fundamentação deste aresto pode ler-se: “Trata-se, pois, por via da estrutura que o caracteriza, de um crime, além de doloso (na medida em que, como visto, pressupõe o conhecimento e a vontade do agente em cometê-lo), de omissão pura ou própria, de mera inactividade que, como é apanágio dos crimes dessa natureza, se consuma e esgota com o incumprimento, por parte do agente, de um "dever de acção", sem ulterior obrigação de evitar o resultado.
Incumprimento do dever de actuação que, tratando-se do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, se consuma com a não entrega dolosa, nos moldes e no prazo legalmente fixados, das prestações contributivas deduzidas pelo agente (3), nisso se traduzindo o desvalor da acção que, como se anotou, ao invés do que acontecia no Regime Jurídico das Infracções Não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei nº 394/93, de 24.11, já não é a intenção de enriquecimento, e muito menos de apropriação dos montantes das contribuições não entregues, pela entidade empregadora, de jeito que o crime, ora, esgota-se na mera omissão de entrega dos mesmos valores.”
Em suma, ao contrario do defendido pelo recorrente, não havia fundamento para que a acusação devesse ter sido rejeitada, por ser manifestamente infundada, nomeadamente por ocorrer deficiência da acusação relativa à definição do objeto do processo por omissão da descrição de factos relativos à condição objetiva de punibilidade, verificando-se somente uma irregularidade na notificação.
De qualquer forma, ainda que se considerasse que a acusação era nula, isso não significaria que a mesma ainda persistisse, uma vez que não se trata de uma nulidade insanável. Na verdade, em matéria de nulidades vigora o principio da legalidade, pois que, como decorre do nº 1 do artigo 118º do CPP “A violação ou inobservância das disposições da lei de processo só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei”. O nº 2 deste mesmo preceito legal acrescenta que “Nos caos e que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular”. O artigo 120º do CPP, por seu lado, indica as nulidades sanáveis ou dependentes de arguição, que são aquelas que não se encontrarem previstas na lei como sendo insanáveis. E o artigo 119º do mesmo código acrescenta que constituem nulidade insanáveis as nele indicadas e aquelas que como tal forem indicadas em outras disposições legais, o que não é o caso do artigo 283º, nº 3 e do artigo 311º, nº 2 al. a) e nº 3 als. b) e d), ambos do CPP.
Como diz João Conde Correia[4], tal situação “(…) não constitui uma nulidade insanável, cfr. artigo 119º do CPP, constituindo uma invalidade atípica, na medida em que, pese embora deva ser arguida, difere do regime geral das nulidades, sendo de conhecimento oficioso do tribunal no momento do recebimento da acusação e pode ser suscitada pelos interessados.
Porém, o que se acaba de afirmar não quer significar que a questão não pudesse colocar-se, como de resto se colocou, em sede de sentença, na qual a mesma foi apreciada e, em consequência de recurso interposto pelo arguido, foi a mesma decidida por esta Relação por acórdão proferido nos autos transitado em julgado. E a solução neste encontrada foi que a notificação do arguido foi de facto omitida; e que não havia, com esse fundamento, motivo para absolvição do arguido, tendo apenas ocorrido uma irregularidade processual em conformidade com o disposto no artigo 123º do CPP, suscetível de reparação, a qual foi mandada reparar, ordenando-se que, na primeira instância se procedesse à notificação omitida.
Por conseguinte, no caso concreto destes autos, esta questão é insindicável, não podendo o recorrente pretender ressuscitá-la, introduzindo novamente a sua discussão, com a mesma ou diferente argumentação, por via do presente recurso, na medida em que se mostra decidida por acórdão proferido nos autos transitado em julgado.
Nesta conformidade, improcede também este segmento do recurso, não podendo afirmar-se ter sido violado o contraditório e as garantias de defesa do arguido, não tendo, por conseguinte, sido violadas as normas indicadas pelo recorrente.
3.3- A questão da invocada prescrição do procedimento criminal
O recorrente suscitou a questão da prescrição do procedimento criminal quanto ao crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social de que foi acusado e pelo qual foi condenado em primeira instância.
Tal questão foi previamente suscitada pelo arguido em primeira instância, tendo a mesma sido apreciada na sentença recorrida, nos termos seguintes (transcrição):
“Veio o arguido AA, entretanto, invocar a prescrição do procedimento criminal, por entender que o crime só se mostra perfectibilizado, rectius consumado, depois da notificação para pagamento a que alude o art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT.
Cumpre decidir.
Nos termos do disposto no art. 118.º, n.º 1, do Cód. Penal, «o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: … c) Cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos;…».
Ora, como decorre da qualificação jurídica plasmada na acusação deduzida – com a qual se concorda – tratando-se no caso da prática de um crime continuado, o início de contagem do prazo de prescrição ocorre desde o dia da prática do último acto, ou seja, no caso, desde o dia 20/12/2015, data em que devia ter sido paga a prestação referente às cotizações/contribuições respeitantes ao mês de Nov. de 2015 – art. 119.º, n.º 2, al. b), do Cód. Penal (ver, neste sentido, AUJ n.º 2/2015, publicado no DR n.º 35 SÉRIE I, de 19/02/2015).
Sucede que, ademais, o arguido foi declarado contumaz em 02/05/2019 – cfr. fls. 206 – razão pela qual se interrompeu o prazo de prescrição (art. 121.º, n.º 1, al. c), do Cód. Penal), mostrando-se suspenso o prazo até à constituição do arguido, em nome próprio e não da sociedade arguida, em 26/11/2021 (cfr. fls. 214/215), altura em que cessou a contumácia.
Finalmente, foi agendada data para a realização do julgamento em 17/01/2022.
Aqui chegados, verifica-se que até à primeira interrupção da prescrição, em 02/05/2019, ainda não haviam decorridos os 5 anos.
Entretanto, o prazo de prescrição manteve-se suspenso até 26/11/2021, voltando a interromper-se em 17/01/2022, com a notificação do despacho que designa o dia para a realização da audiência de julgamento, i.e., nunca ultrapassando os 5 anos contados de cada uma das interrupções.
Em qualquer caso, verto é que ainda não decorreu o prazo a que alude o n.º 3 do art. 121.º do Cód. Penal, por força do período de suspensão da prescrição tal qual mencionado.
Não se mostra, visto isso, prescrito o procedimento criminal.”
Vejamos.
O arguido foi acusado e condenado em primeira instância pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p, pelos arts. 107.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, do RGIT e 30.º, n.º 2, do Cód. Penal.
A prescrição do procedimento criminal tem o seu fundamento em que o decurso de um determinado período de tempo sobre a prática do facto o torna não carenciado de punição, não conformando uma causa de exclusão, nem da ilicitude, nem da punibilidade, mas sim uma causa de afastamento da punição[5].
No que concerne à questão de saber quando é que o crime imputado ao arguido/recorrente se consumou - o que releva para o efeito de determinação da data do início do prazo de prescrição do procedimento criminal, em conformidade com o disposto no artigo 119º do CP - importa ter presente que, in casu, está em causa um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada. E, estando em causa um crime continuado, o prazo de prescrição do procedimento criminal só corre desde a data da prática do último ato, cfr. artigo 119º, nº 2 al b) do CP.
Nos termos do disposto no artigo 119º, nº 1 do CP “O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.”.
Por isso, importa dar resposta à questão de saber quando, ou seja, em que data, se consumou o crime imputado ao arguido.
A esta questão, foi dada resposta no acima citado AUJ nº 2/2015, nos termos do qual «No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, número 1, e 105º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5º, número 2, do mesmo diploma».
Não desmerecendo os votos de vencido constantes do referido aresto uniformizador, e pese embora alguma dissonância que ainda persiste na jurisprudência em prejuízo do princípio da igualdade e da segurança jurídica[6], não se vislumbram fundamentos para divergir da jurisprudência assim fixada, que aqui se perfilha.
Aliás, esta jurisprudência vem no seguimento do entendimento maioritário da jurisprudência, de que é exemplo o Ac. RP de 10.10.2012, 163/10.7TAMCD.P1, disponível em www.dgsi.pt, no qual se refere que:
“ O decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação, estabelecido na norma remissiva do art. 105º, nº 4 do RGIT, é genericamente entendido como uma condição de punibilidade (ou causa de exclusão da punibilidade).
No RGIT anotado por Lopes de Sousa e Simas Santos, 2ª Ed., 2003, pág. 645 e segs, é estabelecido o seguinte comentário, à previsão do art. 107º do RGIT: “o art. 107º «ocupa-se» do abuso de confiança contra a Segurança Social, que é cometido pela entidade empregadora, que tendo feito a dedução do montante da contribuição para a Segurança Social, do valor das remunerações dos trabalhadores, não as entregar, total ou parcialmente, à Segurança Social, decorridos mais de 90 dias do termo do prazo legal de entrega da prestação. O nº 4 do art. 105º, aqui aplicável, veio estabelecer uma condição de punibilidade: o decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação”.
Igual conceptualização mereceu a alteração introduzida pela Lei 53-A/2006 de 29 de Dezembro, que acrescentou ao nº 4 do art. 105º do RGIT uma outra alínea, dessa alteração resultando que os factos descritos no nº 1 do art. 107º só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, não for paga, acrescida dos juros respetivos, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
Essa alteração foi entendida como introduzindo uma condição adicional de punibilidade (ou, noutra terminologia, cláusula adicional de exclusão da punibilidade), que não contendia com o momento da consumação do crime, daí que não se pudesse considerar que essa alteração legislativa tivesse retirado carácter criminoso à conduta, posição que foi consagrada no Acórdão de fixação da Jurisprudência 6/2008 de 09/04/2008”.
Assim, não assiste razão ao recorrente quanto refere, nomeadamente, que a constituição de arguido e a contumácia não podiam ter lugar, porque antes de terminado o prazo de 30 dias sobre a notificação mandada efetuar por este Tribunal da Relação ao abrigo do disposto no artigo 105º, nº 4 al. b) do RGIT, o qual terminou em 03.03.2025, o arguido não havia cometido qualquer crime.
Nesta medida na sentença recorrida, decidiu-se, e bem, que, estando em causa a prática de um crime continuado, o prazo de prescrição do procedimento criminal só corre desde o dia da prática do último ato, cr. artigo 119º, nº 2 al. b) do CPP.
No caso, a data de 20.12.2015 corresponde à data da prática do último ato, sendo esta a data da consumação do crime imputado.
Por outro lado, é de cinco anos o prazo de prescrição, havendo ainda que ter em consideração as causas de suspensão e de interrupção da prescrição do Código Penal, em conformidade com o disposto no artigo 21º do RGIT.
As causas de suspensão e de interrupção da prescrição do procedimento criminal são apenas as previstas na lei, cfr. artigos 120º e 121º do CP, sendo que a notificação do arguido para proceder ao pagamento não constitui causa de suspensão da prescrição. Por isso, não tem fundamento legal a afirmação do recorrente de que “ O recorrente foi notificado para proceder ao pagamento da dívida em 03 de Fevereiro de 2025, o que suspende o prazo de prescrição.”, cfr. conclusão 9.
Acresce que, importa não olvidar, que a prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão, cfr. artigo 120º, nº 6 do CP; e que depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição, cfr. artigo 121º, nº 2 do CP.
No caso, no que concerne às causas de interrupção e de suspensão do procedimento criminal verifica-se, que:
Em 02.05.2019, o arguido foi declarado contumaz, o que constitui causa de interrupção da prescrição, sendo que a vigência da contumácia constitui causa de suspensão da prescrição, não podendo, porém, a suspensão ultrapassar o prazo normal da prescrição, no caso cinco anos, cfr. respetivamente os artigos 121º, nº 1 al. c) e artigo 120º, nº 1 al. c) e nº 3, ambos do CP.
Em 26.11.2021, verificou-se a constituição de arguido, o qua constitui causa de interrupção da prescrição, cfr. artigo 121º, nº 1 al. a) do CP, devendo entender-se que nesta data cessou a suspensão da prescrição resultante da vigência da declaração de contumácia.
Em 08.12.2021, o arguido foi notificado da acusação, o qual constitui simultaneamente causa de suspensão e de interrupção da prescrição, não podendo o prazo da suspensão ultrapassar 3 anos, artigos 120º, nº 1 al. b) e nº 2 e 121º, nº 1 al. b), ambos do CP.
Em 20.05.2022, o arguido foi notificado da sentença condenatória (posteriormente revogada por acórdão deste Tribunal da Relação, não tenho consequentemente a mesma transitado em julgado), o que constitui causa de suspensão da prescrição, não podendo o prazo da suspensão ultrapassar 5 anos, cfr. artigo 120º, nº 1 al. e) e nº 4 do CP
Assim, tendo em consideração a data a partir da qual se inicia a contagem do prazo (normal) de cinco anos de prescrição do procedimento criminal e os referidos atos interruptivos e suspensivos da prescrição, por forma linear se conclui que, entre eles, nunca o referido prazo foi ultrapassado. Por outro lado, considerando os últimos atos com efeito interruptivo e suspensivo da prescrição, verifica-se que o aludido prazo de prescrição está longe de ser ultrapassado.
Acresce que também não se mostra ultrapassado o prazo máximo de prescrição do procedimento criminal, ou seja, o prazo normal da prescrição, acrescido da metade desse prazo e ressalvado o tempo de suspensão da prescrição, o que no caso, tendo em conta as diferentes causas de suspensão da prescrição, é de 15 anos, 6 meses e 6 dias, cfr. nº 3 do artigo 121º do CPP.
Em suma, o presente recurso improcede na sua totalidade.
III – DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:
1) Decide-se, ao abrigo do disposto nos artigos 410º, nº 2 al. a) e 431º, al. a), ambos do CPP, eliminar a al. o) dos factos provados da sentença recorrida, a qual passará a ter a seguinte redação:
“o) Em 03.02.2025, o arguido AA foi notificado, a título pessoal, para proceder ao pagamento, em 30 dias, dos valores referidos em f), acrescidos dos montantes atinentes aos respetivos juros e coima, nos termos e para efeitos do disposto no nº 4 al. b) do artigo 105º do RGIT, e não efetuou qualquer pagamento.” 2) Quanto aos mais, julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, assim confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo arguido, com taxa de justiça que se fixa em 3 Ucs – artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C.P.P. e artigo 8º, nº 9 do R.C.P. e tabela III anexa a este último diploma legal. Texto integralmente elaborado pelo seu relator e revistos por todos os seus signatários – artigo 94º, nº 2 do CPP, encontrando-se assinado eletronicamente na 1ª página.
Notifique.
Guimarães, 28 de outubro de 2025
Armando Azevedo (Relator)
João de Matos - Cruz Praia (1º Adjunto)
António Teixeira (2º Adjunto)
[1] De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P.. [2] In DA PUNIBILIDADE NOS CRIMES DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL E DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL Revista Julgar, nº 11, 2010. [3] In Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2ª ed., pág. 791. [4] In Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, tomo III, anotação ao artigo 283º do CPP, pág. 1163 [5] Cfr. F. Dias, Direito Penal Português, As Consequências do Crime, Editorial Notícias, pág. 702. [6] Assim, vide, v.g., Ac. RP de 11.10.2023, processo 1092/19.4T9PRD.P1, disponível em www.dgsi.pt