Sumário elaborado pela relatora (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
I – Uma vez que o art. 12.º-A do Código do Trabalho não se reporta nem a condições de validade do contrato de trabalho, nem a efeitos de factos ou situações anteriores à entrada em vigor deste artigo, o mesmo aplica-se a relações contratuais iniciadas em data anterior à sua entrada em vigor, desde que tais relações ainda subsistam nessa data.
II – Mostra-se preenchida a al. a) do n.º 1 do art. 12.º-A do Código do Trabalho quando é a empresa Ré quem determina unilateralmente os critérios de fixação da remuneração do estafeta, que lhe é paga semanalmente.
III – Mostra-se preenchida a al. b) do n.º 1 do art. 12.º-A do Código do Trabalho quando é a empresa Ré quem estabelece determinadas regras, de forma unilateral, relativas à prestação da atividade do estafeta, exigindo ainda o cumprimento de normas específicas para que este se possa inscrever na plataforma e impondo também a sujeição do estafeta a determinadas atividades de fiscalização durante a sua atividade, sendo ainda a Ré quem seleciona as propostas de entrega que aparecem no écran do telemóvel do estafeta, indicando-lhe os locais de recolha e de entrega.
IV – Mostra-se preenchida a al. c) do n.º 1 do art. 12.º-A do Código do Trabalho quando é a empresa Ré quem controla, periodicamente, o estado de higiene e de conservação da mochila térmica usada pelo estafeta; e quem controla, através de um sistema de reconhecimento facial instalado na aplicação, a identidade do estafeta, durante o exercício da sua atividade.
V – Mostra-se preenchida a al. e) do n.º 1 do art. 12.º-A do Código do Trabalho quando é a empresa Ré quem tem a autoridade disciplinar para excluir, de forma temporária ou definitiva, a conta do estafeta, sempre que entenda que o mesmo não cumpriu os termos e condições que assumiu ao subscrever o contrato que lhe foi unilateralmente apresentado.
VI – Mostra-se preenchida a al. f) do n.º 1 do art. 12.º-A do Código do Trabalho quando é a empresa Ré quem gere a aplicação informática Uber Eats que o estafeta teve de instalar no seu telemóvel, aplicação informática essa que não só é um instrumento de trabalho fornecido pela Ré ao estafeta, como é o instrumento de trabalho mais importante deste, sem o qual a sua atividade não podia ser realizada.
VII – Estando preenchidas cinco presunções legais, nas quais especificamente se comprovou que o estafeta prestava uma atividade para a Ré, em troca de uma retribuição paga com caráter regular, encontrando-se sujeito a subordinação jurídica, quer através das normas unilateralmente impostas pela Ré quanto ao modo de exercício da atividade, quer através dos poderes exercidos pela Ré de controlo e supervisão da atividade efetuada, quer através da autoridade disciplinar consubstanciada na possibilidade de a Ré poder excluir, temporária ou definitivamente, a conta do estafeta, é de concluir pela existência de um contrato de trabalho.
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1
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Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
O Ministério Público intentou ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, nos termos dos arts. 186.º-K e seguintes, do Código de Processo do Trabalho e art. 15.º-A, da Lei n.º 107/2009, de 14-09, na redação conferida pela Lei n.º 13/2023, de 03-04, contra a Ré “Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda.”2, solicitando, a final, que a ação seja julgada procedente, por provada, e, em consequência, se reconheça a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre a Ré “Uber Eats” e o trabalhador AA,3 com antiguidade reportada a 01-06-2019.
…
A Ré “Uber Eats” veio contestar, pugnando pela absolvição da Ré da instância por procedência da exceção dilatória atípica derivada da anulabilidade da participação efetuada pela ACT aos serviços do Ministério Público; ou, subsidiariamente, a improcedência do pedido, por não provado; ou, subsidiariamente, a improcedente do pedido, por ilisão das presunções de existência de contrato de trabalho previstas no art. 12.º, n.º 1, e 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho.
…
Proferido despacho saneador, foi fixado provisoriamente o valor da ação em €2.000,00, foi julgada não verificada a exceção dilatória inominada e foi agendada a data do julgamento.
…
Realizado o julgamento, foi proferida, em 14-11-2024, a respetiva sentença, com o seguinte teor decisório:
Face ao exposto, julgo a presente acção procedente e, em consequência, declaro a existência de um contrato de trabalho entre AA e a R. Uber Eats Portugal Unipessoal Lda., com a início de vigência reportado a 31/05/2021.
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Comunique à A.C.T. e ao I.S.S. (art. 186.º-O n.º 9 do Código de Processo do Trabalho).
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Valor da acção: 2.000,00 €.
Custas a carga da R.
Registe e Notifique.
Dê baixa
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Não se conformando com a sentença, veio Ré “Uber Eats” interpor recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:
1) O art. 186-Q n.º 2 do CPT refere que o valor da causa é sempre fixado a final pelo juiz tendo em conta a utilidade económica do pedido, mas embora não esteja em causa o pagamento de uma quantia, está em causa o reconhecimento da existência de contrato de trabalho.
2) Estão em causa na ação de reconhecimento de contrato de trabalho interesses do prestador, relacionados com valores pecuniários, quanto aos quais não é possível determinar, com segurança, qual a sua duração nem montante, mas também o interesse imaterial de segurança no emprego (art. 53 da CRP), relacionado com o interesse do Estado em combater o fenómeno dos “falsos recibos verdes”.
3) Na fixação do valor da ação, a sentença recorrida deveria ter atendido em especial o art. 303 n.º 1 do CPC, que refere que, se estiverem em causa interesses imateriais, a ação é de valor equivalente à alçada da Relação e mais €0,01.
4) Deverá, pois, ser atribuída à ação o valor de €30.000,01 (art. 44 n.º 1 da Lei n.º 62/2013).
5) Como se evidencia em virtude das presentes alegações, existem factos que foram erradamente dados como provados e factos relevantes para a decisão da causa que se provaram e que deveriam, por isso, ser dados como provados, não tendo a sentença recorrida feito um correto uso dos poderes conferidos ao juiz no âmbito da decisão da matéria de facto, previstos no artigo 607º, nos 4 e 5, do CPC .
6) Nesse sentido, deve alterar-se a decisão sobre a matéria de facto, em linha com o preconizado no Recurso da matéria de facto, que por economia processual aqui não se reproduz; em resumo:
7) Conforme esclarecido pela testemunha BB, gestor de operações da Recorrente, a atividade da Recorrente não se limita à utilização dos serviços de estafetas registados na aplicação, uma vez que qualquer cliente pode optar por recolher pessoalmente o produto previamente adquirido (takeaway), para além de existirem diversos restaurantes registados na plataforma que dispõem da sua própria rede de estafetas, podendo prescindir dos serviços de estafetas registados na plataforma (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 11:42 e fim às 12:54: 01m44s a 03m14s).
8) Assim, o ponto 3 dos Factos Provados deve ser alterado e passar a ter o seguinte teor: “A plataforma efetua a gestão de um negócio que estabelece e facilita a ligação entre um cliente que deseja adquirir bens e que os mesmos lhe sejam entregues, ou optem por eles próprios fazerem a recolha, e um comerciante que deseja vender os seus produtos, sendo que os estabelecimentos comerciais podem receber pedidos via plataforma e optar por recorrer aos seus próprios serviços de entrega, sem se conectar, via aplicação, com os utilizadores que fazem transportes. Caso o cliente não use a opção “takeaway” e o estabelecimento comercial não tenha os seus próprios serviços de entrega, a entrega pode ser efetuada por um estafeta que se registe para o efeito na plataforma, a quem a R. paga uma quantia pecuniária conforme a distância percorrida”.
9) Não resultou provado que o prestador de atividade “informe” a Recorrente sempre que inicie a atividade de estafeta nem se consegue compreender de onde o Tribunal a quo extraiu tal conclusão que consta do Facto Provado 16.
10) O Tribunal a quo afirma ter formado a sua convicção no que concerne a este facto no depoimento do prestador de atividade, mas, analisado o mesmo, constata-se que o prestador de atividade nada disse sobre esta matéria.
11) Embora se possa considerar quase como um facto notório que existe um login (como existe em qualquer aplicação), a Recorrente não pode aceitar que o Tribunal a quo dê como provado que através do login o prestador de atividade informa a Recorrente, o que transmite uma ideia de obrigação, de organização da atividade e de disponibilidade de mão-de-obra, o que não corresponde à verdade.
12) Nestes termos, deve o ponto 16 dos Factos Provados ser eliminado do elenco de factos dados como provados.
13) O Tribunal a quo afirma ter formado a sua convicção relativamente aos factos 18, 19, 20 e 21 na inquirição do prestador de atividade visado nos presentes autos.
14) Todavia, em nenhum momento da sua inquirição o Sr. AA, prestador de atividade visado, referiu ou sequer abordou qualquer regra que deva seguir quando o cliente não se encontra no ponto de entrega ou qualquer outra regra ou instrução relativamente à atividade prestada, pelo que não consegue entender a Recorrente como foram estes factos dados como provados.
15) Em face do exposto, os pontos 18, 19, 20 e 21 dos Factos Provados deverão ser dados como não provados.
16) Também relativamente ao facto provado 27, o Tribunal a quo afirmou ter formado a sua convicção no depoimento do prestador de atividade visado nos presentes autos.
17) Todavia, em momento algum da sua inquirição o prestador de atividade referiu ser contactado pela app ou que esta lhe solicite esclarecimentos sobre o motivo de uma qualquer paragem, antes pelo contrário.
18) Na verdade, o que o prestador de atividade explicou a este propósito foi simplesmente que não consegue desempenhar a sua atividade com a localização desligada, o que é normal atendendo que o GPS tem como propósito uma alocação eficiente dos pedidos (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 24m59s a 25m12s e 52m43s a 52m:51s), sendo certo que resultou provado que o prestador de atividade pode prestar a sua atividade sem ter o sistema de GPS ligado, após a aceitação do pedido (Facto Provado 26).
19) Para além disso, e com relevância para a discussão em apreço, o Sr. AA explicou que já efetuou entregas para várias plataformas ao mesmo tempo, demorando mais tempo para completar determinada entrega para a plataforma da Recorrente, sendo que nunca teve qualquer consequência devido a esse facto (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 22m34s a 23m51s), o que claramente demonstra que o facto provado em causa não tem qualquer encontro com a realidade.
20) Nestes termos, deve o ponto 27 dos Factos Provados ser dado como não provado.
21) O Sr. AA referiu, de facto, que recebia 1,28€ por recolha, 0,80 € por quilómetro e 0,48€ pela entrega, mas esclareceu igualmente que (i) esta informação foi lhe transmitida em 2019, quando era trabalhador de uma empresa chamada “LCO” e fez uma formação nas instalações da Uber enquanto trabalhador dessa empresa (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 40m29s a 41m14s), e (ii) que esta discriminação de valores existiu apenas até ao ano de 2021 (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 40m34s a 40m46s).
22) Em face do exposto, o Ponto 30 dos Factos Provados deve ser alterado e passar a ter o seguinte teor: “De 2019 até pelo menos 2021, a taxa de recolha teria o valor de 1,15 €, os quilómetros percorridos o valor de 0,72 €/cada e a taxa de entrega tem o valor de 0,28 €.”
23) Relativamente aos factos provados 37, 38 e 58, o prestador de atividade clarificou que atualmente o cliente classifica apenas o pedido como um todo e não a atividade do prestador de atividade (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 29m56s a 30m44s e 56m10s a 57m04) e que não existem atualmente quaisquer avaliações na plataforma (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 46m22s a 46m59s).
24) Por outro lado, a testemunha BB explicou que no final de cada entrega o cliente pode colocar um like ou um dislike e que a única razão pela qual esse sistema existe é para reportar que o prestador de atividade que fez a entrega não corresponde à fotografia e, portanto, como nós não temos uma equipa local de engenharia que nos permita criar só um produto que é adaptado a Portugal (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 11:42 e fim às 12:54: 36m59s a 38m17s).
25) Em face do exposto, os pontos 37 e 38 dos Factos Provados devem ser dados como não provados e o ponto 58 dos Factos Provados deve ser alterado e passar o seguinte teor: “Os utilizadores clientes finais podem colocar um like ou um dislike, o que não em qualquer propósito avaliativo, servindo apenas para reportar quando que o prestador de atividade que fez a entrega não corresponde à fotografia associada à sua conta e não está em causa um processo de substituição permitida pela aplicação”.
26) Discutindo-se na presente ação a eventual natureza laboral do contrato celebrado entre a Recorrente e o prestador de atividade visado, não pode dar-se como provado no ponto 41 que o prestador de atividade pretende terminar “a sua jornada de trabalho”, por tal envolver o thema decidendum.
27) Assim, o ponto 41 dos Factos Provados deve ser alterado e passar a ter o seguinte teor: “Quando pretende terminar a prestação da sua atividade, AA apenas tem de fazer logout na App”.
28) O ponto 45 dos factos provados deve ser lido em conjugação com os pontos 43 e 44, sendo que a forma como este facto está escrito pode transmitir a ideia de que o prestador de atividade apenas presta atividade para a Recorrente, o que não corresponde à verdade, já que o prestador de atividade foi muito claro ao referir que sempre prestou atividade para a Uber, para a Glovo e para a Bolt (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 19m05s a 20m04s).
29) Assim, o ponto 45 dos Factos Provados deve ser alterado e passar a ter o seguinte teor: “Actualmente, AA já não trabalha na Autoeuropa, mas sim no ramo dos seguros, também a tempo inteiro, continuando a realizar a actividade de estafeta (para a Uber, Glovo e Bolt) após o seu horário de trabalho”.
30) Em face dos autos, o ponto 48 dos Factos Provados trata-se de matéria genérica e conclusiva e sobre a qual não incidiu (nem podia incidir, pois que se tratam de alegações genéricas e conclusivas) qualquer discussão.
31) Em todo o caso, é matéria não provada, pois simplesmente nenhuma testemunha prestou depoimento sobre a mesma, bem assim, não existe qualquer documentação junta aos autos que permita dar tal facto como provado, antes pelo contrário.
32) Desde logo, é o próprio Tribunal a quo que dá como provado que na plataforma o prestador de atividade é livre de decidir a que clientes e com que restaurantes quer prestar a sua atividade (Facto Provado 61), pelo que a parte final do Facto Provado 48 está errada.
33) Por outro lado, resultou provado que o Sr. AA dispõe de uma estrutura própria composta por 3 estafetas que prestam atividade sob a sua égide (Facto Provado 49).
34) Assim, o facto provado 48 deve ser eliminado do elenco de factos dados como provados.
35) Refere o Tribunal a quo que a sua convicção relativamente a aos factos 52 e 56 assentou no depoimento da testemunha BB, devidamente relacionados com os termos e condições.
36) Ora, ouvido na íntegra o depoimento da referida testemunha, arrolada pela Recorrente, não se vislumbra em que passagem se fundou o douto Tribunal a quo para dar estes factos como provados.
37) De facto, questionado sobre quem é que decide como é que a entrega deve ser efetuada, a referida testemunha explicou que é o próprio prestador de atividade que escolhe como executar a sua atividade, podendo este aceder, querendo, a algum pedido específico de determinado cliente, como por exemplo subir até determinado andar num prédio sem elevador, bem assim, que a Recorrente não disponibiliza aos prestadores qualquer tipo de orientação sobre como prestar a atividade (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 11:42 e fim às 12:54: 23m20s a 24m59s).
38) A mesma testemunha esclareceu ainda o Meritíssimo Juiz que pode haver determinada expectativa de determinado cliente, mas que mesmo assim não existe qualquer ordem ou instrução por parte da Recorrente no sentido de ir ao encontro dessa determinada expectativa (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 11:42 e fim às 12:54: 1h05m33s a 01h09m27s).
39) Assim, não compreende a Recorrente no que se baseou o douto Tribunal a quo para dar esta matéria como provada, na certeza de que o prestador de atividade nada referiu sobre qualquer tipo de instruções ou ordens que devam ser acatadas no desempenho da sua atividade.
40) Em face do exposto, os pontos 52 e 56 dos factos provados devem ser dados como não provados.
41) O artigo 111.º da contestação resulta provada da análise do Certificado de Facto junto aos autos por requerimento datado de 15 de maio de 2024, com a ref. Citius 8009936, em particular do seu ponto 2.3.3.1 com o título “Deixar de receber ofertas de entrega de determinado cliente ou comerciante”, de onde consta “No menu Ajuda, no separador Ajuda com a minha viagem, verifiquei que, entre as várias opções, escolhendo a opção Problema com cliente de entrega e Problema com o comerciante de entrega, é possível deixar de receber ofertas de entrega de um cliente ou comerciante, clicando nessa opção (cfr. Imagens 38 a 42)”.
42) Para além disso, esta matéria foi confirmada pela testemunha BB, que explicou que os prestadores de atividade têm total liberdade para bloquear determinados clientes ou comerciantes com quem não desejem contactar e independentemente do motivo que os leve a tomar tal decisão (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 11:42 e fim às 12:54: 36m59s a 38m17s), pelo que o facto constante do artigo 111.º da Contestação deve ser aditado à matéria de facto dada como provada.
43) O facto constante do artigo 112.º da contestação foi confirmada pelo prestador de atividade visado, o Sr. AA (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 38m35s a 38m45s) e também pelo Sr. BB, testemunha arrolada pela Recorrente, (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 11:42 e fim às 12:54: 35m31s a 36m10s), pelo que deve ser aditada ao acervo de factos dados como provados.
44) Questionado diretamente a este propósito, o prestador de atividade visado esclareceu que todos os equipamentos que utiliza na prestação da atividade (mochila térmica, mota, capacete, telemóvel) pertencem ao mesmo (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 44m23s a 44m46s), o que vai de encontro ao que consta da cláusula 5.d. e g. dos termos e condições aplicáveis e juntos com a contestação como doc. 7., pelo que o facto contante do artigo 113.º da contestação deve ser aditado ao acervo de factos dados como provados.
45) O prestador de atividade visado foi perentório ao afirmar que nunca esteve sujeito a qualquer horário e que se liga e desliga quando quer (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 05m34s a 06m16s), pelo que o facto constante do artigo 114.º da contestação deve ser aditado à matéria de facto dada como provada.
46) A utilização de uma mochila isotérmica prende-se com exigências de segurança alimentar. Para além de decorrer do manual de boas práticas publico pela AHRESP junto aos autos, o qual foi elaborado em cumprimento dos artigos 7.º a 9.º do Regulamento (CE) n.º 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativo à higiene dos géneros alimentícios, tal exigência decorre, ainda, do Capítulo IV do Anexo II desse mesmo regulamento europeu.
47) Para além disso, este facto foi confirmado pelo próprio prestador de atividade (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 49m50s a 50m30s), pelo que o facto constante do artigo 218.º da contestação deve ser aditado ao elenco de factos dados como provados.
48) Os artigos 280.º e 281.º da contestação foram confirmados, de forma muito clara, pela testemunha BB (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 11:42 e fim às 12:54: 32m38s a 34m18s), pelo que devem os factos constantes dos artigos 280.º e 281.º da contestação ser aditados ao elenco de factos dados como provados.
49) O Tribunal a quo deu como provado que o prestador de atividade pode seguir o percurso que entender (Factos Provados 72 e 73) e que pode inclusivamente decidir não utilizar qualquer GPS (Facto Provado 26), mas não deu como provado que tem igualmente liberdade para utilizar, querendo, o GPS da sua preferência, como confirmado pela testemunha BB (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 11:42 e fim às 12:54: 16m42s a 17m17s), pelo que deve o facto constante do artigo 302.º da contestação ser aditado aos factos dados como provados.
50) O prestador de atividade confirmou que pode utilizar qualquer mochila térmica da sua preferência (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 23m51s a 24m30s), o que deve ser aditado à factualidade dada como provada tal como consta do art. artigo 368.º, al. f), da contestação.
51) De acordo com o disposto 35.º, n.º 1 da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, que estabeleceu o artigo 12.º-A do Código do Trabalho, “Ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, com a redação dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento”.
52) Estando em causa uma relação jurídica cuja execução perdura ininterruptamente durante certo período, e não havendo mudança na configuração dessa relação, aplica-se, no toca à sua qualificação, a lei laboral vigente à data do seu início, uma vez que as leis que regulam a constituição (ou processo formativo) duma situação jurídica não podem afetar as situações jurídicas anteriormente constituídas (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de janeiro de 2019, proferido no processo n.º 457/14.2TTLSB.L2.S1).
53) A regra estabelecida no artigo 35.º da lei acima referida é idêntica à do artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 99/2003 que aprovou e publicou o Código do Trabalho (de 2003), que estabeleceu pela primeira vez uma presunção de existência de contrato de trabalho na legislação laboral, e corresponde, ipsis verbis, ao artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro que aprovou e publicou o atual Código do Trabalho (de 2009), e que introduziu a presunção geral do contrato de trabalho atualmente em vigor, do artigo 12.º (em 2009).
54) Estamos, nesta matéria, perante posição uniforme e consolidada do STJ, conforme se pode ler, designadamente, no sumário do acórdão datado de 04 de julho de 2018, processo n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1 (disponível em www.dgsi.pt).
55) Não se extrai da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração da relação da Recorrente com o prestador de atividade visado e que iniciou a sua relação com a Recorrente em data anterior a 1 de maio de 2023, pelo a presunção a aplicar será a do artigo 12.º do CT e não a do artigo 12.º-A do mesmo diploma.
56) Nessa medida, não se vislumbra que alguma das características previstas nas várias alíneas do indicado artigo 12.º do CT esteja verificada, antes pelo contrário.
57) O Tribunal a quo entendeu que aplicando o artigo 12.º do Código do Trabalho apenas a característica prevista na alínea b) estaria verificada.
58) No entanto, os instrumentos e equipamentos de trabalho não pertencem à Recorrente, não fazendo sentido qualificar uma plataforma digital como um instrumento de trabalho.
59) Assim, não se verifica a presunção da existência de contrato de trabalho, pelo que, aplicando-se o artigo 12.º do CT, deve a sentença recorrida ser revogada, julgando-se, consequentemente, o pedido de reconhecimento de contrato de trabalho improcedente.
60) Sem prejuízo, caso assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio de concebe, cumpre referir que não resultaram provados factos que permitam despoletar a presunção de laboralidade do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, como erradamente decidiu o Tribunal a quo.
61) No que concerne à retribuição (al. a)) entendeu o Tribunal a quo simplesmente que a “Ré fixou o valor do serviço a prestar, face ao estudo de mercado que realizou”.
62) No entanto, no que concerne a esta característica, ficou provado que o prestador de atividade pode definir um valor mínimo abaixo do qual não deseja receber propostas de serviços de entrega e que os prestadores de atividade são livres de recusar toda e qualquer proposta apresentada – Factos Provados 51, 67 e 68.
63) Nunca é demais fazer consignar que a definição da taxa mínima por quilómetro é uma faculdade atribuída aos prestadores de atividade, os quais são livres de definir o valor mínimo a partir do qual pretendem receber ofertas, ou seja, os prestadores de atividade são livres de definir o preço mínimo a partir do qual aceitam prestar a sua atividade, mas também são livres de não o fazer e prestar a sua atividade de acordo com as propostas que são apresentadas – a liberdade é, também nesta matéria, total.
64) Com o desiderato de desvalorizar o facto de existir a possibilidade de os prestadores de atividade definirem uma taxa mínima por quilómetro, argumentou o Tribunal a quo que “o estafeta não está sozinho. Se ele não quiser receber, aceitar ou recusar uma proposta no valor de X, ao seu lado estaraão outros 10, 20, 30 que esperam ansiosamente que a mesma lhes seja proposta, pois aceitá-la-ão de imediato. Ou seja, o seu poder negocial é quase nenhum, se não for nulo”.
65) No setor de atividade em escrutínio, como em qualquer outro, valem as regras do mercado concorrencial.
66) Ao defender este tipo de argumentação, o Tribunal a quo está, no fundo, a defender que quem fixa o preço do serviço é a existência de um mercado concorrencial e não a Recorrente, pelo que, por esse motivo, não pode funcionar esta parte da presunção (da fixação da retribuição), como incorretamente interpretou o Tribunal a quo – ou o preço é fixado pelo que dita o mercado concorrencial ou é fixado pela Recorrente, não pode é ser fixado simultaneamente por ambas.
67) Acresce que a alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho refere-se a “retribuição” e não a taxa de entrega ou preço do serviço de entrega. Trata-se de um conceito definido no Código do Trabalho, no artigo 258.º, e que consiste numa contrapartida pela trabalho/atividade prestada.
68) O elemento copulativo «e» inserido pelo legislador na alínea a) reconduz-nos à convicção de que pretendeu que tal pressuposto se baseasse na inflexibilidade da componente remuneração, ou seja, que esta fosse fixada com a intervenção exclusiva da plataforma, pelo menos em termos de moldura de retribuição, e não numa flexibilidade mitigada, em que o estafeta tem o poder de impor limites mínimos, como sucede nas relações em apreço.
69) Por fim, e como já visto e demonstrado, os prestadores de atividade têm sempre a possibilidade de recusar as propostas que lhe são apresentadas, o que não pode deixar de ser vista como uma forma de negociação, na medida em que, com essa recusa, o prestador da atividade não está a aceitar o preço proposto e, assim, está a sinalizar que só faz a entrega por um preço mais elevado, por não concordar com o preço originalmente proposto.
70) A retribuição por cada serviço não é, pois, fixada unilateralmente pela Recorrente, antes é proposta por esta ao prestador da atividade, que pode recusá-la, incluindo pelo simples – e legítimo – motivo de não concordar com o preço proposto. Trata-se de uma proposta de serviço, não de uma imposição da sua prática.
71) Podendo o estafeta recusar o serviço (incluindo, reitere-se, pelo simples motivo de não concordar com o preço proposto) já se está no domínio da possibilidade de uma negociação e, portanto, não se pode concluir que a Recorrente fixe a retribuição.
72) O prestador de atividade é remunerado pelo resultado (e tendo sempre em conta o preço mínimo que o próprio define), ou seja, é remunerado pela tarefa (que nem sequer é obrigado a aceitar), pela entrega do produto do comerciante ao cliente, e não pelo tempo que demora a concluir a entrega ou ainda pelo tempo que se encontra ligado na Plataforma, o que é incompatível com a conclusão de que há uma fixação da retribuição.
73) No que concerne ao exercício do poder de direção e de regras específicas quanto à prestação da atividade, concluiu o Tribunal a quo que resultou provado que “é a plataforma quem dá instruções ao estafeta acerca do modo como deve proceder quando o cliente não abre aporta ou não desce à porta do prédio para receber a encomenda” e, ainda, que a “R. regulou em grande medida as tarefas inerentes às entregas a efetuar pelos estafetas, desde a aceitação do pedido até à faturação do serviço prestado”.
74) Refira-se, desde logo, e como demonstrado em sede de impugnação da matéria de facto, que as alegadas instruções ao estafeta “acerca do modo como deve proceder quando o cliente não abre aporta ou não desce à porta do prédio” tratam-se de puro delírio factual, sobre a qual não incidiu qualquer discussão e que não podem, por isso, ter-se em consideração na argumentação a este respeito.
75) De igual modo, a referência à regulação das tarefas inerentes às entregas a efetuar pelos estafetas não tem qualquer suporte probatório ou factual, pelo que sempre deveria ter o douto Tribunal a quo concretizado a sua argumentação.
76) Na verdade, no que concerne ao essencial da atividade do estafeta (ato de recolha, transporte e entrega dos bens), não se pode afirmar que este receba quaisquer ordens da Recorrente, porquanto esta lhes dirige meras propostas que pode livremente aceitar, ignorar ou recusar, sendo que mesmo no envio destas propostas a Recorrente pode está condicionada por prévias decisões do estafeta, designadamente no que concerne ao valor mínimo por quilómetro a receber e possível exclusão de certos comerciantes e/ou clientes.
77) Ainda que existissem regras específicas, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, o legislador estabeleceu que tem necessariamente de existir uma direção por parte da plataforma, pelo que, falhando a prova da direção por parte da Recorrente, não pode funcionar, no caso concreto, esta característica como base para a presunção
78) Um contrato de prestação de serviço nem sequer é incompatível com a execução de certas diretivas da entidade que contrata o serviço, mas no caso dos presentes autos nem um único facto resultou provado nesse sentido, sendo que para que exista uma instrução relevante para efeitos de exercício do poder de direção, seria necessário que qualquer instrução fosse vinculativa, não tendo sido feita qualquer prova nesse sentido nem tal resultando do elenco de factos dados como provados.
79) Entendeu o Tribunal a quo, em primeira linha, que ficou demonstrado que se “o
estafeta fica muito tempo parado, a aplicação através do suporte remete ao estafeta uma mensagem, indagando o que está a suceder” e que tal é suficiente para concluir pela verificação da característica prevista na alínea c) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
80) Sucede que, compulsados os autos e analisado e analisada a prova produzida em sede de audiência de julgamento, não se alcança de onde o Tribunal a quo extraiu tal conclusão, tal como já referido e especificado – estamos, pois, perante mais um delírio factual do douto Tribunal a quo, sem qualquer suporte na realidade apurada nos presentes autos.
81) Em segunda linha, o Tribunal a quo concluiu que também “de forma indireta, através dos clientes, é conseguido esse controlo, na medida em que se diligenciou no sentido de permitir aquela localização e acompanhamento do estafeta com o cliente”.
82) Ora, note-se, desde logo, que resultou provado que o prestador de atividade pode prestar a sua atividade sem ter o sistema de GPS ligado, após a aceitação do pedido (Facto Provado 26), o que significa que tal alegado controlo “indireto” só ocorreria caso o prestador de atividade não desligasse o GPS após a recolha.
83) No mais, não se vislumbra como é que a possibilidade de o cliente acompanhar a entrega pode fazer funcionar esta característica, na medida em que o cliente não se confunde com a Recorrente, não tendo sido apurado qualquer facto que permita concluir pelo controlo da Recorrente através do cliente.
84) Sem prejuízo do exposto, cumpre assinalar que, a acolher-se esta argumentação, será obrigatório concluir que estamos perante um “controlo opcional”, porquanto o prestador de atividade pode simplesmente desligar o GPS e deixar de ser “controlado”.
85) Resultou não provado que a atuação do prestador de atividade é controlada em tempo real através de GPS (Facto não provado G) e que o estafeta deva ter a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação para permitir a sua localização e o controlo da sua execução pela Recorrente (Facto não provado H).
86) O legislador não quis estabelecer a verificação do indício com a simples existência de um sistema de geolocalização ou com a possibilidade de “controlo pelos clientes”, sendo que do elenco dos factos provados não constam sequer factos que permitam concluir que os estafetas visados foram alguma vez sujeitos a controlo e supervisão através do GPS, antes pelo contrário.
87) Não ficou, assim, demonstrada essa prova de direção e/ou controlo, razão pela qual se terá de concluir pela não verificação destas características.
88) Defende o Tribunal a quo que apesar de o estafeta se poder fazer substituir, apenas o pode fazer por acordo com outro estafeta registado na plataforma e não com qualquer pessoa escolhida pelo prestador de atividade.
89) Nos termos do artigo 3.º, n.º 5, do Regulamento (UE) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, relativo à promoção da equidade e da transparência para os utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha (Regulamento P2B), como o da Recorrente, “Os prestadores de serviços de intermediação em linha garantem que a identidade do utilizador profissional que propõe os bens ou serviços no serviço de intermediação em linha seja claramente visível”.
90) Assim, a Recorrente tem o direito, mas mais ainda o dever, de restringir o acesso à plataforma que opera àqueles que nela se registem e cumpram as suas condições de acesso, não só por razões de segurança de todos os utilizadores, mas também porque a Recorrente tem o dever de garantir que quem nela opera cumpre os requisitos legais para o exercício da atividade de estafeta.
91) Nessa medida, a Recorrente, em cumprimento da legislação aplicável, tem o dever de exibir, de forma transparente, a identidade do prestador de atividade, por forma a garantir a segurança a todos os utilizadores, para além de conduzir a uma melhor orientação do consumidor no mercado.
92) A verdade é que o prestador de atividade tem efetivamente o direito de se fazer substituir na prestação da sua atividade, o que pode fazer a qualquer momento e por qualquer razão, que não tem de justificar.
93) Não é necessário fazer um grande esforço para concluir que a substituição indiscriminada e sem qualquer critério seria suscetível de provocar efeitos bastante perversos, nomeadamente de colocar em risco a segurança de todos os utilizadores da aplicação, bem como, e sobretudo, de promover o trabalho e a imigração ilegais, o que constituiria um efeito bastante pernicioso, uma vez que é também isso que, pelo menos em parte, este tipo de ações visa acautelar.
94) Isto já aconteceu, aliás, noutros ordenamentos jurídicos, como por exemplo no Reino Unido (onde não se aplica o Regulamento P2B), onde o próprio Governo teve de intervir e requerer às plataformas digitais para deixarem de permitir a substituição não verificada de estafetas.
95) Acompanha-se, pois, o entendimento que tem vindo a ser acolhido por este Venerando Tribunal, por exemplo no Acórdão de 12 de setembro de 2024, proferido no âmbito do processo n.º 3842/23.5T8PTM.E1 (Relator: João Luís Nunes), onde conclui que “através da possibilidade de os estafetas se fazerem substituir por outras pessoas o que demonstra é que à ré não interessa a atividade em si daquele concreto estafeta, mas sim o resultado da mesma (entrega dos produtos), caraterística do contrato de prestação de serviço”.
96) O Tribunal a quo argumenta ainda relativamente a esta característica que a plataforma restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, uma vez que o estafeta não pode prestar atividade a terceiros via plataforma.
97) A este propósito cumpre referir, desde logo, que não se alcança o alcance deste argumento; seria suposto o prestador de atividade prestar atividade para a Bolt ou para a Glovo através da aplicação da Recorrente?
98) O que está em causa na referida alínea é o dever de exclusividade que poderia ser imposto por alguma plataforma digital, devendo a parte final da referida alínea ser lida da seguinte forma: “ou de prestar atividade a terceiros via plataforma digital”.
99) Interpretação contrária não faz qualquer sentido, pois, como é obvio e do mais elementar bom senso, o que se visa acautelar é o dever de exclusividade, particularmente relevante no âmbito da discussão relativa às diferenças entre relação laboral e relação de prestação de serviço.
100) No caso concreto, resultou provado que o prestador de atividade não está adstrito a qualquer obrigação de exclusividade, podendo livremente escolher por prestar a sua atividade através de outras plataformas digitais, sem recurso à aplicação ou através de qualquer outro meio que escolham, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Recorrente (Factos Provados 76 e 77).
Não se vislumbra, pois, como se pode considerar que a Recorrente restringe a autonomia do prestador de atividade.
101) Para além disso, note-se que, in casu, resultou provado que o prestador de atividade tem terceiros a prestar atividade para si através da aplicação, o que demonstra a ampla autonomia de que dispõe na utilização da mesma, sem qualquer controlo ou restrições por parte da Recorrente.
102) No mais, os Factos Provados 28, 32, 61 71 e 78 demonstram, sem margem para qualquer debate, que a Recorrente não restringe a autonomia do prestador.
103) O poder disciplinar corresponde a um poder punitivo do empregador, que visa atuar sobre condutas do trabalhador consideradas censuráveis no contexto da relação laboral estabelecida.
104) Percorrido o elenco dos factos provados, não se encontra um único facto que evidencie que a Recorrente, de algum modo, exerce ou exerceu algum tipo de poder disciplinar sobre o prestador de atividade, no sentido de ter a possibilidade de sancionar um comportamento do prestador que não respeitasse as suas obrigações/deveres ou os padrões de comportamento determinados pela mesma.
105) A argumentação do Tribunal a quo passa única e exclusivamente por transcrever cláusulas dos Termos e Condições, sendo total a ausência de factos concretos que permitam aferir qualquer ascendente disciplinar da Recorrente perante o prestador de serviço visado.
106) Sem prejuízo da ausência de factualidade concreta, sempre se refira que nenhuma das situações que se encontra elencada nos termos e condições aplicáveis consiste na violação de um dever laboral, como sejam, por exemplo, a assiduidade, pontualidade, respeito, lealdade, não concorrência.
107) Todos os contratos, sejam eles de que natureza forem, podem ser cessados e não é por isso que se qualificam como contratos de trabalho – no caso concreto, trata-se, inclusivamente, de uma prorrogativa dos serviços de intermediação em linha, que se encontra prevista no artigo 4.º do Regulamento P2B, já trazido à colação nas presentes Alegações.
108) Em disposição alguma do Regulamento P2B se verifica a referência a “relação laboral”, “entidade empregadora”, “trabalhador” ou “poder disciplinar”.
109) A razão para tal é simples: a desativação de contas, enquanto forma de reação a, por exemplo, uma situação de incumprimento dos termos e condições da plataforma, não é necessariamente, ao contrário do que o Tribunal a quo entendeu, uma manifestação do poder disciplinar.
110) Não se vislumbra, assim, como é que a Recorrente exerce poderes laborais, nomeadamente o poder disciplinar, já que, como ficou demonstrado, a desativação de contas (i) não constitui uma manifestação do poder disciplinar, (ii) não é exercida como forma de orientar comportamentos e (iii) é reconhecida pelo Direito da União Europeia como sendo uma prerrogativa das plataformas digitais perante profissionais independentes.
111) Defende o Tribunal a quo que, apesar de todos os instrumentos de trabalho utilizados pelo prestador de atividade pertencerem ao mesmo, a aplicação informática “é o instrumento essencial à dita intermediação preconizada pela R. Ora, esse instrumento pertence (propriedade industrial) e é explorado pela R.”.
112) A referência do legislador à possibilidade de exploração de instrumentos de trabalho por contrato de locação não pode deixar de ser salientada e vista como um indício de que o legislador estava claramente a pensar em bens corpóreos.
113) Interpretação contrária, para além de absolutamente ilógica, terá o seguinte resultado prático: a alínea f) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho estará sempre automaticamente verificada, sem necessidade de quaisquer indagações por parte do Tribunal, uma vez que o recurso ao artigo 12.º-A pressupõe sempre o recurso a uma plataforma digital (uma aplicação informática, um software), o que nos parece ir contra o espírito da lei, que exige a quem se socorre da presunção que faça prova dos indícios de laboralidade nela elencados.
114) Este entendimento foi acolhido pelo Tribunal da Relação de Évora que assinala que “afigura-se que para que se verifique a característica em análise exige-se mais, exige-se que alguns equipamentos/instrumentos de trabalho pertençam à ré, pois de outro modo, ou seja, se fosse suficiente para a verificação da característica que a ré gerisse uma aplicação informática, então seria redundante a existência desta característica, pois a própria atividade em causa, trabalho em plataforma digital, já conteria o requisito/caraterística da alínea f)”.
115) Por fim, o legislador quis claramente distinguir plataforma digital, onde inclui o conceito de aplicação informática (cfr. artigo 12.º-A, n.º 2 do Código de Trabalho), de equipamento e instrumento de trabalho (previsto no artigo 12.º-A, n.º 1, alínea f) do Código do Trabalho).
116) Em face do exposto, imperioso se torna concluir que também não se verifica esta característica.
117) In casu, não se verifica, como se viu, qualquer dos indícios presentes nos artigos 12.º ou 12.º-A do Código do Trabalho, não podendo, por isso, presumir-se a existência de um contrato de trabalho.
118) No entanto, caso assim não se entenda e se conclua pelo preenchimento de alguns dos pressupostos de aplicação da presunção de laboralidade, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, é certo que a Recorrente ilidiu tal presunção:
o O prestador de atividade não está obrigado a realizar qualquer número mínimo de entregas, a permanecer conectados na aplicação ou, estando conectados, a aceitar qualquer pedido – Factos Provados 28 e 61;
o O prestador de atividade decide quando se liga e desliga da plataforma e pode passar dias, semanas ou meses sem se ligar, sendo que o prestador de atividade visado já teve períodos de até 6 meses sem prestar qualquer atividade e sem qualquer consequência – Facto Provado 71;
o O prestador de atividade é livre de recusar qualquer serviço proposto, sem qualquer consequência, incluindo cancelar já depois de aceitar – Facto Provado 32;
o Para além disso, é livre de decidir não receber propostas de entrega de determinados clientes e/ou comerciantes, bloqueando os mesmos, igualmente sem qualquer consequência – Facto Provado 61 e ponto j. da impugnação da matéria de facto;
o O prestador de atividade tem ainda liberdade para indicar na Plataforma o valor abaixo do qual não pretende lhe sejam feitas solicitações – Facto Provado 51;
o Os prestador de atividade não está sujeito a qualquer tipo de exclusividade, que resulta da possibilidade de prestar o mesmo serviço para as empresas que diretamente concorrem no mercado com a Recorrente ou até mesmo a título individual em concorrência com a Recorrente ou exercer qualquer outra atividade remunerada, o que sucede in casu, já que a disponibilidade para estar a executar a prestação destes serviços apenas depende do próprio – Factos Provado 76 e 77;
o O prestador de atividade presta os mesmos serviços para plataformas concorrentes, como a Glovo e a Bolt, e tem um emprego a tempo inteiro na área dos seguros, desempenhando atividade através da plataforma Uber Eats apenas quando tem disponibilidade para o efeito – Factos Provados 43, 44 e 45;
o O prestador de atividade é livre para decidir quando, como, onde, a que clientes, com que restaurantes e por que valor, face à proposta feita, quer prestar a sua atividade de entregas – Facto Provado 61;
o O prestador de atividade tem ele próprio um registo como intermediário, através do qual tem três pessoas a realizar entregas sob a sua égide, tendo acordado com cada uma dessas três pessoas a forma de pagamento, sobre o qual a Recorrente não tem qualquer visibilidade – Facto Provado 49;
o A Recorrente não restringe ou impõe qualquer obrigatoriedade quanto ao local de exercício de atividade, podendo o prestador de atividade prestar a sua atividade em qualquer localidade e sem qualquer tipo de indicação sobre o local onde deve estar para receber propostas de entregas – Facto Provado 23 e 61;
o Quando presta a sua atividade, o prestador de atividade pode seguir as rotas que desejar, bem como utilizar o sistema de navegação GPS que preferir utilizar ou não utilizar nenhum sistema de navegação GPS durante o transporte, pelo que não há qualquer controlo por parte da Recorrente na forma como os estafetas se apresentam ou como prestam a sua atividade – Factos Provados 26, 72 e 73, Factos não provados G e H e ponto p. da impugnação da matéria de facto;
o O prestador de atividade tem a possibilidade de designar outras pessoas com conta na Uber Eats para substituição no exercício da atividade, o que demonstra que o que interessa à Recorrente não é a atividade em si mesma, elemento inerente a um contrato de trabalho que é celebrado intuitu personae, mas antes o resultado da sua atividade, característica do contrato de prestação de serviços – Facto Provado 78;
o A remuneração auferida é variável e por entrega, e não fixa em função do tempo despendido na realização da atividade, sendo que o prestador de atividade pode escolher quando é pago – Facto Provado 69;
o O prestador de atividade pode utilizar uma mala térmica com o logotipo de uma concorrente – ponto q. da impugnação da matéria de facto;
o A Recorrente não fez qualquer escrutínio sobre a experiência profissional, qualificações académicas, ou ausência delas, bem como sobre as características pessoais e técnicas do prestadores de atividade, para validar o seu registo na Plataforma – Facto Provado 80;
o Todos os instrumentos utilizados no desempenho da atividade pertencem ao prestador de atividade e não à Recorrente – ponto l. da impugnação da matéria de facto.
119) Este conjunto de elementos apontam no sentido da efetiva autonomia do prestador de atividade e da inexistência de uma relação com carácter de subordinação jurídica, pelo que, nos termos do artigo 12.º-A, n.º 4, do Código do Trabalho e artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil, resulta ilidida qualquer presunção de laboralidade que eventualmente se verificasse.
120) O prestador de atividade em causa é um verdadeiro prestador de atividade autónomo e assim deve continuar a ser, como é, aliás, a sua vontade (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 36m29s a 36m53).
121) Reconhecer todas estas características como provadas e legitimar, a final, a existência de subordinação jurídica e de um contrato de trabalho não faz qualquer sentido e redunda na impossibilidade prática da existência de trabalho autónomo no âmbito das plataformas digitais no regime português, o que não faz qualquer sentido e não foi o propósito da criação da presunção.
122) Após concluir pela inaplicabilidade da presunção do artigo 12.º do código do Trabalho e pela aplicabilidade da presunção do artigo 12.º-A do mesmo normativo legal, a sentença recorrida limita-se, no fundo, a seguir a interpretação do Tribunal da Relação de Guimarães, socorrendo-se do designado método indiciário para concluir pela existência de subordinação jurídica.
123) Caracterizando-se a relação jurídica laboral, essencialmente, pela existência de subordinação jurídica, é firme entendimento da Recorrente que, globalmente considerados os factos provados, não se vislumbra, como se demonstrará, que os mesmos permitam concluir pela subordinação jurídica na relação estabelecida entre os prestadores de atividade visados e a Recorrente, não se descortinando, nomeadamente, qualquer factualidade de onde se possa concluir a sujeição do prestador de atividade ao controlo, poder de direção e poder disciplinar da Recorrente, pelo que não é possível concluir pela existência de subordinação jurídica e, por consequência, de qualquer contrato de trabalho.
124) O Tribunal a quo faz uso de argumentação que se baseia em factos não provados nos presentes autos, como, por exemplo, que os contactos telefónicos entre estafeta e cliente são assegurados através da plataforma ou que o suporte da app entra em contacto com o estafeta quando este está parado há “muito tempo”, com referência a uma alegada duração que está pré-definida.
125) O Tribunal a quo refere, ainda, que o negócio da Recorrente não se trata de simples intermediação, mas sob os Factos Provados 4 e 5 resultou claramente provado que a Recorrente atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma.
126) Por razões de economia processual, dão-se aqui por reproduzidas as considerações acima tecidas quanto à não verificação de qualquer presunção de laboralidade, bem assim, sobre todas as circunstâncias que permitem dar como ilidida qualquer presunção de laboralidade que eventualmente se verificasse no caso concreto, acrescentando-se apenas o seguinte:
127) Para além de ser autónomo na fixação do tempo e local de prestação da sua atividade, o prestadores de atividade visados têm uma profunda liberdade para definir que tarefas aceita ou não prestar, uma vez que inexistem limites ou consequências para a não aceitação.
128) Aqui reside uma característica que se afigura de difícil compatibilização com a ordenação típica da relação laboral, o que, aliás, foi já apreciado e assim concluído, a título exemplificativo, pelo colendo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no acórdão de 9 de janeiro de 2019, no processo n.º 1376/16.3T8CSC.L1.S1.
129) Foi essa independência que fundou a decisão do Tribunal Justiça da União Europeia proferido no Caso B/Yodel Delivery Network, sendo de realçar que as quatro características identificadas pelo TJUE como inconsistentes com a qualificação de trabalhador estão todas verificadas nos presentes autos.
130) Particularmente significativo é a ausência de exclusividade – nomeadamente o facto de a Recorrente permitir o “multiapping” –, o que é um fator determinante do trabalho autónomo, que tem sido recorrentemente identificado não só pelos tribunais nacionais, mas também pelo Tribunal de Justiça da UE.
131) A este respeito, defendeu o Tribunal a quo que tal característica assume pouco significado, porquanto são cada vez mais frequentes as situações de pluriemprego.
132) A Recorrente não ignora que o ordenamento jurídico português admite a possibilidade de um trabalhador ter dois contratos de trabalho com duas entidades distintas. No entanto, cumpre não olvidar que qualquer trabalhador por conta de outrem se encontra vinculado a um conjunto de deveres, entre os quais o dever de lealdade (artigo 128.º, n.º 1, alínea f), do Código do Trabalho).
133) O dever de lealdade do trabalhador para com o empregador manifesta-se na obrigação de não concorrência, sendo vedado a qualquer trabalhador “o exercício de atividade concorrencial nos termos aí previstos, proibindo a lei a possibilidade de aquele desenvolver uma atividade, por si ou no seu interesse, que conflua ou entre em concorrência com o empregador, pondo em causa a sua organização em matéria comercial, de produção, negocial ou económica”.
134) É entendimento unânime, tanto na doutrina como na jurisprudência, que o dever de lealdade constitui um valor absoluto, não suscetível de graduações.
135) Assim, o reconhecimento, ainda que hipotético e que por mero dever de patrocínio se concebe, de um contrato de trabalho entre os prestadores e a Recorrente, redundaria na obrigatoriedade de o prestador de atividade deixar de prestar a sua atividade de estafeta para qualquer outra plataforma concorrente, sob pena de violação automática do dever de lealdade a que passará a estar vinculado e adstrito.
136) Note-se, aqui chegados, que a violação do dever de lealdade e a obrigação legal de não concorrência que impende sobre o trabalhador não dependem da verificação, em concreto, de um efetivo prejuízo para o empregador, pois como escreveu Pedro Romano Martinez “a lesão de interesses patrimoniais sérios pode até ser meramente potencial, como se tem decidido, em especial, com respeito às situações de violação do dever de não concorrência”.
137) Na verdade, o próprio legislador, ao estabelecer que o trabalhador não pode negociar por conta própria ou alheia em concorrência com o empregador, está a proibir o trabalhador de qualquer atuação que possa entrar em concorrência com a atividade desenvolvida pelo empregador, proibição que é justificada, porquanto “se alguém contrata trabalhadores, não pode estar sujeito ao risco de estes entrarem em concorrência com a sua actividade”.
138) De facto, a contratação de trabalhadores tem como desiderato o desenvolvimento e o sucesso da empresa, pelo que “seria absurdo aceitar que aqueles pudessem desenvolver actividades susceptíveis de conduzir ao desvio de clientela da própria empresa onde trabalham e, consequentemente, dessa forma, potenciar uma limitação do seu volume de negócios e dos seus proveitos”.
139) São estas as razões pelas quais a ausência de exclusividade assume decisiva importância neste tipo de ações e na análise da relação jurídica em apreço: é que os deveres e obrigações a que estão adstritos trabalhadores e empregadores não permite a prestação de trabalho simultâneo a duas (ou mais) entidades concorrentes distintas, situação que é admitida no âmbito de uma prestação de serviço, na qual é o próprio prestador, dotado de autonomia na organização da sua atividade, quem decide quando presta a sua atividade, para quem, e de que forma, tal como sucede in casu.
140) Em sentido convergente, o Supremo Tribunal de Justiça do Reino Unido, em decisão de 21 de novembro de 2023, decidiu que os estafetas que prestam atividade, no caso, para a plataforma Deliveroo, não podem ser considerados trabalhadores subordinados, uma vez que são “livres de rejeitar ofertas de trabalho, de se tornarem indisponíveis e de realizarem trabalhos para concorrentes”, concluindo que “estas características são fundamentalmente inconsistentes com qualquer noção de relação de trabalho”(tradução nossa).
141) Cumpre igualmente recordar dois acórdãos do nosso Supremo Tribunal de Justiça, nos quais foi decidido que o facto de o prestador de atividade poder (i) escolher o próprio horário, (ii) não exercer a atividade em regime de exclusividade, (iii) ter a possibilidade de aceitar ou rejeitar serviços, (iv) de se fazer substituir, (v) de agendar férias sem ser pago durante esse período e (vi) ser o titular dos instrumentos de trabalho permite ilidir a presunção do artigo 12.º do Código do Trabalho ou distinguir uma prestação de serviços de um contrato de trabalho.
142) Estas decisões contêm factos relevantes e semelhantes àqueles que foram provados pela Recorrente, factos esses que apontam no sentido de uma relação jurídica autónoma e não juridicamente subordinada.
143) E nem se diga que a atividade desempenhada através de plataforma digital é diferente, necessitando de uma interpretação atualista, porquanto irrelevante: o que se discute nos presentes autos é a existência, ou não, de um contrato de trabalho, contrato de trabalho esse definido pela lei e não por qualquer presunção legal ou método indiciário.
144) Cumpre ainda recordar que através de um contrato de trabalho, o trabalhador está disponível, de forma regular, para prestar trabalho, pois, como é natural, um empregador necessita de contar com a disponibilidade dos seus trabalhadores para poder organizar a sua atividade.
145) Todavia, nos presentes autos resultou provado que não existe qualquer obrigatoriedade de prestação da atividade e que o prestador de atividade visado nunca esteve obrigado a justificar as suas ausências e só presta serviços quando tem disponibilidade pessoal para o efeito, sem qualquer compromisso, mínimo que seja, de regularidade, pontualidade ou assiduidade na prestação de atividade, podendo desparecer e não prestar atividade durante meses.
146) Na verdade, In casu, o prestador de atividade presta atividade quando tem disponibilidade para o efeito, após o seu horário laboral e não só para a Recorrente, mas também para as plataformas Glovo e Bolt, sendo que já teve períodos de até 6 meses sem se ligar à aplicação.
147) Como resulta demonstrado na factualidade provada, e demonstrado nas presentes Alegações, a Recorrente não controla onde é que o estafeta presta a sua atividade, não podendo dirigir os estafetas para locais onde se verifique maior procura ou que costumem ser escolhidos como pontos de recolha de produtos.
148) Do mesmo modo, também não controla quando é que o estafeta presta a sua atividade, não detendo qualquer poder sobre a prestação da atividade efetuada, nem podendo dirigir a atividade (se estes se ligam ou não à aplicação ou, caso se liguem, se executam ou não as propostas de entrega, não estabelecendo períodos mínimos ou máximos de ligação).
149) No caso concreto, o prestador de atividade tem, evidentemente, interesse na inexistência de uma obrigação de prestar atividade, pois é isso que lhe permite aumentar os seus rendimentos e compatibilizar a sua atividade na plataforma com outras – seja através da prestação de atividade em determinados dias e horas que melhor lhe convém, seja através da prestação de atividade para mais do que uma plataforma ou para mais do que uma entidade.
150) Retirar esta flexibilidade seria especialmente prejudicial para o prestador de atividade – não se vislumbra como poderá a Recorrente garantir a disponibilidade de mão-de-obra, que é aquilo que permite um contrato de trabalho, sem retirar a liberdade de os prestador de atividade organizar a sua atividade.
151) Por isso, caso se entendesse que existe um contrato de trabalho entre o prestador de atividade e a Recorrente, esse contrato nunca poderia ser igual àquele que atualmente vincula as partes, de outro modo, o prestador de atividade poderia sempre imiscuir-se de cumprir a principal obrigação de um trabalhador (a de trabalhar) e a Recorrente nada poderia fazer quanto a isso. Nenhum negócio sobrevive nessas condições.
152) Não se pode considerar que o prestador de atividade faça parte da organização produtiva da Recorrente, uma vez que é impossível organizar o que não é conhecido e uma organização produtiva pressupõe isso mesmo, organização, o que implica planeamento e disponibilidade de mão-de-obra para o efeito.
153) Contrariamente ao que sucede numa relação laboral, e conforme já várias vezes referido nas presentes Alegações, a Recorrente não organiza a atividade dos prestadores de atividade de maneira alguma, pois estes são livres para escolher o seu horário, ligar e desligar-se da plataforma, e decidir durante quanto tempo permanecem conectados, sendo ainda livres para rejeitar e aceitar as propostas de entrega que bem entenderem, conforme decorre da factualidade provada.
154) Tudo isto resulta na impossibilidade prática de a Recorrente saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as propostas de entrega disponibilizadas.
155) Não se pode, assim, concluir que a Recorrente disponha de uma organização de prestação de serviços de entrega, contrariamente aquele que foi o entendimento do Tribunal a quo.
156) Sem prejuízo, ainda que se possa considerar a integração do estafeta na organização produtiva da Recorrente, o que por mero dever de patrocínio se concebe, é necessário ponderar a natureza da atividade em questão, pois não se pode afirmar que esta atividade específica — a recolha e entrega de produtos — exija o recurso a meios produtivos de grande envergadura ou uma complexidade organizativa considerável.
157) Assim, uma eventual estrutura empresarial associada a esta atividade dificilmente teria um peso relevante, nem sequer mediano (basta imaginar alguém que ofereça serviços de entrega ou mudanças de forma independente, por exemplo através da internet, aguardando um contacto por telefone, mensagem ou email para executar o serviço, sem necessidade de um estabelecimento comercial ou de uma estrutura de apoio).
158) Não se deve obliterar o facto de que o prestador de atividade referiu, de forma honesta, direta e simples que se considera um autêntico prestador de serviços e não um trabalhador, fazendo uso da aplicação da Recorrente de acordo com a sua disponibilidade, com o objetivo de gerar um incremento nos seus rendimentos (ficheiro áudio da sessão de julgamento, disponível no Citius, com início às 10:39 e fim às 11:41: 36m29s a 36m53).
159) Em jeito de conclusão, cumpre referir que um contrato de trabalho é o que é, conforme definido na lei, não o que alguma doutrina e jurisprudência quer que seja, sem qualquer alteração legislativa que o sustente.
160) Ainda que a doutrina ou a jurisprudência possam ser sensíveis à alegada precaridade e dependência económica de alguns prestadores de serviços (precariedade essa que, existindo, impõe a intervenção do legislador para os proteger), a verdade é que a solução não poderá passar por alterar aquela que é a definição de contrato de trabalho prevista na lei (definição essa que não é dada nem pelo art 12º-A, nem pelo art. 12º nem pelo método indiciário, que preveem apenas factos índice da sua existência).
161) Vale dizer, tudo considerado, e salvo o devido respeito, não estamos perante uma situação de facto que permita, com a necessária segurança, qualificar as relações dos autos como constituindo um contrato de trabalho, uma vez que, fazendo nossa a acertada expressão utilizada pelo Supremo Tribunal de Justiça do Reino Unido, em decisão já citada, os prestadores de atividade desempenham a sua atividade de um modo e com características que são “fundamentalmente inconsistentes” com qualquer relação laboral de acordo com a legislação em vigor.
162) Nestes termos, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a ação totalmente improcedente, não reconhecendo qualquer contrato de trabalho entre a Recorrente e o prestador de atividade visado, o Sr. AA
Nestes termos, e nos demais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência:
a) Deverá ser atribuído à ação o valor de €30.000,01;
b) Alterar-se a decisão sobre a matéria de facto, nos termos indicados;
c) Revogar-se a sentença recorrida, não sendo reconhecida a existência de qualquer contrato de trabalho entre a Recorrente e os prestadores de atividade visados .
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O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.
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O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, tendo, após a subida dos autos ao Tribunal da Relação, sido admitido o recurso nos seus precisos termos.
Após a ida aos vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Valor da ação;
2) Impugnação da matéria de facto;
3) Não aplicação do art. 12.º-A do Código do Trabalho; e
4) Existência de um contrato de trabalho.
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III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1. A R. é uma sociedade por quotas e tem como objeto social a prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos; atividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com a restauração; consultoria, conceção e produção de publicidade e marketing; aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais.
2. Para a execução das referidas atividades, a R. explora uma aplicação tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet –, contrata serviços a estafetas que procedam à entrega dos produtos encomendados.
3. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a R. utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito, a quem paga uma quantia pecuniária conforme a distância percorrida.
4. Assim, a R. atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma:
- os utilizadores parceiros, que podem ser os prestadores de serviços que partilham os ativos, os recursos, a disponibilidade e/ou as competências (estafetas) ou os prestadores de serviços, no exercício da sua atividade profissional: estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo;
- os utilizadores desses serviços que se traduzem nos clientes (consumidores finais);
- a plataforma digital que liga os prestadores de serviços e os utilizadores desses mesmos serviços.
5. A atividade da R. inclui:
- a intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma;
- a intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha;
- transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas.
6. A “Uber Portier, B.V.” (com sede em Mr. Treublaan 7, 1097 DP, Amesterdão, Países Baixos), é a única sócia da Ré “Uber Eats Portugal Unipessoal, Lda.” e é a entidade que fornece o acesso à aplicação (App) UBER EATS e ao software, websites e aos vários serviços de suporte da plataforma UBER EATS.
7. No dia 31/08/2023, pelas 13h.00m., a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) realizou uma ação inspetiva junto o restaurante “Picante”, sito em ..., Setúbal, com vista a averiguar a existência de características de contrato de trabalho na relação entre os vários estafetas que ali se encontravam e a R., plataforma digital.
8. Naquele circunstancialismo de tempo e lugar, encontrava-se AA, nascido em .../.../1986, nacional do País 1, portador do cartão de cidadão n.º ..., do NIF ..., residente em ..., ..., ..., com o contacto n.º ... e com o endereço de correio eletrónico ....
9. AA encontrava-se a desempenhar as funções de estafeta, concretamente recolhendo e entregando refeições, a clientes da R.
10. No circunstancialismo de tempo e lugar aludido em 7), AA encontrava-se a aguardar solicitação de recolha e entrega de mercadoria da R., através da aplicação digital (App) por esta explorada para proceder à entrega dos produtos alimentares e/ou bebidas.
11. AA começou a prestar aquela actividade para a R., nos moldes acima descritos, em Maio de 2021.
12. Nunca assinou qualquer contrato de trabalho escrito com R., limitando-se a registar-se na plataforma digital e a seguir os demais passos exigidos.
13. Aquando do registo, AA facultou à R. vários documentos, concretamente o de identificação, a carta de condução, documentos do veículo que iria usar na distribuição, seguro, registo criminal, fotografia para o perfil e outras informações, nomeadamente o número do IBAN, o endereço de correio eletrónico ... e o n.º de telemóvel ....
14. No processo de registo, a R. fez depender a conclusão do processo da circunstância de AA ter internet no seu telemóvel, transporte próprio e mala impermeável, térmica/isotérmica.
15. Em todo o processo de registo, AA teve de manifestar sempre a sua aceitação com os termos e condições propostos pela R.
16. Sempre que inicia a atividade de estafeta, AA informa a R. através do seu login, que se traduz na introdução do endereço de correio eletrónico ... e da respetiva palavra-passe.
17. Periodicamente, AA tem de enviar à R., por solicitação desta, fotografia da mochila térmica, com vista a esta confirmar o estado de higiene e conservação da mesma.
18. A R. informa sempre AA do procedimento a ter no caso de o cliente estar ausente no ponto de entrega.
19. Concretamente AA tem de comunicar à R. que o cliente não se encontra no ponto de entrega, depois tem de voltar a insistir e, caso não receba resposta, tem de aguardar 10 minutos no local; volvidos esses 10 minutos, aquele dá por concluído o pedido, recebendo, na mesma, a sua retribuição.
20. Em qualquer caso, é sempre a R. que determina se AA fica ou não com a mercadoria não entregue.
21. Também é a R. que lhe dá instruções na conduta a adotar na entrega de bebidas alcoólicas; não pode entregar a pessoas menores de idade, nem aparentemente já alcoolizadas, sendo obrigado a confirmar à R. que observou as regras através da App.
22. A R., considerando a geolocalização em tempo real de AA, através da App, distribui-lhe serviço tendo em consideração a sua proximidade do local de recolha da mercadoria, mediante operação algorítmica.
23. Por opção, AA realiza aquela distribuição na área metropolitana de Lisboa, priorizando o concelho de Setúbal, onde habita.
24. A distribuição de serviço consiste em a R. indicar, sempre através da App, o ponto de recolha, o ponto de entrega e o valor a pagar por essa deslocação.
25. A R., através da geolocalização do equipamento do estafeta, pode acompanhar o percurso efetuado por AA, desde o ponto de recolha até ao ponto de entrega; a R. faculta ao cliente a possibilidade de também o fazer.
26. AA pode prestar a sua actividade sem ter o sistema de GPS ligado, após a aceitação do pedido.
27. Se, por algum motivo, interromper o percurso determinado, a R. contacta-o através da App, solicitando-lhe esclarecimentos sobre o motivo da tal paragem.
28. A R. permite que AA preste a sua actividade desde as 08h.00m, até às 03h.00m., que corresponde ao horário alargado de alguns pontos de recolha.
29. A R. sempre pagou e paga a AA, semanalmente, através de transferência bancária, dependendo o valor recebido da quantidade de quilómetros despendidos no percurso para concretizar a entrega e do número de entregas.
30. A taxa de recolha tem o valor de 1,15 €, os quilómetros percorridos têm o valor de 0,72 €/cada e a taxa de entrega tem o valor de 0,28 €.
31. AA pode alterar na aplicação o valor mínimo que pretende receber por quilómetro.
32. Confrontado com o valor indicado pela R., AA tem poucos segundos para confirmar se aceita ou recusa o pedido.
34. Pelos pagamentos da atividade prestada através da plataforma UBER EATS, AA emite recibos através do Portal das Finanças em nome da empresa 35. Todas as pessoas a quem AA fez e faz entregas de produtos alimentares e bebidas e produtos não alimentares, através da App da Uber Ests são clientes da R.
36. AA não pode utilizar a App da R. para outros fornecedores que não estejam aprovados por esta, sendo assim, exclusiva para os clientes da R.
37. AA era avaliado pelos pontos de recolha e de entrega que transmitem tal avaliação, por cada serviço por si prestado, à R., através da App.
38. Na posse daqueles dados avaliativos, a R. transmite-os a AA.
39. No “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, que foi dado a conhecer a AA, estão previstas várias situações que podem determinar a desativação temporária ou permanente da conta do prestador de atividade, designadamente nas situações enumeradas na alínea b) do ponto 11. (“Acesso à App”): “no caso de uma alegada violação das obrigações do Parceiro de Entregas Independente (Cláusula 5. supra). Incluindo quando recebemos uma reclamação de segurança ou potencial incumprimento das leis e regulamentos aplicáveis, bem como dos costumes locais e boas práticas, ou sempre que necessário para a proteção de terceiros, ou cumprimento da legislação aplicável, ou decorrente de ordem judicial ou administrativa, temos o direito de restringir o Seu acesso à, e utilização da App. Se o fizermos, será notificado por escrito das razões para tal restrição. (…)”.
40. Acresce que, tal como resulta do ponto 16. (“Cessação”) do referido “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, a Ré pode “resolver o contrato com o estafeta a qualquer momento, mediante notificação prévia, por escrito, com 30 (trinta) dias de antecedência, salvo nas seguintes situações, nas quais, este período de aviso prévio não se aplica: (i) se estivermos sujeitos a uma obrigação legal ou regulamentar que nos obrigue a terminar a sua utilização da App ou dos nossos serviços em prazo inferior a 30 (trinta) dias; (ii) se o Parceiro de Entregas Independente tiver infringido o presente Contrato; ou (iii) mediante denúncia de que o Parceiro de Entregas independente tenha agido de forma não segura ou violou este Contrato ou legislação em conexão com a prestação de serviços de entrega; (iv) teve um comportamento fraudulento (atividade fraudulenta pode incluir, mas não está limitada a, as seguintes ações: partilhar sua conta com terceiros não autorizados; aceitar propostas sem intenção de as entregar; induzir utilizadores a cancelar os Seus pedidos; criar contas falsas para fins fraudulentos; solicitar reembolso de taxas não geradas; solicitar, executar ou confirmar intencionalmente a disponibilidade de propostas fraudulentas; interromper o funcionamento das aplicações e do GPS da Uber, como alterar as configurações do telefone; fazer uso indevido de promoções ou para fins diferentes dos pretendidos; contestar cobranças por motivos fraudulentos ou ilegítimos; criar contas duplicadas; fornecer informações falsas ou documentos falsificados); ou (iv) se estivermos a exercer um direito de resolução por um motivo imperativo nos termos da lei aplicável, que pode incluir situações em que o Parceiro de Entregas Independente já não se qualifique, nos termos deste Contrato, da lei e regulamentos aplicáveis ou das normas e políticas da Uber Eats e das suas Afiliadas, para prestar Serviços de Entrega ou para operar o Seu Meio de Transporte”.
41. Quando pretende terminar a sua jornada de trabalho, AA apenas tem de fazer logout na App.
42. A R. atribuiu um seguro de danos pessoais, o qual é válido enquanto está em login.
43. AA em Maio de 2021, trabalhava a tempo inteiro para a Autoeuropa, realizando actividade de estafeta após o seu horário de trabalho.
44. Nessa altura, AA realizava actividade de estafeta para a Glovo e para a Uber Eats, e mais recentemente também para a Bolt.
45. Actualmente, AA já não trabalha na Autoeuropa e no ramo dos seguros, também a tempo inteiro, continuando a realizara a actividade de estafeta após o seu horário de trabalho.
46. Na sequência da referida inspeção realizada pela ACT, e depois de ter sido elaborado o auto referido no n.º 1 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, a R. foi notificada de acordo com o mesmo preceito legal, no sentido de, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tivesse por conveniente.
47. Como a R. não regularizou a situação, a ACT comunicou a situação ao Ministério Público, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 15.º-A da referida Lei n.º 107/2009, tendo dado entrada no tribunal em 28/11/2023.
48. AA não dispunha de qualquer organização empresarial própria; não negoceia os preços ou condições com os titulares dos estabelecimentos que preparam as refeições/produtos a entregar, nem com os clientes finais, nem tão pouco tem o poder de escolher estes clientes finais ou os titulares dos estabelecimentos (embora os possa recusar).
49. Há cerca de 30 dias, para facilitar o acesso de três amigos à actividade de estafeta através da Uber Eats, criou um registo como intermediário, através do qual aqueles realizam as entregas solicitadas directamente pela Uber àqueles e aceites por cada um deles, sendo o pagamento processado pela Uber na sua conta, entregando AA a quantia recebida ao estafeta respectivo.
50. Cada estafeta tem a sua própria inscrição na Uber Eats, sendo a sua participação como intermediário limitada ao recebimento das quantias devida e pagas pela Uber Eats por conta daqueles serviços, e sua posterior entrega ao estafeta respectivo, sem qualquer retenção de desses valores para si como contrapartida daquela facilitação aos estafetas.
51. AA pode indicar na Plataforma o valor abaixo do qual não pretende lhe sejam feitas solicitações.
52. A plataforma determina os procedimentos que o estafeta tem de seguir na recolha e entrega dos produtos, nomeadamente, como utilizar a aplicação UBER EATS dando-lhe instruções sobre o momento em que deve introduzir a informação sobre a recolha/entrega que está a realizar.
53. A localização exacta do estafeta é conhecida pela plataforma UBER EATS através do sistema de geolocalização, quando o estafeta a mantém ligada.
54. O estafeta deve ter a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS para permitir a sua localização na aplicação, aquando do momento da atribuição do serviço.
55. O estafeta pode manter a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS para permitir a sua localização na aplicação, durante todo o período que vai desde a aceitação do pedido e até à sua conclusão, para uma conveniente prestação do serviço que compreende a prestação de informação actualizada ao cliente, que acompanha a sua encomenda, também através da aplicação (no modo cliente), e que entra em contacto consigo ou com o suporte quando entende que há uma anomalia como seja uma demora, paragem excessiva ou afastamento do lugar da entrega.
56. O estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido vão introduzindo dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega.
57. A atribuição/distribuição dos pedidos aos estafetas é determinada em função do critério da distância entre aquele, o estabelecimento e o consumidor.
58. Os utilizadores clientes finais são convidados a dar feedback relativamente à forma como o estafeta realizou o seu trabalho, para além de que podem reportar problemas com os pedidos de entrega no caso de violações dos termos e condições.
59. Para além disso, a R. mantém um sistema de incentivos à ligação do estafeta à plataforma e prestação efectiva de entregas, assente no número de entregas efetuado através da plataforma, classificando-os como parceiros “Green”, “Gold”, “Platinium” ou “Diamond”, o que lhes permite poderem participar no programa da “Uber Eats Pro” e, com base no número de pontos atingidos por mês, desbloquear algumas recompensas que entidades parceiras da UBER EATS oferecem (por exemplo, a Galp e a Wear Your Brand).
60. A Plataforma faz a ligação entre comerciantes, que desejam vender os seus produtos (não só alimentos), clientes, que desejam adquirir bens e que os mesmos lhes sejam entregues ou optem por eles próprios fazer a sua recolha, e contrata estafetas (como o Prestador de Atividade em causa na presente ação) que desejam fazer entregas aos clientes da R.
61. Na Plataforma, todos os estafetas são livres para decidir quando, como, onde, a que clientes, com que restaurantes e por que valor, face à proposta feita, querem prestar a sua atividade de entregas.
62. AA entre Abril de 2019 e parte de Maio de 2021, exerceu actividade de estafeta na Plataforma Uber Eats através de uma empresa LCO Services que com um horário fixo por esta estabelecido e que lhe pagava uma quantia mensal fixa, que não dependia do número de serviços por si realizado.
63. AA fatura à R. pela sua atividade de estafeta, desde Maio de 2021.
64. O AA manteve sempre a Taxa Mínima por Quilómetro de € 0,10 (taxa mínima por defeito).
65. A R. não criou qualquer “multiplicador”.
66. Não existe nenhum “multiplicador” na Plataforma.
67. Na Plataforma, os prestadores de atividade dispõem de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e selecioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens”.
68. Desta forma, os prestadores de atividade podem ajustar o seu preço por quilómetro sempre que quiserem, sem o baixar, e assim não perder qualquer oferta de entrega que possa surgir na Plataforma.
69. Os prestadores de atividade escolhem quando são pagos, através da ferramenta "Flex Pay".
70. Apenas no caso de não optarem por recolher os rendimentos através do Flex Pay é que os mesmos são pagos semanalmente.
71. CC já esteve períodos até seis meses sem prestar actividade de estafeta através da App da Uber, sem qualquer consequência negativa como a desactivação da conta.
72. A Plataforma não faz qualquer controlo sobre a rota que o Prestador de Atividade faz para concluir essa entrega.
73. Não há consequências por escolher uma rota livremente.
74. Existe um mecanismo de controlo de identidade dos estafetas na Plataforma, através do qual é pedido aos estafetas que tirem uma selfie (autorretrato) que é depois comparada com a fotografia registada na Plataforma, para detetar situações de partilha de contas, que não são permitidas na Plataforma, de acordo com a cláusula 5.n dos termos e condições aplicáveis.
75. Estas soluções de reconhecimento facial são automática e aleatoriamente despoletadas pela Plataforma.
76. Os estafetas que realizam a sua actividade para a Uber Eats também podem usar outras plataformas concorrentes, incluindo ao mesmo tempo que estão a prestar a sua atividade na APP da R.; podem realizar a actividade de estafetas sem recurso à App da Uber Eats.
77. Não estão adstritos a qualquer obrigação de exclusividade, podendo livremente escolher por prestar a sua atividade através de outras plataformas digitais ou qualquer outro meio que escolham, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats.
78. O estafeta pode substituir-se por outro estafeta no exercício da sua atividade de acordo com a sua livre discricionariedade, desde que o terceiro tenha conta activa na App como Parceiro de Entrega Independente.
79. O Estafeta substituto tem também um registo de conta na Uber Eats.
80. A Plataforma não faz qualquer escrutínio sobre a sua experiência, qualificações académicas, ou ausência delas, bem como sobre as características pessoais e técnicas dos prestadores de atividade, para validar o seu registo na Plataforma.
…
E deu como não provados os seguintes factos:
A. AA começou a prestar aquela actividade para a R., nos moldes acima descritos, em 01/06/2021.
B. De seguida, a R. disponibilizou-lhe vários vídeos e mensagens, demonstrando-lhe como deveria ser o seu procedimento no exercício da atividade de estafeta, nomeadamente:
- limpeza do motociclo utilizado no transporte;
- aparência estafeta perante o cliente; e
- ética de receção perante o cliente.
C. A partir do login, a R. dá-lhe várias instruções de segurança na condução.
D. A geolocalização de AA é que determina o local de entrega dos pedidos.
E. A R., através da geolocalização do equipamento do estafeta, controla o percurso efetuado por AA, desde o ponto de recolha até ao ponto de entrega.
F. Caso receba avaliação negativa, quer do ponto de entrega quer do ponto de recolha, o estafeta deixa de ser selecionado pela R. para executar o serviço.
G. A atuação do AA é controlada em tempo real através de GPS pela R.
H. O estafeta deve ter a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS para permitir a sua localização na aplicação e, desse modo, o controlo da sua execução pela R.
I. O sistema de incentivos mencionado em 59) traduz-se num sistema de avaliação e de classificação dos estafetas.
J. Entre 28 de abril de 2022 e 29 de julho de 2023, o Prestador de Atividade prestava atividade através do Parceiro de Frota WBS II- VEICULOS LDA, pessoa coletiva com o número identificativo ....
L. AA transitou do Parceiro de Frota WBS II- VEICULOS LDA no dia 29 de julho de 2023 para ser Parceiro de Entregas Independente por sua livre e exclusiva iniciativa.
M. O Prestador de Atividade visado na presente ação já ajustou a sua Taxa Mínima por Quilómetro de € 0,10 (taxa mínima por defeito) para valores superiores, desde os € 0,20 aos € 1,2, por diversas vezes, conforme Doc. 9 que se junta para todos os efeitos legais.
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IV – Enquadramento jurídico
1 – Valor da ação
Considera a recorrente que neste tipo de ações está também em causa o interesse imaterial de segurança no emprego, previsto no art. 53.º da Constituição da República Portuguesa, pelo que na fixação do valor da ação deve atender-se ao disposto no art. 303.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, fixando-se, assim, à presente ação o valor de €30.000, 01.
A sentença recorrida fixou à ação o valor de €2.000,00, nos termos dos arts. 186.º-Q, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho e 12.º, n.º 1, al. e), do Regulamento das Custas Processuais.
Apreciemos.
Dispõe o art. 186.º-Q, nºs. 1 e 2, do Código de Processo do Trabalho, que:
1 - Para efeitos de pagamento de custas, aplica-se à ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro.
2 - O valor da causa é sempre fixado a final pelo juiz tendo em conta a utilidade económica do pedido.
Verifica-se, assim, que foi intenção do legislador regular especificamente esta matéria, pelo que, inexistindo qualquer omissão na lei, não é de recorrer ao Código de Processo Civil, concretamente ao seu art. 303.º, n.º 1.
Acresce que consta especificamente da norma em questão que o critério para fixação do valor da ação é o da utilidade económica do pedido. Nas palavras de Salvador da Costa “A referida utilidade económica, ou seja, o benefício visado com a ação ou com a reconvenção, afere-se, segundo a expressão legal, à sua luz, que se não limita a enunciar o objeto imediato da demanda, na medida em que também enuncia o efeito jurídico que com ela se pretende obter”4. No entanto, sempre que essa utilidade económica não é possível de apurar, o art. 12.º, n.º 1, al. e), do Regulamento das Custas Processuais, determina que se deverá atender ao valor indicado na l. 1 da tabela i-B desse mesmo Regulamento. Ora, o valor da ação constante nessa linha é de “Até 2000” euros.
No caso da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, para além do que já consta dessa al. e), segunda a qual é de aplicar o que consta no n.º 1 do art. 12.º sempre que for impossível determinar o valor da causa, o art. 186.º-Q, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, a fim de evitar situações de dúvida, consagrou expressamente que se aplica a estas ações, para efeitos de custas, o disposto no art. 12.º, n.º 1, al. e), desse Diploma Legal.
Assim, e concluindo, existindo nas ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho um interesse suscetível de expressão pecuniária, ainda que de forma mediata, não se lhes aplica o art. 303.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicando-se-lhes, sim, o disposto no art. 12.º, n.º 1, al. e), do Regulamento das Custas Processuais.5
Pelo exposto, o valor da ação é de €2.000,00, conforme foi fixado na sentença recorrida, improcedendo, nesta parte, a pretensão da recorrente.
…
Aplicação do art. 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil
a) Em face da matéria de facto dada como provada, verifica-se a existência de dois factos que se reportam à mesma questão, mas que dão como provadas coisas diferentes.
Assim, consta dos factos provados 22 e 57 que:
22. A R., considerando a geolocalização em tempo real de AA, através da App, distribui-lhe serviço tendo em consideração a sua proximidade do local de recolha da mercadoria, mediante operação algorítmica.
57. A atribuição/distribuição dos pedidos aos estafetas é determinada em função do critério da distância entre aquele, o estabelecimento e o consumidor.
Na realidade, o facto provado 57 indica também como fator para a atribuição de um pedido ao estafeta AA a distância entre este e o consumidor. Acontece que, para além de já existir um facto sobre esta questão, onde o fator consumidor não era indicado, este critério não foi referido pelas testemunhas AA e BB.
Assim, elimina-se o facto provado 57, mantendo-se sobre esta questão apenas o facto provado 22.
2 – Impugnação da matéria de facto
Entende a recorrente que a sentença recorrida errou na fixação da matéria de facto, devendo os factos provados 3, 30, 41, 45 e 58 serem alterados, os factos provados 16 e 48 serem eliminados, os factos provados 18, 19, 20, 21, 27, 37, 38, 48, 52 e 56 serem dados como não provados e serem aditados os factos constantes dos arts 111.º, 112.º, 113.º, 114.º, 218.º, 280.º, 281.º, 302.º e 368.º, f), da contestação.
Uma vez que a recorrente cumpriu os requisitos previstos no art. 640.º do Código de Processo Civil, cumpre apreciar e decidir.
a) Alteração do facto provado 3
Consta deste facto que:
3. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a R. utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito, a quem paga uma quantia pecuniária conforme a distância percorrida.
Pretende a recorrente, em face do depoimento da testemunha BB, que este facto passe a ter a seguinte redação:
3. A plataforma efetua a gestão de um negócio que estabelece e facilita a ligação entre um cliente que deseja adquirir bens e que os mesmos lhe sejam entregues, ou optem por eles próprios fazerem a recolha, e um comerciante que deseja vender os seus produtos, sendo que os estabelecimentos comerciais podem receber pedidos via plataforma e optar por recorrer aos seus próprios serviços de entrega, sem se conectar, via aplicação, com os utilizadores que fazem transportes. Caso o cliente não use a opção “takeaway” e o estabelecimento comercial não tenha os seus próprios serviços de entrega, a entrega pode ser efetuada por um estafeta que se registe para o efeito na plataforma, a quem a R. paga uma quantia pecuniária conforme a distância percorrida.
Apreciemos.
O que releva nos presentes autos é exatamente a situação em que os clientes pretendem que lhes sejam entregues os produtos que adquiriram e em que os comerciantes têm de recorrer ao serviço de estafetas fornecidos pela Ré para que tais produtos possam chegar aos clientes. Todas as outras formas de procedimento, por não se reportarem à situação em apreço, são irrelevantes e, por isso, inúteis, nos termos do art. 130.º do Código de Processo Civil.
Assim, improcede a pretendida alteração.
b) Facto provado 16
Consta deste facto que:
16. Sempre que inicia a atividade de estafeta, AA informa a R. através do seu login, que se traduz na introdução do endereço de correio eletrónico ... e da respetiva palavra-passe.
Pretende a recorrente, em face do depoimento da testemunha AA, que este facto seja eliminado.
Na realidade, a recorrente discorda do verbo “informa”, por entender que o mesmo “transmite uma ideia de obrigação, de organização da atividade e de disponibilidade de mão-de-obra, o que não corresponde à verdade”.
Na realidade, informar é dar a conhecer algo a outrem e efetivamente o referido estafeta quando faz login na aplicação UberEats dá a conhecer a quem gere tal aplicação que se encontra disponível para receber pedidos de entrega.
Pelo exposto, nada há a alterar e muito menos a eliminar no presente facto, pelo que improcede a pretendida alteração fáctica.
c) Factos provados 18, 19, 20 e 21
Consta destes factos o seguinte:
18. A R. informa sempre AA do procedimento a ter no caso de o cliente estar ausente no ponto de entrega.
19. Concretamente AA tem de comunicar à R. que o cliente não se encontra no ponto de entrega, depois tem de voltar a insistir e, caso não receba resposta, tem de aguardar 10 minutos no local; volvidos esses 10 minutos, aquele dá por concluído o pedido, recebendo, na mesma, a sua retribuição.
20. Em qualquer caso, é sempre a R. que determina se AA fica ou não com a mercadoria não entregue.
21. Também é a R. que lhe dá instruções na conduta a adotar na entrega de bebidas alcoólicas; não pode entregar a pessoas menores de idade, nem aparentemente já alcoolizadas, sendo obrigado a confirmar à R. que observou as regras através da App.
Considera a recorrente que, em face das declarações prestadas pela testemunha AA, não é possível dar como provados estes factos, pelo que os mesmos deverão passar a não provados.
Efetivamente assiste razão à recorrente.
Ouvido na íntegra o depoimento da testemunha AA nunca o mesmo fez qualquer referência a estes factos, pelo que jamais os mesmos poderiam ter sido dados como provados com fundamento nesse depoimento, como consta da sentença recorrida.
Assim, os factos provados 18, 19, 20 e 21 serão eliminados, passando a constar nos factos não provados.
Procede, nesta parte, a impugnação da recorrente.
d) Facto provado 27
Consta deste facto que:
27. Se, por algum motivo, interromper o percurso determinado, a R. contacta-o através da App, solicitando-lhe esclarecimentos sobre o motivo da tal paragem.
Entende a recorrente que este facto deve passar a não provado, uma vez que a testemunha AA não o mencionou, apesar de a sentença recorrida fundamentar este facto em tal depoimento.
Uma vez mais assiste razão à recorrente, visto que a mencionada testemunha nada referiu a este respeito.
Assim, o facto provado 27 será eliminado e passará a não provado.
e) Facto provado 30
Consta deste facto que:
30. A taxa de recolha tem o valor de 1,15 €, os quilómetros percorridos têm o valor de 0,72 €/cada e a taxa de entrega tem o valor de 0,28 €.
Pretende a recorrente que, em face das declarações da testemunha AA, este facto passe a ter a seguinte redação:
De 2019 até pelo menos 2021, a taxa de recolha teria o valor de 1,15 €, os quilómetros percorridos o valor de 0,72 €/cada e a taxa de entrega tem o valor de 0,28 €.
Relativamente a esta questão, ficou a constar na matéria de facto dada como provada duas versões opostas.
A primeira, a da testemunha AA, que afirmou que até 2021, aparecia-lhe por quilómetro o valor de €0,80, porém, a esse valor era-lhe descontado 10% pela Uber, e, a partir de 2021 passou a constar por quilómetro apenas o valor de €0,72, já não sendo, porém, descontada qualquer percentagem a esse valor. Segundo esta testemunha, apesar de o montante a auferir já não se encontrar discriminado por parcelas, a Ré continua a contabilizar o preço que paga por pedido, de acordo com aquela taxa de recolha, aquela taxa de entrega e o valor por quilómetro de €0,72.
A segunda, a da testemunha BB, segundo a qual, a remuneração a pagar aos estafetas depende apenas do valor atribuído por quilómetro entre o ponto de recolha e o ponto de entrega, podendo o estafeta selecionar a partir de €0,10 (que é o valor mínimo por quilómetro), qual o valor mínimo a partir do qual pretende receber pedidos. Mais esclareceu que perante determinadas variantes, como sejam, períodos de grande afluência de pedidos ou períodos de chuva intensa, a Ré pode conceder aos estafetas incentivos (uma espécie de bónus, em determinadas situações de exceção).
Estranhamente, mesmo após ter esta testemunha sido questionada pelo juiz da 1.ª instância, para que esclarecesse porque não existiam valores finais a entregar aos estafetas apenas de €0,10, visto que, para tanto bastava que a distância entre o ponto de recolha e o ponto de entrega fosse de um quilómetro ou inferior, e de a testemunha não ter sido capaz de responder, na sentença ficaram a constar as duas versões.
É verdade que na sentença se fundamenta a inclusão destas duas versões, considerando que efetivamente o valor mínimo por quilómetro é de €0,10, porém, existe uma espécie de “bandeirada”, que é o mínimo que a Ré paga ao estafeta, cujos valores são os que constam do facto provado 30). No entanto, para além de nenhuma das duas testemunhas ter feita tal menção, a ser como consta da sentença, o valor mínimo por quilómetro, para respeitar o que consta do facto provado 30), sempre teria de ser de €0,72 e não de €0,10, a que sempre acresceria a taxa de recolha e a taxa de entrega, não fazendo, deste modo, sentido, por inútil, a menção à alegada existência de um mínimo de valor a ser pago por quilómetro de €0,10. Para conciliar estas duas versões, apenas seria aplicada a versão da testemunha BB, quando o estafeta tivesse escolhido o valor por quilómetro superior a €0,72, mantendo-se, de qualquer modo, o pagamento dos valores fixos quanto à taxa de recolha e à taxa de entrega. No entanto, a testemunha AA referiu, sem qualquer hesitação, que recebia sempre de acordo com o critério que consta do facto provado 30), e nunca num valor abaixo ou acima, até porque entendia que essa aplicação de descida e subida do valor por quilómetro não se lhe aplicava, aplicando-se apenas aos motoristas de TVDE.
Consubstanciam a segunda versão, em total oposição ao facto provado 30, os factos provados 31, 51, 64, 67 e 68.
Sem invocar contradição, a recorrente solicita apenas que se elimine o facto provado 30.
Na realidade, a testemunha AA foi perentória ao afirmar que a alteração do valor do quilómetro que constava na plataforma Uber Eats apenas se aplicava aos TVDE e que, no seu caso, o quilómetro era sempre pago pelo valor de €0,72, recebendo ainda as quantias referentes à taxa de recolha e à taxa de entrega.
Uma vez que o depoimento da testemunha AA se revela bastante mais credível, não tendo entrado em contradições, nem hesitado e ficado sem resposta, como aconteceu com a testemunha BB, dá-se apenas como provado o facto 30 e elimina-se da matéria dada como provada, por contradição, os factos provados 31, 51, 64, 67, 68, que passarão a integrar a matéria de facto não provada.
Assim, apesar de existirem alterações à matéria de facto, improcede, nesta parte, a pretensão da recorrente.
f) Factos provados 37, 38 e 58
Consta destes factos que:
37. AA era avaliado pelos pontos de recolha e de entrega que transmitem tal avaliação, por cada serviço por si prestado, à R., através da App.
38. Na posse daqueles dados avaliativos, a R. transmite-os a AA.
58. Os utilizadores clientes finais são convidados a dar feedback relativamente à forma como o estafeta realizou o seu trabalho, para além de que podem reportar problemas com os pedidos de entrega no caso de violações dos termos e condições.
Entende a recorrente que os factos provados 37 e 38 devem ser dados como não provados em face das declarações das testemunhas AA e BB, devendo, por sua vez, perante tais declarações, o facto provado 58 passar a ter a seguinte redação:
Os utilizadores clientes finais podem colocar um like ou um dislike, o que não em qualquer propósito avaliativo, servindo apenas para reportar quando que o prestador de atividade que fez a entrega não corresponde à fotografia associada à sua conta e não está em causa um processo de substituição permitida pela aplicação.
Das declarações da testemunha AA resulta que o que consta dos factos provados 37, 38 e 58 existiu até agosto de 2023. Esta testemunha referiu ainda que desde tal data o feedback dos clientes passou a se reportar genericamente ao pedido e apenas, quando a classificação é negativa, é que surgem outras questões, entre elas, as relativas aos estafetas. Porém, como estamos perante factualidade não alegada, mantém-se apenas o que já consta dos factos provados 37, 38 e 58, mas com a ressalva de que foi o sistema que existiu até agosto de 2023.
Também o que a testemunha BB referiu não se encontra alegado nos articulados, sendo que, de qualquer modo, o depoimento da testemunha AA se revelou bastante mais credível e sincero.
Assim, os factos provados 37, 38 e 58 passam a ter a seguinte redação:
37. Até agosto de 2023, AA era avaliado pelos pontos de recolha e de entrega que transmitem tal avaliação, por cada serviço por si prestado, à R., através da App.
38. Até agosto de 2023, na posse daqueles dados avaliativos, a R. transmitia-os a AA.
58. Até agosto de 2023, os utilizadores clientes finais eram convidados a dar feedback relativamente à forma como o estafeta realizava o seu trabalho, para além de que podiam reportar problemas com os pedidos de entrega no caso de violações dos termos e condições.
Assim, procede parcialmente a pretensão da recorrente.
g) Facto provado 41
Consta deste facto que:
41. Quando pretende terminar a sua jornada de trabalho, AA apenas tem de fazer logout na App.
Por considerar a expressão “jornada de trabalho” conclusiva, pretende a recorrente que este facto passe a ter a seguinte redação:
41. Quando pretende terminar a prestação da sua atividade, AA apenas tem de fazer logout na App
Diga-se, desde logo, que a alteração proposta pela recorrente, a de passar “a sua jornada de trabalho” para “prestação da sua atividade”, sempre sofreria do mesmo defeito conclusivo que apontou à versão atual.
No caso dos autos, entende-se que a expressão utilizada não o é em sentido técnico-jurídico, reportando-se à atividade profissional exercida no âmbito de um contrato de trabalho, sendo, sim, utilizada no seu sentido comum, ou seja, no do exercício de uma atividade profissional, independentemente do vínculo contratual existente, pelo que se mantém este facto nos seus exatos termos.
Improcede, assim, nesta parte a pretensão da recorrente.
h) Facto provado 45
Consta deste facto que:
45. Actualmente, AA já não trabalha na Autoeuropa e no ramo dos seguros, também a tempo inteiro, continuando a realizara a actividade de estafeta após o seu horário de trabalho.
Pretende a recorrente que, em face do que consta dos factos provados 43 e 44, este facto passe a ter a seguinte redação:
45. Actualmente, AA já não trabalha na Autoeuropa, mas sim no ramo dos seguros, também a tempo inteiro, continuando a realizar a actividade de estafeta (para a Uber, Glovo e Bolt) após o seu horário de trabalho.
No caso em apreço, em face da redação que consta deste facto, não se percebe bem o que lá está dito.
A testemunha AA confirmou que atualmente trabalhava no ramo de seguros, não tendo, porém, indicado que o fazia a tempo inteiro. Também referiu que exercia atividade, enquanto estafeta, nas três plataformas digitais.
Assim, o facto provado 45 passará a ter a seguinte redação:
45. Atualmente, AA já não trabalha na Autoeuropa, trabalhando, sim, no ramo dos seguros e continuando a realizar a atividade de estafeta sempre que tem disponibilidade para as plataformas mencionadas no facto provado 44.
Procede, assim, parcialmente a pretensão da recorrente.
i) Facto provado 48
Consta deste facto que:
48. AA não dispunha de qualquer organização empresarial própria; não negoceia os preços ou condições com os titulares dos estabelecimentos que preparam as refeições/produtos a entregar, nem com os clientes finais, nem tão pouco tem o poder de escolher estes clientes finais ou os titulares dos estabelecimentos (embora os possa recusar).
Considera a recorrente que este facto é genérico e conclusivo, encontrando-se em contradição com os factos provados 61 e 49, a que acresce também não ter sido provado. Conclui, por isso, que este facto deve ser eliminado.
Vejamos.
Relativamente à circunstância de se tratar de um facto genérico e conclusivo, importa referir que, para além de não estarmos perante factos que constituam o thema decidendum, estamos perante uma realidade factual que constitui “uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis”6, pelo que podem ainda integrar o acervo factual.
Relativamente à existência de contradição entre o facto provado 48 e os factos provados 61 e 49, atentemos nestes factos.
Consta dos factos provados 61 e 49 que:
61. Na Plataforma, todos os estafetas são livres para decidir quando, como, onde, a que clientes, com que restaurantes e por que valor, face à proposta feita, querem prestar a sua atividade de entregas.
49. Há cerca de 30 dias, para facilitar o acesso de três amigos à actividade de estafeta através da Uber Eats, criou um registo como intermediário, através do qual aqueles realizam as entregas solicitadas directamente pela Uber àqueles e aceites por cada um deles, sendo o pagamento processado pela Uber na sua conta, entregando AA a quantia recebida ao estafeta respectivo.
Apesar de aparentar existir contradição entre os factos provados 48 e 61, no que ao poder dos estafetas de escolher os clientes finais ou os titulares dos estabelecimentos diz respeito, verdade é que se reportam a realidades diferentes. Enquanto que o facto provado 48 se reporta às propostas de entregas que aparecem no écran do telemóvel do estafeta AA, perante as quais, o referido estafeta não possui qualquer possibilidade de escolha, pois as mesmas são decididas pelo sistema algoritmo da plataforma digital; o facto provado 61 reporta-se à possibilidade de os estafetas, após receberem as referidas propostas, serem livres de as rejeitar. Ora, a possibilidade de rejeição das propostas apresentadas encontra-se contemplada no final do facto provado 48.
Inexiste, assim, qualquer contradição entre estes dois factos.
Relativamente à contradição entre os factos provados 48 e 49, também não se verifica tal contradição. Efetivamente, a ajuda que o estafeta AA fornecia a três estafetas, registados na plataforma digital da Ré, para que estes pudessem receber a sua retribuição, em nada se assemelha com qualquer organização empresarial própria. Atente-se que se provou que AA entregava a quantia que recebia na sua totalidade a esses estafetas (factos provados 49 e 50), pelo que nada ganhava com este seu comportamento.
Inexiste, assim, a invocada contradição.
Por fim, importa referir que este facto se mostra inteiramente provado em face das declarações da testemunha AA, que o confirmou.
Nesta parte, improcede, portanto, a pretensão da recorrente.
j) Factos provados 52 e 56
Consta destes factos que:
52. A plataforma determina os procedimentos que o estafeta tem de seguir na recolha e entrega dos produtos, nomeadamente, como utilizar a aplicação UBER EATS dando-lhe instruções sobre o momento em que deve introduzir a informação sobre a recolha/entrega que está a realizar.
56. O estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido vão introduzindo dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega.
Considera a recorrente que, com base no depoimento da testemunha BB, estes factos devem ser dados como não provados.
Quanto ao facto provado 52, no que se refere à recolha, conforme consta dos factos provados 16, 22, 24, 48, 51, 54 e 61, efetivamente para que o estafeta AA possa proceder à recolha de um pedido na plataforma Uber Eats, tem de fazer login, tem de aguardar que lhe sejam enviadas propostas de pedidos, tem de as aceitar ou recusar e tem, caso as aceite, de se deslocar ao estabelecimento comercial que a plataforma lhe indicou para proceder ao levantamento do pedido e levantá-lo.
Por sua vez, quanto à entrega do pedido ao cliente, foi expressamente dito pela testemunha AA que se não tiver rede no telemóvel não consegue concluir a entrega na aplicação, pelo que, assim, que entregar o pedido, tem de dar conhecimento na aplicação dessa entrega.
Por sua vez, consta do facto provado 41 que para deixar de proceder à entrega de pedidos para a Ré, o estafeta AA tinha de fazer logout na referida aplicação. Aliás, se a Ré não tivesse a possibilidade de saber que a entrega estava feita, não poderia atribuir outro pedido àquele estafeta, nem seria possível proceder à atribuição de bónus aos estafetas pela quantidade de entregas efetuadas, sistema de bónus esse que a testemunha da Ré, BB, confirmou existir.
Mantém-se, por isso, na íntegra o facto provado 52.
Quanto ao facto provado 56, apenas se mostra provada a parte referente ao estafeta, nos moldes já mencionados, não tendo sido feita qualquer prova quanto ao comerciante.
Assim, o facto provado 56 passará a ter a seguinte redação:
56. O estafeta vai introduzindo dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega.
Procede, deste modo, parcialmente a pretensão da recorrente.
l) Novos factos
Pretende a recorrente que os factos constantes dos arts. 111.º, 112.º, 113.º, 114.º, 218.º, 280.º, 281.º, 302.º e 368.º, f), da contestação sejam aditados aos factos provados.
Consta destes artigos o seguinte:
111.ºPodem inclusivamente bloquear comerciantes e/ou clientes com quem não desejam contactar.
112.º A Plataforma não dá qualquer tipo de indicação aos prestadores de atividade sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas.
113.º Relativamente à alínea b) do artigo 12.º do Código do Trabalho, os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados não pertençam à Ré, conforme decorre da cláusula 5.d. e g. dos termos e condições aplicáveis que se juntam como Doc. 7 para todos os efeitos legais.
114.º Por outro lado, na Plataforma, o Prestador de Atividade beneficia de um modelo de início de sessão livre, ou seja, não tem, nem nunca teve de reservar turnos, cumprir horários, indicar as horas em que prefere prestar a sua atividade ou informar previamente a Plataforma sobre quais os seus horários de preferência.
218.º É, sim, uma regra de boas práticas de higiene e segurança alimentar, transversal a qualquer serviço de entrega, seja ele prestado através da Plataforma Uber Eats, ou de qualquer outra, de forma autónoma ou dependente.
280.º O Uber Eats Pro é um programa de pontos voluntário de cariz comercial.
281.º De acordo com o qual os prestadores de atividade decidem livremente beneficiar desta oferta comercial para receber pontos que podem dar acesso a ofertas de parceiros.
302.º Os prestadores de atividade, incluindo o Prestador de Atividade, são livres de seguir a rotas que desejarem, bem como os sistemas de navegação GPS (por exemplo, Google Maps e Waze) que preferirem utilizar por definição, ...
368.º Os prestadores de atividade, incluindo o Prestador de Atividade, que prestam atividade através da Plataforma dispõe de total autonomia relativamente à forma como organizam e prestam a sua atividade. Nomeadamente, são livres de: f) a forma como se apresentam, nomeadamente a roupa e o equipamento que querem usar (incluindo utilizar a marca de concorrentes) e o veículo (mota ou bicicleta) que utilizam para efetuar as entregas. Sempre cumprirá esclarecer que a obrigatoriedade de utilização da mochila não é uma restrição à autonomia do prestador de atividade. É, sim, uma regra de boas práticas de higiene e segurança alimentar, transversal a qualquer serviço de entrega, seja ele prestado através desta Plataforma, ou de qualquer outra, de forma autónoma ou dependente. Além disso, não é possível fazer entregas, seja do que for, numa bicicleta ou numa mota, sem uma mochila ou mala para transportar a encomenda. Ou seja, a obrigatoriedade de utilização de mochila nada tem que ver com forma de apresentação do prestador de atividade, mas com a proteção dos bens que o mesmo transporta, que consubstancia o serviço contratado com o prestador de atividade.
Apreciemos.
Quanto ao art. 111.º da contestação, resultou do depoimento da testemunha AA a total negação desta funcionalidade, tendo, inclusive, referido que até seria bom poder bloquear clientes, mas que isso não era possível. Desconhecendo o estafeta a que se reporta este processo tal funcionalidade, este facto não pode ser dado como provado.
Quanto ao art. 112.º da contestação, aquilo que releva sobre esta matéria já consta do facto provado 22, pelo que, por irrelevante e conclusivo, não será este facto acrescentado à matéria factual dada como assente.
Quanto ao art. 113.º da contestação, o mesmo é manifestamente conclusivo, limitando-se a reproduzir o teor de um artigo, não fazendo sequer qualquer menção a instrumentos de trabalho concretos, pelo que não será apreciado.
Quanto ao art. 114.º da contestação, os factos provados 28.º, 41.º, 43.º, 44.º, 45.º, 53.º e, sobretudo, 61.º, já se reportam a esta matéria, sendo, por isso, irrelevante e conclusivo, acrescentar este facto à matéria factual dada como assente.
Quanto ao art. 218.º da contestação, encontramo-nos, uma vez mais, perante uma alegação conclusiva, pelo que não será o mesmo apreciado.
Quanto aos arts. 280.º e 281.º da contestação, sobre o programa Uber Eats Pro já consta o facto provado 59, sendo que, apesar de a testemunha BB ter afirmado que este programa apenas existe se os estafetas a ele aderirem, a testemunha AA não confirmou tal circunstância. Assim, não se acrescentam estes factos à matéria dada como assente.
Quanto ao art. 302.º da contestação, em face dos factos provados 26, 53 e, sobretudo, 72 e 73, nada mais há a fazer constar sobre a possibilidade de o prestador escolher a rota que entender entre o ponto de recolha e o ponto de entrega.
Assim, por inútil, este facto não será acrescentado à matéria factual dada como assente.
Quanto ao art. 368.º, f), da contestação, pretende a recorrente que se dê como provado que o prestador de atividade pode utilizar qualquer mochila térmica da sua preferência.
Este facto mostra-se efetivamente confirmado pela testemunha AA e é relevante, pelo que será o mesmo acrescentado à matéria factual dada como assente.
Assim, acrescenta-se o facto provado 81, com a seguinte redação:
81.º O estafeta AA pode utilizar qualquer mochila térmica da sua preferência.
Dada a dimensão da alteração fáctica, reproduzem-se os factos provados e não provados, agora definitivamente fixados, quer por intervenção oficiosa deste tribunal, quer por procedência das pretensões da recorrente:
Factos provados
1. A R. é uma sociedade por quotas e tem como objeto social a prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos; atividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com a restauração; consultoria, conceção e produção de publicidade e marketing; aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais.
2. Para a execução das referidas atividades, a R. explora uma aplicação tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet –, contrata serviços a estafetas que procedam à entrega dos produtos encomendados.
3. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a R. utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito, a quem paga uma quantia pecuniária conforme a distância percorrida.
4. Assim, a R. atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma:
- os utilizadores parceiros, que podem ser os prestadores de serviços que partilham os ativos, os recursos, a disponibilidade e/ou as competências (estafetas) ou os prestadores de serviços, no exercício da sua atividade profissional: estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo;
- os utilizadores desses serviços que se traduzem nos clientes (consumidores finais);
- a plataforma digital que liga os prestadores de serviços e os utilizadores desses mesmos serviços.
5. A atividade da R. inclui:
- a intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma;
- a intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha;
- transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas.
6. A “Uber Portier, B.V.” (com sede em Mr. Treublaan 7, 1097 DP, Amesterdão, Países Baixos), é a única sócia da Ré “Uber Eats Portugal Unipessoal, Lda.” e é a entidade que fornece o acesso à aplicação (App) UBER EATS e ao software, websites e aos vários serviços de suporte da plataforma UBER EATS.
7. No dia 31/08/2023, pelas 13h.00m., a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) realizou uma ação inspetiva junto o restaurante “Picante”, sito em ..., Setúbal, com vista a averiguar a existência de características de contrato de trabalho na relação entre os vários estafetas que ali se encontravam e a R., plataforma digital.
8. Naquele circunstancialismo de tempo e lugar, encontrava-se AA, nascido em .../.../1986, nacional do País 1, portador do cartão de cidadão n.º ..., do NIF ..., residente em ..., ..., ..., com o contacto n.º ... e com o endereço de correio eletrónico ....
9. AA encontrava-se a desempenhar as funções de estafeta, concretamente recolhendo e entregando refeições, a clientes da R.
10. No circunstancialismo de tempo e lugar aludido em 7), AA encontrava-se a aguardar solicitação de recolha e entrega de mercadoria da R., através da aplicação digital (App) por esta explorada para proceder à entrega dos produtos alimentares e/ou bebidas.
11. AA começou a prestar aquela actividade para a R., nos moldes acima descritos, em Maio de 2021.
12. Nunca assinou qualquer contrato de trabalho escrito com R., limitando-se a registar-se na plataforma digital e a seguir os demais passos exigidos.
13. Aquando do registo, AA facultou à R. vários documentos, concretamente o de identificação, a carta de condução, documentos do veículo que iria usar na distribuição, seguro, registo criminal, fotografia para o perfil e outras informações, nomeadamente o número do IBAN, o endereço de correio eletrónico ... e o n.º de telemóvel ....
14. No processo de registo, a R. fez depender a conclusão do processo da circunstância de AA ter internet no seu telemóvel, transporte próprio e mala impermeável, térmica/isotérmica.
15. Em todo o processo de registo, AA teve de manifestar sempre a sua aceitação com os termos e condições propostos pela R.
16. Sempre que inicia a atividade de estafeta, AA informa a R. através do seu login, que se traduz na introdução do endereço de correio eletrónico ... e da respetiva palavra-passe.
17. Periodicamente, AA tem de enviar à R., por solicitação desta, fotografia da mochila térmica, com vista a esta confirmar o estado de higiene e conservação da mesma.
18. Eliminado.
19. Eliminado.
20. Eliminado.
21. Eliminado.
22. A R., considerando a geolocalização em tempo real de AA, através da App, distribui-lhe serviço tendo em consideração a sua proximidade do local de recolha da mercadoria, mediante operação algorítmica.
23. Por opção, AA realiza aquela distribuição na área metropolitana de Lisboa, priorizando o concelho de Setúbal, onde habita.
24. A distribuição de serviço consiste em a R. indicar, sempre através da App, o ponto de recolha, o ponto de entrega e o valor a pagar por essa deslocação.
25. A R., através da geolocalização do equipamento do estafeta, pode acompanhar o percurso efetuado por AA, desde o ponto de recolha até ao ponto de entrega; a R. faculta ao cliente a possibilidade de também o fazer.
26. AA pode prestar a sua actividade sem ter o sistema de GPS ligado, após a aceitação do pedido.
27. Eliminado.
28. A R. permite que AA preste a sua actividade desde as 08h.00m, até às 03h.00m., que corresponde ao horário alargado de alguns pontos de recolha.
29. A R. sempre pagou e paga a AA, semanalmente, através de transferência bancária, dependendo o valor recebido da quantidade de quilómetros despendidos no percurso para concretizar a entrega e do número de entregas.
30. A taxa de recolha tem o valor de 1,15 €, os quilómetros percorridos têm o valor de 0,72 €/cada e a taxa de entrega tem o valor de 0,28 €.
31. Eliminado.
32. Confrontado com o valor indicado pela R., AA tem poucos segundos para confirmar se aceita ou recusa o pedido.
34. Pelos pagamentos da atividade prestada através da plataforma UBER EATS, AA emite recibos através do Portal das Finanças em nome da empresa 35. Todas as pessoas a quem AA fez e faz entregas de produtos alimentares e bebidas e produtos não alimentares, através da App da Uber Ests são clientes da R.
36. AA não pode utilizar a App da R. para outros fornecedores que não estejam aprovados por esta, sendo assim, exclusiva para os clientes da R.
37. Até agosto de 2023, AA era avaliado pelos pontos de recolha e de entrega que transmitem tal avaliação, por cada serviço por si prestado, à R., através da App.
38. Até agosto de 2023, na posse daqueles dados avaliativos, a R. transmitia-os a AA.
39. No “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, que foi dado a conhecer a AA, estão previstas várias situações que podem determinar a desativação temporária ou permanente da conta do prestador de atividade, designadamente nas situações enumeradas na alínea b) do ponto 11. (“Acesso à App”): “no caso de uma alegada violação das obrigações do Parceiro de Entregas Independente (Cláusula 5. supra). Incluindo quando recebemos uma reclamação de segurança ou potencial incumprimento das leis e regulamentos aplicáveis, bem como dos costumes locais e boas práticas, ou sempre que necessário para a proteção de terceiros, ou cumprimento da legislação aplicável, ou decorrente de ordem judicial ou administrativa, temos o direito de restringir o Seu acesso à, e utilização da App. Se o fizermos, será notificado por escrito das razões para tal restrição. (…)”.
40. Acresce que, tal como resulta do ponto 16. (“Cessação”) do referido “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, a Ré pode “resolver o contrato com o estafeta a qualquer momento, mediante notificação prévia, por escrito, com 30 (trinta) dias de antecedência, salvo nas seguintes situações, nas quais, este período de aviso prévio não se aplica: (i) se estivermos sujeitos a uma obrigação legal ou regulamentar que nos obrigue a terminar a sua utilização da App ou dos nossos serviços em prazo inferior a 30 (trinta) dias; (ii) se o Parceiro de Entregas Independente tiver infringido o presente Contrato; ou (iii) mediante denúncia de que o Parceiro de Entregas independente tenha agido de forma não segura ou violou este Contrato ou legislação em conexão com a prestação de serviços de entrega; (iv) teve um comportamento fraudulento (atividade fraudulenta pode incluir, mas não está limitada a, as seguintes ações: partilhar sua conta com terceiros não autorizados; aceitar propostas sem intenção de as entregar; induzir utilizadores a cancelar os Seus pedidos; criar contas falsas para fins fraudulentos; solicitar reembolso de taxas não geradas; solicitar, executar ou confirmar intencionalmente a disponibilidade de propostas fraudulentas; interromper o funcionamento das aplicações e do GPS da Uber, como alterar as configurações do telefone; fazer uso indevido de promoções ou para fins diferentes dos pretendidos; contestar cobranças por motivos fraudulentos ou ilegítimos; criar contas duplicadas; fornecer informações falsas ou documentos falsificados); ou (iv) se estivermos a exercer um direito de resolução por um motivo imperativo nos termos da lei aplicável, que pode incluir situações em que o Parceiro de Entregas Independente já não se qualifique, nos termos deste Contrato, da lei e regulamentos aplicáveis ou das normas e políticas da Uber Eats e das suas Afiliadas, para prestar Serviços de Entrega ou para operar o Seu Meio de Transporte”.
41. Quando pretende terminar a sua jornada de trabalho, AA apenas tem de fazer logout na App.
42. A R. atribuiu um seguro de danos pessoais, o qual é válido enquanto está em login.
43. AA em Maio de 2021, trabalhava a tempo inteiro para a Autoeuropa, realizando actividade de estafeta após o seu horário de trabalho.
44. Nessa altura, AA realizava actividade de estafeta para a Glovo e para a Uber Eats, e mais recentemente também para a Bolt.
45. Atualmente, AA já não trabalha na Autoeuropa, trabalhando, sim, no ramo dos seguros e continuando a realizar a atividade de estafeta, sempre que tem disponibilidade, para as plataformas mencionadas no facto provado 44.
46. Na sequência da referida inspeção realizada pela ACT, e depois de ter sido elaborado o auto referido no n.º 1 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, a R. foi notificada de acordo com o mesmo preceito legal, no sentido de, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tivesse por conveniente.
47. Como a R. não regularizou a situação, a ACT comunicou a situação ao Ministério Público, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 15.º-A da referida Lei n.º 107/2009, tendo dado entrada no tribunal em 28/11/2023.
48. AA não dispunha de qualquer organização empresarial própria; não negoceia os preços ou condições com os titulares dos estabelecimentos que preparam as refeições/produtos a entregar, nem com os clientes finais, nem tão pouco tem o poder de escolher estes clientes finais ou os titulares dos estabelecimentos (embora os possa recusar).
49. Há cerca de 30 dias, para facilitar o acesso de três amigos à actividade de estafeta através da Uber Eats, criou um registo como intermediário, através do qual aqueles realizam as entregas solicitadas directamente pela Uber àqueles e aceites por cada um deles, sendo o pagamento processado pela Uber na sua conta, entregando AA a quantia recebida ao estafeta respectivo.
50. Cada estafeta tem a sua própria inscrição na Uber Eats, sendo a sua participação como intermediário limitada ao recebimento das quantias devida e pagas pela Uber Eats por conta daqueles serviços, e sua posterior entrega ao estafeta respectivo, sem qualquer retenção de desses valores para si como contrapartida daquela facilitação aos estafetas.
51. Eliminado.
52. A plataforma determina os procedimentos que o estafeta tem de seguir na recolha e entrega dos produtos, nomeadamente, como utilizar a aplicação UBER EATS dando-lhe instruções sobre o momento em que deve introduzir a informação sobre a recolha/entrega que está a realizar.
53. A localização exacta do estafeta é conhecida pela plataforma UBER EATS através do sistema de geolocalização, quando o estafeta a mantém ligada.
54. O estafeta deve ter a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS para permitir a sua localização na aplicação, aquando do momento da atribuição do serviço.
55. O estafeta pode manter a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS para permitir a sua localização na aplicação, durante todo o período que vai desde a aceitação do pedido e até à sua conclusão, para uma conveniente prestação do serviço que compreende a prestação de informação actualizada ao cliente, que acompanha a sua encomenda, também através da aplicação (no modo cliente), e que entra em contacto consigo ou com o suporte quando entende que há uma anomalia como seja uma demora, paragem excessiva ou afastamento do lugar da entrega.
56. O estafeta vai introduzindo dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega.
57. Eliminado.
58. Até agosto de 2023, os utilizadores clientes finais eram convidados a dar feedback relativamente à forma como o estafeta realizava o seu trabalho, para além de que podiam reportar problemas com os pedidos de entrega no caso de violações dos termos e condições.
59. Para além disso, a R. mantém um sistema de incentivos à ligação do estafeta à plataforma e prestação efectiva de entregas, assente no número de entregas efetuado através da plataforma, classificando-os como parceiros “Green”, “Gold”, “Platinium” ou “Diamond”, o que lhes permite poderem participar no programa da “Uber Eats Pro” e, com base no número de pontos atingidos por mês, desbloquear algumas recompensas que entidades parceiras da UBER EATS oferecem (por exemplo, a Galp e a Wear Your Brand).
60. A Plataforma faz a ligação entre comerciantes, que desejam vender os seus produtos (não só alimentos), clientes, que desejam adquirir bens e que os mesmos lhes sejam entregues ou optem por eles próprios fazer a sua recolha, e contrata estafetas (como o Prestador de Atividade em causa na presente ação) que desejam fazer entregas aos clientes da R.
61. Na Plataforma, todos os estafetas são livres para decidir quando, como, onde, a que clientes, com que restaurantes e por que valor, face à proposta feita, querem prestar a sua atividade de entregas.
62. AA entre Abril de 2019 e parte de Maio de 2021, exerceu actividade de estafeta na Plataforma Uber Eats através de uma empresa LCO Services que com um horário fixo por esta estabelecido e que lhe pagava uma quantia mensal fixa, que não dependia do número de serviços por si realizado.
63. AA fatura à R. pela sua atividade de estafeta, desde Maio de 2021.
64. Eliminado.
65. A R. não criou qualquer “multiplicador”.
66. Não existe nenhum “multiplicador” na Plataforma.
67. Eliminado.
68. Eliminado.
69. Os prestadores de atividade escolhem quando são pagos, através da ferramenta "Flex Pay".
70. Apenas no caso de não optarem por recolher os rendimentos através do Flex Pay é que os mesmos são pagos semanalmente.
71. CC já esteve períodos até seis meses sem prestar actividade de estafeta através da App da Uber, sem qualquer consequência negativa como a desactivação da conta.
72. A Plataforma não faz qualquer controlo sobre a rota que o Prestador de Atividade faz para concluir essa entrega.
73. Não há consequências por escolher uma rota livremente.
74. Existe um mecanismo de controlo de identidade dos estafetas na Plataforma, através do qual é pedido aos estafetas que tirem uma selfie (autorretrato) que é depois comparada com a fotografia registada na Plataforma, para detetar situações de partilha de contas, que não são permitidas na Plataforma, de acordo com a cláusula 5.n dos termos e condições aplicáveis.
75. Estas soluções de reconhecimento facial são automática e aleatoriamente despoletadas pela Plataforma.
76. Os estafetas que realizam a sua actividade para a Uber Eats também podem usar outras plataformas concorrentes, incluindo ao mesmo tempo que estão a prestar a sua atividade na APP da R.; podem realizar a actividade de estafetas sem recurso à App da Uber Eats.
77. Não estão adstritos a qualquer obrigação de exclusividade, podendo livremente escolher por prestar a sua atividade através de outras plataformas digitais ou qualquer outro meio que escolham, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats.
78. O estafeta pode substituir-se por outro estafeta no exercício da sua atividade de acordo com a sua livre discricionariedade, desde que o terceiro tenha conta activa na App como Parceiro de Entrega Independente.
79. O Estafeta substituto tem também um registo de conta na Uber Eats.
80. A Plataforma não faz qualquer escrutínio sobre a sua experiência, qualificações académicas, ou ausência delas, bem como sobre as características pessoais e técnicas dos prestadores de atividade, para validar o seu registo na Plataforma.
81. O estafeta AA pode utilizar qualquer mochila térmica da sua preferência.
…
Não provados:
A. AA começou a prestar aquela actividade para a R., nos moldes acima descritos, em 01/06/2021.
B. De seguida, a R. disponibilizou-lhe vários vídeos e mensagens, demonstrando-lhe como deveria ser o seu procedimento no exercício da atividade de estafeta, nomeadamente:
- limpeza do motociclo utilizado no transporte;
- aparência estafeta perante o cliente; e
- ética de receção perante o cliente.
C. A partir do login, a R. dá-lhe várias instruções de segurança na condução.
D. A geolocalização de AA é que determina o local de entrega dos pedidos.
E. A R., através da geolocalização do equipamento do estafeta, controla o percurso efetuado por AA, desde o ponto de recolha até ao ponto de entrega.
F. Caso receba avaliação negativa, quer do ponto de entrega quer do ponto de recolha, o estafeta deixa de ser selecionado pela R. para executar o serviço.
G. A atuação do AA é controlada em tempo real através de GPS pela R.
H. O estafeta deve ter a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS para permitir a sua localização na aplicação e, desse modo, o controlo da sua execução pela R.
I. O sistema de incentivos mencionado em 59) traduz-se num sistema de avaliação e de classificação dos estafetas.
J. Entre 28 de abril de 2022 e 29 de julho de 2023, o Prestador de Atividade prestava atividade através do Parceiro de Frota WBS II- VEICULOS LDA, pessoa coletiva com o número identificativo ....
L. AA transitou do Parceiro de Frota WBS II- VEICULOS LDA no dia 29 de julho de 2023 para ser Parceiro de Entregas Independente por sua livre e exclusiva iniciativa.
M. O Prestador de Atividade visado na presente ação já ajustou a sua Taxa Mínima por Quilómetro de € 0,10 (taxa mínima por defeito) para valores superiores, desde os € 0,20 aos € 1,2, por diversas vezes, conforme Doc. 9 que se junta para todos os efeitos legais.
N. A R. informa sempre AA do procedimento a ter no caso de o cliente estar ausente no ponto de entrega.
O. Concretamente AA tem de comunicar à R. que o cliente não se encontra no ponto de entrega, depois tem de voltar a insistir e, caso não receba resposta, tem de aguardar 10 minutos no local; volvidos esses 10 minutos, aquele dá por concluído o pedido, recebendo, na mesma, a sua retribuição.
P. Em qualquer caso, é sempre a R. que determina se AA fica ou não com a mercadoria não entregue.
Q. Também é a R. que lhe dá instruções na conduta a adotar na entrega de bebidas alcoólicas; não pode entregar a pessoas menores de idade, nem aparentemente já alcoolizadas, sendo obrigado a confirmar à R. que observou as regras através da App.
R. Se, por algum motivo, interromper o percurso determinado, a R. contacta-o através da App, solicitando-lhe esclarecimentos sobre o motivo da tal paragem.
S. AA pode alterar na aplicação o valor mínimo que pretende receber por quilómetro.
T. AA pode indicar na Plataforma o valor abaixo do qual não pretende lhe sejam feitas solicitações.
U. O AA manteve sempre a Taxa Mínima por Quilómetro de € 0,10 (taxa mínima por defeito).
V. Na Plataforma, os prestadores de atividade dispõem de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e selecioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens”.
W. Desta forma, os prestadores de atividade podem ajustar o seu preço por quilómetro sempre que quiserem, sem o baixar, e assim não perder qualquer oferta de entrega que possa surgir na Plataforma.
3 – Não aplicação do art. 12.º-A do Código do Trabalho
Considera a recorrente, diferentemente do entendimento vertido na sentença recorrida, que é de aplicar à relação contratual existente entre ela e o estafeta AA o art. 12.º, e não o art. 12.º-A, do Código do Trabalho, uma vez que a relação contratual se iniciou em momento anterior ao da entrada em vigor este último artigo.
Porém, o entendimento que consta da sentença recorrida é o entendimento que tem vindo a ser assumido pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no acórdão proferido em 15-05-2025, no processo n.º 1980/23.3t8CTB.C2.S1,7 8 9 que se cita:
7. Sobre a aplicação das leis no tempo há a considerar, desde logo, os princípios gerais constantes do art. 12º do Código Civil, que tem o seguinte teor: “1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que, lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”3.
Especificamente sobre a matéria ora em discussão no recurso, atinente à aplicação no tempo do art. 12.º-A, do CT, rege o art. 35º da referida Lei n.º 13/2023: “Ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, com a redação dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento”.
No essencial, esta disposição legal encontra-se alinhada com o disposto no art. 7º da Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro, relativo à aplicação no tempo do Código do Trabalho de 2009 [“Sem prejuízo do disposto no presente artigo e nos seguintes, ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho aprovado pela presente lei os contratos de trabalho (…) celebrados ou adotados antes da entrada em vigor da referida lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento”], afigurando-se-nos que aos segmento finais destas duas norma, pese embora a diferente técnica legislativa (onde agora se diz “… anteriores àquele momento”, dizia-se antes “… totalmente passados anteriormente àquele momento”), deverá ser atribuído o mesmo sentido.
8. Incontornavelmente, sobre esta matéria, refere Joana Nunes Vicente4:
“[A] norma relativa à presunção de laboralidade não é uma norma que diretamente disponha sobre requisitos de validade nem sobre o conteúdo ou sobre os efeitos de uma situação jurídica contratual. A presunção de laboralidade vai incidir sobre factos que condicionam a qualificação jurídica de uma dada relação jurídica, à qual irá depois corresponder, de facto, uma determinada disciplina jurídica. Do funcionamento da presunção infere-se precisamente um facto presumido complexo ou um conjunto de factos presumidos – os elementos constitutivos da noção de contrato de trabalho: a atividade, a retribuição e a subordinação jurídica – que permitem a qualificação da relação em causa como uma relação de trabalho subordinado”.
Na verdade, in casu não estão em discussão as condições de validade das relações jurídicas estabelecidas entre as partes, nem, sequer, os efeitos jurídicos de factos/situações (totalmente) anteriores à entrada em vigor da lei nova.
Do que se trata é – relativamente a cada um dos profissionais – de determinar as regras em função das quais se afere a qualificação jurídica de dada situação (jurídica), traduzida na prestação duradoura de uma atividade produtiva, situação que, no tocante a todos eles, perdurou para além do momento da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023.
Nesta perspetiva, sobre a aplicação no tempo das normas relativas às presunções legais, Baptista Machado sustenta que, em geral, “elas se aplicam diretamente aos atos ou aos factos aos quais vai ligada a presunção e que, portanto, a lei aplicável é a lei vigente ao tempo em que se verificarem esses factos ou atos (…) com ressalva apenas daquelas hipóteses em que uma presunção legal (…) se refira aos pressupostos de uma SJ [situação jurídica] inteiramente nova (…)”5.
Deste modo, encontrando-se em causa relações jurídicas duradouras (como acontece nas situações reportadas nos autos), nada obsta, e tudo aconselha, a que aos diferentes factos praticados em execução do conjunto de cada programa contratual sejam aplicáveis as normas concernentes a presunções de laboralidade que estejam em vigor à data da respetiva produção.
Com efeito, se com a presunção de laboralidade apenas se visa facilitar a qualificação jurídica das situações de fronteira entre o trabalho autónomo e o trabalho subordinado, e sabido que com ela não se produz qualquer alteração dos princípios relativos à distribuição da prova, mas (com base em imperativos de verdade/justiça material e de combate à dissimulação do contrato de trabalho e à precariedade) o mero aligeiramento do ónus que sobre o trabalhador impende neste âmbito6, não se vislumbram quaisquer razões de segurança/estabilidade jurídica – e muito menos de salvaguarda de eventuais direitos adquiridos ou de proteção da confiança – que determinantemente imponham diversa solução.
Nas palavras de Monteiro Fernandes, “afigura-se difícil aceitar que um instrumento destinado a potenciar as probabilidades de [a] verdade material ser captada e juridicamente enquadrada possa constituir fator de desequilíbrio no desenvolvimento de qualquer litígio em que essa qualificação esteja em causa”7.
É certo que, nesta matéria, o Supremo Tribunal de Justiça tem limitado a aplicação da lei nova aos casos em que, após o início da sua vigência, o vínculo obrigacional estabelecido entre as partes se vai reconfigurando ao longo do tempo8.
Mas, no plano da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, não se vê que ao autor seja de exigir prova positiva dessa reconfiguração, em especial em casos – como paradigmaticamente acontece nas plataformas digitais – em que, pelas próprias especificidades inerentes à atividade prestada, esta tem naturalmente associados elevados grau de heterogeneidade, atipicidade, aleatoriedade e fluidez [como de forma lapidar evidenciam os “Considerandos” da aludida Diretiva (UE) 2024/2831] que implicam a sua sucessiva reconstrução.
Tudo para concluir que, relativamente a relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor do art. 12.º-A, do CT, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu nº 1 que, no âmbito dessas relações jurídicas, tenham sido praticados posteriormente àquele momento (01.05.2023).
Aceitando a fundamentação expendida, e porque a relação contratual entre a Ré “Uber Eats” e o estafeta AA se constituiu em momento anterior ao da entrada em vigor do art. 12.º-A do Código do Trabalho (a relação contratual iniciou-se em maio de 2021 e o art. 12.º-A entrou em vigor em 01-05-2023 – art. 37.º da Lei n.º 23/2023, de 03-04, com as alterações introduzidas pela retificação n.º 13/2023, de 29-05), permanecendo, porém, tal relação contratual após a entrada em vigor da referida norma, é de aplicar a essa relação o disposto nesta norma.
Efetivamente, porque o art. 12.º-A do Código do Trabalho não se reporta nem a condições de validade do contrato de trabalho, nem a efeitos de factos ou situações anteriores à entrada em vigor deste artigo (art. 35.º da Lei n.º 13/2023, de 03-04), concorda-se com a sua aplicação a relações contratuais iniciadas em data anterior à sua entrada em vigor, desde que tais relações persistam aquando dessa entrada em vigor.
Nesta parte, improcede, assim, a pretensão recursiva da Ré.
4 – Existência de um contrato de trabalho
Considera a recorrente que, mesmo a aplicar-se o art. 12.º-A do Código do Trabalho à presente relação contratual, não se mostram preenchidas quaisquer alíneas do seu n.º 1; e, mesmo que se considerasse preenchidas duas ou mais alíneas, a Ré provou contraindícios que sempre afastariam as presunções previstas nesse artigo.
A sentença recorrida considerou que as seis alíneas se encontravam preenchidas.
Estipula o art. 12.º-A do mesmo Diploma Legal que:
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;
b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;
c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;
d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;
e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;
f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.
2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.
3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico.
4 - A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.
5 - A plataforma digital pode, igualmente, invocar que a atividade é prestada perante pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.
6 - No caso previsto no número anterior, ou caso o prestador de atividade alegue que é trabalhador subordinado do intermediário da plataforma digital, aplica-se igualmente, com as necessárias adaptações, a presunção a que se refere o n.º 1, bem como o disposto no n.º 3, cabendo ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora.
7 - A plataforma digital não pode estabelecer termos e condições de acesso à prestação de atividade, incluindo na gestão algorítmica, mais desfavoráveis ou de natureza discriminatória para os prestadores de atividade que estabeleçam uma relação direta com a plataforma, comparativamente com as regras e condições definidas para as pessoas singulares ou coletivas que atuem como intermediários da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.
8 - A plataforma digital e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores, bem como os respetivos gerentes, administradores ou diretores, assim como as sociedades que com estas se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, são solidariamente responsáveis pelos créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, celebrado entre o trabalhador e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital, pelos encargos sociais correspondentes e pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contraordenação laboral relativos aos últimos três anos.
9 - Nos casos em que se considere a existência de contrato de trabalho, aplicam-se as normas previstas no presente Código que sejam compatíveis com a natureza da atividade desempenhada, nomeadamente o disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação.
10 - Constitui contraordenação muito grave imputável ao empregador, seja ele a plataforma digital ou pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores que nela opere, a contratação da prestação de atividade, de forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado.
11 - Em caso de reincidência, são ainda aplicadas ao empregador as seguintes sanções acessórias:
a) Privação do direito a apoio, subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público, designadamente de natureza fiscal ou contributiva ou proveniente de fundos europeus, por período até dois anos;
b) Privação do direito de participar em arrematações ou concursos públicos, por um período até dois anos.
12 - A presunção prevista no n.º 1 aplica-se às atividades de plataformas digitais, designadamente as que estão reguladas por legislação específica relativa a transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica.
Apreciemos, então.
A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela
Relativamente a esta questão apurou-se o seguinte:
2. Para a execução das referidas atividades, a R. explora uma aplicação tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet –, contrata serviços a estafetas que procedam à entrega dos produtos encomendados.
24. A distribuição de serviço consiste em a R. indicar, sempre através da App, o ponto de recolha, o ponto de entrega e o valor a pagar por essa deslocação.
30. A taxa de recolha tem o valor de 1,15 €, os quilómetros percorridos têm o valor de 0,72 €/cada e a taxa de entrega tem o valor de 0,28 €.
48. AA não dispunha de qualquer organização empresarial própria; não negoceia os preços ou condições com os titulares dos estabelecimentos que preparam as refeições/produtos a entregar, nem com os clientes finais, nem tão pouco tem o poder de escolher estes clientes finais ou os titulares dos estabelecimentos (embora os possa recusar).
59. Para além disso, a R. mantém um sistema de incentivos à ligação do estafeta à plataforma e prestação efectiva de entregas, assente no número de entregas efetuado através da plataforma, classificando-os como parceiros “Green”, “Gold”, “Platinium” ou “Diamond”, o que lhes permite poderem participar no programa da “Uber Eats Pro” e, com base no número de pontos atingidos por mês, desbloquear algumas recompensas que entidades parceiras da UBER EATS oferecem (por exemplo, a Galp e a Wear Your Brand).
69. Os prestadores de atividade escolhem quando são pagos, através da ferramenta "Flex Pay".
70. Apenas no caso de não optarem por recolher os rendimentos através do Flex Pay é que os mesmos são pagos semanalmente.
Em face dos factos supra elencados, constata-se que é a Ré “Uber Eats” quem determina todas as condições relativas à remuneração devida pela atividade prestada pelo estafeta AA Efetivamente, é a Ré quem gere a plataforma informática Uber Eats, sendo através desta plataforma que o referido estafeta toma conhecimento do valor que irá auferir se aceitar o pedido que lhe apareceu no écran do telemóvel. Tal valor é apurado segundo os critérios que a Ré, unilateralmente, definiu, a saber, o valor fixo da taxa de recolha e da taxa de entrega e o valor variável dos quilómetros efetuados pelo estafeta entre o ponto de recolha e o ponto de entrega, em face do valor fixo que a Ré, unilateralmente, atribuiu a cada quilómetro.
Por isso mesmo, o estafeta não negocia quaisquer preços nem com os comerciantes, nem com os clientes finais, não dependendo a remuneração que aufere dos valores que os comerciantes e os clientes finais pagam à Ré.
Acresce que os critérios referentes aos incentivos que o estafeta aufere também foram, unilateralmente, fixados pela Ré, não tendo os mesmos sido negociados pelo estafeta.
De igual modo, a possibilidade que é dada ao estafeta de escolher outro modo de pagamento, que não o semanal, também foi concedido unilateralmente pela Ré, sendo que não se apurou, no caso concreto, que alguma vez o estafeta AA tivesse recorrido ao Flex Pay.
Pelo exposto, considera-se preenchida a al. a) do n.º 1 do art. 12.º-A.
A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade
Relativamente a esta questão apurou-se o seguinte:
9. AA encontrava-se a desempenhar as funções de estafeta, concretamente recolhendo e entregando refeições, a clientes da R.
10. No circunstancialismo de tempo e lugar aludido em 7), AA encontrava-se a aguardar solicitação de recolha e entrega de mercadoria da R., através da aplicação digital (App) por esta explorada para proceder à entrega dos produtos alimentares e/ou bebidas.
12. Nunca assinou qualquer contrato de trabalho escrito com R., limitando-se a registar-se na plataforma digital e a seguir os demais passos exigidos.
13. Aquando do registo, AA facultou à R. vários documentos, concretamente o de identificação, a carta de condução, documentos do veículo que iria usar na distribuição, seguro, registo criminal, fotografia para o perfil e outras informações, nomeadamente o número do IBAN, o endereço de correio eletrónico ... e o n.º de telemóvel ....
14. No processo de registo, a R. fez depender a conclusão do processo da circunstância de AA ter internet no seu telemóvel, transporte próprio e mala impermeável, térmica/isotérmica.
15. Em todo o processo de registo, AA teve de manifestar sempre a sua aceitação com os termos e condições propostos pela R.
16. Sempre que inicia a atividade de estafeta, AA informa a R. através do seu login, que se traduz na introdução do endereço de correio eletrónico ... e da respetiva palavra-passe.
17. Periodicamente, AA tem de enviar à R., por solicitação desta, fotografia da mochila térmica, com vista a esta confirmar o estado de higiene e conservação da mesma.
22. A R., considerando a geolocalização em tempo real de AA, através da App, distribui-lhe serviço tendo em consideração a sua proximidade do local de recolha da mercadoria, mediante operação algorítmica.
24. A distribuição de serviço consiste em a R. indicar, sempre através da App, o ponto de recolha, o ponto de entrega e o valor a pagar por essa deslocação.
41. Quando pretende terminar a sua jornada de trabalho, AA apenas tem de fazer logout na App.
52. A plataforma determina os procedimentos que o estafeta tem de seguir na recolha e entrega dos produtos, nomeadamente, como utilizar a aplicação UBER EATS dando-lhe instruções sobre o momento em que deve introduzir a informação sobre a recolha/entrega que está a realizar.
54. O estafeta deve ter a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS para permitir a sua localização na aplicação, aquando do momento da atribuição do serviço.
56. O estafeta vai introduzindo dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega.
74. Existe um mecanismo de controlo de identidade dos estafetas na Plataforma, através do qual é pedido aos estafetas que tirem uma selfie (autorretrato) que é depois comparada com a fotografia registada na Plataforma, para detetar situações de partilha de contas, que não são permitidas na Plataforma, de acordo com a cláusula 5.n dos termos e condições aplicáveis.
75. Estas soluções de reconhecimento facial são automática e aleatoriamente despoletadas pela Plataforma.
Em face desta factualidade, resulta que a Ré “Uber Eats” estabelece determinadas regras, de forma unilateral, relativas à prestação da atividade do estafeta AA (designadamente, a utilização de um telemóvel com internet, a ligação à aplicação Uber Eats de forma a poder receber os pedidos, efetuar determinados procedimentos no decurso da sua atividade, a fim de informar a Ré sobre a recolha e entrega do pedido que está a realizar e efetuar logout quando pretenda deixar de exercer, naquele momento, a sua atividade para a Ré), exigindo ainda o cumprimento de normas específicas para que este possa exercer a atividade, isto é, para que se possa inscrever na plataforma, de maneira a exercer a sua atividade (concretamente, a instalação no telemóvel da aplicação Uber Eats, a sua inscrição na plataforma, nos termos que a Ré lhe indica para a criação da sua conta pessoal - onde obrigatoriamente tem de apresentar determinada documentação, da qual consta uma sua fotografia -, dispor de um meio de transporte e utilizar uma mochila térmica) e impondo também a sujeição do estafeta a determinadas atividades de supervisão/fiscalização durante a sua atividade (como é o caso da aceitação de um sistema de geolocalização, sem o qual a Ré não teria acesso à localização do estafeta, em tempo real, aquando da atribuição dos pedidos; da aceitação de um sistema de reconhecimento facial, através do envio de uma selfie por parte do estafeta, sempre que tal lhe é solicitado pela Ré; e da aceitação de enviar, periodicamente, à Ré, sempre que esta o solicitar, uma fotografia da mochila térmica, de forma a verificar o estado de higiene e de conservação da mesma).
Por fim, é a Ré quem procede à escolha dos clientes e das propostas de entrega que aparecem no écran do telemóvel do estafeta, sendo sempre aquela quem fornece a este os locais específicos de recolhe e de entrega dos pedidos aceites, ou seja, quem determina os termos e condições que o estafeta AA tem que cumprir na prestação da sua atividade.
Pelo exposto, existindo diversas regras impostas pela Ré ao estafeta quanto ao exercício da sua atividade, mostra-se preenchida a al. b) do n.º 1 do art. 16.º-A.
A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica
Relativamente a esta questão apurou-se o seguinte:
17. Periodicamente, AA tem de enviar à R., por solicitação desta, fotografia da mochila térmica, com vista a esta confirmar o estado de higiene e conservação da mesma.
22. A R., considerando a geolocalização em tempo real de AA, através da App, distribui-lhe serviço tendo em consideração a sua proximidade do local de recolha da mercadoria, mediante operação algorítmica.
25. A R., através da geolocalização do equipamento do estafeta, pode acompanhar o percurso efetuado por AA, desde o ponto de recolha até ao ponto de entrega; a R. faculta ao cliente a possibilidade de também o fazer.
26. AA pode prestar a sua actividade sem ter o sistema de GPS ligado, após a aceitação do pedido.
53. A localização exacta do estafeta é conhecida pela plataforma UBER EATS através do sistema de geolocalização, quando o estafeta a mantém ligada.
54. O estafeta deve ter a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS para permitir a sua localização na aplicação, aquando do momento da atribuição do serviço.
55. O estafeta pode manter a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS para permitir a sua localização na aplicação, durante todo o período que vai desde a aceitação do pedido e até à sua conclusão, para uma conveniente prestação do serviço que compreende a prestação de informação actualizada ao cliente, que acompanha a sua encomenda, também através da aplicação (no modo cliente), e que entra em contacto consigo ou com o suporte quando entende que há uma anomalia como seja uma demora, paragem excessiva ou afastamento do lugar da entrega.
72. A Plataforma não faz qualquer controlo sobre a rota que o Prestador de Atividade faz para concluir essa entrega.
73. Não há consequências por escolher uma rota livremente.
74. Existe um mecanismo de controlo de identidade dos estafetas na Plataforma, através do qual é pedido aos estafetas que tirem uma selfie (autorretrato) que é depois comparada com a fotografia registada na Plataforma, para detetar situações de partilha de contas, que não são permitidas na Plataforma, de acordo com a cláusula 5.n dos termos e condições aplicáveis.
75. Estas soluções de reconhecimento facial são automática e aleatoriamente despoletadas pela Plataforma.
Da análise dos mencionados factos resulta que a Ré “Uber Eats”, a partir do momento em que o estafeta AA entra na aplicação Uber Eats, supervisiona, em tempo real, a sua localização, sendo essa supervisão necessária para o exercício da sua atividade e para a seleção que a plataforma faz dos pedidos que lhe envia. Acresce que sempre que o estafeta tem o sistema de geolocalização ligado, a Ré pode supervisionar, através da aplicação, o tempo de entrega dos pedidos e o percurso efetuado pelo estafeta. De igual modo, a Ré controla, através de um sistema de reconhecimento facial instalado na aplicação, a identidade do estafeta, durante o exercício da sua atividade, tendo o referido estafeta de se submeter a esse reconhecimento facial sempre que tal lhe é solicitado pela Ré.
A Ré controla, também, periodicamente, o estado de higiene e de conservação da mochila térmica que o estafeta utiliza no desempenho da sua atividade e isto apesar de tal mochila pertencer ao estafeta.
Importa ainda referir que, apesar de o estafeta poder, após aceitar o pedido, desligar o sistema de GPS, deixando a Ré e o cliente de acompanhar a localização do estafeta em tempo real, tal opção prejudica o bom funcionamento da referida aplicação e a própria lógica inerente a este tipo de serviço. Na realidade, este tipo de serviço pressupõe que o cliente e a própria Ré “Uber Eats” possam acompanhar, desde o momento da recolha do pedido pelo estafeta, todo o trajeto deste até ao destino, podendo, assim, prever-se o tempo de espera. Esta possibilidade de desligar o GPS revela-se, por isso, contraditória com aquilo que este tipo de serviço promove.
De qualquer modo, aquilo que é relevante é a possibilidade de supervisão e de controlo da Ré sobre o estafeta e não necessariamente o exercício efetivo dessa supervisão e controlo. No entanto, quer quanto à mochila térmica, quer quanto ao envio de uma selfie do estafeta à Ré, é evidente o exercício efetivo desse controlo e supervisão.
Pelo exposto, mostra-se igualmente preenchida a al. c) do n.º 1 do art. 16.º-A.
A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma
Relativamente a esta questão apurou-se o seguinte:
43. AA em Maio de 2021, trabalhava a tempo inteiro para a Autoeuropa, realizando actividade de estafeta após o seu horário de trabalho.
44. Nessa altura, AA realizava actividade de estafeta para a Glovo e para a Uber Eats, e mais recentemente também para a Bolt.
45. Atualmente, AA já não trabalha na Autoeuropa, trabalhando, sim, no ramo dos seguros e continuando a realizar a atividade de estafeta, sempre que tem disponibilidade, para as plataformas mencionadas no facto provado 44.
48. AA não dispunha de qualquer organização empresarial própria; não negoceia os preços ou condições com os titulares dos estabelecimentos que preparam as refeições/produtos a entregar, nem com os clientes finais, nem tão pouco tem o poder de escolher estes clientes finais ou os titulares dos estabelecimentos (embora os possa recusar).
61. Na Plataforma, todos os estafetas são livres para decidir quando, como, onde, a que clientes, com que restaurantes e por que valor, face à proposta feita, querem prestar a sua atividade de entregas.
71. CC já esteve períodos até seis meses sem prestar actividade de estafeta através da App da Uber, sem qualquer consequência negativa como a desactivação da conta.
76. Os estafetas que realizam a sua actividade para a Uber Eats também podem usar outras plataformas concorrentes, incluindo ao mesmo tempo que estão a prestar a sua atividade na APP da R.; podem realizar a actividade de estafetas sem recurso à App da Uber Eats.
77. Não estão adstritos a qualquer obrigação de exclusividade, podendo livremente escolher por prestar a sua atividade através de outras plataformas digitais ou qualquer outro meio que escolham, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats.
78. O estafeta pode substituir-se por outro estafeta no exercício da sua atividade de acordo com a sua livre discricionariedade, desde que o terceiro tenha conta activa na App como Parceiro de Entrega Independente.
79. O Estafeta substituto tem também um registo de conta na Uber Eats.
Resulta, assim, da factualidade apurada que o estafeta AA é livre quanto à escolha do horário que entende praticar, quanto aos períodos de ausência, quanto à possibilidade de aceitar ou recusar os pedidos que lhe aparecem no écran do telemóvel, quanto à possibilidade de trabalhar para terceiros, inclusive para empresas concorrentes, podendo também fazer-se substituir por outro estafeta registado na plataforma.
Esse é o entendimento do acórdão do STJ proferido em 17-09-2025, no processo n.º 1914/23.5T8TMR.E2.S1,10 entendimento esse que acompanhamos.
Pelo exposto, importa concluir que não se mostra preenchida a al. d) do n.º 1 do art. 12.º-A.
A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta
Nesta parte iremos apenas apreciar o poder disciplinar, visto que os outros poderes laborais, como o são o poder de direção e o poder regulamentar, já se mostram inseridos na al. b) do n.º 1 do art. 12.º-A.
Relativamente a esta questão apurou-se o seguinte:
39. No “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, que foi dado a conhecer a AA, estão previstas várias situações que podem determinar a desativação temporária ou permanente da conta do prestador de atividade, designadamente nas situações enumeradas na alínea b) do ponto 11. (“Acesso à App”): “no caso de uma alegada violação das obrigações do Parceiro de Entregas Independente (Cláusula 5. supra). Incluindo quando recebemos uma reclamação de segurança ou potencial incumprimento das leis e regulamentos aplicáveis, bem como dos costumes locais e boas práticas, ou sempre que necessário para a proteção de terceiros, ou cumprimento da legislação aplicável, ou decorrente de ordem judicial ou administrativa, temos o direito de restringir o Seu acesso à, e utilização da App. Se o fizermos, será notificado por escrito das razões para tal restrição. (…)”.
40. Acresce que, tal como resulta do ponto 16. (“Cessação”) do referido “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, a Ré pode “resolver o contrato com o estafeta a qualquer momento, mediante notificação prévia, por escrito, com 30 (trinta) dias de antecedência, salvo nas seguintes situações, nas quais, este período de aviso prévio não se aplica: (i) se estivermos sujeitos a uma obrigação legal ou regulamentar que nos obrigue a terminar a sua utilização da App ou dos nossos serviços em prazo inferior a 30 (trinta) dias; (ii) se o Parceiro de Entregas Independente tiver infringido o presente Contrato; ou (iii) mediante denúncia de que o Parceiro de Entregas independente tenha agido de forma não segura ou violou este Contrato ou legislação em conexão com a prestação de serviços de entrega; (iv) teve um comportamento fraudulento (atividade fraudulenta pode incluir, mas não está limitada a, as seguintes ações: partilhar sua conta com terceiros não autorizados; aceitar propostas sem intenção de as entregar; induzir utilizadores a cancelar os Seus pedidos; criar contas falsas para fins fraudulentos; solicitar reembolso de taxas não geradas; solicitar, executar ou confirmar intencionalmente a disponibilidade de propostas fraudulentas; interromper o funcionamento das aplicações e do GPS da Uber, como alterar as configurações do telefone; fazer uso indevido de promoções ou para fins diferentes dos pretendidos; contestar cobranças por motivos fraudulentos ou ilegítimos; criar contas duplicadas; fornecer informações falsas ou documentos falsificados); ou (iv) se estivermos a exercer um direito de resolução por um motivo imperativo nos termos da lei aplicável, que pode incluir situações em que o Parceiro de Entregas Independente já não se qualifique, nos termos deste Contrato, da lei e regulamentos aplicáveis ou das normas e políticas da Uber Eats e das suas Afiliadas, para prestar Serviços de Entrega ou para operar o Seu Meio de Transporte”.
Em face da factualidade dada como provada, resulta, à evidência, que a Ré “Uber Eats” exerce autoridade disciplinar sobre o estafeta AA, visto que, sempre que entenda, de forma unilateral, que o mesmo não cumpriu os termos e condições que assumiu ao subscrever o contrato que lhe foi unilateralmente apresentado, pode excluí-lo ou desativá-lo em definitivo da sua conta de acesso àquela plataforma informática. De igual modo, a referida Ré pode desativar a conta deste estafeta se considerar, unilateralmente, que existem razões relacionadas com a segurança dos clientes ou devido a fraude.
Importa referir que a interrupção do funcionamento das aplicações e do GPS da Uber também podem determinar a resolução do contrato com o estafeta sem qualquer aviso prévio, o que não pode deixar de se estranhar, visto que se, por um lado, é concedida ao estafeta a possibilidade de desligar o GPS após ter aceitado o pedido, por outro, se desligar o GPS nessa altura, esse comportamento pode levar à resolução do contrato, sem aviso prévio, dada a gravidade da situação.
Pelo exposto, apenas nos resta concluir pelo preenchimento da al. e) do n.º 1 do art. 12.º-A.
Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação
Relativamente a esta questão apurou-se o seguinte:
2. Para a execução das referidas atividades, a R. explora uma aplicação tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet –, contrata serviços a estafetas que procedam à entrega dos produtos encomendados.
3. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a R. utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito, a quem paga uma quantia pecuniária conforme a distância percorrida.
9. AA encontrava-se a desempenhar as funções de estafeta, concretamente recolhendo e entregando refeições, a clientes da R.
10. No circunstancialismo de tempo e lugar aludido em 7), AA encontrava-se a aguardar solicitação de recolha e entrega de mercadoria da R., através da aplicação digital (App) por esta explorada para proceder à entrega dos produtos alimentares e/ou bebidas.
14. No processo de registo, a R. fez depender a conclusão do processo da circunstância de AA ter internet no seu telemóvel, transporte próprio e mala impermeável, térmica/isotérmica.
16. Sempre que inicia a atividade de estafeta, AA informa a R. através do seu login, que se traduz na introdução do endereço de correio eletrónico ... e da respetiva palavra-passe.
22. A R., considerando a geolocalização em tempo real de AA, através da App, distribui-lhe serviço tendo em consideração a sua proximidade do local de recolha da mercadoria, mediante operação algorítmica.
24. A distribuição de serviço consiste em a R. indicar, sempre através da App, o ponto de recolha, o ponto de entrega e o valor a pagar por essa deslocação.
52. A plataforma determina os procedimentos que o estafeta tem de seguir na recolha e entrega dos produtos, nomeadamente, como utilizar a aplicação UBER EATS dando-lhe instruções sobre o momento em que deve introduzir a informação sobre a recolha/entrega que está a realizar.
53. A localização exacta do estafeta é conhecida pela plataforma UBER EATS através do sistema de geolocalização, quando o estafeta a mantém ligada.
54. O estafeta deve ter a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS para permitir a sua localização na aplicação, aquando do momento da atribuição do serviço.
56. O estafeta vai introduzindo dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega.
60. A Plataforma faz a ligação entre comerciantes, que desejam vender os seus produtos (não só alimentos), clientes, que desejam adquirir bens e que os mesmos lhes sejam entregues ou optem por eles próprios fazer a sua recolha, e contrata estafetas (como o Prestador de Atividade em causa na presente ação) que desejam fazer entregas aos clientes da R.
61. Na Plataforma, todos os estafetas são livres para decidir quando, como, onde, a que clientes, com que restaurantes e por que valor, face à proposta feita, querem prestar a sua atividade de entregas.
81. O estafeta AA pode utilizar qualquer mochila térmica da sua preferência.
Em total concordância com o defendido nos acórdãos do STJ proferidos em 17-09-2025 no processo n.º 1914/23.5T8TMR.E2.S1 e em 28-05-2025 no processo n.º 29923/23.7T8LSB.L1.S1,11 entendemos não só que a aplicação informática Uber Eats que o estafeta AA teve de instalar no seu telemóvel é um instrumento de trabalho fornecido pela Ré “Uber Eats”, como é o instrumento de trabalho mais importante, sem o qual a atividade desenvolvida pelo estafeta não podia ser realizada. É através dessa aplicação que o estafeta se inscreve, se submete às regras que lhe são impostas e que desenvolve a sua atividade, tomando conhecimento dos pedidos que lhe são apresentados e da remuneração a que tem direito, aceitando tais pedidos também nessa aplicação. De igual modo, através dessa aplicação toma conhecimento do local de recolha e do local de entrega, bem como do percurso a efetuar entre um e outro.
Assim, ainda que a mochila, o meio de transporte e o telemóvel não sejam fornecidos pela Ré “Uber Eats”, o instrumento de trabalho mais importante – a aplicação informática Uber Eats – é gerido por esta e é cedido ao estafeta AA se e enquanto a Ré quiser.
Pelo exposto, mostra-se igualmente preenchida a al. f) do n.º 1 do art. 12.º-A.
Mostram-se, assim, preenchidas cinco das seis alíneas prevista do art. 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho.
Importa, então, apurar se a Ré “Uber Eats” conseguiu ilidir a presunção de existência de contrato de trabalho entre ela e o estafeta AA assente nas cinco alíneas supramencionadas, uma vez que estamos perante uma presunção ilidível, nomeadamente através da prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata (n.º 4 do art. 12.º-A).
Conforme bem refere o acórdão do STJ proferido em 03-10-2025 no processo n.º 29352/23.2T8LSB.L1.S1:12
A presunção legal implica a inversão do ónus da prova, ficando o trabalhador dispensado de fazer a prova dos elementos constitutivos da relação laboral (art. 350º, nº 1, do C. Civil), embora seja admitida prova em contrário para a ilidir (nº 2 do mesmo artigo), mediante a prova pela contraparte de “factos positivos excludentes da subordinação”24, ou seja, da existência de trabalho autónomo ou da falta de qualquer elemento essencial do contrato de trabalho.25 Elementos que, à luz do art. 11º, do CT, são: i) obrigação de prestar uma atividade a outrem; ii) retribuição: e iii) subordinação jurídica.
De igual modo, nas palavras do acórdão do TRL proferido em 11-02-2015 e citado pelas autoras Milena da Silva Rouxinol e Teresa Coelho Moreira,13 a presunção de existência de contrato de trabalho mostra-se ilidida se os contraindícios “pela quantidade e impressividade, imponham a conclusão de se estar perante outro tipo de relação jurídica”.
Vejamos.
A relação contratual existente entre a Ré “Uber Eats” e o estafeta AA possui elementos factuais que se afastam da natureza típica de um contrato de trabalho e que a Ré logrou provar, como sejam, a não obrigatoriedade de o estafeta cumprir horário; a inexistência de o estafeta ter de cumprir um período mínimo de trabalho, seja diário, seja semanal, seja mensal, podendo estar longos períodos sem se ligar à aplicação informática; a possibilidade de o estafeta recusar as propostas que lhe surgem no écran do telemóvel; a possibilidade de o estafeta poder trabalhar, em simultâneo, para outras empresas de serviços de entrega, sem ter necessidade do consentimento da Ré “Uber Eats”; a possibilidade de se fazer substituir por outros estafetas, desde que igualmente inscritos na aplicação informática da Ré; e a possibilidade de desligar o GPS durante o exercício da sua atividade.
Ora, quanto a esta última, como já se referiu, tal possibilidade é contrária à própria funcionalidade deste tipo de serviço, não tendo a Ré “Uber Eats” provado que o estafeta AA alguma vez tenha usado desta “possibilidade”. Acresce que o uso dessa funcionalidade pode implicar que o acesso do estafeta à plataforma digital fique vedado de forma definitiva e sem aviso prévio. De igual modo, a Ré também não provou que o referido estafeta alguma vez se tenha feito substituir por outro trabalhador, visto que na situação que consta dos factos provados 49 e 50, o estafeta AA agiu como intermediário e não como estafeta e fê-lo durante um curto período e como forma de ajudar três amigos, não obtendo com a sua atuação qualquer benefício económico. Também não se provou que este estafeta, em concreto, tenha recusado as propostas que lhe surgiram no écran do telemóvel.
Efetivamente, não possuindo o estafeta qualquer possibilidade de negociar o contrato que subscreveu, visto que se limitou a aceitar um contrato pré-definido, aquilo que poderia relevar para afastar as presunções (no sentido da existência de um contrato de trabalho entre a Ré e o estafeta AA), sempre seria a situação, em concreto, deste estafeta e não a existência de meras cláusulas contratuais instituídas unilateralmente pela Ré “Uber Eats” e em prol dos seus interesses.
Assim, e quanto as essas possibilidades contratualmente concedidas pela Ré, não fez esta prova, como devia, visto lhe competir o ónus da prova, que este estafeta, no concreto exercido da sua atividade, as utilizou.
Provou, porém, a Ré que o estafeta AA, em maio de 2021, trabalhava a tempo inteiro para a “AutoEuropa”, realizando a atividade de estafeta após o seu horário de trabalho quer para a Ré, quer para a Glovo. Mais logrou provar que, posteriormente, o referido estafeta deixou de trabalhar para a “AutoEuropa”, passando a trabalhar no ramo dos seguros e a realizar a atividade de estafeta, sempre que tem disponibilidade, para a Ré, para a Glovo e para a Bolt.
Acontece, porém, que não se provou qual a importância de todos esses rendimentos no seu orçamento familiar, competindo à Ré ter provado que nesse orçamento familiar os rendimentos provenientes da Ré eram pouco relevantes e de carácter muito irregular.
Ora, só a prova destes contraindícios poderia afastar a forte presunção de existência de um contrato de trabalho entre a Ré e o estafeta AA que decorre do preenchimento de cinco alíneas do n.º 1 do art. 12.º-A.
Como bem refere o acórdão do STJ, de 03-10-2025,14 “[…] como se sabe, nem a exclusividade, nem a dependência económica, são elementos essenciais do contrato de trabalho.”
Por fim, importa referir que a inexistência de horário de trabalho e a possibilidade de os estafetas poderem aceder à aplicação informática apenas quando o pretendam, sem terem de cumprir um qualquer período mínimo diário, semanal ou mensal, podendo, inclusive, não aceder à referida aplicação durante períodos prolongados (sendo que, no caso, se provou que este estafeta esteve períodos até seis meses sem prestar a atividade de estafeta para a Ré, desconhecendo-se, porém, quantos períodos foram esses e se todos eles foram de seis meses ou bastante mais reduzidos), tendo ainda a possibilidade de aceitar ou recusar os pedidos que lhes são enviados para o écran do telemóvel, são características inerentes a este tipo de atividade e isso não impediu o legislador nacional (bem como as instituições europeias) de prever específicas situações que permitem inferir a presunção de um contrato de trabalho. Ora, no caso em apreço, em face da factualidade provada, a relação contratual estabelecida entre a Ré e o estafeta AA levou ao preenchimento de cinco presunções legais, nas quais especificamente se comprovou que o estafeta prestava uma atividade para aquela, em troca de uma retribuição paga com caráter regular e com critérios fixos, unilateralmente estabelecidos pela Ré, encontrando-se o estafeta sujeito a subordinação jurídica, quer através das normas unilateralmente impostas pela Ré quanto ao modo de exercício da atividade, quer através dos poderes exercidos pela referida Ré de controlo e supervisão da atividade efetuada, quer através da autoridade disciplinar consubstanciada na possibilidade de a Ré poder excluir, temporária ou definitivamente, a conta do estafeta na aplicação informática Uber Eats.
Diga-se, ainda, que a atribuição de um seguro de danos pessoais pela Ré ao estafeta AA, que é válido enquanto este estiver na aplicação informática (enquanto estiver login), também é revelador da existência de uma relação contratual laboral.
Pelo exposto, apenas nos resta concluir que os contraindícios existentes não se revelam suficientemente fortes, quer pela sua quantidade, quer pela sua impressividade, para abalar a presunção resultante do preenchimento das cinco alíneas do art. 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho, pelo que a relação contratual estabelecida entre a Ré “Uber Eats” e o estafeta AA é laboral.
Na esteira da sentença recorrida, considera-se que essa relação laboral se iniciou em 31-05-2021.
Pelo exposto, ainda que com algumas alterações quer na fundamentação fáctica, quer na fundamentação jurídica (designadamente quanto à al. d) do n.º 1 do art. 12.º-A), mantém-se a decisão proferida na sentença recorrida, improcedendo o recurso da Ré.
…
♣
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida, ainda que com fundamentos diversos quanto a partes da matéria factual e quanto a partes da fundamentação jurídica.
Custas a cargo da Ré “Uber Eats” (art. 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
♣
Évora, 27 de novembro de 2025
Emília Ramos Costa (relatora)
Paula do Paço
Mário Branco Coelho
__________________________________________________
1. Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Paula do Paço; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho.↩︎
2. Doravante “Uber Eats”.↩︎
3. Doravante AA↩︎
4. Em Os Incidentes da Instância, 11.ª Edição, Almedina, Coimbra, p. 19.↩︎
5. Vejam-se os acórdãos do TRP proferido em 08-07-2015 no processo n.º 1267/14.2T8MTS.P1; do TRL proferido em 09-10-2024 no processo n.º 2407/23.6T8PDL.L1-4; e do TRE proferido em 07-11-2024 no processo n.º 1451/23.8T8PTG.E1; todos consultáveis em www.dgsi.pt.↩︎
6. Acórdão do TRC, proferido em 20-06-2018, no âmbito do processo n.º 13/16.0GTCTB.C1, consultável em www.dgsi.pt.↩︎
7. Consultável em www.dgsi.pt.↩︎
8. Retificado por acórdão do STJ de 18-06-2025.↩︎
9. Ver também os acórdãos do STJ de 17-09-2025 proferidos nos processos nºs. 1914/23.5T8TMR.E2.S1, 29220/23.8T8LSB.L1.S1 e 31164/23.4T8LSB.L1.S1, consultáveis no mesmo site.↩︎
10. Consultável em www.dgsi.pt.↩︎
11. Consultáveis em www.dgsi.pt.↩︎
12. Consultável em www.dgsi.pt.↩︎
13. Em Direito do Trabalho, Relação Individual, 2.ª edição, Almedina, 2023, p.100.↩︎
14. Supramencionado.↩︎