IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
CAMINHO PÚBLICO
Sumário

Sumário da relatora:
Não é rigorosa – mas ainda assim, não é de rejeitar – uma impugnação em “bloco”, em que só se conclui pelo sentido dos factos, transcrevendo a gravação dos depoimentos e remetendo para documentos, sem fazer uma análise crítica que, permita compreender de que forma os referidos meios probatórios contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, não concretizando, como os mesmos impõem outra decisão, pois a remissão para a reprodução da gravação e para os documentos é apenas reproduzir o que consta dos autos.

Texto Integral

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

AA, propôs a presente acção declarativa contra BB e cônjuge CC, pedindo que seja reconhecido como público, um aceiro/caminho que existe na confrontação do prédio do Autor, com a consequente demarcação do mesmo em relação ao prédio dos Réus, a Norte e lado Poente a 3,5 m do ponto V1 do documento 13 para sul, a Nascente do ponto V3 do mesmo documento 22, a 1,5 m para Sul e com ligação de ambos os marcos (poente e nascente) ao marco identificado no interior no documento 16 e 22 e, uma vez considerado como público, seja feita a demarcação do prédio dos Réus com confrontação Norte com Aceiro/caminho publico, sendo os Réus condenados a remover todas as redes que impeçam a circulação pelo Aceiro/caminho e mesmo que tenham executados muros e colocados portões a remover de forma a permitir a circulação ou quando assim não se considere, que sejam os Réus condenados a permitir a circulação dos proprietários do prédio a Norte do prédio dos Réus poder circular no que agora é o referido Aceiro assim como quem pretenda ter acesso ao prédio e às casas.

Ser proprietário do prédio misto sito em Lugar 1, na freguesia do Vila 1, descrito na Conservatória do registo Predial de Cidade 1 6969/20101109, inscrita a parte Rústica na secção M do artigo matricial 19 e a parte urbana inscrito na matriz sob o artigo 1144, o qual veio à sua propriedade por herança de seu pai, prédio esse que a Sul confronta com um Aceiro, ou caminho público que serve para uso e passagem entre vários locais de habitacionais na zona rural e acesso às propriedades, utilizado desde tempos imemoriais, a ele se fazendo referência já em 1902, o qual tem início no Aceiro do caminho de ferro, atravessa parte do Vila 1, em troços uns alcatroados e outros em terra (actualmente) e passa a sul do prédio do Autor, confrontando com este e dividindo o prédio do Autor do prédio dos Réus, ligando ao caminho que passa a nascente do prédio do Autor.

Que vendeu aos Réus um prédio com área total de 1600m2, inscrito na matriz sob o artigo 4205 e descrito na Conservatória sob o registo 1333/19890719 que confronta a Norte com DD, Sul, Nascente e Poente com estradas, prédio este que é demarcado a Sul, pelo caminho/Aceiro, que da Estrada Municipal até ás casas construídas no terreno do Autor tem de largura cerca de 3,5m e das casas ao caminho a nascente tem entre 1m e 0,3m, o qual sempre foi usado pelos proprietários do prédio, como por terceiros, assim como pelos proprietários do actual prédio dos Réus, sendo utilizado por quem vinha do caminho e caminhos a poente do prédio e das casas e quintas e atravessavam para seguir pelo caminho/Aceiro que seguia para Poente ou provinham de Poente e seguiam para Nascente.

Posteriormente, a partir de Setembro de 2021, os Réus iniciaram um processo de construção de uma moradia e ocuparam o Caminho/Aceiro, colocando redes a Poente, junto à Estrada Municipal e a Norte e a Norte do Aceiro, em toda a sua extensão, assim demarcando o seu terreno mediante ocupação do Aceiro, que fazia a divisão dos dois prédios, o qual passaram a considerar como seu, assim passando a ter uma área superior à que lhes fora vendida e impedindo a circulação pelo Caminho/Aceiro, desde essa data, a todos os que usam o prédio do Autor, mesmo a pé.

Na contestação os RR. alegam que adquiriram o prédio ao Autor, o qual tinha as características inalteráveis e limites que apresenta a esta data, desde que o pai do Autor constava como proprietário, sendo que nunca foi feita, nem consta dos documentos oficiais, qualquer referência à existência a Sul ou a nascente de um “Aceiro”, que não existe e, por inerência, não há quem ali passe de carro ou a pé, sendo que em todo o caso, um “Aceiro” não é um caminho ou uma servidão passagem, como o Autor pretende que seja considerado. Invocaram ainda a falta de interesse em agir do Autor.

EE foi habilitado a ocupar o lugar do Autor.

Foi julgada improcedente a excepção de falta de interesse em agir.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu os Réus dos pedidos.

Inconformado com a sentença, veio EE interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):

«1- A douta sentença julgou improcedente o pedido formulado pelo Autor, mas fê-lo com base nos factos dados como provados e não provados.

2-Adecisão sobre a matéria de facto enferma de erro de julgamento, por não ter dado como não provados factos que deveriam ter sido dados como provados e a terem sido dado como provados teria alterado a matéria dada como provada.

3-A prova testemunhal prestada pelas testemunhas AA, FF e GG, pessoas com mais de cinquenta anos, conhecedores e frequentadores do local, deverão ser tidas como relevantes ao contrário das testemunhas dos Réus que apenas conheceram o local após a aquisição do terreno.

4- A sentença desvalorizou injustificadamente o depoimento da testemunha do Autor AA, quanto à identificação nas ___ do caminho.

Ora, nas fotografias o caminho é perfeitamente visível, apenas a parte das casas para a nascente e que foi encurtado é menos visível.

5- Foram dados como não provados incorretamente factos que deveriam ter sido dados como provados, por base em prova testemunhal e documental:

.-facto não provado iii-O caminho publico / Aceiro da Estrada Municipal até ás casas construídas no terreno do Autor tem largura de cerca de 3,5 e das casas ao caminho nascente tem entre 1m e 30cm » ,este facto deverá ser dado como provado .

.- facto não provado iv- «tal caminho apenas deixou de ser usado quando os Réus o vedaram e impediram a circulação em Setembro de 2021 » , este facto deverá ser dado como provado :

v-facto não provado v- Tal caminho apenas deixou de ser usado quando os Réus o vedaram e impediram a circulação em Setembro de 2021 » , este facto deverá ser dado como provado .

Assim ,o ponto 9,dos factos dados como provados deverá ser alterado para « Esse caminho que encurtava ,para quem vinha de poente , a ligação entre EN ...52 e o caminho publico que atualmente corresponde à Rua 1 deixou de ser usado em Setembro de 2021 quando os Réus os vedaram e impediram a circulação » .

6- Devem ser devidamente valorados os depoimentos das testemunhas AA , GG e FF e a prova documental junta como doc 1 fl 1 ,doc 3 fls 1 e 2 ,doc 7 ( de 1902) ,doc 13 , doc 17 e doc 19 , impondo-se assim decisão diversa

Termos em, deve ser concedido provimento ao presente recurso, ser considerado o aceiro a sul da propriedade do Autor como caminho publico e os os Réus condenados remover todas as redes e muros que impedem a circulação pelo aceiro / caminho, Assim se fará justiça».

Nas contra-alegações a Ré conclui pela improcedência do recurso.

Foram considerados provados na 1.ª instância os seguintes factos:

1) Até 19 de Outubro de 2020, AA era proprietário de dois prédios entre si contíguos, que lhe advieram por sucessão hereditária, um deles correspondendo ao prédio misto sito na Lugar 1, freguesia do Vila 1, concelho Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 6969, inscrita, a parte Rústica, na secção M do artigo matricial 19 e a parte urbana na matriz sob o artigo 1144, e o outro, correspondendo ao prédio urbano, sito na mesma localidade, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 4205 e descrito na referida Conservatória do Registo sob o n.º 1333.

2) Por escritura de 20 de Outubro de 2020, os Réus adquiriram a AA e esposa, livre de qualquer ónus ou encargos, o prédio urbano e logradouro, sito na Lugar 1, freguesia do Vila 1, concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 1333 da dita freguesia e inscrito na matriz sob o art.º 4205.

3) Tal prédio, tem a área registal de 1600m2, sendo a área coberta de 31m2 e descoberta de 1569m2 e confrontações registais a Norte com DD, Sul, Nascente e Poente com estradas.

4) Por escritura de 09 de Agosto de 2022, o Autor EE, adquiriu a AA o prédio misto sito na Lugar 1, EN ...52, freguesia do Vila 1, concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 6969 da dita freguesia e inscrito na matriz rústica sob o art.º 19, secção M e matriz urbana sob o art.º 11529.

5) Tal prédio, atravessado pela estrada nacional ...52, tem a área de 2875m2 e confrontações registais a Norte com os herdeiros de HH, Sul e Nascente com Aceiro e a Poente com herdeiros de II.

6) O prédio, na sua parte nascente, contém duas partes urbanas/construções, uma com o artigo matricial 1144, com 29m2 descrito na Conservatória e a outra com artigo matricial 2016, omissa na Conservatória.

7) No momento em que os Réus formalizaram a aquisição referida em 2), o Autor EE já residia e explorava o imóvel mencionado em 4).

8) A partir de data não concretamente apurada, mas seguramente durante o Século XX, era utilizado pelas pessoas em geral, a pé ou através de pequeno veículo, um caminho que vindo do lado poente, atravessava a hoje Estrada Nacional ...52, passava a sul do prédio do Autor, confrontando com este e separando-o do prédio dos Réus, o qual ligava ao caminho público que passa a nascente desses prédios.

9) Esse caminho, que encurtava, para quem vinha do poente, a ligação entre a EN ...52 e o caminho público que actualmente corresponde à Rua 1, deixou de ter utilidade e de existir, desde pelo menos o início do Século XXI.

10) Persistiu um acesso, com cerca de 3,5m de largura, que liga a Estrada Nacional ...52, à parte urbana do prédio do Autor, para exclusivo uso e comodidade deste.

11) Pese embora o referido em 10), o prédio do Autor mantém acesso directo à estrada pública, pelo lado oposto, na Rua 1, lado pelo qual igualmente é feito o acesso ao imóvel dos Réus.

12) Até Agosto de 2021, os Réus consentiram que o Autor acedesse ao imóvel referido em 4), a partir do caminho que ali liga à Estrada Nacional ...52 e que se desenvolve até esse imóvel.

13) Em Setembro de 2021, os Réus iniciaram um processo de construção/reconstrução de uma moradia no prédio por si adquirido e, desde então, cortaram o acesso referido em 12).

14) O procedimento referido em 13), teve lugar após levantamento topográfico georreferenciado, que identificou tal acesso como contido nos limites do prédio adquirido pelos Réus.

E não provados:

i) A sul da propriedade do Autor encontra-se um Aceiro/Caminho Publico, que ali atravessa desde tempos imemoriais e é usado para passagem de pessoas e bens.

ii) Esse caminho tem início no Aceiro do caminho de ferro, atravessa parte do Vila 1, em troços uns alcatroados e outros em terra, passa a sul do prédio do Autor, confrontando com este e dividindo o seu prédio com o dos Réus, seguindo para o lado oposto que liga ao Caminho que passa a nascente do prédio do Autor em terra batida.

iii) O caminho publico/Aceiro da Estrada Municipal até ás casas construídas no terreno do Autor tem de largura cerca de 3,5m e das casas ao caminho a nascente tem entre 1m e 30 cm.

iv) Com o corte de acesso, os Réus impediram a circulação pelo Caminho/Aceiro, além do Autor, de outros terceiros que se beneficiavam do dito caminho.

v) Tal caminho apenas deixou de ser usado quando os Réus o vedaram e impediram a circulação em Setembro de 2021.

vi) A demarcação do prédio dos Réus é a Sul do caminho /Aceiro, encontrando-se um marco a meio do terreno e sul do Caminho/Aceiro.

vii) Na extrema Nascente, o marco que delimitava o terreno dos Réus foi removido com as obras e a Poente o marco da extrema Norte do terreno dos Réus encontra-se a Sul do caminho /Aceiro.

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

2 – Objecto do recurso.

Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso:

1.ª Questão – Se devem ser dados como provados os factos vertidos na matéria dada como não provada correspondentes aos pontos impugna os pontos i.ii ,iii.iv,v e os factos 9 ,10 ,12 dados como provados, considerados não provados, sendo o facto 9 alterado para « Esse caminho que encurtava ,para quem vinha de poente , a ligação entre EN ...52 e o caminho publico que atualmente corresponde à Rua 1 deixou de ser usado em Setembro de 2021 quando os Réus os vedaram e impediram a circulação » .

2ª Questão – Se o caminho é publico.

3 - Análise do recurso.

1.ª Questão – Saber se devem ser dados como provados os factos vertidos na matéria dada como não provada correspondentes aos pontos impugna os pontos i.ii ,iii.iv,v e os factos 9 ,10 ,12 dados como provados ser considerados não provados, sendo o facto 9 alterado para « Esse caminho que encurtava ,para quem vinha de poente , a ligação entre EN ...52 e o caminho publico que atualmente corresponde à Rua 1 deixou de ser usado em Setembro de 2021 quando os Réus os vedaram e impediram a circulação » .

A motivação da convicção na sentença a propósito da matéria impugnada é a seguinte:

« No que concerne aos factos 8) e 9), que correspondem ao cerne da acção, o Tribunal levou em consideração o conjunto da prova produzida, com especial enfoque para a prova documental consistente no recurso a imagens de satélite e via terrestre, colhidas por fonte independente (google), na medida em que se é certo que no passado a prova testemunhal era “rainha”, hoje, os meios tecnológicos, permitem-nos “recuar no tempo” e aceder a imagens de satélite de há vários anos atrás, o mesmo sucedendo com a captação de imagens colhidas nas vias públicas, conforme vieram a ser amplamente juntas aos autos, como consta das actas de 15/11/2023 e de 15/01/2025, permitindo um melhor detalhe e fidedignidade do estado dos prédios.

Nessa medida, iniciando pelos aspectos menos controversos da prova, ficou claro, em relação ao facto 9), que o caminho que o caminho que as testemunhas reportaram existir/ter existido (nomeadamente, testemunhas AA, JJ, FF e GG) e sinalizado nas actas de 15/11/2023 e de 15/01/2025, percorria uma propriedade privada e servia, tão só, para encurtar a ligação de quem vinha do poente e a Rua 1 (ou vice-versa), sendo insofismável, quer pelos depoimentos das testemunhas, quer pelo conjunto do acervo fotográfico, que não era um caminho necessário ao acesso às vias públicas, mas apenas conveniente (pois como se verifica do conjunto da reportagem fotográfica, existe ligação devidamente demarcada pelo uso, entre a EN e a actual Rua 1, na parte da aresta sul do prédio que actualmente pertence aos Réus), ainda que a sua conveniência ficasse exacerbada em épocas de chuvas, em que a estrada do lado oposto ocorria ficar alagada, servindo tal caminho um modo de chegar à EN (o que deixou de ser necessário no início do Séc. XXI, com a implementação de escoamentos).

Por outro lado, em relação ao restante do facto 9) e facto 8), ficou absolutamente claro para o Tribunal que em Maio/2003, um semelhante caminho, como alegado na petição, não existia (cf. conjunto de recolha de imagens de satélite constantes da acta de 15/01/2025, sendo a mais antiga de Maio/2023), dado que o mesmo não resulta documentado em qualquer elemento fotográfico ao longo dos vários anos que decorreram até à aquisição do prédio pelos Réus, em 2022, ali não se enxergando (nem sequer indiciariamente) qualquer alteração morfológica do solo consistente com a passagem de pessoas e/ou veículos que atravessassem o prédio, sendo de notar que ao longo da recolha de imagens, que percorreram quase 2 décadas, em momento nenhum surgem tais indícios, isto contrariamente ao caminho que faz o acesso entre a EN e as casas, este perfeitamente visível e identificado pelo seu uso (com marcas de rodados), o que aliás consistente com o depoimento da testemunha FF, a qual deu conta de que em tempos existiu um caminho “particular, mas de serventia pública” (sic), de utilização exígua nos últimos anos, pois que o então Sr. DD (pai da testemunha e anterior Autor, AA), havia ali feito uma pequena estufa junto ao caminho, há cerca de 20 anos (na altura em que a esposa do Sr. DD teria falecido, em 2004 ou 2005), de modo que o estreitou (“deixando de passar carroças”), ainda que tenha sustentado que após esse momento, esporadicamente haviam pessoas que ali continuavam a passar a pé e de bicicleta (isto porque o Sr. AA o permitia ou no dizer desta testemunha, porque era uma pessoa “maravilhastica”, sic), apesar de não ter qualquer utilidade senão apenas para o dono das casas, pois que feita a modernização da vala, a estrada principal já não inundava, não havendo necessidade de transeuntes passarem por ali.

Convenhamos que o acervo fotográfico recolhido infirma a existência de qualquer caminho, a pé ou de carro, como é exemplo a imagem “5” (datada de Maio/2009), colhida na acta da audiência de partes de 15/11/2023, onde ao pormenor da faixa esquerda da casa verde, onde o Autor sustenta que o aceiro/caminho torneia a casa, não se identifica existir qualquer caminho – como certa e seguramente se identificaria se fosse utilizado pelo público em geral –, nem faz sentido que existisse, pois que se apura ali a existência de uma pequena plantação de produtos hortícolas e uma pequena construção abarracada (presumivelmente, pelo dizer das testemunhas AA e FF, uma pequena estufa) que impediria a passagem que o Autor alegava existir, ainda que fisicamente fosse possível ali transitar os particulares que se beneficiavam do terreno ou terceiros a título esporádico ou pontual, com o conhecimento ou anuência do proprietário.

É por isso que o depoimento de AA (já não como parte, mas na qualidade de testemunha), repleto de pormenores consistentes, solidez discursiva, assente em razão de ciência estabelecida (pois, afinal, foi ali que nasceu e cresceu), depondo circunstanciadamente sobre a existência do caminho, emperrou no momento em que foi confrontado com as reportagens fotográficas, não conseguindo discernir, nas imagens que lhe foram exibidas (e às quais já nos referimos), a existência do dito caminho que persistiu em afirmar existir ao longo do tempo, até à intervenção dos Réus, afirmando que este existia, mesmo que não visível.

Ora, convenhamos que não é por não existir qualquer recolha de imagem do dito caminho que nos leva a concluir que as testemunhas que se reportaram ao caminho não foram fidedignas. Pelo contrário, nas subtilezas discursivas das testemunhas (quase todas elas amadurecidas pela idade), ficou patente a tendência do discurso pretérito perfeito, não raras vezes recordando a passagem de “carroças” no local (como se a utilização de carroças fosse coisa recente ou própria no séc. XXI, mesmo em meios mais rurais!), indicando memórias de um passado não recente, que confirmam a existência do caminho, mas que não foram hábeis a justificar e a identificar a sua existência actual (isto é, nos anos que antecederam o negócio de compra e venda entre AA e os Réus), ainda que levados a afirmar saber que há uns anos ainda lá passavam pessoas.

Isto foi o que sucedeu, nomeadamente, com o testemunho de JJ (que afirmou conhecer os prédios desde 1980), o qual relatou ser do seu conhecimento que existia um caminho, utilizado por tractores e bicicletas, que vinha da EN e passava junto à empena sul da casa do Autor, indo posteriormente dar à estrada, no lado oposto, caminho que segundo esta testemunha, deixou de ser usado quando os Réus edificaram ali um muro. Todavia, mais recentemente, não conseguiu identificar tal caminho, uma vez confrontado com as imagens, expressou dúvidas sobre a possibilidade de carros passarem ali.

Também assim GG, que com 62 anos, deu conta de que acedia ao caminho na sua infância (ia com o avô comprar plantas ao pai do Sr. AA), entrando na propriedade deste a partir da Rua 2 (agora Rua 1) e que outros também o faziam, nomeadamente, quem queria apanhar o autocarro atravessava ali, justificando-se o caminho porque em certos Invernos, a antiga vala inundava a estrada principal, referindo, todavia, que esse caminho “deixou de existir” quando o Sr. DD morreu (o que se sabe ter ocorrido em .../.../2018, face ao teor do doc. 4 em anexo à PI).

Todavia, tese do caminho (público ou privado) foi refutada, de forma peremptória, pela testemunha KK (que se nos afigurou isento e credível), topógrafo inicialmente contratado pelo então Autor, AA (e que mais tarde vira igualmente a prestar os seus serviços a pedido de uma empresa contratada pelos Réus), o qual fez um levantamento dos prédios em 2019, que relatou inequivocamente que não existia qualquer caminho que atravessasse os prédios, nomeadamente, entre a EN e a Rua 1, mas apenas uma entrada entre a EN e as casas, em exacta consonância com o teor das imagens juntas aos autos.

Acresce que de acordo com as regras da lógica da experiência (art.º 349.º do CCiv.), se existisse ali um caminho público que atravessasse a estrada nacional, a ser utilizado por peões de forma regular, certamente que existiria ali uma passadeira, que também não existe, como resulta das imagens, nomeadamente, as que constam da acta de 15/01/2025.

Também é certo que acordo com as regras da lógica da experiência, se existisse ali um caminho público este seria perfeitamente visível e não apenas conhecido de existir, sem quaisquer sinais aparentes (de notar, por exemplo que a testemunha KK foi ao local em 2019 e deu conta de que tal caminho não existia, contrariando, por exemplo, os testemunhos de JJ e AA, que depuseram no sentido de que o caminho só deixou de existir com a intervenção da obra dos Réus, isto em Setembro de 2021).

E também é certo que não resulta nem da lógica nem da experiência, a passagem de caminhos públicos entre a empena das casas e plantações agrícolas não muradas (isto é, ao dispor de qualquer transeunte que por ali se desloque).

Mais resulta do doc. 9 junto com a contestação, em refutação à existência/persistência do dito caminho, que a CMP lançou a informação, a solicitação dos Réus, de que “não existe qualquer caminho considerado municipal que Atravesse o Art. 26, secção M da Freguesia de Vila 1 no Concelho de Cidade 1.”

Portanto, a convicção segura do Tribunal é a de que o conjunto dos depoimentos de AA, JJ, FF e GG, aliados aos documentos 7 a 9 em anexo à P.I. (documentos estes, do Séc. XX, um deles, indicado como sendo de 1902), indica que em tempos, e pelo menos durante o Século XX, existiu ali efectivamente um caminho que era utilizado pelas pessoas em geral, a pé ou em pequenos veículos (nomeadamente para irem adquirir produtos hortícolas aos proprietários daquele prédio), que vindo do lado poente, atravessava a hoje conhecida Estrada Nacional ...52, o qual ligava ao caminho público que passa a nascente desses prédios (ou vice-versa). Todavia, ficou o tribunal convicto que esse caminho deixou de ser utilizado, de ter qualquer conveniência para o público em geral e, consequentemente, de existir, desde pelo menos o início do Século XXI (na medida em que ao menos em 2003/2004, já não existia), como resulta evidente das imagens fotográficas constante das actas de 15/11/2023 e de 15/01/2025, mas também das próprias imagens juntas pelo Autor, como os doc. 13, 17 ou 18, juntas com a P.I. (sem prejuízo de se verificar existir um carreiro naquele local (em tempos idos de fotos a preto e branco), como consta do doc. 19, que a testemunha AA identificou como imagem recolhida entre 1971 e 1974.

Por último, a passagem apenas de pessoas a pé ou em pequenos veículos, resulta da apreciação do conjunto de imagens do doc. 19 ou a 3.ª imagem em anexo ao doc. 17 (e, aliás, a explicação oferecida pela testemunha JJ e AA), que sinalizaram só ali poderiam passar pessoas a pé ou num pequeno veículo (bicicletas, motos ou mini tractor), já que o próprio veículo ali parqueado, um “Mini”, é consabidamente de (muito) reduzidas dimensões e que, no caso, tão pouco se afigura apto a percorrer – em segurança –, o caminho/trilho/carreiro junto à empena da casa, tanto mais que é incompatível, conforme alegado na P.I., que o dito caminho “das casas ao caminho a nascente tem entre 1m e 30 cm”, pois que nenhum veículo motorizado de 4 rodas tem menos de 1m de largura, sendo de afastar, porque não credível, a ideia de passagem de outros veículos de maior largura.

Quanto ao conjunto de factos 10) e 11), o mesmo resultou da globalidade da prova (fotos, declarações de parte e depoimentos de testemunhas), que foi corroborante naquele exacto sentido, sendo perfeitamente visível o acesso com cerca de 3,5m de largura, que liga a Estrada Nacional ...52, à parte urbana do prédio do Autor, para exclusivo uso e comodidade deste (já que o caminho dá a um pequeno logradouro junto às casas, isto apesar de manter o acesso directo ao seu prédio, pelo lado oposto, na Rua 1, lado pelo qual igualmente é feito o acesso ao imóvel dos Réus, como resulta, nomeadamente, das imagens 6 e 7 em anexo à acta de 15/11/2023 e depoimentos das testemunha LL ou KK.

(…) A respeito dos factos não provados, os factos i) a v) resultam da sua contradição com a matéria provada, pelas razões acima constantes, sendo de notar que era ao Autor e não aos Réus (art.º 342.º n.º 1 do CCiv.), quem competia fazer prova inequívoca da existência de um caminho público, isto é, um caminho de uso directo e imediato do público e de afectação a utilidade pública (isto é, com interesse para o público), prova essa que não foi feita, já que para além de não se ter provado que o mesmo existisse (actualmente), menos ainda se provou qualquer sentido, utilidade ou interesse na sua existência, já que o conjunto dos prédios do Autor e dos Réus, é torneado a poente, sul e nascente, por estradas públicas, sendo perfeita estultice – aos dias que correm –um semelhante caminho a onerar a propriedade privada para pedestres pouparem poucas dezenas de metros a pé.

A respeito dos factos vi) e vii), apesar do depoimento de AA (que, na verdade, não é uma testemunha isenta, pois foi quem moveu a presente acção), foram contrariados, com razão de ciência, pela testemunha KK, topografo que fez o levantamento inicial tanto para AA, como posteriormente para os Réus, dando conta de ser “nítido” que o marco estava errado e das razões para a incorrecta demarcação aventada pelo então Autor, AA, a quem terá explicado o equívoco e que “o Sr. AA reconheceu”. Uma vez mais, aqui, mais que não fora a insubsistência da prova, valeria a regra do art.º 342.º n.º 1 do CCiv. e 414.º do CPC, não podendo tais factos ser considerados provados.»

O recorrente fundamenta as alterações pretendidas da seguinte forma:

«nas declarações das testemunhas ao descrever os caminhos, nomeadamente AA, GG e FF relativo ao aceiro / caminho estão conforme documentos juntos, tendo mesmo que se concluir da documentação que o prédio do Autor confronta a Sul em toda a sua extensão com aceiro /caminho.

Devendo concluir-se da documentação referida, o aceiro/caminho e proveniência estão conforme as declarações das testem unhas MM e FF .

O dito Aceiro / caminho encontra-se colocado a Sul do prédio do Autor ,tratando-se do caminho identificado nos autos e identificado no doc 3 fls 1 e 2 , caminho que se encontrava identificado nos mapas doc 7 .

O Réu e aqui recorrente , entende que há contradição entre o facto 8 dado como provado e o facto 9 ,porquanto no facto 8 é dito e dado como provado que: «seguramente durante o século XX era utilizado pelas pessoas em geral , a pé ou através de pequeno veículo , …..» e o facto 9 dá como provado « deixou de ter utilidade e de existir ,desde pelo menos o inicio do século XX .

Dando-se como provado, ter sido usado seguramente durante o século XX, não se poderia dar como provado que deixou de existir ou deixou de ter utilidade desde o início do século XX.

Para não estar o ponto 9 em contradição com o ponto 8 ,teria que ser dado como provado-ponto 9:« Esse caminho , que encurtava ,para quem vinha de poente , a ligação entre a EN ...52 e o caminho publico ,que atualmente corresponde à Rua 1 ,deixou de ter utilidade e de existir , desde pelo menos o inicio do século XXI ».

Mas, mesmo dando-se como provado que apenas por erro se refere ´século XX e não XXI, mesmo assim, entende o recorrente que foi indevidamente dado como provado nos termos que foi formulado.

Deverá ser dado como provado ,ponto 9-« Esse caminho que encurtava , para quem vinha de poente , a ligação entre a EN ...52 e o caminho publico que atualmente corresponde à Rua 1 , existiu e continuou a ser usado desde o inicio do século XX até Setembro de 2021 altura que os Réus iniciaram o processo de construção / reconstrução de uma no prédio por si adquirido e desde então ,cortaram o acesso » .

Ponto 10- Foi dado como provado «Persistiu um acesso, com cerca de 3,5 m largura, m que liga a estrada nacional 252, à parte urbana do prédio do Autor, para exclusivo uso e comodidade deste.».

Dando-se como provados os factos si, iii,iv e v -deve ser retirado este facto da matéria dada como provada ou então ser dado como provado que « O caminho publico / Aceiro da estrada Municipal até ás casas construídas no terreno do Autor tem a largura de cerca de 3,5m e das casas ao caminho a nascente tem entre 1m e 30cm e com o corte de acesso os Réus impediram a circulação pelo caminho / Aceiro , além do Autor , de outros terceiros que se beneficiavam do dito caminho ». Ponto 12 e 13 – Dando-se como provado o facto não provado v-« Tal caminho apenas deixou de ser usado quando os Réus o vedaram e impediram a circulação em Setembro de 2021 », devendo dar-se como provado nos pontos 12 e 13 « Tal caminho apenas deixou de ser usado quando os Réus o vedaram e impediram a circulação em Setembro de 2021 ».

Ora, decorre desta argumentação, uma impugnação em “bloco”, como refere a recorrida, já que o recorrente se limita a concluir pelo sentido dos factos, transcrevendo a gravação dos depoimentos de AA e GG e remetendo para os documentos, sem fazer uma análise crítica que, permita compreender de que forma os referidos meios probatórios contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, não concretizando, como é que os meios probatórios que indica, impõem outra decisão, como exige a lei.

Remeter para a reprodução da gravação e para os documentos é apenas reproduzir o que consta dos autos.

Parece decorrer da exposição que, o recorrente pede a alteração dos factos não provados (que entende que deverão passar a provados), para concluir depois que, por aqueles passarem a provados, haverá que alterar os factos 9 ,10 ,12 dados como provados.

Tal configura um raciocínio circular.

Pese embora esta impugnação não rigorosa da matéria de facto, sempre se dirá que concordamos com a apreciação da prova feita na 1ª instância.

Não se vislumbra qualquer contradição entre o facto 8 dado como provado e o facto 9 (Dando-se como provado ,ter sido usado seguramente durante o século XX ,não se poderia dar como provado que deixou de existir ou deixou de ter utilidade desde o inicio do século XX .)

É que, no facto 9 não se refere “XX”, como diz o recorrente, mas sim “XXI”.

Por outro lado, analisámos a prova correspondente aos meios técnicos existentes, que de resto não foram postos em causa pelo recorrente e dos mesmos resulta claramente que não existe o caminho alegado na PI.

O que resulta das imagens de satélite e via terrestre, colhidas por fonte independente (google), juntas aos autos, como consta das actas de 15/11/2023 e de 15/01/2025, é que ), é que não existe o alegado caminho, contrariando a tese do recorrente correspondente à matéria impugnada ( de que os pontos i.ii ,iii.iv,v devem ser dados como provados e os factos 9 ,10 ,12 dados como provados ser considerados não provados, sendo o facto 9 alterado para « Esse caminho que encurtava ,para quem vinha de poente , a ligação entre EN ...52 e o caminho publico que atualmente corresponde à Rua 1 deixou de ser usado em Setembro de 2021 quando os Réus os vedaram e impediram a circulação ).

E tal constatação não é infirmada pelos depoimentos em causa.

Ouvida a gravação dos depoimentos verifica-se o seguinte:

É fundamental o depoimento da testemunha KK, topógrafo (inicialmente contratado pelo então Autor, AA e que mais tarde viria igualmente a prestar os seus serviços a pedido de uma empresa contratada pelos Réus, o qual fez um levantamento dos prédios em 2019 e foi bastante credível, isento e objectivo ao depor).

Através do seu conhecimento do terreno e da explicação das imagens de satélite e via terrestre, conclui de forma bastante clara, que não existia um caminho que atravessasse os prédios, mas sim uma “Entrada”, entre a EN e as casas.

Embora AA – inicialmente parte na acção – se tenha referido a um caminho existente, perante as imagens de satélite e via terrestre não conseguiu identificar o mesmo.

Foi inconclusivo o depoimento da testemunha JJ (que afirmou conhecer os prédios desde 1980), o qual relatou ser do seu conhecimento que existia um caminho, utilizado por tractores e bicicletas, que vinha da EN e passava junto à empena sul da casa do Autor, indo posteriormente dar à estrada, no lado oposto, mas, quando confrontado com as imagens de satélite e via terrestre, também não identificou o caminho.

A testemunha GG, que com 62 anos, referiu um caminho na sua infância que entrava na propriedade do Sr. AA, mas afirmou que esse caminho “deixou de existir” quando o Sr. DD morreu (2018).

Do doc. 9 junto com a contestação, conta a informação da CMP - no mesmo sentido do depoimento do topógrafo KK: “não existe qualquer caminho considerado municipal que Atravesse o Art. 26, secção M da Freguesia de Vila 1 no Concelho de Cidade 1.”

De acordo com a análise da prova que acabámos de expor, não há razão para alterar os factos nº 9, 10, 12 e 13 (até porque correspondem ao reflexo dos factos não provados, cuja impugnação considerámos improcedente).

Ou seja, improcede totalmente a impugnação da matéria de facto.

2ª Questão – Saber se o caminho é publico.

Defende o recorrente que, a alteração da matéria de facto conduz ao reconhecimento da dominialidade de um caminho publico.

Logo, da improcedência da impugnação da matéria de facto decorre a improcedência total do recurso.

4 – Dispositivo.

Pelo exposto acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e manter a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente- art.º. 527.º, n.º 1, do CPC.

Elisabete Valente

António Fernando Marques da Silva

Sónia Moura