Sumário:
I. O reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens de águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis tem lugar, entre outros casos, quando:
a) A parcela esteja integrada em zona urbana consolidada, conforme definição do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação;
b) Fora da zona de risco de erosão ou invasão do mar;
c) E se encontre ocupada por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado.
II. Estes são os pressupostos constitutivos do direito a obter o reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos parcelas de leitos ou margens de águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis à luz da al. c), do n.º 5, do artigo 15º, da Lei 54/2005, de 15 de novembro.
III. O n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, insere-se na linha de simplificação do regime probatório documental previsto, em geral, no n.º 2 desse mesmo artigo, e aplica-se não apenas a margens como a leitos, de quaisquer águas navegáveis e também de águas do mar, uma vez que tal norma não prevê expressamente quaisquer limites aos recursos hídricos por ela abrangidos.
ACÓRDÃO
I. RELATÓRIO
1. “CAPABLE TALENTS, LDA.” demandou o ESTADO PORTUGUÊS, devidamente representado pelo Ministério Público, o que fez ao abrigo do disposto no n.º 5, do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005 de 15 de novembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 78/2013, de 21 de novembro e pela Lei n.º 34/2014, de 19 de junho, pedindo que seja reconhecido o seu direito de propriedade relativo ao prédio urbano com área total de 1072,53 m2 descrito na Conservatória de Registo Predial de Cidade A, sob o n.º 12390, sito na Rua 1, das freguesias de Local B), com as características, dimensão e localização do mesmo, por se integrar em zona urbana consolidada, como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar e encontrar-se ocupado por construção anterior a 1951.
2. O réu/Estado Português contestou argumentando que não se encontram preenchidos os requisitos enunciados na al. c), do n.º 5, do 15.º, da Lei n.º 54/2005, na sua actual redacção e que, por isso, a acção deve improceder.
3. Foi proferido despacho saneador sentença que assim o decidiu absolvendo o Réu do pedido.
4. É desta decisão que recorre a Autora, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
1.ª O Despacho Saneador-Sentença ora recorrido é nulo no que respeita à mencionada apreciação do pedido quando enquadrado “nos demais números do artigo 15.º, da referida lei”, por violação do princípio dispositivo, concretamente dos limites da condenação definidos no n.º 1 do artigo 609.º do CPC, nos temos e para os efeitos do artigo 615.º do CPC;
2.ª O Despacho Saneador-Sentença ora recorrido padece de erro de julgamento ao ter decidido “que a parcela em causa se encontra em zona de risco de erosão ou invasão do mar” e, como tal, ter negado o conhecimento dos demais requisitos da alínea c), do número 5 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005 bem como ter recusado a respetiva aplicação;
3.ª Não obstante a invocada prejudicialidade, o Despacho Saneador-Sentença ora recorrido concluiu que da “diversa documentação camarária” junta, “resulta certificada a existência de zona urbana consolidada”, dando como provados os factos 4, 7, 8 e 10 que preenchem o conceito de “zona urbana consolidada” tal como ele é definido na al. o) do art. 2.º do RJUE (cfr. fl. 12 do Despacho Saneador Sentença ora recorrido);
4.ª Não obstante a invocada prejudicialidade, o Despacho Saneador-Sentença ora recorrido concluiu que da “diversa documentação camarária” junta, “resulta certificada a (…) isenção de licenciamento, atenta a antiguidade do imóvel”, resultando dos factos provados 12 a 15 a certificação camarária da “existência de construção anterior a 1951”, somente sujeita à prova documental.
5.ª O Despacho Saneador-Sentença ora recorrido padece de erro de julgamento ao ter decido “que a parcela em causa se encontra em zona de risco de erosão ou invasão do mar” com base numa “força probatória plena das certidões emitidas pela APA”, por tal interpretação ser contrária ao disposto no n.º 1 do artigo 371.º do Código Civil;
6.ª A Certidão da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P. consubstancia-se, não apenas, numa reprodução da documentação/legislação no que respeita à classificação da parcela em causa, como também, numa análise técnico/jurídica sobre o preenchimento do conceito de “zona de risco de erosão ou invasão das águas”, sendo essa última necessariamente enquadrada, para efeitos probatórios, na última parte do disposto no n.º 1 do art. 371º do Código Civil, ou seja, sujeito à livre apreciação do julgador (cfr. Ac. do TR de Évora de 08.11.2008, Proc. n.º 1003/16.9T8FAR.E1, disponível em www.dgsi.pt);
7.ª A Certidão da Agência Portuguesa do Ambiente não certifica a existência de qualquer "risco" a que se refere a al. c), do n.º 5, do artigo 15.° da Lei que Estabelece a Titularidade dos Recursos Hídricos, mas antes, e somente, a inclusão do imóvel nela identificado em área de inundação, de acordo com o Plano de Gestão dos Riscos de Inundações;
8.ª O reconhecimento da propriedade ao abrigo da al. c) do n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro “não tem como requisito negativo a circunstância de as parcelas não estarem sujeitas a cheia progressiva ou rápida”, uma vez que a “prevenção do risco de inundações é matéria diversa, contemplada designadamente no Decreto-lei nº 115/2010, de 22.10, havendo mesmo um Plano de Gestão de Riscos de Inundações da Região Hidrográfica” (cfr. Ac. TR de Lisboa de 04.07.2023, Proc. n.º 2376/19.7T8ALM.L1-7, disponível em www.dgsi.pt);
9.ª O risco de erosão ou de invasão das águas do mar previsto na al. c), do n.º 5, do Artigo 15º da Lei nº 54/2005 é uma realidade distinta do risco de inundações, cheias e aumento do nível do mar por força das alterações climáticas, não sendo esta última realidade relevante para efeitos do preenchimento do normativo legal que fundamentou o pedido da Autora ora Recorrente;
10.ª O Despacho Saneador-Sentença ora recorrido padece de erro de julgamento ao não ter concluído que o imóvel da propriedade da Autora não se insere em área correspondente a zona de risco de erosão ou de invasão das águas do mar “a que se refere a al. c), do n.º 5, do artigo 15.°, da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro”, mas apenas em área de inundação, a que se refere o Plano de Gestão dos Riscos de Inundações.
11.ª O Despacho Saneador-Sentença ora recorrido padece de erro de julgamento ao não decidir pela verificação de todos os requisitos da alínea c), do número 5 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, e, consequentemente, reconhecer a titularidade da parcela objeto dos presentes autos à Autora ora Recorrente.
NESTES TERMOS, Deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando- se a douta Sentença recorrida, com as legais consequências.
SÓ ASSIM SE DECIDINDO SERÁ CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA!”.
5. Contra-alegou o Ministério Público defendendo a improcedência do recurso.
6. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões nelas suscitadas:
6.1. Se a sentença enferma de nulidade;
6.2. Se o reconhecimento da propriedade da apelante ao abrigo da al. c) do n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro “não tem como requisito negativo a circunstância de as parcelas não estarem sujeitas a cheia progressiva ou rápida” e se se mostram preenchidos todos os requisitos para a procedência do pedido à luz desse normativo.
II. FUNDAMENTAÇÃO
7. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida que, aliás, não foi impugnada pela recorrente:
1. O prédio urbano descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Cidade A sob o n.º 12390 (atualmente descrito sob o n.º 5984), possui as seguintes inscrições na respetiva matriz predial: prédio urbano com a área de 692,03 m2, sito na Rua 1 n.º 80, União das Freguesias de Local B, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 8602 que teve origem no artigo 2446; prédio urbano com a área de 124,50 m2, sito na Rua 1 n.º 82, União das Freguesias de Local B, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 2856; prédio urbano com a área de 75,00 m2, sito na Rua 1 n.º 84, União das Freguesias de Local B, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 2758; prédio urbano com a área de 76,00 m2, sito na Rua 1 n.º 86, União das Freguesias de Local B, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 2760; prédio urbano com a área de 104,00 m2, sito na Rua 1, União das Freguesias de Local B, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 2960.
2. Da Planta de Localização emitida pelo Município de Cidade A resulta que o referido imóvel se encontra próximo do Rio C.
3. De acordo com os instrumentos de gestão territorial aplicáveis, nomeadamente, o Plano Diretor Municipal e o Plano de Urbanização de Cidade A, o prédio da autora encontra-se atualmente inserido em solo classificado como Solo Urbano, como Espaço Central 1.
4. Correspondendo a uma área urbana de usos mistos que integra funções habitacionais e uma concentração diversificada de atividades terciárias, desempenhando, pelas suas características, funções de centralidade e representando a maior concentração e diversidade de usos urbanos no concelho de Cidade A.
5. Ainda, de acordo com os instrumentos de gestão territorial aplicáveis, o prédio da autora encontra-se inserido em Área de Sensibilidade Arqueológica, em Área Urbana de Valor Arqueológico Potencial.
6. O imóvel da autora encontra-se fora da área abrangida pelo Plano de Ordenamento da Orla Costeira Vilamoura-Vila Real de Santo António ou pelo Plano de Ordenamento do Parque Natural da Ria Formosa.
7. O imóvel situa-se dentro do perímetro urbano de Cidade A, sendo servido por acessos rodoviários alcatroados e demais infraestruturas essenciais.
8. Aquele imóvel encontra-se, igualmente, integrado em zona caracterizada por possuir uma estrutura urbana definida, onde se encontram definidos os alinhamentos dos planos marginais por edificações em continuidade, fazendo parte integrante da malha urbana de Cidade A.
9. Pela Ap. 4613, de 3/3/2023 mostra-se registada a aquisição do direito de propriedade do imóvel descrito no ponto 1º supra a favor da autora, por compra, a AA, BB e CC.
10. Da Planta de Localização emitida pelo Município de Cidade A resulta que aquele imóvel se insere no cerne da unidade integrada de povoamento e ocupação do território de Cidade A, representando uma zona original de fixação do homem naquele território, que deu lugar a uma povoação com as características de urbanismo que são próprias da cidade.
11. De acordo com a respetiva certidão predial o prédio em causa é composto por “cinco edifícios com quintal e dependências - a) Edifício térreo - SC - 692,03 m2; SD - 286,07m2 - artigo: 8602; b) Edificio com 2 pisos e quintal - SC - 96m2; SD - 8m2 - artigo: 2960; c) Edificio de 2 pisos - SC - 124,50m2 - artigo: 2856; d) Edificio térreo com quintal - SC -76m2; SD - 20m2 - artigo 2760; e) Edificio térreo com quintal - SC -76m2; SD - 20m2 - artigo 2758”.
12. Da certidão emitida pelo Município de Cidade A em 22/10/2021 resulta que: “(…) o prédio urbano sito na Rua 1 número oitenta, união de freguesias de Local B, inscrito na respetiva matriz sob o artigo oito mil, seiscentos e dois e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o número cinco mil novecentos e oitenta e quatro, de treze de outubro de dois mil e nove, freguesia de Local B), foi construído anteriormente a mil novecentos e cinquenta e um, em data que não é possível precisar” (Doc. 9 junto com a petição inicial).
13. Da certidão emitida pelo Município de Cidade A em 22/10/2021 resulta que “(…) o prédio urbano sito na Rua 1, número oitenta e quatro, união de freguesias de Local B), inscrito na respetiva matriz sob o artigo dois setecentos e cinquenta e oito descrito na Conservatória de Registo Predial sob o número cinco mil novecentos e oitenta e quatro, de treze de outubro de dois mil e nove, freguesia de Local B) foi construído anteriormente a mil novecentos e cinquenta e um, em data que não é possível precisar” (Doc. 10 junto com a petição inicial).
14. Da certidão emitida pelo Município de Cidade A em 22/10/2021 resulta que, “(…) o prédio urbano sito na Rua 1, número oitenta e seis, união de freguesias de Local B, inscrito na respetiva matriz sob o artigo dois mil, setecentos e sessenta e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o número cinco mil novecentos e oitenta e quatro, de treze de outubro de dois mil e nove, freguesia de Local B) foi construído anteriormente a mil novecentos e cinquenta e um, em data que não é possível precisar” (Doc. 11 junto com a petição inicial)
15. De acordo com a Certidão emitida pelo Município de Cidade A em 12/01/2024 de que faz parte integrante uma informação técnica datada de 22/12/2023, resulta que: “(…) o prédio urbano, sito na Rua 1, números oitenta a oitenta e seis, Freguesia de Local B, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número cinco mil novecentos e oitenta e quatro, a treze de outubro de dois mil e nove, inscrito nas matrizes urbanas sob os artigos números dois mil setecentos e cinquenta e oito, dois mil setecentos e sessenta, dois mil oitocentos e cinquenta e seis, dois mil novecentos e sessenta, e oito mil seiscentos e dois, encontra-se em zona cuja ocupação remonta a mil e oitocentos (…) em zona urbana consolidada, abrangida pelo Plano de Urbanização de Cidade A, situando-se em área de risco – zona inundável (…) 4.2. Quanto a estar fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, apenas podemos esclarecer que de acordo com os dados de que dispomos, encontra-se em área de risco – zona inundável (…)” – Doc. 12 junto com a petição inicial.
16. O prédio em causa insere-se parcialmente na margem esquerda do Rio C, ocupando uma parcela da margem dominial que neste local tem a largura de 50 metros, por se tratar de margem de águas navegáveis sob jurisdição da Capitania do Porto de Cidade A.
17. Da certidão datada de 7/3/2025, emitida pela “APA – AGÊNCIA PORTUGUESA DO AMBIENTE, I.P.”, resulta que: “(…) o prédio urbano sito na Rua 1, das freguesias de Local B), com a área de 1072,53 m2, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Cidade A sob o n.º 12390, com as seguintes inscrições prediais:
- Prédio urbano com a área de 692,03 m2, sito na Rua 1, n.º 80, União das Freguesias de Local B, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 8602;
- Prédio urbano com a área de 124,50 m2, sito na Rua 1, n.º 82, União das Freguesias de Local B, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 2856;
- Prédio urbano com a área de 75,00 m2, sito na Rua 1, n.º 84, União das Freguesias de Local B, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 2758;
- Prédio urbano com a área de 76,00 m2, sito na Rua 1, n.º 86, União das Freguesias de Local B), inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 2760;
- Prédio urbano com a área de 104,00 m2, sito na Rua 1, União das Freguesias de Local B, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 2960.”
encontra-se parcialmente inserido em parcela da margem de águas interiores sujeitas à influência das marés, nos termos dos artigos 3.º alínea e) e 4.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, na sua redação atual, e integra o domínio público marítimo que pertence ao Estado.
Mais se certifica que a mesma parcela se encontra inserida em zona de risco de erosão ou invasão das águas, concretamente em área de inundação com perigosidade média/alta de acordo com o Plano de Gestão dos Riscos de Inundações (PGRI) das Ribeiras do Algarve (áreas de risco potencial significativo de inundações (ARPSI) - PTRH8Gilao01) aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 63/2024, de 22 de abril.” – certidão junta com a ref.ª 13460271, de 7/3/2025 (fls. 96 e ss.)
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B. Factos não provados
Não se logrou provar que a parcela em causa se situa fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar.”.
8. Do mérito do recurso
8.1. Da invocada nulidade hipotética da sentença:
Segundo bem percebemos das alegações da apelante, a mesma refere que tendo formulado o pedido de reconhecimento do direito de propriedade da sociedade A. relativo ao prédio urbano (…)porquanto o prédio atualmente descrito na Conservatória de Registo Predial de Cidade A sob o n.º 12390, com área total de 1072,53 m2, integra zona urbana consolidada, como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, encontra-se fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e encontra-se ocupado por construção anterior a 1951, tudo com as legais consequências”, não poderia o Tribunal apreciá-lo à luz doutra norma que não a invocada pela apelante : o nº5 do art.º 15º da Lei nº , mormente ao abrigo dos demais números do referido artigo 15.º.
Para além de o Tribunal só ter aventado tal hipótese que não concretizou, o certo é que tal afirmação da apelante não correcta.
A latitude com que o princípio jus novit curia ( expresso actualmente no nº3 do art.º 5º do CPC ) tem sido entendido na doutrina – “ plena possibilidade do tribunal , no momento da sentença , proceder livremente a uma subsunção ou qualificação jurídica da factualidade processualmente adquirida, diversa da que a parte interessada havia realizado durante o processo, corrigindo a inexacta ou inadequada indicação das razões de direito que, porventura, constassem do articulado ou alegação apresentado1 “ repele qualquer entendimento que ao juiz é vedado lançar mão de instituto jurídico que, no seu entender, dê acolhimento à pretensão deduzida perante os factos processualmente adquiridos ( se bem que oportuna e regularmente articulados pelas partes).
Por conseguinte, ao contrário do que a apelante refere, não ocorreu “violação do princípio dispositivo, concretamente dos limites da condenação definidos no n.º 1 do artigo 609.º do CPC, nos temos e para os efeitos do artigo 615.º do CPC2”.
8.2. Do reconhecimento da propriedade da apelante ao abrigo da al. c) do n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro.
Como se viu, o prédio a que se alude supra em 1 dos factos provados, “ insere-se parcialmente na margem esquerda do Rio C, ocupando uma parcela da margem dominial que neste local tem a largura de 50 metros, por se tratar de margem de águas navegáveis sob jurisdição da Capitania do Porto de Cidade A” ( cfr. ponto 16).
É a Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro que estabelece a titularidade dos recursos hídricos os quais, de acordo com o respectivo art.º 1º, compreendem as águas, abrangendo ainda os respectivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas.”
A apelante entende que deve ser julgado procedente o seu pedido de reconhecimento de que a referida porção de margem constitui propriedade privada, nos termos da al. c), do n.º 5, do artigo 15º, da Lei 54/2005, de 15 de novembro.
Convém recuperar o teor integral da norma ( artigo 15.º) que sob a epígrafe “Reconhecimento de direitos adquiridos por particulares sobre parcelas de leitos e margens públicos” dispõe o seguinte:
“1 - Compete aos tribunais comuns decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, cabendo ao Ministério Público, quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, contestar as respetivas ações, agindo em nome próprio.
2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868.
3 - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.
4 - Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos, por incêndio ou facto de efeito equivalente ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de dezembro de 1892, eram objeto de propriedade ou posse privadas.
5 - O reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis pode ser obtido sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos números anteriores nos casos de terrenos que:
a) Hajam sido objeto de um ato de desafetação do domínio público hídrico, nos termos da lei;
b) Ocupem as margens dos cursos de água previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º, não sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias;
c) Estejam integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e se encontrem ocupados por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado.
6 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, compete às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira regulamentar, por diploma das respetivas Assembleias Legislativas o processo de reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, nos respetivos territórios.” (realce nosso).
Isto é, o reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens de águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis tem lugar, entre outros casos, quando:
a) A parcela esteja integrada em zona urbana consolidada, conforme definição do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação;
b) Fora da zona de risco de erosão ou invasão do mar;
c) E se encontre ocupada por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado.
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Estes são os pressupostos constitutivos do direito a obter o reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos parcelas de leitos ou margens de águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis.
É o próprio douto parecer junto pela apelante que assim o afirma3: “ (…) o n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, insere-se na linha de simplificação do regime probatório documental previsto, em geral, no n.º 2 desse mesmo artigo. A esse respeito a lei é inequívoca. Acresce que, segundo jurisprudência constante, também não levanta dúvidas que aí se preveem várias causas de pedir cuja invocação e prova permitem ao particular ver afastada a presunção de dominialidade do recurso hídrico em questão, sem sujeição ao regime probatório mais dificultoso, previsto no n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005” (sublinhado nosso).
E não há quaisquer dúvidas que tal norma se aplica independentemente do tipo de parcela em causa, como bem se salienta no douto parecer junto4 que passamos a citar : “O regime probatório mais favorável da alínea c) aplica-se não apenas a margens como a leitos, de quaisquer águas navegáveis e também de águas do mar, uma vez que tal norma não prevê expressamente quaisquer limites aos recursos hídricos por ela abrangidos.
E, contrariamente ao que uma leitura menos cuidada da alínea c) do n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005 poderia fazer concluir, o facto de a mesma prever como pressuposto da sua aplicação que estejamos perante parcelas de terrenos que se encontrem fora da zona de erosão ou de invasão do mar, tal não implica que a mesma apenas beneficia a parcelas de terrenos situadas nas margens de águas do mar. Não se deve olvidar que ao exigir que as parcelas em questão se situem fora da zona de erosão ou de invasão do mar, como vimos referindo, o artigo 15.º, n.º 5, alínea c), prevê «um requisito negativo (estar fora da zona de risco), pelo que os demais recursos também o cumprem, na medida em que também eles estejam fora daquela zona de risco. A preocupação da norma é a de que não estejamos perante uma parcela situada numa zona de risco de erosão ou de invasão do mar, sendo que essa análise é válida para os leitos e para as margens de águas do mar e de outras águas navegáveis ou flutuáveis» (…).
O que este pressuposto implica é que localização do terreno cujo direito de propriedade o particular reivindica terá de se localizar fora da zona de risco de erosão ou de invasão das águas do mar por razões de segurança e proteção públicas, e, se não são de excluir os casos em que há encontros e interpenetrações entre as águas do mar e as águas do rio, podendo estas ser potencialmente ameaçadas por invasão do mar , o certo é que o regime do artigo 15.º n.º 5, alínea c), da Lei n.º 54/2005 se aplica quanto a leitos e margens de águas do mar e de outras águas navegáveis ou flutuáveis; ponto é que os mesmos não estejam em zona de risco de erosão e de invasão de águas do mar, e não de outras, o que exclui do âmbito de aplicação do requisito negativo da norma zonas sujeitas a erosão ou invasão de águas que não as águas do mar, como margens ou leitos de rio ou ribeiros, por exemplo.”.
Note-se, todavia, que apesar de ter cumprido o seu ónus e alegado ( no art. 10º da petição inicial ) que : Não obstante situados em zona de “margens das águas do mar ou de quaisquer águas flutuáveis” (vd. Doc. 8, adiante junto), o imóvel da propriedade da A., melhor identificado supra, integra zona urbana consolidada, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, encontrando-se ocupado por construção anterior a 1951”5, apelante não logrou provar que o mesmo preencha o segundo dos requisitos enunciados.
Com efeito tal facto resultou como “Não provado” sem que a apelante o tenha impugnado.
O douto parecer junto incide circunstanciadamente a sua análise acerca da interpretação do segundo pressuposto previsto na alínea c) do nº5 do art.º 15º da Lei nº 54/2005.
Cremos, porém, que todas essas doutas considerações esbarram na circunstância desse facto não se ter provado e de não ter sido impugnada no recurso a decisão de o considerar como “Não provado”.
Com efeito “o princípio do ónus da prova e as regras da sua distribuição não interferem na actividade de apreciação crítica da prova nem correspondem a critério de decisão de facto; antes correspondem a questão e a critério de decisão de direito, inerente ou inseparável da previsão ou dos elementos integrantes da norma jurídica a aplicar para resolução da lide, e em função da pretensão e da posição das partes na relação material dela objeto.6”
É que tal facto é, como se disse, constitutivo da pretensão da Autora e como tal essencial ao reconhecimento do seu direito ou à tutela do mesmo.
Com efeito, a prova dos factos exigidos na previsão da norma recai sobre aquele a quem aproveita a sua estatuição, o que significa que se a norma alberga a pretensão do autor é sobre ele que recai tal ónus (artº 342º nº1 do Cód.Civil) enquanto o réu terá o ónus de provar os factos que integram a previsão da norma em que se baseia a causa impeditiva (modificativa ou extintiva) do efeito jurídico pretendido por aquele (artº 342º nº2 do Cód. Civil).
Por conseguinte, o facto em apreço – conquanto que negativo – carecia de constar do elenco dos “Factos Provados”.
Não o estando, nem o recurso, nem a acção têm como proceder.
III. DECISÃO
Por todo o exposto se acorda em julgar totalmente improcedente o recurso e manter a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Évora, 27 de Novembro de 2025
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Susana Ferrão da Costa Cabral
José António Moita
_______________________________________
1. Lopes do Rego, in Os Poderes de Convolação do Juiz no momento da sentença, pag.783 .↩︎
2. P.4.↩︎
3. Pag.17.↩︎
4. Assim, Ac.STJ de 25.3.2021 ( Bernardo Domingos).↩︎