Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
I. Só a manifesta falta de título executivo justifica o indeferimento liminar da execução, devendo ser proferido despacho de aperfeiçoamento quando se está perante um título incompleto, ou insuficiente, em razão de omissão que pode ser suprida.
II. O acordo de vontades no que toca aos elementos integradores de um contrato de mútuo, ainda que inclua o valor a mutuar e os termos e condições em que se irá processar a sua restituição, é insuficiente para a conclusão do contrato de mútuo e para a constituição da obrigação que dele emerge para o mutuário de restituição da quantia mutuada, exigindo-se ainda a efectiva entrega daquela quantia ao mutuário.
III. Não resultando do contrato que a quantia mutuada haja sido entregue ao mutuário com a celebração do contrato, mas sendo alegado pelo exequente, no requerimento executivo, que se verificou a entrega da mesma, deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento, ao abrigo do disposto nos artigos 6º, n.º 2, e 726º, n.º 4, do Código de Processo Civil, convidando o exequente à junção dos documentos comprovativos da referida entrega, como integrantes do título dado à execução.
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. Scalabis STC, S.A., propôs acção executiva para pagamento da quantia de € 83.668,53, sendo € 27.871,97 referentes a capital, e € 55.796,56 de juros vencidos, bem como juros mora até efectivo e integral pagamento, à taxa contratada, contra AA e BB.
2. Como título executivo apresentou documento que na frente tem a denominação “Crédito ao Consumo BES”, datado de 04/06/2007, e assinado por ambas as partes, alegando no requerimento executivo, apresentado em 20/01/2025, no que se reporta aos factos:
«4. No exercício da sua actividade, o BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A. celebrou com BB e AA, em 04 de Junho de 2007, um contrato de mútuo, o qual se junta como DOC. 5.
5. Nos termos do contrato descrito supra, foi efectivamente entregue ao Mutuário a quantia de 34.108,31€ (trinta e quatro mil cento e oito euros e trinta e um cêntimos), a qual estaria
prevista ser reembolsada em 120 (cento e vinte) prestações mensais e sucessivas de igual
montante, à Taxa Anual Nominal de 11,767%, eventualmente acrescido, em caso de mora, de uma taxa de 2,000%.
6. Sucede que os Mutuários incumpriram os termos contratados, tendo entrado em incumprimento definitivo em 22 de Julho de 2010 e, como tal, foi o contrato sido resolvido com esse fundamento, com o consequente vencimento das prestações remanescentes e exigibilidade do montante total contratualizado ainda em falta, o qual se cifrava àquela data em 27.871,97€ (vinte e sete mil oitocentos e setenta e um euros e noventa e sete cêntimos).
7. Desta forma, persiste ainda em dívida, no âmbito desta responsabilidade, o montante de
83.668,53€ (oitenta e três mil seiscentos e sessenta e oito euros e cinquenta e três cêntimos), ao qual ainda acrescerão juros de mora até efectivo e integral pagamento, à taxa contratada, sendo o montante calculado da seguinte forma:
• Capital: 27.871,97€ (vinte e sete mil oitocentos e setenta e um euros e noventa e
sete cêntimos)
• Juros Vencidos: 55.796,56€ (cinquenta e cinco mil setecentos e noventa e seis euros e
cinquenta e seis cêntimos)
8. Os ora Executados foram declarados insolventes no âmbito do processo 1357/11.3..., que correu termos pelo Juízo de Comércio de Setúbal - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, no qual, contudo, foi recusada a exoneração do passivo restante, em 16 de Janeiro de 2019, encontrando-se o processo já encerrado, desde 30 de Junho de 2016;
9. O então Credor reclamou e viu reconhecidos os créditos que aqui se pretendem fazer valer, sendo que, naquele âmbito, não logrou ser ressarcido de qualquer montante; (…)».
3. O requerimento executivo foi liminarmente indeferido com a seguinte fundamentação (despacho ref.ª 101194414):
«Em 26.01.2025, Scalabis STC S.A. propôs acção executiva para pagamento da quantia de € 20.107,65 euros contra AA e BB.
Como título executivo apresentou documento que na frente tem a denominação “Crédito a consumo BES”.
A acção executiva, que visa a realização efectiva, por meios coercivos, do direito violado, tem por suporte um título que constitui a matriz ou limite quantitativo e qualitativo da prestação a que se reporta (artº. 45°, nº 1 do CPC na versão anterior à Lei nº 41/2013 de 26 de Junho aqui aplicável).
O título executivo é, em termos substanciais, um instrumento legal de demonstração da existência do direito exequendo e a sua exequibilidade resulta da relativa certeza ou da suficiência da probabilidade da existência da obrigação nele consubstanciada (C. Mendes, Lições de Processo Civil, 69170 e Manuel de Andrade, Noções Elementares, pág. 60).
Os títulos executivos eram enumerados taxativamente no artº 46.º do CPC.
Entre eles encontram-se os chamados títulos executivos negociais (art.º 46.º, 1, c) do CPC), nos quais a pessoa que os emitiu e assinou reconhece ser devedora de uma obrigação pecuniária de montante determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de uma obrigação para entrega de coisa ou para prestação de facto.
No vertente constata-se que o documento dado à execução consubstancia um contrato de concessão de crédito, que mais não é do que um contrato de mútuo.
Estabelece o art.º 1142º do Código Civil que “Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
Trata-se de um contrato real ou quod constitutionem, pelo facto de a sua perfeição depender da circunstância de o mutuante ter de proceder à entrega do dinheiro ou da coisa. A sua perfeição não depende, portanto, apenas do encontro das declarações negociais das partes, mas também da entrega material da coisa mutuada, só se podendo considerar o negócio concluído com tal entrega; só com a entrega é que o negócio fica concluído, nascendo então para o mutuário, e só nesse momento, a obrigação de restituição da coisa.
Ora, da leitura do documento dado à execução resulta que a restituição do valor mutuado pelo exequente seria feito nas condições aí definidas.
Depende por isso de prova a produzir a verificação da mora ou do incumprimento da executada, não constituindo tal documento título executivo por si só, uma vez que o direito alegado pelo exequente depende do seu incumprimento e não da mera assinatura do mesmo, não sendo a dívida, apenas em face do documento apresentado, certa, exigível e líquida.
No contrato, convencionou-se a entrega de uma livrança em branco para garantia do bom e integral cumprimento de todas as obrigações emergentes do mesmo. Ou seja, sendo o contrato incumprido pelos executados, poderia então o exequente preencher a livrança em conformidade com o acordado e apresentá-la a pagamento.
E, só com esse preenchimento e apresentação a pagamento ficaria então o exequente munido de título executivo.
Porém, o exequente, pretende que o contrato de crédito sirva de título executivo por si só o que, conforme se demonstrou, não acontece.
Por isso, o exequente não detém de título executivo válido que lhe permita demandar os executados.
Neste sentido veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 19/12/2000, em cujo sumário se lê que “um contrato de crédito ao consumo em que não conste que o montante do crédito concedido tenha sido efectivamente entregue ao vendedor não pode servir de título executivo”.
No mesmo sentido, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 17/12/2014, da Relação de Guimarães de 15/09/2014 e da Relação de Lisboa, 5/6/2014.
Decide-se assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, em conformidade com o disposto no art.º 726º nº 1 alínea a) do CPC, rejeitar a execução.
Custas pelo Exequente (cfr. art.º 527º nº 1 do CPC).»
4. Inconformado, interpôs o exequente recurso, visando a revogação do despacho de indeferimento liminar, nos termos e com os fundamentos que condensou nas seguintes conclusões:
A. O presente recurso de apelação tem por objecto o despacho proferido em 03 de Fevereiro de 2025, no processo que corre termos pelo Juízo de Execução de Setúbal - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, que indeferiu liminarmente o Requerimento Executivo apresentado pelo Recorrente, considerando inexistir título executivo.
B. Primeiramente, o Recorrente considera nula a decisão que, com base no art.º 726.º, n.º 2, b), erroneamente, determinou o indeferimento liminar do Requerimento Executivo.
C. Efectivamente, do alegado no Requerimento Executivo não resulta, de forma indubitável, a inviabilidade da acção, a ineptidão do Requerimento Executivo, ou qualquer outra falta de pressupostos processuais que se afigure insanável.
D. Desse modo, não se afigura, em face do alegado e da documentação junta, que seja manifesta a ausência de título.
E. Ainda que assim não se entendesse, tão-pouco é lícito concluir-se, sem mais, pela inexistência de título, contrariamente ao que decidiu o Tribunal a quo.
F. Com efeito, em face da alegação dos factos constitutivos da obrigação exequenda, a junção do próprio título executivo, pode ser (ou deveria ser), pelo menos, equacionada a (grande) probabilidade de haver sido efectivamente entregue a quantia mutuada, se é que já não o é em face do título, como, aliás, entendemos. Todos os factos invocados (pelo menos), indiciam nesse sentido.
G. Ainda assim não se absteve o Tribunal a quo de decidir pelo indeferimento liminar do Requerimento Executivo.
H. Conclui, sem mais, que, inexistindo menção expressa à efectiva disponibilização da quantia mutuada, inexiste título executivo.
I. Do mesmo modo, a decisão recorrida foi tomada sem que tivesse sido dada oportunidade ao Recorrente de se pronunciar quanto às dúvidas suscitadas junto do Tribunal a quo.
J. De facto, inexistiu qualquer despacho solicitando ulteriores esclarecimentos no sentido de apurar, ou comprovar se o crédito em apreço havia sido, efectivamente, transmitido. Inexistiu qualquer despacho convidando o Requerente ao aperfeiçoamento.
K. Tal decisão constitui, por isso, uma decisão-surpresa.
L. E, portanto, em violação do disposto nos artigos 3.º, n.º 3, art.º 411.º e art.º 726.º, n.º 4, todos do C.P.C., por não ter sido cumprido o devido contraditório, nem ter o Tribunal a quo diligenciado suficientemente pela descoberta da verdade material, dentro dos poderes que lhe são conferidos.
M. Como tal, está em causa a nulidade da decisão tomada, segundo o disposto no art.º 615.º, n.º1, d) do C.P.C., concorrendo ainda uma outra nulidade secundária, com base no art.º 195.º, também do C.P.C.
N. Os normativos violados impõem que, em primeiro lugar, seja feito cumprir o contraditório relativamente a todas as questões levantadas no decurso do processo, não sendo lícito ao Juiz decidir, questões de facto ou de direito, ainda que de conhecimento oficioso, sem que as partes possam sobre elas se pronunciar e, em segundo, que o Juiz desenvolva todas as diligências tendentes à boa decisão da causa, tendo sempre por referência a verdade material, privilegiando a substância da decisão, sobre aspectos formais.
O. Impunha-se, assim, no mínimo e segundo os normativos invocados, um convite ao aperfeiçoamento (a letra do próprio art.º 726.º, n.º 4 do C.P.C. o refere) dirigido ao Recorrente, no sentido de densificar os factos que permitem concluir pela entrega do montante mutuado, comprovando-o, sanando, assim, as dúvidas suscitadas no Tribunal a quo, ao invés de proceder de imediato ao indeferimento liminar do Requerimento Executivo, considerando a inaplicabilidade, neste caso, do art.º 726.º, n.º 2, b) do C.P.C.
P. Com efeito, se o que pretende o Tribunal a quo é que deveríamos encontrar-nos perante um título complexo, tendo sido junto o próprio Contrato, poderia e deveria ter diligenciado junto do Recorrente pela junção da demais documentação, entendendo que a que foi junta esteja incompleta.
Q. Não tendo dado cumprimento a tal, forçoso é, uma vez mais, concluir pela nulidade da decisão, de acordo com os artigos 195.º e 615.º, n.º 1, d), ambos do C.P.C.
R. Julga também a Recorrente terem sido incorrectamente valorados os factos alegados em sede de Requerimento Executivo, que em circunstância alguma, em nosso entendimento, poderiam ter conduzido à decisão tomada.
S. Ora, a verdade é que o despacho parece configurar a questão levantada como um problema de inexistência de título.
T. Referindo-se, primeiramente, à livrança, depois aos requisitos da obrigação exequenda (certeza, liquidez e exigibilidade) e, por fim, à natureza real quod constitutionem do Contrato de Mútuo e com o facto de, do contrato dado como título executivo, não constar expressamente a entrega e disponibilização em conta do montante mutuado.
U. Em primeiro lugar, quanto à questão da livrança subscrita, a existência ou superveniência de um ou mais títulos não invalida os demais, nada impedindo o Recorrente de propor uma acção com base num título, ainda que disponha de outros, sendo que, no caso dos autos, nunca seria necessário, como parece indiciar, para executar uma responsabilidade com base num contrato, juntar qualquer livrança que haja sido subscrita. Nesses casos, juntar-se-ia, isso sim, a livrança, que é um outro título, autónomo do Contrato.
V. Além de que o Contrato em questão constitui título executivo, atendendo à data de celebração do mesmo, na vigência da norma preceituada no art.º 46.º do C.P.C. de 1961, tendo sido declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da aplicação da norma constante do art.º 703.º do N.C.P.C. aos títulos executivos constituídos anteriormente à data da sua entrada em vigor.
W. Decisão motivada pela necessidade de tutela da confiança e segurança jurídica pela parte dos Credores que, à data, dispusessem de título executivo a seu favor e que, por força da alteração legislativa, veriam os Contratos celebrados até então arredados da categoria de títulos executivos.
X. A aplicação retroactiva da alteração legislativa, nos moldes em que foi realizada, a Contratos (documentos particulares) já constituídos à data da sua entrada em vigor (e que, portanto, eram títulos executivos), determinaria uma restrição injustificada e até inconstitucional, como se veio a decidir, dos direitos dos Credores.
Y. Em segundo lugar, quanto aos requisitos da intrínsecos da obrigação exequenda, não vemos como possam os mesmos não resultar preenchidos em face do alegado.
Z. Ainda que possam não resultar todos eles, directamente, em face do título, a verdade é que constam todos esses elementos elencados em sede de título executivo, designadamente, resulta claro o reconhecimento de constituição duma obrigação por parte dos Recorridos, obrigando-se ao reembolso do capital mutuado, mediante o esquema contratual acertado pelas partes.
AA. Do mesmo modo a obrigação é líquida, encontrando-se expressa em montante determinado e feita a decomposição entre capital e juros.
BB. E é exigível, tendo sido alegado o incumprimento, resolução e vencimento da totalidade dos montantes que se encontravam em dívida, em data anterior à propositura da acção.
CC. Já quanto à natureza do Contrato de Mútuo do contrato consta expressamente a menção à aprovação, ou seja, à concessão de um mútuo de acordo com os valores aí estipulados.
DD. E ainda que isso fosse insuficiente, também tal figura alegado em sede de Requerimento Executivo, portanto, estando concretizados os factos essenciais constitutivos da relação jurídica que funda o Contrato de Mútuo e, por isso, a existência, validade e suficiência deste enquanto título executivo.
EE. Note-se, aliás, a menção no Requerimento Executivo de que a quantia mutuada foi efectivamente entregue.
FF. Tais factos aliados ao reconhecimento claro da constituição de tal obrigação, não podemos aderir a tese prestada pelo Tribunal a quo.
GG. Por outro lado, todos os factos indiciam, ainda que tacitamente, no sentido da disponibilização, ou entrega efectiva da quantia mutuada aos Recorridos, como seja o facto do contrato haver vigorado durante quase três anos e terem sido realizados, durante esse período, pagamentos, o que se evidencia, ainda que de forma indirecta, por haver sido abatidos montantes ao capital mutuado.
5. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Citados, nos termos e para os efeitos do artigo 641º, n.º 7, do Código de Processo Civil, os executados não contra-alegaram.
6. Cumpre apreciar e decidir.
*
II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, n.º 2, 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
i. Da nulidade da decisão;
ii. Da falta/insuficiência do título;
iii. Da falta do convite ao aperfeiçoamento e legais consequências.
*
III – Fundamentação
A) - Os Factos
Com interesse para a decisão releva a factualidade que decorre do relato dos autos, sem prejuízo das especificações que se adiantarão em sede de fundamentação jurídica.
*
B) – Apreciação do Recurso/O Direito
1. No que se reporta a nulidades da decisão, o recorrente começa por invocar a nulidade do despacho de indeferimento, com fundamento na alínea d) do n.º 1, do artigo 615º do Código de Processo Civil, invocando também a violação do artigo 195º, do mesmo código, porquanto entende, em síntese, que o tribunal a quo não podia ter concluído, sem mais, pela inexistência de título, tendo em conta os factos alegados constitutivos da obrigação exequenda, que levam a equacionar a probabilidade séria de ter havido entrega da quantia mutuada, sem que antes tivesse dado oportunidade ao exequente de se pronunciar sobre a questão, constituindo a decisão recorrida uma decisão surpresa, invocando também a violação dos artigos 3º, n.º 3, 411º, e 726º, n.º 4, todos do Código de Processo Civil.
Vejamos:
2. Como se sabe, o Código de Processo Civil consagra o princípio do contraditório, nos termos tradicionalmente aceites, como concretização prática do princípio constitucional do processo equitativo (artigo 20º, nº 4 da Constituição) e corolário do princípio da igualdade (artigo 13º), estipulando no seu artigo 3º que «o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição» (n.º 1), e circunscrevendo a «casos excepcionais previstos na lei a possibilidade de ser adoptada uma providência contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida» (n.º 2).
Com este alcance, o preceito do Código reflecte a estrutura dialéctica e polémica do processo, visando assegurar um direito de resposta a qualquer das partes quanto às posições assumidas no processo pela contraparte e, portanto, em relação a qualquer acto processual (requerimento, alegação ou acto probatório) apresentado pelo outro interveniente.
A reforma de 1996/1997, através do aditamento a esse artigo de um novo comando (n.º 3), mantidos no código actualmente vigente, acentuou a relevância concedida à garantia do contraditório no aspecto relativo ao direito de resposta, impondo ao juiz o «dever de observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório», com a consequência de não lhe ser lícito, «salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
Por outro lado, não pode deixar de reconhecer-se que a regra decorrente do citado artigo 3º, n.º 3, que integra um princípio de proibição da decisão surpresa, tem uma função essencialmente programática, conferindo ao juiz, fora dos casos em que a audição da contraparte esteja expressamente prevista, o dever de verificar, em função das circunstâncias do caso, a conveniência de as partes se pronunciarem sobre qualquer questão de direito ou de facto que possa ter relevo para a apreciação e resolução da causa (quanto ao carácter programático da imposição constante do artigo 3º, n.º 3, 1ª parte, do Código de Processo Civil, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, pág. 48).
A violação do contraditório constitui nulidade sancionada nos termos previstos no artigo 195º e segs. do Código de Processo Civil.
Porém, a violação das regras processuais que consiste na omissão ilegal da realização de uma diligência que deveria ter tido lugar nos autos, comunica-se à decisão final proferida, que pôs termo à causa, e que, assim, foi proferida fora do momento próprio, numa altura em que ao juiz se encontrava expressamente vedada a possibilidade de tomar conhecimento dessa matéria, gerando a nulidade da decisão recorrida (cf. artigo 615º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil).
3. No caso concreto, a questão que se coloca, reporta-se à omissão do despacho convite ao aperfeiçoamento, que no entendimento do exequente/recorrente deveria ter sido proferido, caso se concluísse pela falta de título executivo, por dele não constar a referência expressa à entrega da quantia mutuada e não se ter tal facto por indiciado em função do alegado.
Por conseguinte, para se concluir pela necessidade de prolação do dito despacho há, em primeiro lugar, que se indagar da falta ou insuficiência do título dado à execução.
4. Como resulta do artigo 10º, n.º 5 e 6, do Código de Processo Civil, que consignou regime idêntico ao anteriormente previsto no artigo 45º, n.º 1 do pretérito código, o título executivo é “a peça necessária e suficiente à instauração da acção executiva ou, dito de outra forma, pressuposto ou condição geral de qualquer execução. Nulla exsecutio sine titulo” (Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 13.ª Edição, Almedina, 2010, pág. 23, citando Chiovenda).
Nas palavras de Lebre de Freitas (A Acção Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª Edição, pág. 43), o título “constitui a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva, isto é, o tipo de acção e o seu objecto, assim como a legitimidade, activa e passiva”.
Por isso, o mesmo tem que ser documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia para servir de base ao processo executivo (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1979, pág. 58).
Como refere Rui Pinto (Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, pág. 142/143), “deve considerar-se que o título executivo é um documento, i. é., a forma de representação de um facto jurídico, o documento pelo qual o requerente de realização coactiva da prestação demonstra a aquisição de um direito a uma prestação, nos requisitos legalmente prescritos”.
Neste sentido escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/3/2007 (proc. n.º 07B683), disponível, como os demais citados sem outra referência em www.dgsi.pt, que: “A relevância especial dos títulos executivos que resulta da lei deriva da segurança tida por suficiente da existência do direito substantivo cuja reparação se pretende efectivar por via da acção executiva.
O fundamento substantivo da acção executiva é, pois, a própria obrigação exequenda, constituindo o título executivo o seu instrumento documental legal de demonstração. Ele constitui, para fins executivos, condição da acção executiva e a prova legal da existência do direito de crédito nas suas vertentes fáctico-jurídicas (…)”.
Como já ensinava Alberto dos Reis (Processo de Execução, Vol. I. 3.ª Edição, pág. 147), a propósito dos requisitos substanciais do título executivo, “[o] segundo requisito não está expressamente previsto na lei, mas é uma exigência da própria natureza e função do título executivo. O título executivo pressupõe necessariamente a afirmação de um direito em benefício de uma pessoa e a constituição de uma obrigação a cargo de outra.”
Em suma, a acção executiva tem na sua base a existência de um título executivo pelo qual se determinam o seu fim e os respectivos limites subjectivos e objectivos, não podendo as partes constituir títulos executivos para além dos legalmente previstos.
5. No artigo 46º do anterior Código de Processo Civil eram enumerados os títulos que podiam servir de base à execução e, que, como tal, constituíam títulos executivos, constando da alínea c), “[o]s documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto” [norma esta aqui aplicável em face da data do contrato, e do decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015, de 23 de Setembro, que declarou com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil anterior, por violação do princípio da confiança].
Não se suscitam dúvidas de que o documento dado à execução (doc. n.º 5 junto com o requerimento inicial), que na frente tem a denominação “Crédito ao Consumo BES”, datado de 04/06/2007, e assinado pelos intervenientes é um documento particular que está assinado pelos pretensos devedores, que dão o seu acordo ao mesmo, pelo que há que apurar se esse documento importa, ou não, o reconhecimento ou a constituição de uma determinada (ou determinável) obrigação pecuniária.
O aludido documento é um contrato de crédito ao consumo que, no verso, contém as respectivas “condições gerais”, e, na primeira página, igualmente assinada, a propósito daquilo que se designa por “condições particulares”, se menciona o montante total do financiamento (€ 34.108,31), com previsão de reembolso em 120 prestações mensais sucessivas de capital e juros, a debitar na conta dos mutuários, com vencimento de juros à taxa nominal de 10,500%.
Porém, não consta do mesmo documento que a quantia mutuada haja sido disponibilizada aos executados/mutuários na data da celebração do contrato.
E, como se concluiu, entre outros, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/09/2025 (proc. n.º 494/25.1T8FNC.L1-8), disponível, como os demais citados sem outra referência em www.dgsi.pt, com indicação de jurisprudência e doutrina neste sentido:
«I - O contrato de mútuo é, pela sua própria natureza, um contrato real, no sentido de que só se completa com a entrega (empréstimo) da coisa.
II - O acordo de vontades no que toca aos elementos integradores de um contrato de mútuo, ainda que inclua o valor a mutuar e os termos e condições em que se irá processar a sua restituição, é insuficiente para a conclusão do contrato de mútuo e para a constituição da obrigação que dele emerge para o mutuário (de restituição da quantia mutuada), exigindo-se ainda a efectiva entrega da quantia mutuada ao mutuário.»
Assim, porque a obrigação a cargo do mutuário só existe se e quando a coisa mutuada lhe for entregue e porque a obrigação de entrega a cargo do mutuante não está definida na lei como obrigação decorrente do contrato, ter-se-á que concluir que o contrato de mútuo apenas se considera concluído com a entrega da coisa ao mutuário e que a obrigação de restituição a cargo deste apenas se constitui no momento em que a coisa lhe for entregue, sendo, para tanto, insuficiente o acordo de vontades relativamente aos elementos integradores do negócio.
Ora, do documento junto aos autos (no qual se baseia a execução) – ainda que contenha os elementos integradores de um contrato de mútuo, ali designado como crédito ao consumo –, não resulta que a quantia mutuada tenha sido disponibilizada aos mutuários aquando da assinatura do contrato, conclusão esta que surge reforçada pelo facto de constar da cláusula 10ª das “condições gerais”, sob a designação “Efeitos do contrato” que: “10.1 - O presente contrato está sujeito à condução suspensiva da verificação dos documentos de instrução do presente financiamento por parte dos serviços competentes do BES, considerando-se a condição como verificada, e a celebração do presente contrato como ratificada, na data em que o montante mutuado venha a ser creditado na conta de depósitos à ordem referida nas Condições Particulares”; e “10.2 - A assinatura do presente contrato não confere ao Beneficiário qualquer direito sobre a concessão do financiamento, o que está inteiramente dependente da verificação e ratificação referidas no numero anterior”.
Por conseguinte, não resultando do contrato que o montante do crédito concedido tenha sido efectivamente entregue aos mutuários, o mesmo contrato, por si só, não constitui título executivo, nos termos do artigo 46º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, aqui aplicável.
6. Porém, alegando o exequente no requerimento executivo que a dita quantia foi efectivamente disponibilizada aos executados, não se aceita que, sem mais, se possa concluir pela manifesta falta ou insuficiência do título, conducente irremediavelmente ao indeferimento liminar do requerimento executivo.
Na verdade, importa lembrar que no n.º 2 do artigo 6º do Código de Processo Civil, se prevê que “[o] juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância, ou quando a sanação dependa de acto que deve ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”.
E, como também decorre do disposto no artigo 726.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, ao constatar que o documento junto como título executivo está incompleto, é irregular ou insuficiente, o juiz deve convidar a parte a sanar tal irregularidade, se estiver em causa uma falta susceptível de ser sanada.
Efectivamente, como se sublinha no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05/06/2025 (proc. n.º 7454/19.0T8SNT.L1-2):
«A jurisprudência tem vindo a consolidar-se no sentido de que só a falta de título executivo justifica o indeferimento liminar da execução, devendo ser proferido despacho de aperfeiçoamento quando se está perante um título incompleto, ou insuficiente, em razão de omissão que pode ser suprida. Neste sentido e apenas a título de exemplo, pronunciaram-se o Acórdão do TRL de 09-09-2021 no proc. 20315/19, bem como o recente Acórdão do TRL de 25-03-2025 no proc. 20434/22.9T8LSB-A.L1 ambos in www.dgsi.pt , concluindo-se neste último: “Perante a omissão da junção, com o requerimento executivo, de um documento necessário à constituição de um título executivo complexo, cabia ao tribunal proferir despacho de aperfeiçoamento nos termos do 726º, nº4, do Código de Processo Civil. A doutrina e jurisprudência acima mencionadas são confluentes nessa solução, a qual corresponde à melhor interpretação do Artigo 726º, nº4, do Código de Processo Civil.”»
Deste modo, apesar de não resultar do contrato que a quantia mutuada foi disponibilizada aos mutuários, mas tendo o exequente invocado no requerimento executivo que tal facto ocorreu, e considerando-se estar em causa a formação de título complexo, integrado pelo contrato de mútuo e documentos demonstrativos da entrega do capital mutuado e, bem assim, dos relativos ao alegado incumprimento contratual e posterior resolução do contrato, estes necessários ao apuramento das quantias em dívida, impunha-se o necessário convite ao aperfeiçoamento, ao abrigo do disposto nos artigos 6º, n.º 2, e 726º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
7. Assim, tendo sido omitido tal convite, ocorreu a aludida nulidade da decisão, prevista no artigo 615º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil, com a consequente anulação do despacho recorrido e formulação do convite ao aperfeiçoamento, como supra referido, procedendo a apelação.
Tendo o recorrente obtido vencimento de causa sem oposição da parte contrária, que não contra-alegou, não são devidas custas.
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C) – Sumário […]
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, anular a decisão recorrida, determinando-se a prolação de despacho de aperfeiçoamento com vista à junção dos documentos em falta, como supra referido.
Sem custas.
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Évora, 27 de Novembro de 2025
Francisco Xavier
António Fernando Marques da Silva
Maria Adelaide Domingos
(documento com assinatura electrónica)