Sumário:
I. Os requisitos da providência cautelar de restituição provisória de posse (existência da posse e esbulho violento pelos Requeridos) impende sobre os Requerentes da providência por os factos correspondentes serem constitutivos da tutela cautelar que acionaram (artigo 342.º, n.º 1, do CC), independentemente de terem a seu favor uma aquisição do domínio sobre o imóvel decorrente de uma escritura de justificação notarial.
II. Na fase pós contraditório, recaia sobre os Requeridos que deduzem oposição, a alegação dos factos não tidos antes em conta pelo tribunal e/ou apresentação de novas provas que sejam suscetíveis de afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução (artigo 342.º, n.º 2, do CC).
III. Sendo controvertido no âmbito do procedimento cautelar de restituição provisória de posse o direito de propriedade/posse sobre um imóvel envolvendo essa disputa os direitos dos herdeiros de uma herança indivisa e não tendo todos os herdeiros sido demandados para, em conjunto exercerem a defesa dos direitos relativos à herança em termos de litisconsórcio necessário, sendo que também nenhum deles interveio na justificação notarial que incidiu sobre o imóvel, verifica-se que a decisão cautelar proferida de decretamento da providência não é adequada à composição definitiva do litígio por não poder produzir o seu efeito útil normal em relação aos herdeiros não demandados.
Tribunal recorrido: TJ Comarca Santarém, Juízo Local Cível de Abrantes
Apelantes: AA e outro
Apelados: BB e outros
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
1. BB, CC e DD, propuseram procedimento cautelar de restituição provisória da posse contra AA e EE pedindo que sejam restituídos provisoriamente à posse do prédio urbano composto de casa de habitação e quintal, sito em Local 1, freguesia de Aldeia 1, concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o nº 5068/20220308, da freguesia de Aldeia 1, inscrito na matriz predial urbana da respetiva freguesia, concelho de Cidade 1, com o Artº 623, sito na Rua 1, nº 180, em Local 1, Cidade 1 e, ainda, que seja declarada a inversão do contencioso.
2. Para o efeito alegaram, em síntese apertada, que são proprietários imóvel suprarreferido por o mesmo ter sido doado, em 1995, a FF (já falecida) e ao 1.º Requerente, seu marido (sendo a 2.ª e 3.ª Requerentes filhas do casal), tendo passado a habitá-lo diariamente, e, agora, por razões de saúde e idade do 1.º Requerente, em fins-de semana e nas férias.
3. Os Requeridos arrombaram e substituiriam as fechaduras do imóvel, impedindo-os de entrar no imóvel, causando-lhes tal desapossamento sérios prejuízos.
4. Após produção de prova arrolada pelos Requerentes, foi proferida decisão que julgou procedente o procedimento cautelar, ordenando a restituição da posse do imóvel aos mesmos.
5. Deduzida oposição pelos Requeridos, onde alegaram, em suma, que os Requerentes não são proprietários do imóvel por o mesmo pertencer à herança ilíquida indivisa por óbito de GG e de HH, sendo os Requeridos também herdeiros, não sendo verdade que o imóvel tenha sido doado ao Requerente e falecida mulher.
6. Foi produzida a prova arrolada pelos Requeridos, realizada inspeção ao local e reinquirida uma das testemunhas ouvida na 1.ª audiência.
7. Em 03-05-2025, foi proferida decisão final que decidiu o seguinte:
«A) Manter a Providência Cautelar inicialmente decretada e declarar totalmente procedente este procedimento cautelar de restituição provisória da posse e, em consequência, determinar que os requeridos restituam definitivamente a posse dos requerentes sobre o prédio urbano composto de casa de habitação e logradouro, sito na Rua 1, nº 180, em Local 1, freguesia de Aldeia 1, concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o nº 5068 da freguesia de Aldeia 1, concelho de Cidade 1, inscrito na matriz predial urbana com o Artº 623 da freguesia de Aldeia 1, concelho de Cidade 1;
B) Julgar improcedente a oposição dos Requeridos;
C) Decretar a inversão do contencioso e dispensar os Requerentes do ónus de propositura da acção principal;
D) Declarar que os Autores/Requerentes são donos e legítimos possuidores e legítimos proprietários do prédio urbano composto de casa de habitação e logradouro, sito na Rua 1, nº 180, em Local 1, freguesia de Aldeia 1, concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o nº 5068 da freguesia de Aldeia 1, concelho de Cidade 1, inscrito na matriz predial urbana com o Artº 623 da freguesia de Aldeia 1, concelho de Cidade 1, tendo-o adquirido por usucapião e condenar os Réus/Requeridos a reconhecerem os Autores/requerentes como seus proprietários e, em consequência, determina-se a restituição definitiva da posse e da propriedade aos Autores/Requerentes, dispensando-se os Autores/Requerentes do ónus da propositura da acção principal, na medida em que a matéria adquirida no procedimento cautelar permite ao Tribunal formar a convicção segura acerca da existência do direito de propriedade dos Autores/Requerentes e a natureza da providência decretada e que mantem a inicialmente decretada é adequada a realizar a justa composição definitiva do litígio.
8. Inconformados, apelaram os Requeridos, invocando erro de julgamento de facto e de direito, concluindo pela revogação da sentença e pela sua substituição por outra que julgue improcedente a providência cautelar, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES:
A - Não se pode aceitar a fundamentação da sentença, quando esta afirma que os Requerentes prestaram depoimentos totalmente credíveis, ao passo que os Requeridos terão deposto de forma “parcial e tendenciosa”, já que os Requeridos apresentaram uma versão coerente, consistente e compatível com a documentação junta aos autos.
B - Não se entende, ademais, como pode o Tribunal qualificar os depoimentos das testemunhas II, JJ e KK como tendenciosos e parciais, sendo que as mesmas foram espontâneas, firmes e corroboraram de forma objetiva aquilo que já havia sido relatado pelos Requeridos.
C - Em vez de valorar devidamente este contexto, o Tribunal limitou-se a dar credibilidade a um só depoimento, desconsiderando toda a restante prova em sentido contrário, o que configura erro manifesto de julgamento e impõe a reapreciação da prova.
D – O Tribunal ad quo considerou não provado que os Requeridos, na qualidade de herdeiros, são proprietários do prédio rústico correspondente ao artigo 138 – secção G, quando tal contradiz gravemente a prova documental, nomeadamente do doc. 5 junto com a oposição – declaração de Imposto de Selo – de onde resulta que tal prédio era propriedade de LL (avô da Requerida e bisavô do Requerido), falecido em .../.../1954, e que foi relacionado como verba nº 8.
E – Com a morte de LL, o seu herdeiro GG, casado com HH, foi adquirindo os quinhões hereditários e ficou com o prédio em causa, pelo que, no doc. 4 da oposição – declaração de Imposto de Selo – referente à morte de HH, consta, sob a verba n.º 6, precisamente o prédio rústico correspondente ao artigo 138 – secção CG. Sendo que os Requeridos são seus herdeiros (ponto 27 da matéria de facto provada).
F - Acresce que a caderneta predial do prédio rústico (doc. n.º 1 da oposição) comprova a inscrição matricial em nome da herança de GG e HH.
G - Na fundamentação da decisão de facto não é aduzida qualquer razão que justifique afastar a qualidade dos Requeridos, enquanto herdeiros, como proprietários do referido prédio rústico, sendo certo que os Requerentes apenas peticionaram o reconhecimento da propriedade do prédio urbano sob o artigo 623.
H - Acresce que, constando o prédio da matriz e não tendo sido ilidida a presunção legal, impunha-se que o Tribunal tivesse considerado como provada a titularidade dos Requeridos sobre o prédio rústico em causa.
I - Da caderneta predial do prédio rústico do art. 138 – secção CG (doc. 1 da oposição)
verifica-se que este é composto por uma parcela urbana que, por sua vez, corresponde ao prédio urbano posteriormente inscrito na matriz e registado na sequência da escritura de justificação realizada pelos Requerentes, escritura essa assente em declarações falsas. (doc. 6 da oposição).
J - Sendo o prédio rústico parte integrante do acervo hereditário dos Requeridos, é
evidente que também a sua parcela urbana se encontra incluída nesse mesmo acervo patrimonial e o Tribunal, todavia, esqueceu-se de ponderar a existência dessa parcela urbana do prédio rústico (artigo 138 – secção CG), a qual corresponde, precisamente, ao prédio urbano inscrito sob o artigo 623.
K – A prova documental foi corroborada pelas declarações do Requerido EE (minutos 2.55 e 5.55) que conformou que a casa sempre foi dos seus avós e que os Requerentes sabiam que casa não lhes pertencia; pelas declarações da testemunha II (minuto 5.25) que também confirmou que a casa era dos avós do Requerido (seus sogros); pelas declarações da testemunha JJ (minuto 2.15) que atestou que a casa pertencia a uma herança da qual os Requeridos são herdeiros e pelas declarações da testemunha KK (minuto 2.45) que atestou que o imóvel pertencia aos avós.
L - Acresce que é a própria herança que tem vindo a pagar o IMI relativo ao prédio rústico (onde se integra a parcela urbana) – doc. 7 da oposição – tendo sido o imposto liquidado, pelo menos, nos anos de 2019, 2020, 2024 e 2025 pela herança, o que foi confirmado pelo Requerido EE (minuto 20.46).
M - Com efeito, da conjugação dos documentos nº 1, 4, 5, 6 e 7 da oposição, das declarações dos REQUERIDOS e das testemunhas II, JJ e KK, nas concretas passagens transcritas, impunha-se considerar os pontos 1 e 2 da matéria de facto provada como não provados e os pontos a), b), i), j), l), m), n), z), aa), bb) e cc) da matéria de facto não provada como provados, porquanto estes foram incorretamente julgados.
N – Não foi feita qualquer prova da alegada posse dos Requerentes, sendo que aquilo que resultou foi que os Requeridos apesar de não residirem no local, continuaram a atuar como possuidores do prédio, procedendo à limpeza do terreno e assumindo o pagamento de impostos (doc. 7 da oposição).
O – Não foi comprovado qualquer ato de posse dos Requerentes, já que como declarou o Requerido EE (minutos 16.10, 16.55, 17.50) que eram os Requeridos que procediam à limpeza do logradouro; a Requerida AA (minutos 7.00, 16.15, 16.56, 18.25) explicou que os Requerentes não habitavam e frequentavam a o prédio, o que foi confirmado pela testemunha II (minuto 4.25) e pela a testemunha JJ (minuto 5.42), tendo também resultado destas declarações que os Requerentes não realizaram quaisquer obras ou outros atos possessórios.
P - O exposto torna-se ainda mais evidente pelo facto de os Requerentes não terem a sua morada fiscal na casa em causa (ponto 26 da matéria de facto provada), circunstância que comprova de forma inequívoca que nunca ali residiram.
Q - Com efeito, da conjugação do documento nº 7 da oposição, das declarações dos REQUERIDOS e das testemunhas II, JJ e KK, nas concretas passagens transcritas, impunha-se considerar os pontos 3, 4, 5, 6, 23, 24 e 25 da matéria de facto provada como não provados e os pontos f), h), s), u), w), dd) e ee) da matéria de facto não provada como provados, porquanto estes foram incorretamente julgados.
R – Resultou, sim, provado que os pais da Requerida (avós do Requerido) apenas emprestaram a casa aos pais do Requerente BB, permitindo-lhes habitá-la por necessidade, não tendo existido qualquer doação, sendo que, por mera boa vontade, os pais da Requerida colocaram a casa à disposição da irmã, sem nunca transmitir a propriedade.
S – Isto foi confirmado pelas declarações da Requerida (minuto 3.05) que explicou o comodato, bem como porque razão tinha sido feito, nomeadamente, porque como a mãe do Requerente não tinha casa, foi-lhe emprestada pelo irmão, o que foi corroborado pelo Requerido EE (minuto 7.50), pela testemunha II (minuto 11.27), pela testemunha JJ (minuto 4.35) e pela testemunha KK (minuto 4.40, 6.57).
T - Com efeito, da conjugação das declarações dos REQUERIDOS e das testemunhas II, JJ e KK, nas concretas passagens transcritas, impunha-se considerar o ponto 2 da matéria de facto provada como não provado e os pontos d), e), g), h), i), j), k), l), m), u), aa) e bb) da matéria de facto não provada como provados, porquanto estes foram incorretamente julgados.
U - Resultou ainda de toda a prova produzida em julgamento que os Requeridos, enquanto herdeiros, estavam já antes da escritura de justificação a diligenciar no sentido de legalizar o prédio que lhes pertence e que o Requerente BB formulou propostas de aquisição desse mesmo prédio, sendo que tal comportamento só é compatível com a consciência de que o prédio não lhe pertencia e que tinha outros legítimos titulares, sendo este um dos pontos essenciais do processo, mas que o Tribunal ignorou por completo.
V – Assim, do doc. 8 da oposição resulta uma carta subscrita pela solicitadora Dra. MM, em nome da Requerida AA, solicitando aos Requerentes que abandonassem a habitação.
X – E das declarações do Requerido EE (minuto 29.15) este confirmou que foi enviada uma carta por uma solicitadora e que houve uma reunião em que o Requerente quis comprar o prédio, o que é corroborado pelas declarações da Requerida AA (minuto 25.27, 28.25) que descreveu as várias propostas que foram feitas pelo Requerente, bem como uma das reuniões que ocorreu, em que o mesmo pretendeu adquirir a casa. Esta reunião foi também descrita pelas testemunhas: II (minuto 13.08), JJ (minuto 7.55, 8.30) e KK (minuto 10.00, 12.12).
Y - Assim, é manifesta a contradição da decisão recorrida ao dar como provada a alegada posse dos Requerentes, quando a sua conduta anterior revela precisamente o oposto: sabiam não lhes pertencer a propriedade, razão pela qual procuraram adquiri-la.
Z - Com efeito, da conjugação do documento nº 8 junto com a oposição, das declarações dos REQUERIDOS e das testemunhas II, JJ e KK, nas concretas passagens transcritas, impunha-se considerar os pontos 1 e 2 da matéria de facto provada como não provados e os pontos a), d), e), h), i), j), k), l), m), o), p), q), r), t), u), v), x), y), aa) e bb)da matéria de facto não provada como provados, porquanto estes foram incorretamente julgados.
AA – Assim, impõe-se que os factos em análise sejam corretamente valorados como provados ou não provados, resultando de forma inequívoca que:
- Está demonstrada a propriedade dos Requeridos, enquanto herdeiros legítimos do prédio em causa;
- Está igualmente demonstrada a posse exercida pelos Requeridos, através do pagamento de impostos, limpeza e manutenção do logradouro;
- Resulta claro que apenas houve um empréstimo (comodato) da casa aos pais do Requerente BB, nunca tendo ocorrido qualquer doação;
- Ficou ainda provado que, por diversas vezes, o Requerente apresentou propostas para aquisição do prédio, reconhecendo assim não ser o legítimo proprietário.
BB - Sendo dada razão aos Requeridos quanto à impugnação da matéria de facto desenvolvida até aqui, a conclusão lógica e necessária é que os factos 7, 8, 9, 10, 11, 12,
13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 da matéria de facto provada passem a ser considerados como não provados, pois que manter tais pontos como provados, ao mesmo tempo que se dá razão aos Requeridos quanto à restante impugnação, geraria uma solução contraditória e logicamente inconciliável, em violação do dever de apreciação crítica, global e coerente da prova imposto pelo artigo 607.º, n.º 5, do CPC.
CC - A providência cautelar de restituição de posse exige a alegação e prova de (i) existência da posse; (ii) esbulho; e (iii) violência, mesmo tendo um registo predial a seu favor, se o mesmo proveio de uma escritura de justificação é aos Requerentes que compete fazer a prova da veracidade dos factos da escritura.
DD - Assim, no caso concreto os Requerentes não lograram provar os factos tendentes à usucapião, provando-se apenas a sua detenção precária ex vi de comodato, pelo que não pode a providência manter-se, já que sem posse do requerente não há restituição da posse.
EE - Subsidiariamente, mesmo que a sentença não seja modificada em toda a extensão pretendida, há factos que, só por si, impedem a procedência da providência e a invocada usucapião, já que ficou demonstrado que o Requerente apresentou propostas de compra do imóvel aos Recorrentes e participou em reuniões para esse efeito, antecedidas de carta enviada por mandatária dos herdeiros, e tal conduta revela reconhecimento de alheia titularidade e é incompatível com a posse.
FF - A ocupação do prédio resultou apenas de um empréstimo familiar (comodato verbal) feito pelos avós dos Recorrentes aos pais do Requerente BB, o que não traduz a intenção de agir como proprietário, mas sim mera detenção precária.
GG – A posse deve ser pública, ou seja, exercida de modo visível, ostensivo e à vista de toda a comunidade, sem dissimulação, mas se o próprio Requerente BB se reuniu com os herdeiros para negociar a compra, perante familiares e terceiros, ficou patente que ele não era visto como proprietário.
HH - Para que o detentor se tornasse possuidor em nome próprio seria necessária
inversão do título mediante oposição inequívoca dirigida ao titular e por este conhecido, sendo que nada disso ocorreu, pois não basta a alegação de permanência no imóvel, o pagamento ocasional de consumos ou a existência de bens no interior para caracterizar animus domini; tais atos são compatíveis com mera tolerância familiar ou ocupação precária, e tanto mais quando, paralelamente, o próprio interessado procura comprar o bem aos herdeiros.
II - Não se verificam, pois, os pressupostos da usucapião, devendo ser revogada a decisão recorrida.
JJ – Não se verificam os pressupostos para a inversão do contencioso, pelo a decisão
recorrida deve ser revogada também quanto à inversão do contencioso, devendo a providência, manter natureza cautelar sem dispensar ação principal.:
a) Inadequação para composição definitiva: resulta da matéria de facto provada que o direito controvertido envolve uma herança ilíquida e indivisa, com vários herdeiros.
Em tal contexto, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, ora se a providência foi intentada apenas contra alguns, a inversão não consegue realizar a composição definitiva do litígio.
b) Ausência de convicção segura: como se demonstrou, a prova aponta para comodato e atos possessórios dos Recorrentes, além de propostas de compra pelo Requerente — elementos incompatíveis com animus domini e com a aquisição por usucapião —, o que afasta a possibilidade de formar, nesta sede cautelar, uma convicção
segura acerca do alegado direito dos Requerentes.
KK – Em suma, a decisão recorrida violou os artigos 369º, 377º, 379º e 607º, nº 5 do CPC e os artigos 342º, nº 1, 1251º, 1253º, 1261º, 1262º, 1287º e 1296 do CC.
9. Os Requerentes responderam ao recurso defendendo a confirmação da sentença recorrida.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A. Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
- Impugnação da decisão de facto;
- Se dos factos provados decorre a verificação dos pressupostos do decretamento da providência e da inversão do contencioso.
B- De Facto
A 1.ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto:
1. Os Requerentes são legítimos proprietários e possuidores do prédio urbano com o artigo matricial 623, com o valor patrimonial atual de 14.840€, inscrito em seu nome na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 com o nº 5068/20220308, pela Ap.3317 de 2022/03/08, situado em Local 1, Freguesia deAldeia 1, concelho de Cidade 1, sito na Rua 1, nº 180, ... Local 1, Cidade 1.
2. Este imóvel foi doado no ano de 1995 a FF e a BB, casados que foram sob o regime da comunhão geral de bens, sendo que FF faleceu a ... de ... de 2001, deixando sobrevivos o seu cônjuge BB e suas filhas, as requerentes CC e DD.
3. O Requerente e a sua falecida mulher sempre habitaram o imóvel, em sua exclusiva posse e apenas se desloca com frequência aos fins de semana, feriados, dias festivos e períodos coincidente com o natal, verão e páscoa, ao prédio urbano.
4. No imóvel descrito em 1), o requerente tem o seu mobiliário e objectos pessoais, decorado e composto por si, a sua televisão, sofás, equipamento de cozinha, a sua cama, tem os seus pertences, haveres e utensílios, aí tendo passado a sua juventude.
5. Após casado, o Requerente aí viveu e lá que dorme, toma as suas refeições e cuida do imóvel, efetua e efetuou obras, lá permanecendo, quer ele, quer as suas filhas e sua família directa, arranjando e limpando o terreno contínuo, cuidando das árvores.
6. Toda a gente sabe que o imóvel lhe pertence e que sempre pertenceu ao requerente, porque lá vivendo, entrando e saindo quando quer, há vista de todos, pagando água, luz, impostos e contribuições, tomando o prédio urbano como seu, gozando de todas as suas utilidades, sem qualquer interrupção e à vista de toda a gente.
7. No dia 19/10/2024, o requerente e a requerente CC, filha de BB, receberam um telefonema para que fossem de imediato a casa, porque estavam a arrombar a mesma com uso de berbequim e já tinham aí penetrado.
8. Os Requerentes, de imediato, deslocaram-se a Local 1, ao imóvel e encontraram-no com a fechadura mudada e quando tentaram entrar, não o conseguiram, verificando que a fechadura não correspondia à chave que sempre utilizaram.
9. Foi então que se aproximaram os requeridos que lhes fizeram frente, tapando a respectiva porta e dizendo-lhes que não entravam mais em casa, assumindo que tinham mudado a fechadura e colocado trancas, por dentro, nas duas portas traseiras, que permitem o acesso ao imóvel.
10. De imediato, os requerentes contactaram a GNR, que no local obrigaram os requeridos a abrir a respectiva porta, o que até então não tinham feito, confirmando que tinham mudado a fechadura e colocado trinco e trancas nas restantes portas de acesso ao exterior, evitando que os requerentes pudessem entrar em casa.
11. Os requerentes, na companhia dos militares da GNR do Destacamento Territorial de Cidade 1, conseguiram entrar em casa, mas, naquele momento, não perceberam se havia bens removidos ou deteriorados, em face do comportamento dos requeridos que obstaram, mesmo com a presença da GNR, que os requerentes se mantivessem na sua própria casa.
12. Os requeridos não apresentaram qualquer documento sobre a propriedade e posse do imóvel, nem que os próprios bens que se encontravam na habitação eram sua pertença.
13. No dia 19.10.2024, os Requerentes apresentaram queixa crime no Posto da GNR de Cidade 1 com o NUIPC nº 230/24.0....
14. Os requeridos agiram com violência ao mudar a respectiva fechadura do imóvel descrito em 1), utilizando para o efeito um berbequim, através da colocação de fecho e colocação de trancas nas restantes portas de acesso, invadindo e penetrando na residência dos requerentes, criando obstáculo à entrada e acesso aos bens que compõem o recheio do imóvel.
15. Colocando-se de fronte e fisicamente dos requerentes, evitando que os mesmos entrassem ou retirassem a nova fechadura para que pudessem penetrar na sua casa e fazendo frente aos militares da GNR.
16. No dia 9/11/24, voltaram as requerentes a ser contactadas, porque estavam outras pessoas dentro do seu prédio urbano, tratando-se de JJ, na companhia de outra pessoa, que desconhecem.
17. Os requerentes deslocaram-se ao local, provenientes de Lisboa, confirmando que, conforme lhes comunicaram, havia pessoas que aí tinham entrado.
18. Os requerentes foram impedidos após arrobamento de entrar no dito imóvel que lhes pertence, quando pretenderam fazê-lo, de forma violenta e agressiva, impossibilitando os requeridos que os requerentes possam usufruir quer do imóvel quer de todo o mobiliário, recheio e bens que lhes pertencem.
19. A violência exercida pelos requeridos quer pelo arrombamento, quer pela coação física impediu os requerentes de usufruírem do imóvel até ser decretada a restituição provisória da posse pelo Tribunal.
20. Os requeridos mudando a respectiva fechadura da porta principal e impedindo o acesso por outras portas à habitação dos requerentes, fazendo-lhes frente, utilizaram coacção física.
21. O requerente é pessoa especialmente vulnerável, com 84 anos de idade, e o comportamento dos requeridos afecta-o psicologicamente, porque de um momento para o outro se viu desapossado dos seus bens e da casa onde praticamente viveu toda a sua vida.
22. Os requeridos agiram com violência física, de forma a impedi-los de terem acesso ao imóvel descrito em 1).
23. Os Requerentes fizeram benfeitorias no prédio urbano descrito em 1) sempre que necessário, repararam-no e melhoraram-no.
24. Os Requerentes mobiliaram e equiparam o imóvel descrito em 1), fizeram obras de reparação e de manutenção como coisa sua se tratasse, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém há mais de 70 anos, pagando impostos, agindo de boa fé, de forma contínua e ininterrupta em proveito próprio e na convicção de serem os seus legítimos proprietários.
25. O prédio urbano descrito em 1) foi construído pelos avós da Requerida NN e do Requerente BB há mais de 70 anos, tendo constituído sua casa morada de família antes de nela viverem os pais do Requerente BB.
26. BB e os restantes Requerentes não têm a sua morada fiscal no prédio descrito em 1).
27. HH faleceu no estado de viúva de GG, em 11 de março de 2014, deixando como seus únicos e universais herdeiros:
1. Sua filha e cabeça-de-casal, AA;
2. Sua filha, OO;
3. Sua neta, em representação do filho ora falecido PP, QQ;
4. Seu neto, em representação do filho ora falecido PP, EE.
A 1.ª instância considerou não provada a seguinte factualidade:
a) Os Requeridos são donos e legítimos possuidores do prédio rústico, composto por parcela 1 rústico de cultura arvense, figueiras e oliveiras e por parcela 2 urbano, sito em Local 1, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 138, secção CG da união das freguesias de Aldeia 1, concelho de Cidade 1, na qualidade de co-herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG e HH.
b) Este prédio veio à propriedade dos requeridos por força da herança aberta por óbito de LL, em ... de ... de 1954, sendo GG herdeiro da referida herança.
c) HH e GG foram, ao longo dos anos, adquirindo aos restantes co-herdeiros os seus quinhões hereditários passando a ser os únicos proprietários do referido prédio.
d) Em virtude da construção de outro prédio urbano sito em Local 1, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1107 da união das freguesias de Aldeia 1, concelho de Cidade 1, os pais e avós dos Requeridos, os falecidos GG e HH, emprestaram o prédio urbano identificado em 1) dos factos provados aos pais do Requerente BB, porque os pais do Requerente BB estavam com bastantes dificuldades financeiras e ali tinham melhores condições de vida e estavam mais perto da família e necessitavam de casa para, temporariamente, habitarem.
e) Empréstimo esse que foi perdurando no tempo sem que os Requeridos e os seus ascendentes deixassem de proceder ao pagamento das competentes contribuições autárquicas, que limpassem o terreno e que viessem ajudar em benfeitorias na casa ao longo dos vários anos.
f) BB deixou há vários anos de habitar permanentemente no imóvel.
g) O elo familiar que os Requerentes era pacifico, sabendo os Requerentes e os Requeridos que o prédio ora em crise é da propriedade dos Requeridos.
h) O prédio urbano não é, nem nunca foi, nem nunca poderia ser, propriedade dos Requerentes nem estes se podem arrogar uma posse determinada, sendo apenas meros detentores do prédio.
i) Os Requeridos são os verdadeiros proprietários do prédio urbano.
j) Os Requeridos são donos e legítimos possuidores do prédio rústico, composto por parcela 1 rústico de cultura arvense, figueiras e oliveiras e parcela 2 urbano, sito em Local 1, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 138, secção CG da união das freguesias de Aldeia 1, concelho de Cidade 1, o qual adquiriram por herança indivisa por óbito de GG e HH.
k) Desde que nasceram que têm conhecimento que o prédio foi emprestado em tempos e durante alguns anos, pelos avós e pai da Requerida e avô e bisavós do Requerido aos primos, pais do Requerente.
l) Nunca foi realizada qualquer doação e/ou venda.
m) O imóvel não veio à posse da referida FF, no estado de casada sob o regime da comunhão geral com o ora primeiro outorgante BB, por doação meramente verbal feita pelos pais do primeiro outorgante identificado em I), RR o mesmo que RR e mulher SS, casados que foram sob o regime da comunhão geral de bens, residentes na Rua 1, Local 1, Aldeia 1, Cidade 1, no ano de mil novecentos e noventa e cinco em mês e dia que não podem precisar, nunca tendo formalizado o respectivo contrato por Escritura Pública, de modo a proceder aos seus registos na Conservatória do Registo Predial.
n) O imóvel/prédio urbano registado em nome dos Requerentes (artigo matricial 623) é o mesmo prédio rústico, composto por um urbano dos Requeridos (artigo matricial 138).
o) Os Requeridos, nos últimos anos, decidiram começar a analisar e organizar toda a documentação, por forma a avançarem com a legalização de todos os bens imóveis deixados por óbito dos seus pais e avós - inclusive entregaram o processo a Solicitadora.
p) Os requeridos apenas não avançaram com qualquer ação no sentido de realizarem o seu direito de propriedade por respeito ao Requerente BB e atenta a provecta idade deste, porque o Requerente BB fez várias propostas de compra do prédio, ao longo dos anos, mas nunca gostou do preço que lhe foi apresentado.
q) Após a última conversa sobre a aquisição do prédio, o Requerente BB, em reunião com os requeridos em meados de 2020, não gostou do preço apresentado e abandonou a reunião deixando de falar com os Requeridos desde então.
r) Os Requeridos aguardaram, serenamente, que os Requerentes tratassem da sua vida e, devolvessem a chave do imóvel, abandonando o mesmo e/ou, o comprassem.
s) Os Requeridos têm conhecimento que o Requerente BB não reside no imóvel e que já assim é há vários anos.
t) Os Requerentes têm vindo a protelar a entrega e/ou restituição do imóvel que se encontra ocupado ilicitamente, com promessas de compra ao longo dos últimos anos.
u) Os Requeridos agem e sempre agiram como proprietários em convicção da plenitude do seu direito, sempre pagaram os impostos e respetivas contribuições fiscais sobre a totalidade do prédio, onde se incluí a parcela urbana que ora os Requerentes alegam ser sua propriedade.
v) Os Requeridos chegaram a remeter uma missiva a fim de reaverem a sua propriedade.
w) Os Requerentes nunca exerceram actos de posse sobre o referido prédio pois, desde sempre, que os Requeridos e os seus ascendentes realizaram a limpeza do terreno rústico adjacente à parcela urbana e sempre pagaram os impostos e respetivas contribuições fiscais sobre a totalidade do prédio, onde se incluí a parcela urbana que ora os Requerentes alegam ser sua propriedade.
x) Os Requerentes, numa conduta sagaz e maliciosa, empataram a entrega do imóvel e aproveitaram-se do facto dos Requeridos se compadecerem da idade de BB e com os laços familiares que partilham, para outorgarem a escritura de justificação.
y) Já há bastante tempo que os Requeridos pretendiam a desocupação do prédio por parte dos Requerentes e já há mais de 5 anos que pretendiam regularizar as suas heranças e propriedades.
z) A inscrição matricial e a competente descrição são apenas sobre a parcela urbana e a mesma encontra-se integrada no prédio rural propriedade dos Requeridos.
aa) Os pais do Requerente BB não foram proprietários do imóvel.
bb) Os Requerentes prestaram falsas declarações à autoridade publica para outorgarem a escritura de justificação notarial e de forma desleal, protelaram quaisquer contactos com os Requeridos.
cc) O terreno no qual está implantado o prédio urbano continua a permanecer na esfera de propriedade dos Requeridos.
dd) Os requeridos fizeram benfeitorias no prédio urbano sempre que necessário, e repararam-no, melhorando-o.
ee) Os requeridos exerceram os actos de posse sobre o prédio urbano na convicção de exercerem um direito próprio, comportando-se como seus proprietários e como coisa sua se tratasse.
C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
1. Impugnação da decisão de facto
1. Os Apelante impugnam a decisão de facto invocando erro no julgamento de facto em relação aos factos dados como provados e não provados nos termos que infra melhor analisaremos.
A impugnação da decisão da decisão de facto está sujeita ao cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, sob pena de rejeição.
Os poderes-deveres de cognição da Relação em termos de reapreciação da matéria de facto (duplo grau de jurisdição) têm como pressuposto o cumprimento pelos impugnantes do estipulado no referido artigo 640.º do CPC, bem como os limites estabelecidos no artigo 662.º do CPC.
Assim, decorre do artigo 640.º do CPC que sobre o impugnante impede o ónus de, cumulativamente, indicar os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que constem dos autos ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, e a decisão que, o seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões impugnadas, e, finalmente, tendo a prova sido gravada, a indicação das exatas passagens dos depoimentos que os integrem que determinariam decisão diversa da tomada em primeira instância (artigo 640.º, n.º 1, alíneas a, b), e c) , e n.º 2, do CPC).
Impugnada a decisão de facto, compete à Relação, enquanto tribunal de 2.ª instância, formar a sua própria convicção, formulando o seu próprio juízo probatório acerca dos factos questionados, de acordo com as provas produzidas constantes nos autos à luz das regras de direito material probatório sobre os meios de prova apreciados.
Assim, salvo as situações de factos admitidos por acordo, provados por documentos com força probatória plena ou por confissão, os meios de prova são valorados de acordo com o critério da livre e prudente apreciação do julgador, nos termos do disposto nos artigos 663.º, n.º 2, e 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC.
2. Analisadas as Conclusões do recurso verifica-se que se encontra impugnada toda a factualidade que se deu como provada, com exceção dos pontos 26 e 27 dos factos provados, os quais se reportam, respetivamente, à seguinte factualidade: os Requerentes não têm a sua morada fiscal no prédio em causa nos autos e HH faleceu no estado de viúva de GG, em ...-...-2014, tendo como sucessores as pessoas ali identificadas.
Ou seja, dos 27 pontos que compõem a decisão de facto quanto à matéria provada, 25 pontos encontram-se impugnados, defendendo os Apelantes que devem ser tidos como não provados.
Em relação aos factos não provados espelhados nas alíneas a) a ee), apenas a alínea c) não foi alvo de impugnação, reportando-se à seguinte factualidade: «HH e GG foram, ao longo dos anos, adquirindo aos restantes co-herdeiros os seus quinhões hereditários passando a ser os únicos proprietários do referido prédio.»
Pretendem os Apelantes que as alíneas impugnadas passem a constar da decisão de facto enquanto factualidade provada.
A par deste modo de impugnação, os Apelantes fundam a sua discordância na prova que arrolaram com a oposição, a saber: os documentos 1 a 8, nas declarações de parte dos Requeridos e nos testemunhos de II (mãe do Requerido EE), JJ e TT (filhos da Requerente AA).
Em relação à prova arrolada pelos Requerentes, produzida na 1.ª audiência, sendo que a testemunha UU voltou a ser reinquirida após a inspeção ao local no âmbito da produção de prova após a oposição, os Apelantes apenas questionam a credibilidade que o tribunal a quo lhes atribuiu por oposição à que não atribuiu à prova arrolada pelos Requeridos. De resto, apenas aludem à escritura de justificação notarial para referir que as declarações prestadas na mesma são falsas. Apesar do alegado, durante a tramitação da ação, não suscitaram o incidente de falsidade da referida escritura de justificação notarial.
Como se pode constatar da leitura da fundamentação da decisão de facto, o tribunal a quo fez uma apreciação crítica de toda a prova produzida, analisando os documentos juntos pelas duas parte, bem como as declarações de parte dos Requerentes e dos Requeridos e a prova testemunhal arroladas por ambos. Mencionou ainda o que percecionou aquando da inspeção ao local.
Deste modo, é perfeitamente percetível a forma como a 1.ª instância formou a sua convicção.
Em face do que vem sendo dito, a questão que se coloca é se os Apelantes cumpriram os ónus que impedem sobre os impugnantes da decisão de facto e que se encontram previstos no artigo 640.º do CPC nos termos suprarreferidos.
É inquestionável que os poderes conferidos à Relação em sede de apreciação da decisão de facto no âmbito do estipulado no artigo 662.º do CPC, «não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente, de forma concludente, as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que implicam decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter.»1
Todavia, a menor ou maior extensão da impugnação não é, por si, o critério determinante da rejeição da impugnação, pois o fulcro reside antes, a nosso ver, na questão da impugnação se apresentar como genérica e não motivada nos termos previstos no artigo 640.º do CPC.
Para além disso, e como em diversas ocasiões o STJ tem realçado, a rejeição da impugnação da decisão de facto, não deve postergar os princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, dando prevalência a aspetos de ordem formal sobre aspetos de natureza material, desde que se encontrem minimamente preenchidos os pressupostos da impugnação cujo cumprimento impendem sobre o recorrentes. 2
Com base neste pressuposto, e porque, não obstante a impugnação versar praticamente sobre toda a matéria de facto provada e não provada, em relação a parte dos factos provados (ainda que impugnados em bloco, o que só por si, não invalida o cumprimento do artigo 640.º do CPC, por se reportarem à mesma realidade factual em apreciação – cfr. Ac. STJ, de 30-11-20233, proc. n.º 556/21.4T8PNF.P1, S.1), entende-se que não deve ser rejeitada.
Em relação aos pontos indiciariamente referentes aos pontos 7 a 22, que foram impugnados em bloco com o argumento que são contraditórios em relação ao que resultará da procedência da impugnação da decisão de facto, após a analise da impugnação quanto à restante matéria impugnada, se decidirá se tal ocorre.
Em relação às alíneas da matéria de facto impugnada, também foram impugnadas em bloco e sem identificação dos concretos meios de prova em que assenta a impugnação. Todavia, essa factualidade corresponde, grosso modo, à mesma realidade, mas na versão contrária aos factos provados, pelo que também não se justifica a rejeição da impugnação. A sorte desta impugnação, no fundo, depende do que for decidido quanto aos factos provados e impugnados.
Sendo assim, passamos à apreciação da impugnação da decisão de facto, levando em atenção o modo como a mesma foi gizada.
1.3. Considerando a impugnação, os Apelantes defendem que os factos provados 1 e 2 devem passar para a ter-se como não provados e, ao invés, as alíneas a), b), i), j), l), m), n), z), aa), bb) e cc) dos factos não provados devem passar a constar dos factos provados (Conclusão M).
Com o mesmo alcance, mas na Conclusão T, os Apelantes voltam a reporta-se ao facto provado 2 e às alíneas d), e), g), h), i), j), k), l), m), u), aa) e bb).
Como acima referido, em relação à factualidade das alíneas supra referidas, os Apelantes não as impugnam per se, mas fazem-no em bloco, pedindo a sua alteração como consequência da pedida alteração dos pontos 1 2 da decisão de facto.
Seguindo essa perspetiva, vamos seguir a metodologia dos recorrentes, centrando-nos na factualidade dos referidos pontos 1 e 2.
Os meios de prova que indicam são os da oposição, a saber:
- Documento 5 - declaração de imposto de selo referente ao prédio rústico correspondente ao artigo matricial 138 - secção CG, para daí inferirem que tal prédio era propriedade de LL (avô da Requerida AA e bisavô do Requerido EE):
- Documento 4 - declaração de imposto de selo referente ao mesmo artigo matricial 138 - secção CG, por morte de HH;
- Documento 1 - caderneta predial do referido prédio rústico a comprovar a inscrição matricial em nome da herança de GG e de HH;
- Documento 6 - escritura de justificação notarial realizada pelos Requerentes;
- Documento 7 - Pagamento do IMI pela herança do prédio rústico suprarreferido, nos anos 2019, 2020, 2024 e 2025;
- Documento 8 – carta subscrita pela solicitadora Dr.ª MM, em nome da Requerida AA, solicitando ao Requerente BB que abandonasse a habitação.
- Declarações de parte dos Requeridos e depoimentos das testemunhas II, JJ e KK, confirmatórias dos teor dos documentos.
Com base nesta prova, pretendem os recorrentes demonstrar que:
- Está probatoriamente demonstrada a propriedade dos Requeridos, enquanto herdeiros legítimos do prédio rústico inscrito no artigo matricial 138 - secção CG, fazendo o prédio urbano agora registado em nome dos Requerentes e na sequência de escritura de justificação notarial, parte do referido prédio rústico;
- Está probatoriamente demonstrada a posse exercida pelos Requeridos através do pagamento de impostos, limpeza e manutenção do logradouro;
- Está probatoriamente demonstrada a existência de um comodato da casa aos pais do Requerente BB, nunca tendo ocorrido qualquer doação verbal;
- Está probatoriamente demonstrada que, por diversas vezes, o Requerente BB, apresentou propostas para a aquisição do prédio (casa de habitação) reconhecendo que não era o legítimo proprietário.
Analisemos, então, a impugnação.
A factualidade dada como provada nos pontos 1 e 2 da decisão de facto é a seguinte.
«1. Os Requerentes são legítimos proprietários e possuidores do prédio urbano com o artigo matricial 623, com o valor patrimonial atual de 14.840€, inscrito em seu nome na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 com o nº 5068/20220308, pela Ap.3317 de 2022/03/08, situado em Local 1, Freguesia de Aldeia 1, concelho de Cidade 1, sito na Rua 1, nº 180, ... Local 1, Cidade 1.
2. Este imóvel foi doado no ano de 1995 a FF e a BB, casados que foram sob o regime da comunhão geral de bens, sendo que FF faleceu a ... de ... de 2001, deixando sobrevivos o seu cônjuge BB e suas filhas, as requerentes CC e DD.»
Consta da fundamentação da decisão de facto em relação aos pontos 1 e 2 que o tribunal valorou a presunção que decorre do registo da aquisição do direito de propriedade por usucapião do prédio referido no facto 1, atendendo à correspondente certidão do registo predial, à escritura de justificação notarial com base na qual foi lavrado o registo, bem como às declarações de parte dos Requerentes e depoimentos das testemunhas VV e UU, que valorou como sendo credíveis, atendendo ainda ao visualizado na inspeção ao local.
Já em relação às declarações de parte dos Requeridos e testemunhos de II, JJ e KK valorou-as de forma negativa, considerando que foram prestadas de modo parcial e tendencioso (declarações de parte) a que acrescentou que os testemunhos, para além de terem a mesma pecha, foram pouco circunstanciados.
Auditada a prova invocada pelos Apelantes, conjugando-a com a demais prova gravada, e analisados os documentos junto aos autos, adianta-se, desde já, que se formou convicção semelhante à da 1.ª instância, não descortinando qualquer erro de julgamento em relação à matéria em reapreciação.
Senão vejamos.
Os documentos 5, 4 e 7 da oposição, suprarreferidos, reportam-se a documentos relacionados com matéria tributária (pagamento de IMI e de imposto de selo e caderneta predial) referente a um imóvel rústico correspondente ao artigo matricial 138 - secção CG, que pertencia a LL (avô da Requerida AA e bisavô do Requerido EE) e, atualmente, pertence à herança indivisa por morte de GG e de HH, sendo os Requeridos herdeiros dos mesmos (cfr. quanto à parte final, ponto 27 dos factos indiciariamente provados).
Estes documentos apenas comprovam que sobre o imóvel rústico inscrito na matriz 138 - secção CG foram pagos os referidos impostos, fazendo parte do acervo hereditário da herança indivisa acima referida. Não demonstram que o referido prédio se encontra descrito na respetiva conservatória do registo predial, e, consequentemente, que se encontra inscrito a favor da referida herança indivisa e, antes dela, que se encontrava na titularidade dos inventariados.
A prova da titularidade do direito de propriedade é feita através da certidão permanente do registo predial se o prédio estiver inscrito, beneficiando os titulares inscritos da presunção que decorre do registo (artigo 7.º do Código de Registo Predial), ou não estando inscrito no registo predial, como é o caso, a prova do domínio é feita através da posse conducente à usucapião, a qual pode ser realizada através de prova documental e testemunhal sujeita à livre apreciação.
Por conseguinte, não se encontra demonstrado nos autos a titularidade dos Requeridos como herdeiros da referida herança indivisa sobre o imóvel rústico inscrito na matriz predial sob o n.º 138 - secção CG.
Mesmo o pagamento do IMI em nada altera o que se disse, porquanto também é claro que o pagamento se reporta ao prédio rústico e não ao urbano.
Sendo que o documento 8 da oposição também em nada releva porquanto foi emitido em 19-10-2023 e a escritura de justificação notarial tem data de 17-01-2022 e o registo de aquisição a favor dos Requerentes tem data de 08-03-2022, ou seja, estes últimos atos ocorreram em momento anterior ao envio da carta a pedir ao Requerente a entrega do imóvel.
Em suma, os documentos acima referenciados e apresentados pelos oponentes Requeridos referentes ao pagamento de impostos referente ao prédio rústico em nada revelam para a impugnação da titularidade dos imóveis em causa nos autos.
Mas, mais relevante para os presentes autos, é o facto de não se poder extrair dos documentos referidos pelos Apelantes que o prédio urbano referido no ponto 1 dos factos provados, antes de ser inscrito no registo predial, fazia parte integrante do prédio rústico inscrito na matriz predial sob o n.º 138 - secção CG.
Essa prova teria de vir aos autos por via de outros meios probatórios, ou seja, através das declarações de parte e prova testemunhal. O que não sucedeu como já de seguida se irá referir, sublinhando antes, que, ao contrário dos Requeridos, os Requerentes beneficiam da presunção registral prevista no artigo 7.º do Código de Registo Predial por terem inscrito a seu favor o prédio urbano referido no ponto 1 dos factos indiciariamente provados. O que ocorreu por via da escritura de justificação notarial que, enquanto não for impugnada através da competente ação de impugnação (ação de simples apreciação negativa - artigos 116.º, n.º1 do Cód. Registo Predial e artigos 89.º e 101.º do Código do Notariado, na qual incumbe aos impugnantes a alegação e prova da mesma, designadamente que são titulares de um direito suscetível de ser afetado pelo direito declarado na escritura a favor dos impugnados - Ac. STJ de 18-04-20244 ) tem força probatória plena, nos termos do artigo 371.º do CC.
Não se ignora que, no nosso sistema, o registo não tem natureza constitutiva (exceto no caso do registo da hipoteca) e que a jurisprudência tem decidido que, no caso da inscrição registral da aquisição de um imóvel se basear em escritura de justificação, não beneficia o respetivo titular da presunção a que alude o artigo 7.º do Cód. Registo Predial, ou seja que o direito existe, desde que a mesma seja impugnada em ação judicial.
A razão reside no facto da escritura de justificação notarial não criar o direito aí declarado que aparece na escritura por via da declaração unilateral do justificante, pelo que este tem de comprovar que é verdadeira a sua declaração quando ela for posta em causa por quem tem legitimidade (interesse), ou seja, por quem possa sair prejudicado com aquela justificação.5
Nesse sentido, veja-se a jurisprudência uniformizada do STJ6 que decidiu:
«Na ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial.»
Todavia, no caso sub judice, os Réus não impugnaram a escritura de justificação notarial juntas aos autos e também aqui não suscitaram o incidente de falsidade da mesma.
Porém, como questionam a decisão de facto da qual decorre que se encontra inscrita a favor dos Requerentes o direito de propriedade sobre o imóvel em disputa nos autos por entenderem que o mesmo faz parte do imóvel rústico a que se vem aludindo, e estando em causa uma providência de restituição provisória de posse (sendo um dos requisitos precisamente a posse e não o direito de propriedade) sempre compete aos Requerentes, apesar da referida presunção registral, demonstrar através de outros meios de prova os requisitos da aquisição originária por via da usucapião que conduziram nos termos da justificação notarial a aquisição por aquela via e determinaram o respetivo registo a favor dos Requerentes.
Ora sendo, assim, impõe-se, antes de mais, analisar a prova por declarações de parte e testemunhal para se aferir se da mesma decorre que o prédio urbano inscrito a favor dos Requerentes corresponde a uma parcela do prédio rústico acima identificado.
A prova sobre esta questão fulcral competia ao Requeridos por ser impeditiva do direito que os Requerentes cautelarmente pretendem prevenir através do presente procedimento cautelar de restituição de posse (artigo 342.º, n.º 2, do CC) e, eventualmente, se estiverem preenchidos os pressupostos da inversão do contencioso, até de forma definitiva.
Sucede que comparando a prova produzida pelos Requerentes e pelos Requeridos, a mesma mostra-se totalmente oposta.
Seja no que concerne a saber se a casa de habitação se encontrava integrada no prédio rústico, seja quanto ao modo como adveio a posse da mesma aos Requerentes.
No entender dos Requerentes, a casa não faz parte do prédio rústico e adveio à sua posse por doação verbal dos seus antecessores (que também o são dos Requeridos), enquanto os Requeridos defendem que a casa fazia parte do prédio rústico e não ocorreu qualquer doação verbal, mas apenas um comodato.
A prova dos Requerentes e dos Requeridos vem corroborar as respetivas versões apresentadas nos autos.
Na apreciação da credibilidade destes meios de prova é preciso atender às relações familiares que existem entre Requerentes, Requeridos e testemunhas apresentadas por ambas as partes, todos ligados por laços familiares próximos, com exceção da testemunha VV que se apresentou apenas como amiga e vizinha dos Requerentes, conhecendo de vista os Requeridos, tendo deposto de forma a corroborar as declarações prestadas pelos Requerentes.
Mas vejamos, mais em pormenor a argumentação dos ora Apelantes em relação à prova por declarações de parte e por testemunhas para se aferir da argumentação impugnatória dos mesmos.
Disse o Requerido EE que a casa dos autos foi construída pelos seus bisavós, segundo o que o pai lhe dizia, e que era o pai, antes de morrer, e ele depois e a tia, que pagavam os impostos.
A testemunha II, mãe do Requerido EE, disse que os sogros lhe diziam que a casa era deles e que sabia disso porque viveu com os sogros três anos e meio.
A testemunha JJ (filho da requerida AA) disse que conhecia a casa e que sabia que era dos pais por herança da avó e sempre ouviu dizer que o terreno e a casa pertencia ao avô.
A testemunha KK (filha da Requerida AA) disse que a casa pertencia aos avós e que fica perto de uma outra casa que também pertencia aos avós e que a casa foi emprestada pelos avós a BB e mulher porque não tinham outra.
Constata-se destes depoimentos que o conhecimento que têm do que se discute lhe adveio por via indireta. E, embora nestas situações que perduram há muito anos, seja compreensível que assim seja, porque quem tinha conhecimento direto já não pode depor, existe uma inegável fragilidade em termos probatórios neste tipo de depoimento.
Vejamos, agora, a prova arrolada pelos Requerentes.
Em sede de declarações de parte do Requerente (centrando-nos nas prestadas pelo Requerente por ser a pessoa que, pela intervenção que teve nos factos desde o início do uso da casa e ao longo dos anos, sendo que, na altura das declarações de parte tinha 84 anos) declarou que a casa veio à posse do Requerente e da falecida mulher por doação e que a casa tinha um quintal adjacente que era propriedade dos avós do Requerente, herdada pelos pais deste, sendo habitada durante mais de 70 anos pelos pais do Requerente e, após o falecimento dos pais, pelo declarante e sua mulher, e após o falecimento desta em 2001, ele e as filhas continuaram a usar a casa mas apenas nos fins-de-semana e férias.
Que mobilou a casa; que a mesma tem luz elétrica e água; que sempre pagou o IMI.
Também declarou que, por partilhas verbais com o irmão do Requerente, a casa ficou para o Requerente e falecida mulher e que os Requeridos nunca usaram ou fruíram da casa nem do respetivo quintal .
Mais disse que após o óbito do seu pai, fez obras diversas (que mencionou) e que a casa tem um muro (inicialmente em madeira feito pelo pai do Requerente e, mais tarde, mas há mais de 20 anos, em cimento feito pelo Requerente) que delimita o quintal da casa do prédio adjacente, que será o prédio rústico referido nos autos.
As testemunhas ouvidas, VV e WW (esta reinquirida, como já dito), confirmaram estas declarações de parte. A primeira tinha à data, 60 anos, e a segunda, 70 anos. Esta vive permanentemente e há mais de 29 anos na casa que confina com a casa em disputa, conhece o interior e tem as chaves para situações de emergência. Esclareceu que as obras foram feitas pelos pais do Requerente e por este e falecida mulher; confirmou o estado da casa, a existência de um quintal murado e adjacente à casa; que a limpeza do mesmo é feita pelo Requerente; que quem sempre habitou a casa foi o Requerente, a mulher e as filhas e nunca lá viu os Requeridos, nem a usá-la ou a dela cuidarem.
Por sua vez, e como consta da respetiva ata de inspeção ao local e fotografias anexas (realizada em 08-05-2025), o tribunal verificou a existência de um terreno de cultivo anexo à casa de habitação, o estado interior da habitação (mobilada e com objetos pessoais, com água e luz, com sinais de obras de renovação).
No confronto destes meios de prova, à luz das regras da normalidade e da experiência, e considerando que estamos em sede de um procedimento cautelar que se basta com uma summario cognitio e com juízos de probabilidade, afigura-se-nos existir maior consistência e coerência na prova apresentada pelos Requerentes do que na prova produzida pelos Requeridos.
Veja-se, desde logo, que o conhecimento dos Requeridos, como se disse, é indireto por não terem participado ou tido conhecimento dos factos no momento em que ocorreram que já se encontram bastante distanciados no tempo.
Depois a explicação que os Requeridos derem para só agora, passados quase 30 anos (entre 1995 e 2024) após o início da utilização da casa pelos Requerentes, para já não se falar dos pais do Requerente, se oporem à utilização da casa por a mesma ter sido emprestada e não doada, referindo que estão a organizar os papéis da herança indivisa, parece-nos pouco consistente considerando que a utilização da casa foi feita ao longo de décadas, de forma pública e à vista de todos, sem oposição de ninguém.
Repare-se que a Requerida NN (que tinha 76 anos à data das declarações) é filha de HH e de GG, pessoas a quem é atribuído o empréstimo/doação da casa dos autos aos pais do Requerentes BB e, estranhamente, ao longo de vários anos, nomeadamente, após a morte da mãe, em 11-03-2014 (já no estado de viúva), nunca se opôs à ocupação da casa, o que só veio a acontecer em setembro de 2024. Comportamento que é, em face das regras da experiência e da normalidade da vida, pouco consentâneo com um comodato, ou seja, uma cedência de favor há tantos anos, mesmo numa altura em que a casa passou a ser habitada esporadicamente pelo Requerente e filhas, o que evidencia que a alegada necessidade que estaria na base do empréstimo da casa aos pais do Requerente, já não tinha qualquer pertinência. Para já não se mencionar que poderia ter existido inicialmente um comodato e, posteriormente, a consolidação da situação através da doação verbal alegada pelos Requerentes na sequência de partilhas verbais entre os interessados.
É certo que é dito que havia negociações em curso com o Requerente BB para este comprar a casa, mas a prova desse facto não é segura por provir apenas da prova arrolada pelos Requeridos que, como se disse, corroborou apenas a versão dos mesmos.
Por outro lado, afigura-se-nos que não pode deixar de ser especialmente valorado o testemunho de UU que, apesar do parentesco com as partes (prima), vive há quase 30 anos ao lado da casa dos autos, pelo que tem conhecimento direto do modo como a mesma tem sido utilizada, pelos pais do Requerido, por este e sua família.
Em face de todo o exposto, e considerando que estamos no domínio de prova realizada em processo cautelar, entende-se e reitera-se que se formou convicção semelhante à da 1.ª instância, pelo que a decisão de facto nos pontos e alíneas impugnadas não incorreu em erro de julgamento, pelo que improcede a respetiva impugnação.
1.4. Nas Conclusões Q, os Apelantes mencionam que impugnam os pontos de facto provados sob os n.º 3, 4, 5, 6, 23, 24 e 25 e alíneas f), h), s), u), w), dd) e ee) dos factos não provados.
Alegam, em suma, que não foi feita prova de atos possessórios por parte dos Requerentes (negando a realização de obras na casa, sublinhando que os Requerentes não têm morada fiscal na mesma, as propostas de aquisição por parte do Requerente, a recusa deste, etc.), continuando os Requeridos, apesar de não viverem no local, a agir como possuidores do prédio, procedendo à limpeza e pagando os respetivos impostos.
Em termos de prova, invocam as declarações de parte do Requerido EE e de NN, testemunhos de II, JJ e o documento 8 da oposição (a carta já acima referida).
Na análise que fazemos quanto a esta impugnação, damos por reproduzido tudo o que antes se referiu no ponto 1.3. aquando da apreciação da impugnação dos factos provados 1 e 2 e alíneas dos factos não provados acima mencionadas.
Sublinhando que ficou provado, até pela inspeção ao local, o estado do interior da casa e a existência de uma delimitação do quintal em relação ao prédio contíguo. Sendo que do depoimento da testemunha UU extrai-se de forma muito consistente que os Requeridos nunca utilizaram a casa ou fizeram a manutenção do quintal da mesma (ao contrário do que referiram quanto à parte exterior – cfr. declarações de parte do Requerido EE, embora não se recordasse do nome da pessoa encarregue do serviço), e que foram os pais do Requerente, e este e a sua família, depois daqueles, que sempre usaram e utilizaram a casa como sua habitação, fazendo obras e dela cuidando como se fossem seus proprietários. Factos que a Requerida NN negou, mas também disse que não entrou na casa, pelo que desconhecia as obras no interior, mas afinal, as mesmas tinham existido como foi constatado pelo tribunal. Também disse que o primo (Requerente) tinha a chave, mas que não usava a casa (ressalvando o período de férias, que não sabia), mas a prova indica que o Requerente habitou a casa de forma permanente enquanto a mulher foi viva tendo ali criado as filhas.
A testemunha II disse que nunca viu ninguém na casa, mas obviamente que tal depoimento é contraditório, mormente com o depoimento da testemunha que mora na casa ao lado e que presenciou a vivência dos pais do Requerido, deste e da família.
Por outro lado, a testemunha JJ tem uma memória distanciada no tempo (tinha 49 anos à data do depoimento) porque se referiu a visitas à casa quando era pequeno, à casa da tia (mãe do Requerente), o que significa que nada sabe da utilização da casa pelo Requerente e família.
Do facto dos Requerentes não terem morada fiscal na morada apenas se retira que ali não é o local onde habitualmente se localiza o centro da vida dos contribuintes, ou seja, a sua residência habitual (artigo 19.º, n.º 1, alínea a), da Lei Geral Tributária – Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12), mas esse facto nem sequer está em causa, porque os Requerentes admitem que, atualmente, apenas utilizam a casa de forma esporádica.
Quanto à questão do empréstimo da casa (em vez da doação) a prova feita pelos Requeridos, sobre quem impendia o respetivo ónus, também se afigura pouco consistente, dado o tempo decorrido e o facto dos depoimentos assentaram em perceções que tinham sobre essa questão mais do que conhecimento real e efetivo de factos tão distanciados no tempo.
O que se aplica quer às declarações de parte da Requerida NN e, obviamente, por causa da idade, ao declarante EE e às testemunhas JJ e KK.
Por outro lado, o depoimento da testemunha II, como já se deixou dito, assenta apenas no que ouvia dizer aos sogros, o que foi impossível de confirmar pelos demais meios de prova.
Nestes termos, a prova produzida pelos Requeridos é manifestamente insuficiente, mesmo em termos cautelares, para infirmar a prova produzida pelos Requerentes que, à luz das regras da livre apreciação da prova e da normalidade da vida, se afigura mais credível.
É nessa perspetiva que interpretamos o modo como o tribunal a quo expressou o que colheu da prova produzida por uma e pela outra parte.
Nestes termos, também improcede a impugnação em relação à factualidade impugnada.
1.5. Em relação aos pontos 7 a 22 dos factos provados, em face da improcedência da impugnação da decisão e factos nos termos acima analisados, a argumentação da existência de contradição lógica e necessária decorrente da propugnada alteração, claudica totalmente.
Razão pela qual se julga igualmente improcedente a impugnação destes pontos da decisão de facto.
2. Se dos factos provados decorre a verificação dos pressupostos do decretamento da providência e da inversão do contencioso.
Assente o quadro fático que serviu de base à decisão final recorrida, não descortinamos na alegação dos recorrentes, que tem como pressuposto a alteração da decisão de facto (julgada totalmente improcedente como vimos), razão não dar procedência ao decretamento da restituição provisória de posse.
Cumpre apenas dizer que, ao contrário do alegado pelos recorrentes, não é pelo facto dos Requerentes terem a seu favor um registo de aquisição com base numa escritura de justificação notarial, que lhe cabe a prova dos requisitos do procedimento cautelar em apreciação.
Esses requisitos (existência da posse e esbulho violento pelos Requeridos) sempre impendia sobre os Requerentes por os factos correspondentes serem constitutivos da tutela cautelar que acionaram (artigo 342.º, n.º 1, do CC).
Efetivamente, a alegação e prova indiciária dos requisitos do decretamento da restituição provisória de posse, antes ou na fase pós contraditório, são sempre ónus de quem requer a tutela cautelar.
Na fase pós contraditório, recaia sobre os Requeridos que deduzem oposição, a alegação dos factos não tidos antes em conta pelo tribunal e/ou apresentação de novas provas que sejam suscetíveis de afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução (artigo 342.º, n.º 2, do CC).
Ónus probatório que os Requerentes lograram cumprir em sede cautelar, porquanto provaram que beneficiam da presunção que decorre da inscrição do direito de propriedade a seu favor (artigo 7.º do Código de Registo Predial), sem elisão por parte dos Requeridos, mas para além disso e, sobretudo, como estamos no âmbito de uma providência cautelar especificada que é requerida no caso de esbulho violento, o registo da aquisição em si não é suficiente, pois é necessário que os Requerentes façam prova de factos demonstrativos da posse, do esbulho e da violência. Ónus que lograram cumprir como emerge dos factos dados como provados.
Como se escreveu na sentença recorrida:
«Também se encontra provado que foi efectuado o registo desse mesmo direito de propriedade na Conservatória do Registo Predial, constando no registo que o direito de propriedade se encontra inscrito a favor dos requerentes. É certo e indiscutível que o direito de propriedade sob esses prédios se encontra registado a favor dos requerentes com base na escritura de justificação notarial outorgada pelos Autores/requerentes.
Contudo, não lograram os requeridos provar que exercem, ou alguma vez exerceram, actos de posse sobre o prédio urbano; isto porque, os Autores/requerentes conseguiram provar que há mais de 70 anos que estão na posse da casa por si e por seus antecessores, fazendo obras, limpando, mobilando, e pagando impostos à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
É por todos conhecida a presunção decorrente do artigo 7.º do Código de Registo Predial, segundo a qual o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
Contudo, também é por demais sabido que essa afirmação se propõe firmar apenas esta dupla presunção:
a) a de que o direito registado existe; e
b) a de que o mesmo pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
A presunção que a lei estabelece sobre esta "situação jurídica", situação só respeitante, como se vê, à existência do direito registado e à identificação do titular inscrito, nos termos em que o registo o define, não abrange, assim, a área, composição e confrontações do prédio.
(…)
Não abrangendo a presunção consignada no artigo 7.º do Código do Registo Predial a área, composição e confrontações dos prédios descritos, claro que, para estes elementos se poderem dar como provados, têm os requerentes que os alegar e fazer prova deles, o que conseguiram. Tal como conseguiram os Autores/requerentes provar que são os proprietários e legítimos possuidores do prédio em causa por exercerem há mais de 70 anos, por si e seus antecessores, actos de posse sobre o imóvel em litígio.
Acresce que, conforme prevê o artigo 1278.º, n.º 1, do Código Civil, no caso de o possuidor esbulhado recorrer ao tribunal a sua posse será restituída ou mantida enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito.
Ora, tendo os requerentes logrado provar serem os possuidores do prédio urbano em causa e não tendo os requeridos logrado produzir prova que abale essa convicção, têm os requerentes que ser mantidos na sua posse.
Tanto significa que se mantêm provados os factos assim julgados na decisão proferida anteriormente, os quais, pelos argumentos aí expendidos e analisados, que aqui damos por reproduzidos, preenchem os requisitos da providência cautelar decretada.»
Corrobora, nesta sede, o assim decidido quanto à restituição provisória da posse do imóvel aos Requerentes.
Mas já não em relação à inversão do contencioso.
Estipula o artigo 369.º, n.º 1, do CPC, do Código de Processo Civil:
«Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência pode dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.»
Na sentença recorrida foi decidido que havia elementos que permitiam decretar a inversão do contencioso, por terem sido provados factos que revelam em termos probatórios que os Requerentes adquiriram a propriedade do prédio referido no ponto 1 dos factos provados por usucapião nos termos que constam da escritura de justificação notarial (artigo 1316.º do CC), analisando de seguida os requisitos dos artigos 1294.º a 1296.º do CC, considerando que os mesmos resultaram provados de forma segura da prova carreada para os autos, bem como se encontram preenchidos os requisitos da justificação notarial para estabelecimento de trato sucessivo no registo predial, prevista no artigo 116.º, n.º1, do Código de Registo Predial e nos artigos 89.º, 96.º, n.º1 e 101.º do Código do Notariado.
Concluindo, após analisar os pressupostos da justificação notarial, da sua impugnação (que considerou verificar-se por via da oposição) e dos requisitos da usucapião (que teve por verificados) do seguinte modo:
«Destarte, face aos fundamentos de facto e de direito expostos, conclui-se que os Autores adquiriram a casa e respectivo logradouro objecto do litígio por usucapião identificada na escritura de justificação, não tendo actualmente os Réus qualquer direito sobre a casa e seu logradouro, pelo que a acção terá de ser julgada totalmente procedente por não provada, o que se decide.»
Ora, sucede que a inversão do contencioso pressupõe que a providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio. O que não sucede no caso dos autos, porquanto a mesma não foi instaurada contra todos os herdeiros da herança indivisa por óbito de GG e de HH na qual são herdeiros, para além dos Requeridos, outros interessados, ou seja a filha OO e sua neta QQ em representação do seu falecido pai XX (cfr. facto provado 27).
Encontrando-se neste procedimento cautelar controvertido o direito de propriedade/posse sobre um imóvel envolvendo essa disputa os direitos dos herdeiros de uma herança indivisa e não tendo todos os herdeiros sido demandados para, em conjunto exerceram a defesa dos direitos relativos à herança em termos de litisconsórcio necessário (artigo 2091.º, n.º 1, do CC e Ac. RC, de 30-05-20237), sendo que também nenhum deles interveio na justificação notarial que incidiu sobre o imóvel, verifica-se que a decisão cautelar aqui proferida não é adequada à composição definitiva do litígio por não poder produzir o seu efeito útil normal em relação aos herdeiros não demandados.
Nestes termos, procede o recurso quanto à questão da inversão do contencioso, impondo-se a revogação da sentença recorrida nessa parte.
3. Dado o parcial decaimento, as custas ficam a cargo dos Apelantes e dos Apelados na proporção, respetivamente, de 2/3 e 1/3 (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP e sem prejuízo do disposto no artigo 539.º do CPC.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em:
a. Julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, decretam a providência cautelar de restituição provisória da posse dos Requerentes sobre o prédio urbano composto de casa de habitação e logradouro, sito na Rua 1, n.º 180, em Local 1, freguesia de Aldeia 1, concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 5068 da freguesia de Aldeia 1, concelho de Cidade 1, inscrito na matriz predial urbana com o artigo 623 da freguesia de Aldeia 1, concelho de Cidade 1;
b. Revogam a sentença em relação ao mais que ali foi decidido.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 27-11-2025
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Manuel Bargado (1.º Adjunto)
Ricardo Miranda Peixoto (2.º Adjunto)
_______________________________________
1. ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, Almedina, 8.ª ed., at. p. 398.↩︎
2. Neste sentido, ob. cit., p. 239.↩︎
3. Proc. n.º 556/21.4T8PNF.P1, S.1, em www.dgsi.pt (como todos os demais citados sem menção da fonte).↩︎
4. Proc. 693/22.8T8PDL.L1.S1.↩︎
5. Cfr. Ac. 09-06-2011, proc. n.º 67/06.8TBMCQ.E1 e Ac.↩︎
6. Ac. STJ n.º 1/2008 publicado no D.R. n.º 63, Série I de 2008-03-31.↩︎
7. Proc. n.º 112/22.0T8ALD.C1.↩︎