I – A sentença proferida em ação comum sobre a demarcação de dois prédios pode servir de título executivo para compelir coercivamente o demandado a contribuir ou consentir na demarcação.
II – Já ocorrendo uma situação de violação da integridade do direito de propriedade dos exequentes, a mesma sentença não constitui título executivo bastante para a execução da prestação facto de «remoção integral do pavimento colocado pelos executados sobre a área pertencente aos exequentes, conforme os limites definidos na sentença».
(Sumário elaborado pelo Relator)
Nestes termos e nos melhores de Direito, após citação dos executados, requerer-se a V. Exa.:
a) Que se instaure processo executivo para prestação de facto, com base na sentença acima referida;
b) Que sejam os executados intimados a realizar a demarcação da linha divisória, nos termos da sentença, no prazo de 10 dias, sob pena de aplicação de sanção pecuniária compulsória;
c) Que, em caso de incumprimento, seja a demarcação efetuada por perito nomeado pelo tribunal, com colocação de marcos físicos e visíveis no terreno, a expensas dos executados, nos termos do artigo 870º, nº 2 do CPC;
d) Que os executados sejam ainda condenados a remover integralmente o pavimento por si colocado sobre a área pertencente aos exequentes, no prazo de 10 dias, conforme os limites definidos na sentença;
e) Que, caso não procedam voluntariamente à remoção, a mesma seja realizada por outrem, à custa dos executados, com recurso, se necessário, a técnico ou empresa especializada;
f) Que, face à resistência ao cumprimento da sentença, seja aplicada aos executados sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 829.º-A do Código Civil, a fixar por V. Exa., por cada dia de atraso na realização da demarcação e remoção do pavimento;
g) Que os executados sejam condenados nas custas e demais encargos da execução, incluindo os relativos a peritagens, levantamento e eventual remoção do pavimento;
Alegaram para o efeito que:
1. Por douta sentença proferida no dia 23 de março de 2010, já transitada em julgado, foi fixada a linha divisória entre os prédios dos executados e dos exequentes, prédios estes, identificados nos artigos 1º e 2º da petição inicial da ação declarativa, que correu seus termos sob o Proc. 2055/08...., Juízo Local Cível de Pombal – Juiz 2, nos termos seguintes:
“A linha divisória começa a poente, na base inferior do socalco, e prolonga-se em linha reta até ao pilar construído pelos réus junto ao caminho.”
2. Essa sentença constitui título executivo para prestação de facto, nos termos do artigo 703º do Código de Processo Civil.
3. Até à presente data, os executados não deram cumprimento, de forma voluntária, à demarcação da linha divisória, nem promoveram a colocação de marcos físicos no terreno, conforme o decidido.
4. Pelo contrário, os executados iniciaram a colocação de pavimento na área que foi reconhecida como fazendo parte do prédio dos exequentes, violando frontalmente a linha divisória judicialmente fixada e invadindo propriedade alheia.
5. Esta conduta representa um claro desrespeito da sentença transitada em julgado, configurando violação do direito de propriedade dos exequentes.
Podem servir de base à execução as sentenças condenatórias – art. 703.º, n.º 1, al. a) do Cód. Proc. Civil – a incluir, assim, as sentenças que imponham uma ordem de prestação ou comando de atuação a réu de maneira incondicional – Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL, 2019, Reimpressão, pág. 150.
No caso vertente, os Exequentes apresentaram como título executivo a sentença produzida no processo n.º 2055/08.... que julgou a ação parcialmente procedente e em consequência fixou a linha divisória entre o prédio identificado nos artigo 1.º da petição e que confina a sul com o prédio descrito no artigo 2.º da petição como começando a poente, na base inferior do socalco e prolongando-se até ao pilar que os réus construíram há um ano junto do caminho.
Esta sentença não é condenatória e dela não decorre, ainda que de forma implícita, a constituição de concretas obrigações, nomeadamente para os Autores, aqui Executados, mas apenas se retiram efeitos reais de constituição ou de reconhecimento de certa propriedade.
A alegada violação do direito de propriedade dos Exequentes terá de ser apurada na devida ação condenatória.
Conclui-se, assim, que os Exequentes não dispõem de título executivo para os pedidos que formulam.
Nestes termos, ao abrigo do disposto no art. 726.º, n.º 2, al. a) do CPC, ex vi, art.551.º, n.º 2 do CPC, indefiro liminarmente o Requerimento Executivo por falta de título executivo.
Custas a cargo dos Exequentes.
Valor da causa: o da execução.
Registe, Notifique e Comunique.
Perante o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil – a única questão proposta para resolução consiste em determinar se uma sentença proferida em ação onde se procedeu à demarcação de dois prédios pode servir de titulo executivo, em ação executiva pela qual se pretende que os executados concorram para a realização material da demarcação ali determinada e ainda que removam integralmente o pavimento por eles colocado sobre a área que, de acordo com aquela delimitação, integra o prédio dos exequentes.
A decisão recorrida afastou a exequibilidade da sentença apresentada como título executivo, entendendo que a sentença em causa – que fixou a linha divisória entre o prédio dos exequentes e dos executados “não é condenatória e dela não decorre, ainda que de forma implícita, a constituição de concretas obrigações, nomeadamente para os Autores, aqui Executados, mas apenas se retiram efeitos reais de constituição ou de reconhecimento de certa propriedade”.
Contudo, como ensina o Professor Alberto dos Reis[1], não devem confundir-se sentenças de condenação com sentenças proferidas em ações de condenação, até porque as sentenças proferidas em ações conservatórias ou constitutivas podem servir de título executivo quanto aos atos ou providências que ordenam ou mudanças que determinam.
E, de facto, tem sido debatida, na doutrina, a questão de saber se as sentenças declarativas proferidas em ações constitutivas, de que resultem condenações implícitas, constituem título executivo.
A questão coloca-se, designadamente, nas ações de demarcação, de divisão de coisa comum ou de constituição, modificação ou de cessação de uma servidão, em que se profere a autorização de mudança da ordem jurídica, mas não se condena expressamente o obrigado numa prestação dos atos pertinentes àquela mudança.
Admitindo a exequibilidade das sentenças proferidas neste tipo de ações, Anselmo de Castro escreve: “a sentença constitutiva é título executivo sempre que contenha implícita, pela natureza do objecto da acção, uma ordem de praticar certo acto ou de se realizar a mudança a que a acção visava, como sucede nos casos de acções de demarcação, divisão de coisa comum, partilhas judiciais, preferência”[2].
O Professor Alberto dos Reis considera condenatórias as sentenças em que o juiz, expressa ou tacitamente, impõe a alguém determinada responsabilidade, mesmo em ações constitutivas, nas quais as sentenças são títulos executivos relativamente aos atos inerentes à mudança na ordem jurídica autorizada[3];
Por seu turno, o Professor Teixeira de Sousa escreve que “... em regra, não pode ser reconhecido valor executivo a uma sentença de mera apreciação ou a uma sentença constitutiva, pode suceder, todavia, que essas decisões contenham, de forma implícita, a condenação num dever de cumprimento e que, por esta circunstância possam ser utilizadas como título executivo. Aquela condenação implícita verifica-se quando o pedido de condenação no dever de cumprimento, se tivesse sido cumulado com o pedido de mera apreciação ou constitutivo, não se referiria a uma utilidade económica distinta daquele que corresponde a estes últimos ...”[4].
Face às alterações decorrentes da Revisão do Código de Processo Civil de 95/96, a questão das condenações implícitas como sentenças condenatórias ganhou nova dimensão.
Com efeito, as ações de demarcação passaram a ser tramitadas sob a forma de processo declarativo comum. Daí que se possa agora questionar se, por exemplo, uma sentença que fixe a linha divisória de dois prédios poderá servir de título à execução para prestação de facto com vista ao “cravamento de marcos” (antes da Revisão do Código de Processo Civil de 95/96 esta diligência enquadrava-se nos trâmites da própria ação de demarcação - art.º 1058.º, n.º 5, Código de Processo Civil).
Seja como for, seguindo o ensinamento do Prof. Manuel de Andrade[5], o fundamento da exequibilidade dos títulos executivos reside “...na relativa certeza ou probabilidade julgada suficiente da existência da dívida (prestação), e portanto da inutilidade do processo declaratório, enquanto se torna presumível que ele levaria ao mesmo resultado que já se pode coligir da simples inspecção do título” - a ratio da exequibilidade do título executivo - sem prejuízo da possibilidade de se provar, no próprio processo executivo, designadamente através dos embargos de executado, a ilegitimidade ou injustiça da execução.
Será, pois, à luz deste fundamento que convirá apreciar se, apesar de formalmente constitutiva, a sentença proferida numa ação de demarcação contém, implicitamente, o reconhecimento de uma obrigação de prestar alguma coisa ou facto.
Como é sabido, a ação de demarcação destina-se a tornar efetivo o direito de fixar a linha divisória de prédios contíguos ou confinantes pertencentes a donos diferentes, no contexto definido pelo art.1353º do Código Civil.
De facto, dispõe este normativo que “o proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrem para a demarcação das extremas entre o seu prédio e o deles”.
Na ação de demarcação discute-se um conflito de prédios, ou seja, não se discute o título de aquisição - como na ação reivindicação - mas a relevância dele em relação ao prédio[6].
Trata-se de uma ação de acertamento ou de declaração da extensão da propriedade, sem que estejam em causa os títulos de aquisição.
O que se pretende com este tipo de ações não é solucionar a indefinição quanto à propriedade de certa faixa de terreno, mas sim de conseguir que os proprietários de prédios confinantes colaborem no sentido de demarcarem as respetivas extremas.
A demarcação é a operação material de colocar marcos ou sinais exteriores permanentes e visíveis, que assinalem diversos pontos da linha divisória entre dois prédios contíguos.
Quer dizer, a demarcação não consiste apenas na determinação da linha divisória, mas também na sua assinalação por meio de sinais externos visíveis e permanentes.
Por isso, diz-nos Carvalho Martins[7] que“(s)abida qual é a linha divisória, só há que fixar no solo marcos de pedra ou outro material, quando não sejam adoptados para esse fim quaisquer sinais naturais existentes nessa linha”.
Pode, assim, dizer-se que, ao declarar essa linha divisória, o tribunal está implicitamente a condenar as partes que não acordaram na definição estabelecida pelo tribunal a cumprirem a obrigação derivada dessa declaração, ou seja, a obrigação de as partes acordarem, colaborarem ou permitirem a colocação de marcos ou outros sinais divisórios que assinalem a divisão declarada judicialmente.
No caso de essa prestação não ser voluntariamente efectuada, poderá ter lugar a a realização coactiva dela, “bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção”, conforme se dispõe na última parte do n.º2 do artigo 2º do Código de Processo Civil.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.01.2019[8], «(n)a típica ação de demarcação a questão da propriedade é invocada apenas como legitimação para a ação – artigo 1353.º do Código Civil – já que o que se pede não é o reconhecimento do direito de propriedade, mas antes a definição da linha divisória, que se alega incerta, entre dois prédios confinantes. (…) limitada que está à declaração do direito de propriedade apenas como pressuposto do estabelecimento da demarcação nos termos decididos, não contém em si qualquer juízo de condenação para além do que se refere ao estabelecimento da demarcação nos termos decididos, podendo, nessa medida, servir de título executivo para compelir coercivamente o demandado a contribuir ou consentir na demarcação assim decidida» (sublinhado nosso).
E, de acordo com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20 de janeiro de 2005[9] , “(…) o meio processual mais adequado para o efeito é o processo de execução para prestação de facto, com as necessárias adaptações necessárias às especificidades da causa, permitidas face ao princípio da adequação formal estabelecido no artigo 265-A do mesmo diploma – neste sentido, ver o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.11.26 relatado pelo Conselheiro Fernandes Magalhães e publicado na base de dados do Ministério da Justiça”.
Concluímos, assim, ao contrário da decisão recorrida, que a sentença proferida em ação comum sobre a demarcação de dois prédios pertencentes a donos diferentes, na medida em que impõe às partes nessa ação o dever de consentir ou contribuir para a demarcação nos termos decididos, pode ser executada, em ação executiva para prestação de facto.
Deste modo, quanto a esta pretensão executiva, a decisão não pode manter-se e os autos devem prosseguir.
d) os executados sejam ainda condenados a remover integralmente o pavimento por si colocado sobre a área pertencente aos exequentes, no prazo de 10 dias, conforme os limites definidos na sentença;
e) caso não procedam voluntariamente à remoção, a mesma seja realizada por outrem, à custa dos executados, com recurso, se necessário, a técnico ou empresa especializada;
f) a face à resistência ao cumprimento da sentença, seja aplicada aos executados sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 829.º-A do Código Civil, a fixar por V. Exa., por cada dia de atraso na realização da demarcação e remoção do pavimento;
Como fundamento destas concretas pretensões executivas, os exequentes invocam que “os executados iniciaram a colocação de pavimento na área que foi reconhecida como fazendo parte do prédio dos exequentes, violando frontalmente a linha divisória judicialmente fixada e invadindo propriedade alheia”.
Sucede que na ação de demarcação a questão da propriedade é invocada apenas como legitimação para a ação – art.º 1353º do Código Civil – já que o que se pede não é o reconhecimento do direito de propriedade, mas antes a definição da linha divisória, que se alega incerta, entre dois prédios confinantes.
Por isso, a declaração do direito de propriedade constitui apenas um pressuposto do estabelecimento da demarcação nos termos decididos.
O mesmo é dizer que a decisão judicial que, em ação de demarcação, fixou a linha divisória ente os prédios dos executados e dos exequentes não contém qualquer outra condenação para além da que impõe aos demandados nessa ação o dever de consentir ou contribuir para a demarcação nos termos determinados.
Daí que a sentença dada à execução não constitua título executivo bastante para a execução da prestação de facto positivo e negativo - através da qual se reclama “remoção integral do pavimento colocado pelos executados sobre a área pertencente aos exequentes, conforme os limites definidos na sentença” e o estabelecimento de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na remoção desse pavimento - por alegada violação, por parte dos executados, do direito de propriedade dos exequentes, “já que proferida no contexto e com a finalidade em que o foi, dela não resulta qualquer outra obrigação para os aqui recorridos que não as que se destinam à efetivação da demarcação nos termos decididos”[10].
Será, então, através de uma ação de reivindicação que os apelantes devem exigir a tutela da integridade daquele seu direito real, exigindo a restituição ou entrega daquilo que lhes pertence, sendo também nessa ação que os recorridos terão a oportunidade de se pronunciarem sobre a pretensão condenatória da contraparte. E só se os réus se negarem a cumprir a respetiva sentença é que se tornará necessária a instauração de uma ação executiva[11].
Deste modo, não merece censura a decisão que indeferiu o requerimento executivo na parte referente aos pedidos constantes das alíneas d), e) e f) [este na parte que se refere ao pedido de condenação em sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na remoção do pavimento].
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso, revogando a decisão de indeferimento liminar da execução para prestação de facto na parte atinente à execução coerciva da obrigação dos executados concorrerem para a delimitação entre o seu imóvel e o imóvel dos exequentes, determinando o prosseguimento dos autos para tal finalidade, mantendo o demais decidido.
Custas pelos exequentes e pelos executados, na proporção de ½ cada.
Assinado eletronicamente por:
Hugo Meireles
Marco António de Aço Borges
Emília Botelho Vaz
(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)
[1] Código de Processo Civil anotado, Vol. I, págs. 64
[2] Direito Processual Civil Declarativo, Vol. 1º, Almedina, Coimbra 1981, págs. 112 e 113.
[3] Processo de Execução, Vol 1º, 2ª Edição, pág. 127
[4] Acção Executiva Singular, Lex, 1998, pag. 73
[5] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 60
[6] Pires de Lima e Antunes Varela “in” Código Civil Anotado - nota 4ª ao art.1353º
[7] , “A Acção de Demarcação, Coimbra Editora, 2ª Edição, 1999, página 19.
[8] Processo n.º 21895/17.3T8PRT.P1, consultável em www.dgsi.pt
[9] Processo n.º 0437120 (Relator Oliveira Vasconcelos), cujo entendimento aqui seguimos de perto.
[10] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de janeiro de 2019, já citado
[11] Neste sentido, confronte-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25 de outubro de 2024, processo n.º 1880/19.1T8SLV-A.E1 (Rel. Cristina Dá Mesquita), in www.dgsi.pt.