VENDA A FILHOS OU NETOS
CONSENTIMENTO
ÓNUS DA PROVA
CADUCIDADE
ANULAÇÃO DA VENDA
Sumário

I – O ónus da prova (e da afirmação), quanto a cada facto incumbe à parte cuja pretensão processual só pode obter êxito mediante a aplicação da norma de que ele é pressuposto; de onde que cada parte terá aquele ónus quanto a todos os pressupostos das normas que lhe são favoráveis – se na lei há uma regra e uma exceção (ou várias) a parte cuja pretensão se baseia na norma-regra só tem a provar os factos que constituem a hipótese dessa norma, e não já a existência dos que constituem a hipótese da norma-exceção.
II – Alegando os autores não terem dado o seu consentimento à venda que o seu pai fez aos réus, exibindo certidão da escritura de compra e venda da qual não consta o consentimento dos demais filhos, sem que os réus aleguem que tal consentimento alguma vez tenha sido prestado por qualquer outra via, é de ter por assente a ausência de consentimento.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Relator: Maria João Areias
1° Adjunto: Chandra Gracias
2° Adjunto: Catarina Gonçalves

 

 

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

AA e, marido, BB, intentam a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra CC e mulher, DD,

Pedindo:

a anulação do contrato de compra e venda celebrado, em 26.08.1998, por falta de consentimento dos demais irmãos, nos termos do art. 877º do CC, tendo por objeto:

 o prédio urbano composto de edifício de rés-do-chão, primeiro e segundo andares, sito no Largo ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...22 e descrito na conservatória do registo predial ... sob o número ...04, e

o prédio urbano composto de edifício de loja, primeiro e segundo andares, com a superfície coberta de 30 m2 sito na Travessa ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...24 e descrito na conservatória do registo predial ... sob o número ...03.

 Para tanto, e em síntese, alegam os Autores que o negócio celebrado entre os pais da autora e os réus violou o disposto no artigo 877.º n.º 1 do C.Civil, porquanto, a Autora não consentiu na venda, pressuposto exigido por lei para a validade da transmissão de bens de pais a filhos.

Regularmente citados, os Réus contestaram, invocando a inexistência dos pressupostos da anulabilidade na medida em que a venda foi realizada com amplo conhecimento das duas irmãs do Réu. Não obstante, referem, ainda, que, mesmo que a Autora nada soubesse à data da celebração da escritura de compra e venda dos referidos prédios, é difícil aceitar que, apenas em janeiro de 2023, cerca de 25 anos volvidos, tivesse a Autora tomado conhecimento da mesma, quando o nº2 do artigo 877º CC prevê o prazo de um ano para pedir a anulação do negócio.

Concluem pugnando pela improcedência da ação.


*

Procedeu-se à realização da audiência final após o que foi proferida a Sentença de que agora se recorre e que termina com o seguinte dispositivo:

 IV. DISPOSITIVO

Em face do exposto, julgo a ação totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvo os Réus de todo o peticionado.

Custas pelos Autores, nos termos do art. 527.º n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil.

Registe e notifique.


*

Não se conformando com o decidido, os Autores dela interpõem recurso de Apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

(…).


*

Os réus apresentam contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso, terminando com as seguintes conclusões:

(…).


*

Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.  

*
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Código de Processo Civil –, as questões que se colocam a este tribunal são as seguintes:
1. Se, uma vez que da escritura pública de compra e venda não consta a menção de que a autora tenha prestado o seu consentimento a tal venda, a autora teria de proceder a qualquer outra prova relativamente à inexistência de consentimento.
2. Em caso afirmativo, impugnação e aditamento de determinados factos.
3. Caso se conclua pela inexistência de consentimento, se o direito de pedir a anulação das vendas já caducou.
**

A. Matéria de Facto

Na sentença recorrida foi proferida a seguinte decisão relativamente à matéria de facto:

“Com relevância para a discussão da causa, o Tribunal deu como provados os seguintes factos:

1. EE e FF, casados que foram entre si, tiveram três filhos: AA, nascida a ../../1939; GG, nascida a ../../1943; e CC, nascido a ../../1948.

2. No dia 26.08.1998, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial ..., EE e FF declararam vender a CC e a DD, filho e nora dos primeiros, respetivamente, e estes declararam comprar, pelo preço de 8 milhões de escudos, os seguintes imóveis: a) Prédio urbano composto de edifício de rés-do-chão, primeiro e segundo andares, sito no Largo ..., freguesia ..., inscrito sob o artigo matricial ...22 e descrito na respetiva Conservatória do Registo  Predial sob o n.º ...04; b) Prédio urbano, composto de edifício de loja, primeiro e segundo andares, sito na Travessa ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...24 e descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...03.

3. Os prédios em questão encontram-se registados a favor dos Réus.

4. As inscrições em questão foram lavradas com base no título correspondente à escritura de compra e venda referida em 2.

5. CC e DD, à data de 26.08.1998, eram casados entre si em comunhão de bens adquiridos.

6. Da escritura pública referida no ponto 2, não consta qualquer menção relativa à existência de consentimento à venda por parte da Autora.

7. FF faleceu em ../../2008 e EE faleceu em ../../2014.

8. Após 8. Após a morte dos pais, e apesar de ter sido a Autora nomeada cabeça-de-casal, foi o Réu CC quem declarou no serviço de finanças os bens existentes à data da morte destes.

9. A declaração de “Imposto do Selo - Comprovativo de Participação de Transmissões Gratuitas”, aquando do falecimento da mãe da Autora e do Réu, foi entregue à Autoridade Tributária - Serviço de Finanças da ... em 30.04.2014 por HH, amigo do Réu, que o fez a pedido deste, a título de favor.


*

Resultaram não provados os seguintes factos com relevo para a boa decisão da causa:

a) Os pais da Autora, decidiram ajudar o seu irmão CC, ora Réu, e lhe comunicaram a si e à sua irmã, que iriam doar em vida, a este, os prédios urbanos identificados no ponto 2 da factualidade provada, para que este tivesse uma residência para si e família.

b) Pelos seus pais foi transmitido à Autora que tal doação seria por conta legítima do irmão, e, uma vez que existiam mais dois imóveis, estes ficariam para cada uma das filhas, aquando da morte destes.

c) No âmbito da sua intenção em realizar a partilha dos bens deixados por morte dos pais, a Autora apercebeu-se que o Réu CC pretendia habilitar-se igualmente à partilha dos outros dois imóveis aludidos no ponto anterior.

d) Nesse sentido, só quando os Autores tentaram obter a escritura de doação feita pelos pais da Autora e Réu aos Réus, é que tomaram conhecimento, em janeiro de 2023, de que, na realidade fora celebrada entre estes uma compra e venda dos referidos imóveis.

e) A Autora não consentiu na venda referida no ponto 2 dos factos provados.”.


*

1. Ónus de alegação e prova da ausência de consentimento dos outros filhos na venda de pais a filho.

Os autores instauram a presente ação pedindo que se declare a anulação da compra e venda de dois imóveis celebrada por escritura de 26 de agosto de 1998, entre os pais da autora e do réu, e os aqui réus, por falta de consentimento dos demais irmãos, entre os quais a aqui autora, ao abrigo do disposto no artigo 877º do Código Civil.

Perante a matéria dada como provada, o tribunal a quo veio a julgar a ação improcedente com fundamento na falta de demonstração por parte dos autores da ausência de consentimento da autora relativamente ao negócio em causa, ónus da prova que sobre si recaía nos termos do artigo 342º, nº1 do CC.

Insurgem-se os autores contra o decidido, começando por apontar as seguintes críticas:

- tendo sido definido como único tema de prova “apurar se a venda em causa foi realizada sem o consentimento da autora”, e encontrando-se provado documentalmente, através da escritura de compra e venda junta aos autos – a qual não continha qualquer menção ao seu consentimento – que a autora não o seu consentimento à venda, não se afigura que outra prova pudesse a autora apresentar deste facto negativo;

- quanto à matéria de facto que o tribunal considerou não provada, não constava dos temas de prova, razão pela qual a A. se absteve de requerer ou formular qualquer outra prova.

Desde já adiantamos que, nesta parte, a razão está do lado dos Apelantes.

Os autores instauraram a presente ação, invocando a anulabilidade da venda que os seus pais fizeram aos réus, com fundamento na ausência de consentimento exigida pelo artigo 877º do CC, juntando certidão da respetiva escritura de compra e venda, da qual não consta o consentimento da autora; mais alegam que os seus pais disseram aos demais que pretendiam doar tais imóveis ao Réu para que este tivesse uma residência para si e família e que só aquando das diligencias para partilhas por óbito de seus pais, perante cópia certificada emitida em janeiro de 2023, tiveram conhecimento de que na realidade fora celebrada, não uma doação,  mas uma compra e venda dos referidos imóveis, entre os pais e os aqui réus.

Perante a exibição da escritura, da qual resulta provado que, no ato da celebração da compra e venda não foi prestado o consentimento por parte dos irmãos, como seria exigido por lei, os réus apresentam a sua contestação, sem que aleguem que, embora tal consentimento não conste da escritura, a autora o tenha dado em qualquer outra altura,  concretizando a ocasião em que o mesmo possa ter sido prestado, limitando-se a alegar “é muito difícil acreditar que, apenas agora, ou melhor, em 30 de janeiro de 2023 a autora tenha tomado conhecimento da celebração dessa escritura de compra e venda”.

Nunca, na sua contestação, os réus afirmam que a autora tenha dado o seu consentimento ao referido negócio e de que forma, ficando-se pela alegação genérica de que seria improvável que só agora os autores tenham tido conhecimento da compra e venda.

Ter conhecimento não é o mesmo que consentir: se o consentimento pressupõe o conhecimento prévio, pode existir conhecimento sem consentimento.

Perante a posição assumida por ambas as partes nos seus articulados – a autora afirma e prova que o seu consentimento não consta da escritura e os réus também não alegam que ele tenha sido dado em qualquer outro momento – poderíamos, desde logo, dar por demonstrada a ausência da prestação do consentimento por parte da autora.

Não foi esse o entendimento da decisão recorrida.

A tal respeito, o tribunal a quo, considerando encontrar-se o ónus da prova do lado dos autores, enquanto facto constitutivo do respetivo direito, fez constar da decisão recorrida:

Ainda que a omissão do consentimento na escritura pública, enquanto instrumento para formalizar e demonstrar os requisitos essenciais da validade do contrato, permita sustentar, prima facie, que esse consentimento não existiu, tal circunstância não é suficiente para, por si só, dar como provado o facto negativo em causa.

Efectivamente, a ausência de menção expressa do consentimento demonstra apenas que não houve consentimento escrito; porém, como o consentimento não depende de forma especial, tal omissão não prova necessariamente que não tenha existido consentimento verbal ou mesmo tácito.

Além disso, e apesar de se reconhecer a dificuldade inerente à prova de factos negativos, não é aceitável uma redução do grau de exigência probatória que incumbe aos Autores.

Com efeito, não sendo legalmente obrigatório exarar expressamente o consentimento dos demais descendentes na escritura pública – podendo este ter sido prestado verbal ou tacitamente –, os Autores teriam de ter apresentado ao Tribunal elementos adicionais ou coadjuvantes de prova que permitissem demonstrar, com segurança e certeza razoável, que nenhum consentimento foi prestado sob qualquer outra forma.

Não tendo conseguido fazê-lo, não está preenchido o ónus probatório que sobre si recaía nos termos do art. 342.º n.º 1 do C.Civil (aplicável por força do n.º 3 do mesmo artigo), impondo-se, consequentemente, a improcedência da ação.”

Concorda-se com a decisão recorrida quando nela se afirma que, embora não conste da escritura, o consentimento pode ser dado verbal ou tacitamente. Contudo, a ter sido expresso por outra forma ou em qualquer outra altura, teria necessariamente de ter sido alegado pelos réus na oposição deduzida à presente ação, e não foi.

Dispõem, os ns. 1 e 2 do o artigo 877º do CC:

Venda a filhos e netos

1. Os pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se outros filhos ou netos não consentirem na venda; o consentimento dos descendentes, quando não possa ser prestado ou seja recusado, é suscetível de suprimento judicial.

2. A venda feita com quebra do que preceitua o número anterior é anulável; a anulação pode ser pedida pelos filhos ou netos que não deram o seu consentimento, dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato, ou do termo da incapacidade.

O artigo 877º condiciona a validade da celebração da compra e venda entre pais e filhos e entre avós e netos, à prestação em momento anterior, do consentimento pelos demais filhos ou netos, respetivamente[1].

Na ausência de tal consentimento, o contrato considera-se viciado, em razão da ilegitimidade material do sujeito que intervém como alienante, reclamando a perfeição do negócio “um ato de vontade (livre, esclarecida e lícita) por parte dos demais filhos ou netos, consoante os casos, não sendo suficiente o mero conhecimento sobre a celebração do negócio entre pais e filho(s) ou entre avós e neto(s)[2].

O consentimento é um ato negocial, de estrutura unilateral, que tem de preencher os requisitos de relevância jurídica da vontade, sendo uma declaração receptícia, ou seja, tem de ser levada ao conhecimento do destinatário ou chegar ao seu poder nos termos previstos no artigo 244º do Código Civil.

O consentimento não está sujeito a forma especial (artigo 219º), mesmo que essa forma venha a ser exigida para o contrato de compra e venda e pode inclusivamente ser prestada tacitamente nos temos gerais (artigo 217º)[3].

A declaração de consentimento a que alude o art.º 877.º do CCivil pode ser prestada verbalmente e é passível de prova através de qualquer meio probatório admitido em direito[4].

Relativamente à questão de saber a quem cabe o ónus da prova do ato do consentimento dos outros filhos ou netos, na ação de anulação – se ao autor de que não deu o seu consentimento, ou ao réu de que tal consentimento foi dado – constatamos a existência de duas posições diferentes na doutrina e na jurisprudência, a partir do regime geral estatuído no artigo 342º do Código Civil[5].

Uma, no sentido de que, na ação de anulação, a prova da inexistência de consentimento cabe ao autor enquanto facto constitutivo do seu direito (potestativo) de anulação, nos termos gerais do artigo 342º, nº1 do Código Civil[6].

E uma outra, sustentando que a prova de que o autor prestou o seu consentimento deve ser feita pelo demandado na ação de anulação. Esta tese parte da constatação de que pedir ao autor a prova de um facto negativo seria extremamente difícil, daí que apenas o réu tenha a possibilidade de demonstrar que o consentimento foi prestado[7], afirmando Menezes Cordeiro ser irrealista a prova negativa relativa à ausência do ato do consentimento[8].

Em anotação ao Ac. do STJ de 29-07-1969, relatado por Santos Carvalho Júnior, in BMJ nº 189, p. 255 – no qual se afirma que numa ação em que se pede a anulação da venda, não é ao autor que incumbe provar que não deu o consentimento, mas sim aos réus que compete a prova de que o consentimento foi dado –, com o qual concorda, Adriano Vaz Serra[9] defende que “o facto constitutivo do direito à anulação, não é a falta de consentimento do outro filho (autor), mas o tratar-se de uma venda feita pelo pai a um filho e haver outros filhos.” Vaz Serra conclui, assim que, é ao demandado que compete provar a prestação do consentimento do outro ou outros filhos: “É a solução que parece mais razoável, já que não pode ser fácil, e ser até impossível, a prova pelo autor de que não dera o seu consentimento: o demandado, que era quem tinha interesse na validade do contrato, é que devia ter-se acautelado com os meios de prova do consentimento que acaso tivesse sido dado, e é ele quem se encontra em melhor situação de demostrar o que realmente se passou com o contrato[10]”.

Reconhecendo a dificuldade de formular um princípio geral que resolva todas as dúvidas relativas à distribuição do ónus da prova, a doutrina foi desenvolvendo várias teorias que isoladamente não conseguem explicar, em particular a distribuição do ónus da prova pelas partes, das quais destacamos o critério do interesse pelo ónus da afirmação e da prova (Betti) e o da teoria da norma (Rosenberg), por a respetiva posição ter sido adotada na nossa lei nos arts. 342º e 346º do CC[11].

No ónus da afirmação existe uma sintonia completa entre o ónus do pedido, o ónus da afirmação e o ónus da prova, significando que a parte que em juízo pretenda valer uma determinada pretensão, tem o ónus de alegar os factos que sustentam a mesma (ónus da afirmação), ou seja, quem tem o ónus de afirmar os factos que servem de fundamento ao seu pedido tem o correspondente ónus de demonstrar a existência desses factos (ónus da prova).

Na teoria de Rosenberg que assenta na estrutura da norma,“(…) aquele que se queira valer da estatuição da norma terá o ónus de prova relativamente aos factos integrantes da previsão. Estes serão os factos constitutivos de seu direito. Já as normas que constituam fundamento de exceção ao direito invocado contêm na sua previsão os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do seu direito, pelo que aí se identificarão os factos cujo ónus da prova cabe àquele contra quem o direito foi invocado[12].”

Era também essa a posição assumida por Manuel Domingues de Andrade:

“A ideia fundamental que impera aqui, segundo Rosenberg, é não poder o juiz aplicar uma norma de direito sem estarem provados os diversos momentos de facto que interessam à sua hipótese, e condicionam portanto a subsequente estatuição. Por isso o ónus da prova (e da afirmação), quanto a cada facto incumbe à parte cuja pretensão processual só pode obter êxito mediante a aplicação da norma de que ele é pressuposto; de onde que cada parte terá aquele ónus quanto a todos os pressupostos das normas que lhe são favoráveis. E assim, se na lei há uma regra e uma exceção (ou várias) a parte cuja pretensão se baseia na norma-regra só tem a provar os factos que constituem a hipótese dessa norma, e não já a existência dos que constituem a hipótese da norma exceção[13]”.

“Existindo na lei uma regra e uma exceção ou várias, a parte que sustenta a sua pretensão na norma-regra, só tem de provar os factos que constituem a hipótese dessa norma e não já a existência dos que dos que constituem a norma-exceção[14]”.

Dentro dessa linha de pensamento, “a norma-regra é constituída pelo preceito de que os pais e avós não podem vender a filhos ou netos; a norma-exceção é constituída pela permissão dessa venda se os outros filhos ou netos nela consentirem[15]”.

No caso em apreço, a situação é ainda mais óbvia quanto à (in)existência de consentimento dos demais filhos, uma vez que, antes de se colocar a questão do ónus de prova, temos um problema de alegação – os autores intentam a presente ação alegando que o consentimento não foi prestado, exibindo certidão da escritura de compra e venda, da qual não consta qualquer referência a um eventual consentimento dos demais filhos; os réus, na sua contestação, aceitando que tal consentimento não consta da escritura, não alegam, nunca, que tal consentimento alguma vez tenha sido prestado por qualquer outra via, refugiando-se na alegação de que não é credível que a autora não tivesse tido conhecimento.

Em nosso entender, como já foi referido, seria de ter, desde logo, assente (por acordo) que a venda foi feita sem o consentimento dos demais filhos.

A partir do momento em que o consentimento dos demais filhos, exigido por lei para a validade do negócio, não consta da escritura de compra e venda dos imóveis, se os réus entendessem que apesar de não ter sido levado à escritura, esse consentimento foi efetivamente prestado pela autora (verbalmente ou tacitamente), teriam de alegar tal circunstancialismo na ação, concretizando através de que os atos ou declarações prestadas pela autora teria sido prestado tal consentimento.

Concluindo, não tendo o consentimento sido prestado no ato da escritura de compra e venda e não alegando os réus que tal consentimento tenha sido prestado em qualquer outra altura (verbal ou mesmo tacitamente), a venda dos dois imóveis efetuadas sem o consentimento do autor, são anuláveis nos termos do artigo 877º, nº1 do CC.

Assim sendo, prejudicada fica a apreciação das demais questões suscitadas pelos Apelantes, com base nas quais pretendiam demonstrar ter-se como provada a inexistência de consentimento.

2. Caducidade do direito dos autores à anulação do contrato

Na sua contestação, defendem-se os réus invocando o decurso do prazo de um ano para a anulação do negócio previsto no nº2 do artigo 877º do CC, porquanto, desde a celebração do negócio, já decorreram mais de 26 anos, sendo difícil aceitar que apenas agora, em 17 de janeiro de 2023, a autora tenha tomado conhecimento da celebração dessa escritura de compra e venda, decorridos mais de 25 anos e após os autores já haverem intentado a propósito, outra ação declarativa invocando simulação, em 09.03.2023, que terminou com a ineptidão da petição inicial e com a absolvição dos réus da instância.

A anulação com fundamento no nº1 do artigo 877º pode ser pedida pelos filhos ou netos no prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato (nº2 do artigo 877º).

O prazo de arguição de um ano configura um prazo de caducidade, incumbindo aos réus a prova do decurso de tal prazo, enquanto facto extintivo do direito dos autores, nos termos do artigo 342º, nº2 do Código Civil.

Nos presentes autos apenas se provou que os autores, pelo menos a 17 de janeiro de 2023, tiveram conhecimento dos termos do negócio celebrado entre os pais e o réu, através da consulta da escritura de compra de compra e venda no âmbito das partilhas (por confissão dos autores, uma vez que os réus se limitam-se a invocar uma incredulidade, sem que aleguem qualquer facto ou ato demonstrativo de que, em data anterior a tal consulta, os autores tivessem tido conhecimento de que existira uma compra e venda).

Assim sendo, instaurada a presente ação a 23 de outubro de 2023, decorrido menos de um ano desde que os autores tiveram acesso ao teor da escritura de compra e venda, julga-se improcedente a invocada caducidade do direito dos autores à anulação das vendas formalizadas por escritura de 26 de agosto de 1998.

A ação é de julgar procedente, com a consequente revogação da decisão recorrida.


*

IV – DECISÃO

Pelo exposto, na procedência da apelação, acordam os juízes deste tribunal da Relação em revogar a decisão recorrida, pelo que, julgando-se a ação procedente, declararam-se anuladas as vendas de ambos os imóveis formalizadas por escritura pública celebrada a 26 de agosto de 1998, com fundamento na falta de consentimento da autora, ao abrigo do disposto no art. 877º do CC.

Custas a suportar pelos Apelados.

                         Coimbra, 20 de novembro de 2025

                                                                             
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…).


[1] Embora a anulabilidade possa vir a ser sanada através de um posterior ato de confirmação nos termos do artigo 288º, ou pelo facto de o direito potestativo de anulação ser atingido pela caducidade – Ana Filipa Morais Antunes/Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Contratos em Especial, UCP Editora, p. 39, nota I ao artigo 877º, e nota V, p. 43,
[2] Ana Filipa Morais Antunes e Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Contratos em Especial, UCP Editora, p. 39, nota I ao artigo 877º.
[3] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, Vol. III Contratos em Especial, 3ª ed., Almedina, p. 42, e Pedro Romano Martinez, “Direito das Obrigações, Parte Especial”, Coimbra, p. 59.
[4] Acórdão do TRC de 13-12-2012, relatado por Vítor Amaral, https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/869864df9344123a80257b6600392b4b
[5] Dispõe o artigo 342º do Código Civil:
Ónus da prova
1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
[6] Raul Ventura, “O Contrato de compra e venda no Código Civil”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 43, pp. 273-274; Antunes Varela, “Código Civil”, Vol. I, 4ª ed., p. 166.
[7] Armando Braga, Contrato de Compra e Venda – Estudo Prático, Doutrina e Jurisprudência, Porto Editora, 1991, (2ª Edição), p. 49.
[8] Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações – Contratos em Especial, Vol. I, 2ª ed., 2019, Almedina, p. 137, citado por Ana Filipa Morais e Rodrigo Moreira, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Contratos em Especial, nota 3 ao artigo 877º, p. 42.
[9] R.L.J., Ano 103, pp. 508-509.
[10] Afirmação que é feita no contexto de uma situação em que se declarou na escritura de compra e venda feita pelo pai a filho, que o outro filho tinha dado o seu consentimento “conforme documento passado”, mas esse documento não foi arquivado pelo notário nem devidamente identificado por este nem jamais foi junto aos autos – R.L.J. Ano 103, pp. 506-509
[11] Rui Manuel Freitas Rangel, “O Ónus da Prova no Processo Civil”, 2ª ed., Almedina, p. 150.
[12] Rita Lynce de Faria, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, UC Editora, anotação ao artigo 342º, Nota VII, p. 813.
[13] “Noções Elementares de Processo Civil”, Reimpressão, Coimbra Editora 1993, pp. 200-201.
[14] Rui Manuel de Freitas Rangel, referindo-se à solução proposta por Rosenberg, obra citada, p. 150.
[15] Acórdão do STJ relatado por Santos Carvalho Júnior, citado, R.L.J. Ano 103, p. 507.