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SEPARAÇÃO DE BENS DA MASSA INSOLVENTE
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
Sumário
Numa acção de restituição e separação de bens da massa insolvente, com fundamento inicial na aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o bem integrado na massa insolvente, não é admissível a cumulação de pedidos emergentes de causas de pedir distintas da primitiva que a convolam numa nova acção judicial, à qual corresponde o processo de declaração comum.
Texto Integral
Processo n.º 482/11.5TYVNG.AK.P1
Relatora: Anabela Andrade Miranda
Adjunto: Pinto dos Santos
Adjunto: João Proença
“A..., Lda.”, com sede no lugar da ..., freguesia ... do concelho ..., intentou a presente acção para separação da massa insolvente de uma fracção autónoma correspondente a uma garagem, contra a massa insolvente, representada pelo Administrador, a sociedade “B..., Lda.”, e credores da insolvente.
Alegou, em resumo, que já lhe foi reconhecido o direito decorrente do contrato-promessa, celebrado em 13 de Março de 1990, relativamente ao apartamento mas faltou a garagem aí identificada. Estava convencida de que a garagem iria constar na escritura de constituição da propriedade horizontal como incluída na descrição da fracção habitacional; por isso, na acção de separação da massa falida peticionou apenas a exclusão da fracção habitacional, na qual presumia englobada a garagem. É essa a razão pela qual vem agora peticionar complementarmente a separação da massa da garagem a que se reporta o contrato-promessa de compra e venda, que é situada no próprio prédio do apartamento, do lado Nascente, sendo a terceira a contar do Sul, nela se vendo o fecho, diferente dos fechos das outras, bem como a rampa cimentada, coisas feitas pela A., visto que a sua posse pela A. sempre foi exercida em conjunto com a do apartamento. Ou seja, tudo o que supra se disse sobre a forma como se processou a posse da A. sobre o T-1, ocorreu quanto à garagem e quanto à convicção da A. de usar um direito próprio, adquirindo-a por usucapião.
A Ré, na contestação, declarou que a dita garagem não foi apreendida para a massa insolvente, esclarecendo que apenas foram apreendidas duas garagens que identificou.
A Autora replicou alegando que identificou em concreto qual é a garagem que reivindica e que a R. juntou aos autos uma certidão de registo predial na qual se lê que tal fracção foi registada em nome de AA, por compra em processo de execução, figurando como sujeito passivo a Massa Insolvente da B..., Lda. Isto significa que a garagem que aqui se discute, se agora não está incluída na massa insolvente, já preteritamente esteve, antes da sua transmissão ao referido AA, o que contradiz a afirmação da R..
Posteriormente, um meio da garagem/fracção em causa foi comprado ao dito AA pela sociedade C..., Unipessoal, Lda.. E, na sequência disso, a dita C..., Unipessoal, Lda. vendeu esse meio que adquirira a BB, casado com CC, os quais registaram em seu nome (cf. doc. junto). Estas transmissões ocorreram, como se vê no documento junto, em Maio de 2022 e Dezembro de 2023. Ou seja, muito depois da apresentação em juízo das acções que tanto o sócio-gerente da aqui A. como a própria A. instauraram neste tribunal na qual alegaram que tanto um apartamento como a garagem que aqui se discute foram dados em pagamento à A. já em 1991, sendo a A. quem exercia a posse quanto a elas, em nome próprio, de forma contínua e de boa fé desde 1991.
Acrescentou que a Ré não podia vender, dar em pagamento ou aceitar passivamente a penhora da garagem, e tendo agido com culpa, constituiu-se na obrigação de indemnizar a A. por todos os prejuízos que, com o seu procedimento, causou ou venha a causar à A. De qualquer modo, enriqueceu-se sem causa ao ver um seu débito total ou parcialmente saldado, à custa da A. (arts. 473º e segs. do C. Civil).
Quanto aos referidos AA e mulher, BB e C..., Unipessoal, Lda., adquiriram a fracção a non domino, pelo que estamos perante aquisições nulas.
E, de qualquer modo, a sua posse da fracção quanto ao AA, foi e é restrita a um meio da fracção e iniciou-se em 30/5/2022, e a de BB, mesmo que este adicionasse à sua a posse do AA e a da C..., teria também início na mesma data, e só decorreram desde então pouco mais de dois anos e meio.
Em face do que precede, a A. requereu a intervenção provocada, nos termos dos arts. 316º e 39º do C. P. Civil, na qualidade de RR., de:
a) AA e mulher DD, residentes na Rua ..., ..., ... ...;
b) BB e mulher CC, residentes na Rua ..., ... ...;
c) C..., Unipessoal, Lda., Rua .... ... ....
E ampliou o pedido nos seguintes termos:
a) Perante o exposto, deve reconhecer-se que a aqui A. adquiriu a propriedade da fracção AD/garagem aqui em causa por usucapião, nos termos dos arts. 1287º e 1293º e segs. do C. Civil, reportada a aquisição ao início da sua posse pela A. em princípios de 1991,
b) E, consequentemente, ordenar-se a separação da fracção referida da massa insolvente;
c)Declararem-se nulas as aquisições ocorridas, da mesma fracção, nulidades essas insupríveis por usucapião dada a exiguidade temporal da sua posse pelos intervenientes;
d)Para a hipótese, que não se concede, de serem julgados improcedentes os pedidos anteriores, deve condenar-se a R. massa insolvente a indemnizar a A., por enriquecimento sem causa, com quantia nunca inferior a 30.000,00€ (trinta mil euros)
e) Ou, tendo em conta que na massa existem garagens, iguais e com idêntica localização, sendo a obrigação fungível, condenar-se a R. massa a entregar à A., como compensação, uma outra garagem igual (art. 540º do C. Civil).
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A Ré deduziu oposição declarando que os pedidos formulados nas alíneas c), d) e e), são novos pedidos, que não se encontram minimamente contidos ou refletidos nos pedidos iniciais, não são, por isso, qualquer desenvolvimento ou consequência destes.
Os pedidos da petição inicial vão no sentido de o autor procurar alcançar o reconhecimento da sua propriedade sobre uma fração, que diz ter adquirido por usucapião e, por consequência, pede a sua separação da massa insolvente, enquanto que pedido formulado agora na alínea c) do requerimento de ampliação do pedido, a autora pretende a declaração de nulidade dos contratos de compra e venda cujo bem transacionado foi aquela fração, são, portanto, pedidos completamente distintos.
Por sua vez, os pedidos formulados nas alíneas d) e e) do requerimento de ampliação do pedido, são verdadeiros pedidos subsidiários, que por essa mesma razão não se encontram logicamente contidos nos pedidos primitivos, nem refletem qualquer desenvolvimento destes, pois que o pedido subsidiário só é apreciado no caso de sucumbência do pedido principal.
Finalmente, o deferimento da presente ampliação do pedido causaria um erro na forma do processo, nos termos do art.º 193.º do CPC, pois a ação para restituição e separação de bens, prevista e regulada nos artigos 141.º a 148.º CIRE, não é o meio processual adequado às pretensões deduzidas pelo autor nas alíneas c), d) e e) do seu douto requerimento de ampliação do pedido e, por consequência, como o erro na qualificação do meio processual é apenas em relação à parte do pedido contantes das alíneas c) d) e e), tal como sucede nos casos de cumulação de pedidos em que a forma processual usada é inadequada para um ou vários dos pedidos formulados, deve o tribunal abster-se de conhecer destas pretensões e absolver a ré da instância quanto a essas mesmas pretensões.
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O tribunal a quo não admitiu a intervenção de terceiros nem a ampliação dos pedidos.
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Inconformada com a decisão, na parte em que não admitiu a ampliação do pedido, a Autora interpôs recurso finalizando com as seguintes Conclusões
a) O pedido inicial da acção intentada contra a massa falida e outros era que se reconhecesse a A. como proprietária da fracção/garagem identificada nos autos por a ter adquirido por usucapião e, em consequência, que se ordenasse a sua separação da massa insolvente;
b) Tendo a R. massa, na sua contestação, alegado que a mesma foi adquirida por terceiros, mas reconhecendo que chegou a estar incluída na massa insolvente, com o que a massa beneficiou, e se enriqueceu, a A. requereu a ampliação do seu pedido inicial, peticionando que a massa a indemnizasse com o montante de 30.000,00€, caso se confirmasse que, por erro ou por qualquer outra razão, tivesse possibilitado o apossamento da garagem por terceiros.
c) Perante isto, a Senhora Juiz a quo proferiu despacho no sentido de inadmitir a ampliação do pedido, por entender que o caso em apreço não se enquadra no estatuído no nº 2 do art. 265º do C. P. Civil, ou seja, que esta ampliação não corresponde a um desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo,
d) Entendemos, porém, que é um efectivo desenvolvimento do pedido inicial, desde logo, porque provém de uma mesma causa de pedir; o pedido de indemnização é subsidiário, mas tem o mesmo objectivo, embora mais frustre, de satisfazer o direito da A.;
e) E é um facto que é uma consequência do pedido inicial.
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II—Delimitação do Objecto do Recurso
A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se a invocada ampliação do pedido é admissível.
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III—FUNDAMENTAÇÃO (dão-se por reproduzidos os actos acima descritos)
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IV-DIREITO
A principal questão suscitada no recurso consiste em saber se, na presente acção de restituição e separação de bens da massa insolvente, a lei permite a ampliação do pedido com fundamento em causas de pedir distintas da primitiva.
A Autora pretende o reconhecimento do direito de propriedade de uma fracção autónoma correspondente a uma garagem e consequentemente, a restituição desse bem à sua esfera patrimonial, alegando que foi apreendida, indevidamente, nos autos de insolvência apensos.
A massa insolvente, de harmonia com o art. 46.º, n.º 1 do CIRE, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.
A apreensão de bens, como clarifica Maria do Rosário Epifânio,[1] apresenta uma dupla função: por um lado, reveste natureza conservatória, pois visa precludir qualquer desvio dos bens destinados à satisfação dos credores; por outro lado, é indispensável à liquidação dos bens integrantes da massa insolvente.
Nesse acto de apreensão, existe a possibilidade de serem integrados na massa insolvente bens que não pertenciam ao devedor mas sim a terceiro.
Quando tal sucede, a lei permite que o interessado proponha contra a massa insolvente, o devedor e os credores uma acção de restituição e separação de bens, regulada pelos artºs 141º e segs. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa (CIRE).
O mencionado artigo 141.º do CIRE tem como pressuposto, como elucidam Carvalho Fernandes e João Labareda,[2] “apreensão indevida de bens para a massa, quer elas pertençam a terceiros, ao cônjuge ou a próprio insolvente, mas, neste caso, tratando-se de bens não afectos à insolvência.”
Na parte que interessa, o referido artigo 141.º, n.º 1, al.a) do CIRE determina a aplicação das disposições relativas à reclamação e verificação de créditos à reclamação e verificação do direito de restituição, a seus donos, dos bens apreendidos para a massa insolvente, mas de que o insolvente fosse mero possuidor em nome alheio.
O caso mais comum, na opinião de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão,[3] “é o de os bens serem da propriedade de terceiro, a qual, conforme se sabe, atribui ao proprietário o direito de exigir de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence (art. 1311.º CC).”
Portanto, estamos perante um processo com uma tramitação especial, que corre termos num juízo especializado de comércio, com fundamentos taxativos, estabelecidos na lei, e cuja finalidade consiste em separar o bem reclamado da massa insolvente e restitui-lo, na hipótese em análise, ao respectivo dono.
A Autora, como se referiu, pediu o reconhecimento do direito de propriedade incidente sobre a dita garagem e a consequente separação da massa insolvente com base na aquisição por usucapião, reportando o início da sua posse a princípios de 1991.
Após a Ré, na contestação, ter impugnado um dos principais fundamentos da presente acção-apreensão do bem imóvel-e com base na documentação junta aos autos, a Autora alegou que a Ré, massa insolvente, com culpa, vendeu a terceiro a garagem, o que originou sucessivas transmissões do direito de propriedade.
Considerando estes novos factos, pretende ainda que o tribunal declare nulas as sucessivas aquisições da mesma fracção, e para a hipótese de serem julgados improcedentes os pedidos anteriores, pretende a condenação da Ré, massa insolvente, no pagamento de uma indemnização por enriquecimento sem causa, em quantia nunca inferior a 30.000,00€ ou, na entrega, como compensação, de uma outra garagem igual.
A Mma. Juíza indeferiu, e bem, a intervenção dos terceiros que alegadamente adquiriram o direito de propriedade dessa fracção bem como a alteração do pedido.
Sobre esta temática da ampliação do pedido, importa ter em atenção o princípio da estabilidade da instância consagrado no art. 260.º do C.P.Civil do qual resulta que deve permanecer estável quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, sendo apenas possível a sua modificação nas situações expressamente previstas na lei.
Apesar do pedido dever ser formulado pelo autor na petição (cfr. art. 552.º, n.º 1, al. e) do CPC), pode ser modificado (reduzido ou ampliado) se as partes estiverem de acordo ou, na sua falta, se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo-cfr. arts. 264.º e 265.º, n.º 2 do CPCivil.[4]
Quer dizer, segundo as palavras de A. dos Reis,[5]”…a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial.”
Acrescentando, com interesse na distinção com a cumulação dos pedidos, que “a ampliação pressupõe que, dentro da mesma causa de pedir, a pretensão primitiva se modifica para mais; a cumulação dá-se quando a um pedido, fundado em determinado acto ou facto, se junta outro, fundado em acto ou facto diverso.”
A causa de pedir, segundo a noção estabelecida no art. 581.º, n.º 4 do C.P.Civil, é constituída pelo facto jurídico, sendo que nas acções de anulação é a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
Como ensinavam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nóvoa[6] “a causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido.”
No caso em apreço a Autora alterou efectivamente o pedido inicial, aditando pretensões não admissíveis neste tipo de processo especial, sustentadas em causas de pedir distintas da primitiva consistente na aquisição do direito por usucapião a saber: venda a non domino e responsabilidade extracontratual.
Em bom rigor, não ampliou o pedido inicial, antes cumulou pedidos (com base em causas de pedir diferentes) que a lei proíbe no processo comum na hipótese de inexistir acordo.
Neste processo especial em que a parte passiva é constituída pela massa insolvente, pelo devedor e pelos credores, a cumulação de pedidos (e de causas de pedir) completamente diferentes daquele que a lei permite atendendo à finalidade específica de restituição e separação da massa insolvente, impõe a sua inadmissibilidade.
A cumulação destes novos pedidos, sob a designação de ampliação, altera completamente o objecto da acção de restituição e separação da massa, transformando-a numa nova acção judicial, à qual corresponde o processo de declaração comum, sem possibilidade dos terceiros afectados pela decisão serem chamados à demanda.
Na verdade, o aditamento de causas de pedir e correspondentes pedidos, era considerado duvidoso por M. de Andrade[7] “já que com essa dupla inovação se irá convolar para uma acção inteiramente distinta quanto ao seu objecto.”
Ademais, a cumulação de pedidos, também não é admissível à luz das disposições conjugadas dos arts. 555.º, n.º 1 e art. 37.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil.
A relação material controvertida, no presente processo, cinge-se à discussão sobre o facto jurídico do qual emerge o direito de propriedade que a Autora se arroga sobre a garagem, alegadamente apreendida pelo administrador para integrar a massa insolvente.
Pelas razões aduzidas, impõe-se a confirmação da decisão.
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V-DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, e em consequência, confirmam a decisão.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
Porto, 26/11/2025.
Anabela Miranda
Pinto dos Santos
João Proença
_____________________________ [1] Ob. cit, pág. 254. [2]Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, pág. 546, nota 4. [3]Direito da Insolvência, Almedina, 6.ª edição, pág. 224. [4] Preceitos aplicáveis a título subsidiário por força do art. 17.º do CIRE. [5]Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.ºpág. 93. [6]Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág.245. [7] Noções Elementares, 1979, p. 170, citado por A. Varela, Sampaio da Novoa e Miguel Bezerra in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 358.