DELIBERAÇÃO SOCIAL
DIREITO DE VOTO
IMPEDIMENTO DE VOTO
CONFLITO DE INTERESSES
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I - O art. 251º do CSC estabelece um impedimento de voto ao sócio quando, relativamente à matéria da deliberação, aquele se encontre em situação de “conflito de interesses” com a sociedade, elencando a norma diversas situações em que tal conflito ocorre, mas que não esgotam as situações de conflito, como decorre do advérbio “designadamente”.
II - A lei visa, com esta norma, neutralizar o perigo de adoção de deliberações contrárias ao interesse social por determinação ou influência do voto de sócio portador de interesse particular divergente.
III - Para além das hipóteses expressamente elencada nas alíneas do n.º 1 do art. 251.º do CSC, haverá de apurar-se na existência de “conflito de interesses”, as circunstâncias do caso concreto, pela ponderação objetiva de toda a factualidade relevante.
IV - Não ocorre “conflito de interesses” entre sócio a quem a sociedade moveu vários processos judiciais, visando o seu afastamento da sociedade, se o sócio na data da assembleia deliberativa mantinha tal qualidade e a deliberação teve por objeto a constituição de reservas livres, não se procedendo á repartição aos sócios dos lucros do exercício anterior, deliberação que exige uma maioria qualificada.
V - Inexiste igualmente uma situação de abuso de direito, por parte de tal sócio, ao pretender a declaração de nulidade / anulabilidade da referida deliberação tomada sem a necessária maioria qualificada, se o mesmo conduziu e presidiu a assembleias gerais realizadas para deliberar sobre as contas de diversos exercícios anteriores, sem que tenha proposto aos outros sócios a distribuição de lucros nessas assembleias gerais.

Texto Integral

Processo: 2822/20.7T8STS.P2

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 5

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízes Desembargadores Adjuntos:

João Proença

Artur Dionísio Oliveira

SUMÁRIO:

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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:

O Autor: AA intentou contra a Ré A..., LDA. ação de impugnação de deliberação social pedindo que se declare nulas, ou, quando menos, anuláveis, as deliberações constantes da ata da assembleia geral da Ré realizada no dia 18 de setembro de 2020.

Alegou para tanto e em suma que é sócio e gerente de facto da ré, que foi violado o direito de informação do Autor enquanto sócio, bem como não foi respeitada a unanimidade na tomada de decisão de gratificação de balanço aos trabalhadores e no destino dado ao resultado do exercício e alega ter sido violado o estatuto no que à gerência concerne.

Citada, a ré apresentou contestação, defendendo-se por impugnação, mais alegando que o autor, de modo oculto e à revelia dos outros sócios, criou uma sociedade unipessoal, cujo objeto social coincide com o da ré, que em assembleia geral extraordinária do dia 15.04.2019 foi deliberada a exclusão de sócio do autor com recurso á via judicial, que posteriormente o autor praticou novamente actos lesivos do património da ré, tendo o autor sido proibido no âmbito de um procedimento cautelar que identificam, “de praticar quaisquer actos em representação da requerente, qualquer que seja a forma ou finalidade, designadamente celebrar negócios em seu nome ou contactar clientes da requerente, bem como de aceder às instalações da requerente e de usar ou aceder a hardware e software da requerente.”

Desta forma, o voto do autor não deva contar para a formação do quórum deliberativo, para além de que, durante anos a fio, o Autor conduziu e presidiu às diversas assembleias gerais realizadas para deliberar sobre as contas dos diversos exercícios, sem que alguma vez tenha proposto aos outros sócios a distribuição de lucros (e que agora se percebe porquê) – Cfr. documentos n.ºs 36 (atas 21 a 32) e 37 (atas 33 a 46), pelo que o pedido de anulação constitui um manifesto abuso de direito, consubstanciado nas figuras do venire contra factum proprium e supressio (art.º 334.º do CC).

Foi dispensada a audiência prévia, vindo a ser proferido saneador sentença datado de 13.10.2021, que conheceu do mérito da causa, julgando a ação improcedente.

Interposto recurso da sentença, foi proferido acórdão pelo tribunal da Relação do Porto, datado de 10.3.2021, que revogou a sentença, mandando prosseguir os autos para julgamento.

Baixados os autos à primeira instância, o Sr. Juiz que proferiu a sentença que foi revogada no âmbito da procedência do recurso, veio a deduzir pedido de escusa, ao abrigo do artigo 119º nºs 3, 4 e 5, pedido que foi apreciado e decidido pelo Exmº Sr. Presidente do Tribunal da Relação do Porto, deferindo a escusa.

Na sequência da procedência da escusa, passaram os autos a ser processados pela Srª Juíza legal substituta, vindo a Ré a deduzir Incidente de Suspeição, contra aquela, ao abrigo do disposto no artº 120º do C.P.C., incidente de suspeição que foi julgado improcedente por despacho datado de 3.10.2022 proferido pelo Exmº Sr. Presidente do Tribunal da Relação do Porto.

Prosseguiram os autos os seus normais termos, com prolação de despacho saneador, que fixou o valor da causa, indicou o objeto do litígio (constituindo objeto do litígio apurar se devem ser declaradas nulas, nos termos do art. 56º, n.º 1, al. d) do CSC ou, pelo menos, anuladas, nos termos do art. 58º, n.º 1, al. a) e al. b) do CSC, as deliberações tomadas na assembleia geral realizada na sociedade Ré em 18.9.2020 e a que corresponde o documento 4 junto com a petição inicial) e indicou os temas da prova.

Veio a ser realizado o julgamento e no final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Na sequência do acabado de referir, julga-se a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, declara-se a anulabilidade da deliberação social tomada na assembleia geral provados 23 e 24, através da qual o resultado líquido do exercício de 2019, no valor de oitocentos e sessenta e três mil e quarenta euros e cinquenta e quatro cêntimos, foi aplicado em reservas livres.

Do demais peticionado absolve-se a Ré.

Custas a cargo do Autor e Ré, fixando-se a proporção em 2/3 e 1/3, respetivamente (art. 527º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil).da sociedade Ré realizada em 18 de setembro de 2020, referida nos factos.”

Inconformada a Ré A..., Lda., veio interpor o presente recurso de apelação tendo apresentado as seguintes conclusões:

“I. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

1. Aditamento de novos factos (Facto 54-A e Facto 58)

Novo Facto 54-A (a inserir após o facto 54 já dado como provado):

«No ano de 2017, tendo a Ré apresentado lucro superior ao do exercício de 2019, o sócio BB solicitou ao Autor a distribuição de lucros, de modo a auxiliar aquele na aquisição de habitação própria. O Autor, que à data detinha o pelouro financeiro e contabilístico, recusou propor essa distribuição de lucros em assembleia, justificando que o dinheiro deveria permanecer na sociedade.»

Prova que o fundamenta:

Depoimento da testemunha BB, gravado em sessão de 18-01-2024, onde o depoente descreve o pedido de distribuição de lucros que fez ao Autor em 2017 e a recusa deste, bem como o motivo invocado.

Documentos n.os 36 e 37 juntos com a contestação, que evidenciam as diversas atas em que nunca foi deliberada a distribuição de resultados, apesar de, em 2017, o exercício ter gerado lucro significativo.

Novo Facto 58 (a inserir após o facto 57 já dado como provado):

«A deliberação de aplicação dos resultados do exercício de 2019, aprovada na assembleia de 18 de setembro de 2020, visou, por um lado, atribuir uma parte desses resultados aos trabalhadores – a título de “gratificações de balanço” relativas ao seu contributo na obtenção dos lucros –, e, por outro lado, afetar o remanescente a reservas livres, sem que nenhum sócio recebesse qualquer quantia a título de dividendos.»

Prova que o fundamenta:

Depoimento da testemunha CC, técnico de contabilidade da sociedade (gravação de 00:16:00 a 00:17:05 mencionada na motivação), esclarecendo que as “gratificações de balanço” eram prática recorrente de remuneração variável aos trabalhadores, sem atribuição de vantagem imediata aos sócios.

Depoimentos das testemunhas DD (revisor oficial de contas), BB e EE, confirmando que o montante não distribuído se manteve como reserva livre da sociedade, não havendo qualquer distribuição de resultados aos sócios.

Confronto com a ata da assembleia de 18.09.2020 (factos 23 e 24 dados como provados) e documentos contabilísticos da Ré.

2. Alteração de redação do facto provado n.º 10

Redação constante na sentença recorrida:

«Os sócios BB e EE pretendem assumir sozinhos a gestão da sociedade Ré e afastar o Autor da mesma.»

Redação que se requer:

«A partir de 01.01.2019, os sócios BB e EE, titulares de 66,66% do capital social da Ré, afastaram o Autor da gerência financeira e contabilística – a qual até então vinha sendo exercida por este – por perda de confiança, na sequência de factos imputados ao Autor que motivaram procedimento cautelar e ação de exclusão de sócio.»

3. Prova que justifica a alteração:

Documentos juntos a fls. (v.g. requerimentos do procedimento cautelar n.º..., referidos nos factos 11 e 33 a 41.), evidenciando a existência de litígio judicial e a perda de confiança.

Depoimentos de BB (de 00:45:00 a 00:46:00) e EE (por volta de 00:15:00), ambos corroborando que, a partir de 2019, retiraram do Autor da gestão em exclusivo do pelouro financeiro em virtude do comportamento descrito nos autos.

II. A FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO;

1. Da exclusão do voto em situação de conflito de interesses

1.1. O artigo 251.º, n.º 1, al. b) do CSC estatui que o sócio se encontra impedido de votar quando, relativamente à matéria em discussão, exista conflito de interesses entre este e a sociedade.

1.2. À data da assembleia de 18.09.2020, o Autor encontrava-se em litígio judicial contra a sociedade, nomeadamente em ação de exclusão de sócio (factos 33 a 38) e procedimento cautelar (facto 11), imputando-se-lhe condutas de apropriação de cheques, desvio de clientes e outros atos lesivos, incluindo condutas de natureza criminosa descritas na fundamentação

1.3. Tais circunstâncias caracterizam evidente conflito de interesses, o que, nos termos da jurisprudência dominante (v.g. Ac. TRP de 10.12.2019, proc. n.º 3735/17.5T8VNG.P1), acarreta a nulidade do voto emitido e a sua exclusão para efeitos de quórum deliberativo.

1.4. Sem a consideração do voto do Autor, verifica-se que a deliberação em apreço – aprovada pelos dois sócios maioritários (66,66%) – satisfaz a exigência legal, incluindo a maioria qualificada do art.º 217.º CSC.

2. Do abuso de direito: venire contra factum proprium e supressio

2.1. Durante vários exercícios anteriores (v. g. 2017), em que o Autor controlava a gestão financeira da Sociedade, nunca propôs, nem procedeu à distribuição de lucros, apesar de a empresa apresentar resultados positivos.

2.2. Revela-se contraditório e contrário à boa-fé (art. 334.º CC) que, precisamente quando o Autor perde o controlo sobre os recursos financeiros da sociedade, venha invocar suposta violação do art. 217.º CSC pela não distribuição de lucros.

2.3. A doutrina e a jurisprudência têm por abusivo e inadmissível que um sócio, após repetidos anos sem distribuir dividendos sob a sua própria gerência e/ou gestão financeira, pretenda agora bloquear e impugnar a deliberação que visa a aplicação dos resultados em reservas livres e gratificações aos trabalhadores.

3. Da inexistência de prejuízo concreto e da irrelevância do vício formal

3.1. Nenhum prejuízo efetivo foi alegado ou provado pelo Autor, pois os lucros não distribuídos permanecem no património social, de que o Autor é cotitular (1/3).

3.2. A mera discordância do sócio vencido em assembleia não basta para anular uma deliberação, exigindo o art. 58.º do CSC que se demonstre um prejuízo ou intuito de vantagem especial para os restantes sócios.

3.3. Não tendo sido atribuída qualquer vantagem patrimonial imediata aos sócios maioritários, mas, pelo contrário, destinando-se parte do lucro à gratificação de trabalhadores e o restante a reservas livres, inexiste fundamento para declarar a anulabilidade.

3.4. A jurisprudência (v. g. Ac. TRG de 18.01.2018) e a doutrina sublinham que os tribunais devem evitar o sacrifício da estabilidade societária por meras irregularidades sem dano concreto.

4. Da conformidade com o artigo 217.º do CSC

4.1. O voto do Autor em conflito de interesses não pode ser contabilizado para o quórum deliberativo, pelo que, a deliberação favorável dos sócios detentores de 66,66% do capital ultrapassa a maioria necessária (¾), se considerada apenas a percentagem de capital com direito a votar.

4.2. Mesmo que se entendesse não atingir formalmente 75%, o art. 217.º do CSC não impõe uma distribuição forçada de metade dos lucros em todos os casos; e, sobretudo, a não distribuição acordada pela maioria qualificada é opção legítima dos sócios, maxime se não há prejuízo ou abuso.

4.3. A própria sentença recorrida, ao julgar válida a gratificação aos trabalhadores, assume que a deliberação não visou qualquer vantagem indevida para os sócios maioritários, afastando o propósito de prejudicar o Autor ou de retirar proveito particular para aqueles sócios.

III. AS CONCLUSÕES FINAIS

1. Em sede de matéria de facto, devem ser aditados os factos 54-A e 58, e alterado o facto 10, conforme proposto, tudo com suporte na prova documental (atas e trocas de e-mails) e no depoimento de várias testemunhas credíveis (BB, EE, CC, DD).

2. Em sede de direito, a deliberação em apreço não padece de qualquer nulidade ou anulabilidade:

2.1. Não existe qualquer vício formal determinante de nulidade, pois a assembleia foi regularmente convocada e todos os sócios compareceram (cf. art. 56.º CSC);

2.2. Não se verifica violação de norma imperativa ou dos bons costumes (arts. 56.º e 58.º CSC), uma vez que a deliberação apenas aplicou resultados em reservas livres e atribuiu gratificações aos trabalhadores, sem beneficiar abusivamente os sócios maioritários;

2.3. Não se demonstra nem alega prejuízo efetivo para o Autor, nem um benefício para os restantes sócios;

2.4. A situação de conflito de interesses do Autor com a sociedade impede o cômputo do seu voto, pelo que a maioria favorável ascendeu legitimamente a 66,66% (voto válido), superando ou, pelo menos, satisfazendo o regime legal de adoção da deliberação;

2.5. Configura abuso de direito o facto de o Autor, após anos sem distribuir de lucros, vir agora invocar a pretensa invalidade de uma deliberação que manteve o resultado do exercício no património societário, não logrando demonstrar qualquer atuação maliciosa ou vantajosa para os sócios maioritários.

3. Deve, pois, a douta sentença ser revogada na parte em que julgou anulável a deliberação relativa à aplicação dos resultados do exercício de 2019, substituindo-se tal segmento decisório por pronúncia que julgue válidas todas as deliberações aprovadas na Assembleia de 18.09.2020.

4. No mais, deve o recurso ser inteiramente procedente, com a decorrente improcedência da ação (no que respeita à pretensão anulatória do Autor) e absolvição da Ré de todos os pedidos anulatórios não reconhecidos na sentença recorrida.

Nestes termos, deve o recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida na parte impugnada, e mantendo-se na íntegra a validade das deliberações adotadas.

IV – Normas e Princípios Violados

- Artigos 56.º, 58.º, n.º1, al. b), 59.º, 217º, 251º e 386º, n.º 5, ex vi do art.º248º, todos do CSC.

- Artigo 334.º e 342.º, n.º 1 ambos do Código Civil.”

O Autor AA veio responder ao recurso, apresentando contra-alegações, pedindo a improcedência do mesmo (sem formular conclusões).

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo (cfr. os artigos 627º, 629º, n.º 1, 631º, n.º 1, 638º, n.º 1, n.º 5 e n.º 7, 639º, 642º, à contrário, 644º, n.º 1, al. a), 645º, n.º 1, al. a) e 647º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil).

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.

As questões decidendas, delimitada pelas conclusões do recurso, são as seguintes:

-Erro de julgamento quanto à matéria de facto provada, que impõe a alteração do facto 10 dos factos provados e o aditamento dos factos 54-A e 58;

-Erro de julgamento quanto ao direito aplicado relativamente á decisão de anulabilidade da deliberação social tomada na assembleia geral da sociedade Ré realizada em 18 de setembro de 2020, referida nos factos provados 23 e 24, através da qual o resultado líquido do exercício de 2019, no valor de oitocentos e sessenta e três mil e quarenta euros e cinquenta e quatro cêntimos, foi aplicado em reservas livres, relativamente às seguintes questões:

-inexistência de prejuízo efetivo para o Autor, nem de benefício para os restantes sócios;

-situação de conflito de interesses do Autor com a sociedade que impede o cômputo do seu voto e,

-abuso de direito pelo facto do Autor, após anos sem distribuir de lucros, vir agora invocar a invalidade de uma deliberação que manteve o resultado do exercício no património societário.

III-FUNDAMENTAÇÃO:

1. O Autor é sócio da sociedade A..., LDA., juntamente com BB e EE.

2. A sociedade tem como objeto social o exercício da atividade industrial, elaboração de projetos, construção, assistência e comercialização de máquinas.

3. A sociedade indicada em 1 foi constituída por escritura de 18.5.1982 e levada a registo em 14.9.1982, tendo como sócios o Autor e BB.

4. Em 10.12.1984 procedeu-se à alteração do pacto social e à entrada na sociedade do sócio EE, ficando cada um dos sócios com 1/3 do capital social.

5. Na mesma altura, ficou contratualmente estipulado que a gerência da sociedade e a sua representação ficava a cargo de todos os sócios, bastando a intervenção de um deles em atos de mero expediente e sendo necessária a intervenção de dois deles para representar e obrigar a sociedade.

6. Atualmente, cada um dos sócios detém na sociedade referida em 1 uma quota no valor de Eur: 54.867,77.

7. Em 30.10.2015, deliberaram os três sócios, por unanimidade, que a gerência “de direito” ou formal passaria a ser exercida pelos respetivos cônjuges, FF, cônjuge de BB, GG, cônjuge de EE, e HH, cônjuge de AA,

8. continuando a gerência “de facto” da sociedade, com todas as decisões a esta gerência inerentes e necessárias, a ser exercida, pelo menos até ao exercício de 2019, pelos três sócios AA, BB e EE, em condições de paridade, atuando essencialmente e por acordo dos três sócios o primeiro no departamento financeiro e comercial, o segundo no departamento de desenvolvimento e projeto de automação e o terceiro no departamento de produção industrial dos equipamentos.

9. Os sócios BB e EE estão desavindos com o Autor.

10. Os sócios BB e EE pretendem assumir sozinhos a gestão da sociedade Ré e afastar o Autor da mesma.

11. Os sócios BB e EE intentaram em 2019 um procedimento cautelar de afastamento do sócio Autor das instalações da sociedade Ré, o qual foi julgado improcedente na 1ª instância e parcialmente procedente na 2ª instância, aí tendo sido decidido: “Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, dando provimento à apelação, revogam a decisão recorrida e em sua substituição julgam o procedimento cautelar parcialmente provado e procedente e determinam a seguinte providência cautelar: proibição do requerido de praticar quaisquer atos em representação da requerente, qualquer que seja a forma ou finalidade, designadamente celebrar negócios em seu nome ou contactar clientes da requerente, bem como de aceder às instalações da requerente e de usar ou aceder a hardware e software da requerente”, conforme documento 15 junto com a contestação e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.

12. As gerentes “de direito” FF e GG, cônjuges dos sócios BB e EE, por indicação destes, convocaram para o dia 18 de setembro de 2020, pelas 10h, na sede social da sociedade A..., Lda., uma assembleia geral ordinária com a seguinte ordem de trabalhos:

1. Deliberar sobre o Relatório de Gestão e as Contas apresentadas pela gerência, referentes ao exercício findo em trinta e um de dezembro de dois mil e dezanove;

2. Deliberar sobre a proposta de aplicação dos resultados líquidos, referentes ao exercício findo em trinta e um de dezembro de dois mil e dezanove;

3. Proceder à apreciação geral da gestão da sociedade, no exercício findo em trinta e um de dezembro de dois mil e dezanove, nos

termos do disposto no artigo 455º do Código das Sociedades;

4. Proceder à eleição dos gerentes da sociedade para o triénio 2020- 2022;

5. Outros assuntos.

13. As referidas FF e GG, por indicação dos seus maridos, os sócios BB e EE, convocaram esta assembleia com vista à aprovação do relatório de gestão e das contas apresentadas, bem como à aprovação da aplicação dos resultados líquidos obtidos pela sociedade Ré e ainda à eleição dos gerentes da sociedade para o triénio 2020/2022.

14. Nenhuma das cônjuges dos sócios, alguma vez até à propositura da presente ação, tomou qualquer decisão de gestão e/ou gerência, contactou com clientes, deu ordens a quaisquer funcionários, delineou estratégias económicas, etc.,

15. sendo que nenhuma delas se deslocava ou permanecia nas instalações da empresa para efeitos de gerência, limitando-se a assinar, sem qualquer análise crítica, os documentos que lhes eram entregues pelos sócios ou por determinação destes para vincular a sociedade Ré, interna e externamente.

16. No procedimento cautelar nº ..., do Juiz 1 do Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, BB e EE afirmaram caber-lhes a gerência de facto da sociedade.

17. Na assembleia referida em 12 e realizada em tal data, foi aprovado o ponto um da ordem de trabalhos, com os votos a favor de BB e EE e o voto contra do Autor.

18. No dia 17 de setembro de 2020, o Autor informou a Ré que pretendia consultar, na sede da sociedade, todos os documentos e informações preparatórias da assembleia geral.

19. Via e.mail, foi fornecido pela sociedade Ré ao Autor o relatório de gestão, sem qualquer documento de suporte.

20. Não foi possibilitado ao Autor, na sede da Ré e por esta, através das suas “gerentes de direito” FF e GG, a consulta de quaisquer documentos, como os relativos à prestação de contas, para verificar rubricas inseridas no referido relatório, tais como “gratificações de balanço”.

21. No início da assembleia geral ordinária, o Autor requereu: “Nos termos do artigo 290º do Código das Sociedades Comerciais, requeiro explicação da proposta sobre a gratificação de balanço a atribuir aos trabalhadores. O objeto destas gratificações de balanço será premiar os trabalhadores que colaboraram na obtenção dos lucros da empresa no ano de dois mil e dezanove, e não encobrir despesas não documentadas efetuadas em dois mil e vinte. Assim, pretendo saber como vão ser distribuídas essas gratificações, quais os critérios, e pretendo também ter acesso à lista discriminada dos trabalhadores e os respetivos valores distribuídos”, conforme documento n.º 4 junto com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

22. Nenhuma informação foi prestada, na sequência do pedido referido em 21.

23. Relativamente ao ponto dois da ordem de trabalhos, foi deliberado aprovar a proposta apresentada pelo sócio BB, de aplicação dos resultados líquidos, com os votos a favor dos sócios BB e EE e o voto contra do Autor.

24. A proposta aprovada decide que o resultado líquido da sociedade, que ascendeu a oitocentos e sessenta e três mil e quarenta euros e cinquenta e quatro cêntimos, seja aplicado em reservas livres,

25. e que 150.000 Euros desses resultados haviam sido afetados a gratificações de balanço destinadas ao pagamento da participação dos trabalhadores para os lucros da empresa.

26. Na indicada assembleia geral ordinária foi deliberado proceder à nomeação como gerentes das mulheres dos sócios BB e EE, FF e GG, respetivamente, no seguimento do ponto quatro da ordem de trabalhos.

27. Não foram previamente à assembleia geral ordinária de 18 de setembro de 2020 colocados à disposição do Autor os nomes das pessoas a propor para a gerência e as suas qualificações profissionais.

28. A nomeação, para o cargo de gerentes, das cônjuges dos sócios BB e EE, permite que estes continuem a gerir os destinos da Ré, como únicos e exclusivos gerentes “de facto”, sem qualquer intervenção e/ou sindicância do Autor.

29. O Autor AA exerceu a gerência “de facto” da sociedade Ré, nos termos referidos em 8 até final de 2018 e sem o acordo dos demais dois sócios, BB e EE, a partir desta data até à decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto em 14.1.2021 neste procedimento cautelar, altura em que deixou de a exercer.

30. Foi criado e tornado obrigatório um procedimento interno na sociedade Ré segundo o qual todos os pagamentos a efetuar a gerentes, sócios, trabalhadores e fornecedores, tinham que ser ordenados e/ou validados com a assinatura de, pelo menos, dois sócios ou duas gerentes.

31. Para esse efeito, reunidos os três sócios em 05.12.2018, foi unanimemente decidido que o pelouro financeiro da sociedade ficava, a partir desse momento, a cargo dos três sócios.

32. Por correio eletrónico que o sócio BB dirigiu a EE, AA e BB, em 01.01.2019, aquele comunicou que “vamos também passar a exercer as funções inerentes ao pelouro financeiro” a partir de 2.1.2019, mostrando-se tal email assinado pelos sócios BB e EE.

33. O procedimento cautelar não especificado referido em 11 e 16 correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 1, sob o n.º ..., sendo dependente de ação de exclusão judicial de sócio contra os aí requeridos AA e HH, tendo naquele a requerente A... deduzido os seguintes pedidos: “Ficar o 1.ºRequerido proibido de exercer concorrência com a Requerente, de forma direta ou indireta (…)” e “seja inibido de contactar e de prestar quaisquer serviços a clientes da Requerente, lhe seja vedado o acesso a hardware e software da Requerente, lhe seja vedada a celebração de quaisquer negócios jurídicos em nome da Requerente, lhe seja vedado exercer junto de terceiros quaisquer atos de representação da Requerente, lhe seja vedado o acesso às instalações da mesma e seja ordenada a apreensão de todos os documentos e o equipamento informático da Requerente que tem na sua posse.”.

34. Após recurso da decisão da 1ª Instância, foi proferido o acórdão referido em 11.

35. No domínio do mesmo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, foi decidido alterar e aditar factos (indiciariamente) provados, entre os quais constam os seguintes: «O requerido AA apropriou-se dos cheques n.º ..., ..., ..., sacados sobre uma conta da requerente na Banco 1..., que se encontravam pré-assinados por duas gerentes de direito, tendo levantado em numerário os montantes de € 5.000,00 através de cada um dos três primeiros cheques, e de € 6.300, através do último, num total de € 21.300,00, que utilizou para os fins que entendeu sem autorização e sem o conhecimento dos restantes sócios»; «O requerido AA aliciou e persuadiu clientes da requerente a contratarem com a B... o fornecimento de produtos produzidos pela requerente e pretendidos por aqueles, apresentando-lhes a B... como sociedade parceira da requerente A..., decidindo ele o valor pelo qual os produtos eram faturados pela requerente à B... e pelo qual esta os faturava ao cliente e obtendo para a sociedade da qual era único sócio as correspondentes vantagens patrimoniais»; «Com essa atuação, o requerido AA impediu a requerente A... de obter o lucro que foi obtido pela B... com a comercialização de produtos produzidos pela requerente, em prejuízo da requerente e dos seus dois outros sócios.»

36. O acórdão aludido no ponto anterior já transitou em julgado.

37. A ação principal n.º …, de exclusão judicial de sócio, mostra-se pendente e sem decisão de mérito proferida em 1ª instância.

38. Nesta ação, intentada por “A..., Lda.” contra AA e HH, foi deduzido pedido no sentido de ser o réu AA excluído de sócio da autora, ancorando, no essencial, a causa de pedir em alegada prática de atos que consubstanciarão “concorrência desleal”, através da constituição de outro ente societário, com a firma “B...”, tudo conforme teor da certidão junta com a contestação e que aqui se dá por integralmente reproduzida, para os devidos e legais efeitos.

39. Por deliberação aprovada em 18 de setembro de 2020 e levada a registo sob a Ap. ..., foi destituída a gerente “de direito” HH.

40. Mostra-se pendente processo crime no DIAP – 1.ª secção de Matosinhos, sob o n.º de processo ..., para onde também foi remetida para ser apensada a queixa apresentada pela Ré contra o aqui Autor por furto de documentos da sociedade Ré, conforme documentos n.ºs 12 (queixa por abuso de confiança) e 13 (queixa por furto de documentação da sociedade) juntos com a contestação e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, na decorrência de queixa apresentada pela aqui Ré A... contra, entre outros, o aqui autor AA, alegando factos suscetíveis de fazer este último incorrer em responsabilidade criminal pela prática de crimes de falsificação de documentos, furto e abuso de confiança.

41. No âmbito da assembleia geral extraordinária para o efeito convocada, que teve lugar em 15 de março de 2021, foi deliberada a exclusão judicial do Autor, com os seguintes fundamentos: “Da documentação em apreço e dos montantes encontrados nos dois referidos cofres que se encontravam na posse do sócio AA, conclui-se que o mesmo, desde data indeterminada mas que se crê ter sido a partir de dois mil e quinze/dois mil e dezasseis, criou à margem dos sócios BB e EE e das gerentes GG e FF, um esquema de reembolsos em dinheiro das compras feitas pelos trabalhadores da empresa, os quais adquiriam equipamentos ou outros bens para si próprios que pagavam aos fornecedores com meios financeiros da A... que aquele sócio lhes facultava, reembolsando em seguida a empresa do valor do bem adquirido deduzido do IVA. Tal esquema foi apelidado pelo sócio AA de "IVA extra" com o qual beneficiava os trabalhadores que entendia sem autorização da gerência ou dos outros sócios. _

Igualmente da documentação encontrada, verifica-se que emitiu do livro de cheques da empresa que se encontrava em seu poder, contendo cheques pré-assinados por duas gerentes, cinco cheques a seu favor nos montantes de mil oitocentos e oitenta e quatro euros e setenta cêntimos (€ 1.884,70) I cheque n° "..." (...), de seis mil e trezentos euros (€ 6.300,00) /cheque n° "... (...), de cinco mil euros (€ 5.000,00) /cheque n° "... (...), de cinco mil euros (€ 5.000,00) /cheque n° "... (...) e de cinco mil euros (€ 5.000,00) I cheque n° "..." (...), totalizando a quantia de vinte e três mil cento e oitenta e quatro euros e setenta cêntimos (€ 23.184,70), os quais levantou em dinheiro junto de agência da "Banco 1...", sem que para tal tivesse qualquer autorização da gerência ou dos seus sócios. _

Resulta também da documentação encontrada a criação de um conjunto de empréstimos a favor de alguns trabalhadores, com fundos da empresa, sem autorização prévia da gerência ou dos restantes dois sócios, tendo o sócio em causa emprestado milhares de euros a trabalhadores em prejuízo da empresa e dos seus sócios, como resultam das descritas declarações de dívida já aqui arroladas, tanto mais que tais verbas não foram mandadas inscrever pelo sócio em causa na contabilidade como empréstimos a trabalhadores e mesmo a si próprio que também deles beneficiou, mas na rubrica contabilística "conta de sócios" criando uma dívida pessoal dos outros dois sócios para com a empresa, o que fez sem a autorização daqueles sócios e com fundos da empresa e, igualmente, sem autorização para tal da gerência.

Com os comportamentos descritos, o sócio AA visou a obtenção de benefícios diretos para si, através dos cheques que emitiu a seu favor e dos empréstimos dos quais foi beneficiário, bem como visou obter benefícios indiretos para si através do ascendente que logrou criar sobre os trabalhadores a quem concedia empréstimos com o dinheiro da empresa e a quem beneficiava com o mecanismo que criou e denominou de "IVA extra".

Constata-se também da análise dos registos e inscrições efetuados nos documentos em causa e dos montantes em numerário ali encontrados que, na generalidade, não existe registo de entrada nas contas da empresa dos reembolsos parciais de empréstimos feitos pelos trabalhadores, nem registo do depósito em contas da empresa dos montantes entregues pelos trabalhadores a título de preço dos equipamentos que adquiriram para si, mas pagos pela empresa por iniciativa do sócio AA. ---------

Com os procedimentos descritos, o sócio AA criou uma verdadeira "contabilidade paralela" que lhe permitiu utilizar a seu favor a liquidez que dessa forma obteve ao longo dos últimos anos à custa do prejuízo da empresa e dos seus dois outros sócios.

Os comportamentos graves acabados de descrever constituem por parte do sócio em causa, condutas profundamente desleais para com a empresa, a sua gerência e os restantes sócios. Os mesmos perturbam gravemente o funcionamento da mesma, colocando em causa de forma irreparável a confiança mínima necessária que deve existir entre sócios para que convivam como cotitulares de participações sociais numa sociedade comercial, para mais numa empresa como a A... com apenas três sócios e em que cada um tem uma participação de trinta e três vírgula trinta e três por cento no capital social.--------------------

Na realidade, o sócio AA comporta-se como se fosse titular da totalidade do capital social da A..., dispondo dos dinheiros sociais como se de seus se tratassem, à completa revelia da gerência da empresa e dos seus dois sócios, criando prejuízos para a mesma e para os sócios BB e EE, tornando inviável a sua permanência na empresa como sócio. -----------------------------

Com efeito, a subtração e apropriação ilícitas de dinheiros em proveito próprio ou para lhe dar o destino que bem entende, constituem práticas desleais para com a sociedade e os restantes sócios e perturbam gravemente o funcionamento da empresa, causando-lhe um prejuízo patrimonial atual, direto e efetivo, traduzido nos montantes em dinheiro objeto de desvio. --------------------- O sócio EE expôs: _

"Declaro que participei na diligência de abertura dos dois cofres que se encontravam no escritório que eram utilizados na empresa pelo sócio AA e que se encontravam na sua posse, tendo, posteriormente, com o sócio BB procedido à contagem do numerário e à análise da documentação inventariada na data em que os cofres foram abertos. --------------------

Mais declaro subscrever tudo o mais declarado pelo sócio BB. -

De seguida, disse o Presidente da Assembleia geral: _

"Feitas estas considerações, coloco à votação o ponto único da ordem de trabalhos".---

Os sócios BB e EE votaram a favor. -----------------

Foi, assim, o ponto único/deliberação proposto e aprovado por unanimidade, com os fundamentos constantes das declarações dos dois sócios presentes nesta Assembleia Geral, tendo, consequentemente, sido deliberada a exclusão judicial do sócio Anulação de Deliberações Sociais AA.”, cfr. documento n.º 21 (ata da assembleia 15.03.2021) junto com a contestação e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

42. Em 22.06.2020, foram remetidos, pela contabilidade (C...) aos três sócios AA, BB e EE vários documentos contabilísticos e demonstrações financeiras, nomeadamente o balanço e demonstração de resultados do exercício de 2019.

43. O Autor comunicava regularmente com o gabinete de contabilidade da sociedade Ré, designadamente, com o seu gerente Dr. CC e com a Dra. II, servindo esta última de interlocutora da empresa de contabilidade com a sociedade Ré.

44. Pelo menos até 31.07.2020, o Autor recebeu do gabinete de contabilidade da Ré toda a documentação relativa ao exercício de 2019, como resulta das comunicações de correio eletrónico.

45. O gabinete de contabilidade comunicava regulamente com a funcionária JJ, que na Ré respondia perante o Autor, sendo que esta tratava, também, dos assuntos contabilísticos da sociedade B....

46. O Autor recebeu a informação contabilística da Ré através do gabinete de contabilidade, tendo ainda acesso direto a toda a informação e documentação contabilística que existia nos escritórios daquela e se encontrava à sua guarda.

47. As gratificações de balanço atribuídas aos trabalhadores constantes das contas do exercício de 2019 referem-se aos pagamentos a estes efetuados na sequência da sua colaboração na obtenção dos lucros da empresa em tal ano, estando sujeitas a tributação em IRS sobre rendimentos da categoria A (trabalho dependente).

48. Por correio eletrónico de 08.07.2020, recebido da empresa que assegura a contabilidade da A... –, os sócios AA, BB e EE foram informados que “a conta 2532 está a débito no montante de €764.377,42. De acordo com as normas do SNC esta conta não pode ter saldo devedor. Na minha opinião deveríamos transferir para a conta 26 – acionistas / sócios, 268 Outras Operações. Aguardo o vosso comentário. Obrigada”.

49. Até 31.12.2018, a gestão do pelouro contabilístico e financeiro da sociedade Ré competia apenas ao sócio Autor, AA, sendo o mesmo o único responsável por todas as ordens de pagamento da Ré até àquela data.

50. A Ré, por decisão de 6 de outubro de 2020, suspendeu preventivamente a trabalhadora JJ do exercício de funções na empresa no âmbito de um processo de inquérito que culminou com o seu despedimento com justa causa.

51. Na sequência do referido em 48, BB questionou a empresa de contabilidade da Ré – C... -, nos seguintes termos: “Um - Daquilo que poderei deduzir das suas palavras, os sócios terão uma dívida para com a sociedade de setecentos e sessenta e quatro mil trezentos e setenta e sete euros e quarenta e dois cêntimos (€764.377,42). Estarei a interpretar bem? E essa dívida é igual para os três? Como foi criada? DOIS – A que título seria transferida a verba (dívida) para a conta 26, 268? E quais as implicações fiscais que tal poderá ter?”.

52. Convocada e realizada assembleia geral da Ré no dia 24 de setembro de 2020, pelas 10 horas e 30 minutas, da respetiva ata, junta com a contestação como documento n.º 32, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, consta, ademais, que a C... forneceu os seguintes esclarecimentos ao pedido referido em 51: Este valor foi criado nos últimos anos tendo em linha de conta a dinâmica habitual de levantamento de valores e transferências de valores sem o respetivo suporte documental e que por diversas vezes foi debatido em reuniões. Assim, para todos os efeitos, a menos que exista suporte documental para o mesmo, os sócios são responsáveis pela devolução destes montantes nas proporções que acharem razoável, no limite, tendo em linha de conta as quotas de sócios.” e “conforme referido a transferência para a conta proposta seria a título de reclassificação, sendo as implicações fiscais as já conhecidos face à Inspeção da Autoridade Tributária última ocorrida na empresa (…)”.

53. Da mesma ata consta, ainda, que: “… durante anos foram ordenados levantamentos e transferências de valores sem qualquer suporte documental, os quais foram transformados contabilisticamente em dívida dos sócios à empresa, sem que, no entanto, os sócios BB e EE tenham recebido da empresa o correspondente a “um terço” cada um daquele montante de setecentos e sessenta e quatro mil trezentos e setenta e sete euros e quarenta e dois cêntimos (€ 764.377,42) inscrito na conta “vinte e cinco” ou qualquer montante que justifique uma sua dívida para com a empresa.”.

54. O Autor conduziu e presidiu a assembleias gerais realizadas para deliberar sobre as contas de diversos exercícios, antes do exercício de 2019, sem que tenha proposto aos outros sócios a distribuição de lucros nas assembleias gerais referidas nos Documentos 36 e 37 juntos com a contestação e que aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos.

55. HH assumiu que nunca participou ativamente na vida da sociedade A..., conforme teor da carta enviada às Senhoras FF e GG, datada de 06.08.2020, junta como documento 33 com a contestação e que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais.

56. HH afirmou, em “comunicado” por si e pelo ora Autor assinado, que “as gerentes nomeadas formalmente (…) respetivas esposas (…) não estão, nem nunca estiveram na empresa, nem nada, nem nunca decidiram ou decidem, além do mais, por total desconhecimento da empresa e seu funcionamento (…)”, conforme documento n.º 34 junto com a contestação e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

57. Correu termos o Processo n.º ... no Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 3, com as mesmas partes desta ação, em que o Autor veio requerer a nulidade da deliberação da Regulamentação aprovada na assembleia geral extraordinária de 18.09.2020, tendo sido proferido saneador sentença em 06.10.2021 (referência 428724779), com o seguinte dispositivo: “Julgam-se feridos de anulabilidade e como tal são declarados anulados os seguintes segmentos da Regulamentação aprovada na assembleia geral extraordinária de 18.09.2020: aqueles em que se receitua que o direito à informação, previsto na Lei, será concretizado por solicitação escrita dirigida à Gerência, sendo que tal direito será satisfeito no prazo e pela forma que a Gerência determinar, e que em Assembleia Geral pode sempre ser livremente solicitada informação à gerência ou a pessoa por esta mandatada, Anulação de Deliberações Sociais sendo que tal direito será satisfeito, no prazo e pela forma que a Gerência reputar adequado e razoável, de acordo com os limites impostos pela boa-fé; no mais se absolvendo a sociedade requerida do pedido deduzido”.- consulta do processo via citius.

E foram julgados não provados os seguintes factos:

a) O Autor, à data de propositura da presente ação, com o acordo dos demais sócios, exerce a gerência de facto da Ré sociedade A..., LDA..

b) O Autor começou por exercer a atividade comercial referida em 2 em nome individual.

c) O referido em 9 sucede desde, pelo menos, o final do ano de 2017.

d) Após terem tomado conhecimento da decisão do Tribunal de indeferimento do procedimento cautelar referido em 11, os sócios BB e EE engendraram novo plano para afastar o Autor dos desígnios da sociedade.

e) As deliberações de aprovação de contas do exercício de 2019 e consequente aplicação dos resultados líquidos, aliadas à deliberação de nomeação como gerentes das cônjuges dos sócios BB e EE têm como exclusiva intenção causar ao Autor um dano patrimonial, traduzido na impossibilidade de receber os lucros existentes na empresa.

IV-MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO:

Nos termos do disposto no art. 662.º, n.º 1 do CPCivil “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

À luz deste preceito, “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.

O Tribunal da Relação deve, pois, exercer um verdadeiro e efetivo segundo grau de jurisdição da matéria de facto, sindicando os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos impugnados diversa da recorrida, e referenciar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa atividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respetivas exceções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjetiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.

Não se poderá porém, olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação.

Com efeito, a atividade do julgador na valoração da prova pessoal deve atender a vários fatores, alguns dos quais – como a espontaneidade, a seriedade, as hesitações, a postura, a atitude, o à-vontade, a linguagem gestual dos depoentes – não são facilmente ou de todo apreensíveis pelo tribunal de recurso, mormente quando este está limitado a gravações meramente sonoras relativamente aos depoimentos prestados.

Por outro lado, há que atender que a possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta pois tal só é admissível quando os meios de prova reanalisados não deixem outra alternativa, ou seja, em situações que, manifestamente, apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo, melhor dizendo, “imponham decisão diversa”.

Isto posto, importa agora analisar os fundamentos invocados pela Apelante para ocorrência de erro de julgamento da matéria de facto e os concretos pontos impugnados.

A discordância da Apelante quanto á matéria de facto julgada provada incide apenas sobre o facto 10 dos factos provados, tem o seguinte teor:

10. Os sócios BB e EE pretendem assumir sozinhos a gestão da sociedade Ré e afastar o Autor da mesma.

Pretende a apelante que este facto passe a ter a seguinte redação:

«A partir de 01.01.2019, os sócios BB e EE, titulares de 66,66% do capital social da Ré, afastaram o Autor da gerência financeira e contabilística – a qual até então vinha sendo exercida por este – por perda de confiança, na sequência de factos imputados ao Autor que motivaram procedimento cautelar e ação de exclusão de sócio.»

Indicam os seguintes meios de prova justificativos da alteração: documentos juntos a fls. (v.g. requerimentos do procedimento cautelar n.º..., referidos nos factos 11 e 33 a 41.), evidenciando a existência de litígio judicial e a perda de confiança.

Depoimentos de BB e EE, ambos corroborando que, a partir de 2019, retiraram do Autor da gestão em exclusivo do pelouro financeiro em virtude do comportamento descrito nos autos.

Como dissemos já a modificação da matéria de facto apenas poderá ocorre em situações que, manifestamente, apontem em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo, melhor dizendo, “imponham decisão diversa”.

Ora, por um lado, o facto provado em 10, no sentido que os sócios BB e EE pretendem assumir sozinhos a gestão da sociedade Ré e afastar o Autor da mesma, mostra-se cabalmente demonstrado através da deliberação daqueles sócios no âmbito da assembleia geral extraordinária para o efeito convocada, que teve lugar em 15 de março de 2021, em que deliberaram a exclusão judicial do Autor, (facto supra 41).

Por outro lado, a sociedade ora apelante instaurou contra o Autor o procedimento cautelar nº ..., do Juiz 1 do Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, visando a exclusão judicial de sócio do autor, tendo BB e EE aí afirmado caber-lhes a gerência de facto da sociedade. (facto supra 16), o que significa que estes sócios gerentes de facto da sociedade requerente da exclusão do autor, pretendem tal afastamento.

O mesmo se diga mutatis mutandi relativamente à instauração pela sociedade ora apelante, da qual aqueles são sócios na proporção de 66,66% do capital, de ação de exclusão judicial de sócio – que corre termos sob o P n.º ....

Isto para dizer que o facto provado 10 mostra-se cabalmente demonstrado, ante a prova produzida em juízo, inexistindo error in iudicando na apreciação crítica da prova feita na sentença.

Por outro lado, o “afastamento do Autor da gerência financeira e contabilística – a qual até então vinha sendo exercida por este – por perda de confiança, na sequência de factos imputados ao Autor que motivaram procedimento cautelar e ação de exclusão de sócio”, que apelante pretende ver vertida no facto 10, constitui factualidade diversa, mas que se mostra já acolhida nos seguintes factos provados, demonstrativos da perda de confiança dos sócios BB e EE, perante o sócio AA, que era quem tinha a seu cargo até então o pelouro financeiro, como aqueles referiram no seu depoimento, sendo que os supra identificados processo judiciais, foram o corolário lógico desta perda de confiança, tendo o procedimento cautelar sido instaurado ainda ano de 2019, como do número processual resulta:

30. Foi criado e tornado obrigatório um procedimento interno na sociedade Ré segundo o qual todos os pagamentos a efetuar a gerentes, sócios, trabalhadores e fornecedores, tinham que ser ordenados e/ou validados com a assinatura de, pelo menos, dois sócios ou duas gerentes.

31. Para esse efeito, reunidos os três sócios em 05.12.2018, foi unanimemente decidido que o pelouro financeiro da sociedade ficava, a partir desse momento, a cargo dos três sócios.

32. Por correio eletrónico que o sócio BB dirigiu a EE, AA e BB, em 01.01.2019, aquele comunicou que “vamos também passar a exercer as funções inerentes ao pelouro financeiro” a partir de 2.1.2019, mostrando-se tal email assinado pelos sócios BB e EE,

49. Até 31.12.2018, a gestão do pelouro contabilístico e financeiro da sociedade Ré competia apenas ao sócio Autor, AA, sendo o mesmo o único responsável por todas as ordens de pagamento da Ré até àquela data.

Desta factualidade decorre que foi intenção dos sócios BB e EE passarem a exercer as funções inerentes ao pelouro financeiro a partir de 2.1.2019, sendo que da ata mencionada no facto 41, constam elencadas as razões subjacentes ao pretendido afastamento do autor da sociedade.

Daí que não se vislumbre qualquer necessidade de alteração da factualidade provada, improcedendo pois, a impugnação da matéria de facto nesta parte, face à ausência de erro de julgamento na apreciação da prova.

Ademais pretende a apelante que sejam aditados dois novos factos ao elenco dos factos provados:

Novo Facto 54-A, com a seguinte redação:

«No ano de 2017, tendo a Ré apresentado lucro superior ao do exercício de 2019, o sócio BB solicitou ao Autor a distribuição de lucros, de modo a auxiliar aquele na aquisição de habitação própria. O Autor, que à data detinha o pelouro financeiro e contabilístico, recusou propor essa distribuição de lucros em assembleia, justificando que o dinheiro deveria permanecer na sociedade.»

Indica para fundamentar a prova deste factos, o depoimento da testemunha BB, onde o depoente descreve o pedido de distribuição de lucros que fez ao Autor em 2017 e a recusa deste, bem como o motivo invocado e os documentos n.os 36 e 37 juntos com a contestação, que evidenciam as diversas atas em que nunca foi deliberada a distribuição de resultados, apesar de, em 2017, o exercício ter gerado lucro significativo.

Desde logo a Apelante não justifica a necessidade de aditamento destes factos nem a relevância dos mesmos na decisão a proferir.

E a verdade é que, a matéria de facto provada contempla já o facto provado sob o nº 54, (alegado pela Ré para demonstrar o eventual abuso de direito), o qual tem o seguinte teor:

54. O Autor conduziu e presidiu a assembleias gerais realizadas para deliberar sobre as contas de diversos exercícios, antes do exercício de 2019, sem que tenha proposto aos outros sócios a distribuição de lucros nas assembleias gerais referidas nos Documentos 36 e 37 juntos com a contestação e que aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos.

Não se vê assim qualquer necessidade de aditamento factual, aos factos selecionados na sentença tidos por relevantes para a decisão a proferir.

Improcede por esta razão o aditamento requerido.

Com efeito, de acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte (cfr. arts. 6.º, n.º 1, 30.º, n.º 2, e 130.º, do CPC).

Pretende ainda a apelante o aditamento do “Novo Facto 58 (a inserir após o facto 57 já dado como provado”:

«A deliberação de aplicação dos resultados do exercício de 2019, aprovada na assembleia de 18 de setembro de 2020, visou, por um lado, atribuir uma parte desses resultados aos trabalhadores – a título de “gratificações de balanço” relativas ao seu contributo na obtenção dos lucros –, e, por outro lado, afetar o remanescente a reservas livres, sem que nenhum sócio recebesse qualquer quantia a título de dividendos.»

Indica os seguintes meios de prova: depoimento da testemunha CC, técnico de contabilidade da sociedade, esclarecendo que as “gratificações de balanço” eram prática recorrente de remuneração variável aos trabalhadores, sem atribuição de vantagem imediata aos sócios; depoimentos das testemunhas DD (revisor oficial de contas), BB e EE, confirmando que o montante não distribuído se manteve como reserva livre da sociedade, não havendo qualquer distribuição de resultados aos sócios e o confronto com a ata da assembleia de 18.09.2020 (factos 23 e 24 dados como provados) e documentos contabilísticos da Ré.

Acontece que também esta matéria factual se mostra já suficientemente retratada na matéria de facto provada, nos seguintes factos que foram julgados provados:

23. Relativamente ao ponto dois da ordem de trabalhos, foi deliberado aprovar a proposta apresentada pelo sócio BB, de aplicação dos resultados líquidos, com os votos a favor dos sócios BB e EE e o voto contra do Autor.

24. A proposta aprovada decide que o resultado líquido da sociedade, que ascendeu a oitocentos e sessenta e três mil e quarenta euros e cinquenta e quatro cêntimos, seja aplicado em reservas livres,

25. e que 150.000 Euros desses resultados haviam sido afetados a gratificações de balanço destinadas ao pagamento da participação dos trabalhadores para os lucros da empresa.

Improcede pelo exposto, a alteração da factualidade provada.

V-APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:

5.1.Do conflito de interesses

No ponto 2 da ordem de trabalhos da assembleia geral ordinária da sociedade A..., Lda., constava o seguinte: 2. Deliberar sobre a proposta de aplicação dos resultados líquidos, referentes ao exercício findo em trinta e um de dezembro de dois mil e dezanove.

Da matéria de facto resulta que ficou provado que, relativamente a este ponto dois da ordem de trabalhos, foi deliberado na assembleia geral da sociedade Ré realizada em 18 de setembro de 2020, aprovar a proposta apresentada pelo sócio BB, de aplicação dos resultados líquidos, com os votos a favor dos sócios BB e EE e o voto contra do Autor.

A proposta aprovada decide que o resultado líquido da sociedade, que ascendeu a oitocentos e sessenta e três mil e quarenta euros e cinquenta e quatro cêntimos, seja aplicado em reservas livres, e que 150.000 Euros desses resultados tivessem sido afetados a gratificações de balanço destinadas ao pagamento da participação dos trabalhadores para os lucros da empresa.

Na sentença recorrida, foi declarada a anulabilidade desta deliberação social tomada na assembleia geral da sociedade Ré realizada em 18 de setembro de 2020, através da qual o resultado líquido do exercício de 2019, no valor de oitocentos e sessenta e três mil e quarenta euros e cinquenta e quatro cêntimos, foi aplicado em reservas livres.

O fundamento da anulação consistiu na constatação do seguinte: “não existir conflito de interesses na votação da deliberação relativa ao ponto Dois da Ordem de trabalhos, pelo que não estava o sócio ora Autor impedido de votar nos termos do art. 251º do CSC.

Com o que, a deliberação mostra-se votada de forma favorável por sócios representativos de 66,66% do capital social e de forma desfavorável por sócio representativo de 33,33% do mesmo capital.

Temos, assim, por certo, que a deliberação aprovada em 18 de setembro de 2020, supra referida nos factos provados 23 e 24 se encontra viciada (porquanto se contentou o colégio, por erro de direito, com uma maioria deliberativa inferior à legalmente imposta), sendo anulável”.

Discorda a Apelante desta decisão, defendendo em suma que, o artigo 251.º, n.º 1, al. b) do CSC estatui que o sócio se encontra impedido de votar quando, relativamente à matéria em discussão, exista conflito de interesses entre este e a sociedade.

À data da assembleia de 18.09.2020, o Autor encontrava-se em litígio judicial contra a sociedade, nomeadamente em ação de exclusão de sócio (factos 33 a 38) e procedimento cautelar (facto 11), imputando-se-lhe condutas de apropriação de cheques, desvio de clientes e outros atos lesivos, incluindo condutas de natureza criminosa descritas na fundamentação.

Tais circunstâncias, segundo a apelante, caracterizam evidente conflito de interesses, o que, nos termos da jurisprudência dominante (v.g. Ac. TRP de 10.12.2019, proc. n.º 3735/17.5T8VNG.P1), acarreta a nulidade do voto emitido e a sua exclusão para efeitos de quórum deliberativo.

Sem a consideração do voto do Autor, verifica-se que a deliberação em apreço – aprovada pelos dois sócios maioritários (66,66%) – satisfaz a exigência legal, incluindo a maioria qualificada do art.º 217.º CSC.

Vejamos se é assim.

Porque está em causa uma deliberação relacionada com a repartição dos lucros (deliberando a sociedade não os distribuir pelos sócios, mas aplicá-los em reservas livres), por pertinente, transcreve-se aqui a sentença, na parte em que se refere ao direito aos lucro por parte dos sócios.

Atenta a economia desta ação, enxertando aqui um novo parágrafo, diremos que os sócios das sociedades têm direito a quinhoar nos lucros (arts. 21º, n.º 1, al. a) e 22º do CSC): lucros finais ou de liquidação e lucros periódicos ou de exercício. Quando se fala em direito ao dividendo, têm-se em vista, em regra, os lucros de exercício.

Ao tratar do direito aos lucros, a doutrina distingue três direitos que importa considerar separadamente: o direito ao fim de lucro, o direito aos lucros não deliberados e o direito aos lucros deliberados (Luís Brito Correia, Direito Comercial Sociedades Comerciais, Volume II, página 310).

O direito ao fim de lucro significa o direito a que a sociedade oriente a sua atividade em ordem a obter lucros – mas não a que a sociedade tenha efetivamente lucros, visto que estes são por natureza aleatórios, dependendo muitas vezes de fatores independentes da vontade da sociedade. Decorre do próprio conceito de sociedade (art. 980º do CC).

A lei não exige que todos e cada um dos atos da sociedade sejam lucrativos, admitindo mesmo que a sociedade faça doações ou liberalidades “que possam ser consideradas usuais” (art. 6º, n.º 2 do CSC), isto é, desde que elas se integrem no conjunto da sua atividade e no espírito lucrativo que a deve guiar. De igual modo, a lei não impõe uma determinada política de lucro, sendo a sociedade, através dos seus órgãos, livre para escolher a sua política de obtenção de lucros. Porém, os administradores podem ser responsabilizados se não agirem com a diligência devida e, por isso, causarem culposamente danos à sociedade (arts. 64º e 72º a 82º do CSC).

O direito aos lucros não deliberados é o direito que os sócios têm coletivamente de dispor dos lucros realizados em cada exercício. Exercem-no, em primeiro lugar, mediante a apreciação das contas do exercício (em regra, anual), que é da competência dos sócios em todos os tipos de sociedades comerciais, com exceção das sociedades anónimas com conselho geral. Na verdade, só há direito aos lucros quando sejam apurados lucros; e estes só se consideram juridicamente apurados depois de aprovadas as contas do exercício (a distribuição de lucros que não correspondam a resultados apurados é um ato ilícito, por cujos prejuízos são responsáveis os gerentes, administradores ou diretores - art. 72º do CSC).

Exercem-no, em seguida, mediante deliberação sobre a aplicação da totalidade ou de parte dos lucros apurados a reservas facultativas ou à sua distribuição pelos sócios, que é sempre da competência dos sócios (arts. 66º, n.º 2, al. f), 189º, n.º 3, 246º, n.º 1, al. e), 376º, n.º 1, als. a) e b), 441º, al. f) e 451º a 455º) (ob. e autor citados, pág. 311).

A doutrina discute se se trata dum verdadeiro direito a uma quota parte dos lucros, ou de um direito abstrato, ou antes de uma mera expectativa jurídica, ou até apenas de um interesse juridicamente protegido.

Parece dever entender-se que, quando deliberam sobre a distribuição dos lucros apurados (optando por distribuí-los ou retê-los na sociedade, em maior ou menor medida), os sócios estão a agir como órgãos da sociedade, sem ignorarem, todavia, os seus legítimos interesses pessoais (extrassociais).

Não têm ainda um direito adquirido sobre o seu quinhão nos lucros ou sequer sobre uma quota indivisa dos lucros. Têm apenas uma expectativa jurídica.

Uma parte dos lucros do exercício apurados deve ser retida, para formar ou reconstituir reservas impostas por lei (nomeadamente a reserva legal – artigos 218º e 295º do CSC) ou pelo contrato ou para cobrir prejuízos transitados (art. 33º do CSC). Só a parte restante pode ser distribuída – o lucro distribuível.

Como regra, os sócios têm direito a que lhes sejam atribuídos os lucros de cada exercício, tal como resultam das contas aprovadas, excetuada a parte destinada a reserva legal (arts. 217º e 294º do CSC).

Mas permite-se que o contrato de sociedade, ou deliberação dos sócios tomada por três quartos dos votos, estabeleça que seja retida uma parte maior dos lucros, ou mesmo a totalidade (artigos 217º, n.º 1 e 294º, n.º 1 do CSC).

Este regime foi introduzido pelo D.L. n.º 280/87, de 8.7., por influência das críticas dirigidas ao regime constante da versão original do CSC. Esta era mais favorável aos sócios minoritários, pois, no silêncio do contrato, só permitia a retenção de mais de metade dos lucros mediante deliberação unânime dos sócios (que é difícil de conseguir em sociedades com elevado número de sócios ou quando há situações de conflito).

No que respeita ao direito aos lucros deliberados, uma vez aprovadas as contas (e consequentemente apurado o quantitativo dos lucros) e deliberada a distribuição de certa parte (ou da totalidade) dos lucros apurados, o sócio tem um direito subjetivo à quota parte que lhe couber nesses lucros. Trata-se aqui de um direito extrassocial ou, melhor, de um direito social adquirido, inderrogável por nova deliberação dos sócios.

A parte que cabe a cada sócio nos lucros a distribuir é a que resultar de preceito especial ou tiver sido estipulada no contrato de sociedade e, na falta de estipulação ou preceito especial, é a proporcional ao valor nominal das respetivas participações no capital (art. 22º, n.º 1 do CSC), sendo nula a cláusula pela qual a divisão de lucros e perdas é deixada ao critério de terceiros (art. 22º, n.º 4 do CSC).”

Dispõe o art. 217º, n.º 1 do CSC. que, “salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, não pode deixar de ser distribuído aos sócios metade do lucro do exercício que, nos termos desta lei, seja distribuível”.

Uma vez que a deliberação em causa foi aprovada apenas com os votos dos sócios BB e EE, titulares de quotas representativos de 66,66% do capital social, os votos mostram-se insuficiente para alcançar a maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social.

Só assim não será se, tal como pretende a sociedade apelante, se entender que o sócio representativo de 33,33% do mesmo capital, o sócio aqui apelado, se encontra impedido de participar na votação por se encontrar em “conflito de interesses” com a sociedade e como tal, impedido de votar, nos termos do disposto no artigo 251º do CSC.

A propósito, pode ler-se no art. 251º do CSC o seguinte:

1 - O sócio não pode votar nem por si, nem por representante, nem em representação de outrem, quando, relativamente à matéria da deliberação, se encontre em situação de conflito de interesses com a sociedade. Entende-se que a referida situação de conflito de interesses se verifica designadamente quando se tratar de deliberação que recaia sobre:

a) Liberação de uma obrigação ou responsabilidade própria do sócio, quer nessa qualidade quer como gerente ou membro do órgão de fiscalização;

b) Litígio sobre pretensão da sociedade contra o sócio ou deste contra aquela, em qualquer das qualidades referidas na alínea anterior, tanto antes como depois do recurso a tribunal;

c) Perda pelo sócio de parte da sua quota, na hipótese prevista no artigo 204.º, n.º 2;

d) Exclusão do sócio;

e) Consentimento previsto no artigo 254.º, n.º 1;

f)Destituição, por justa causa, da gerência que estiver exercendo ou de membro do órgão de fiscalização;

g) Qualquer relação, estabelecida ou a estabelecer, entre a sociedade e o sócio estranha ao contrato de sociedade.

2 - O disposto nas alíneas do número anterior não pode ser preterido no contrato de sociedade. (o sublinhado é nosso).

Há ainda que ter em consideração o disposto no art. 386º, n.º 5 do CSC, por remissão do art. 248º, n.º 1, do mesmo diploma legal: Quando a lei ou o contrato exijam uma maioria qualificada, determinada em função do capital da sociedade, não são tidas em conta para o cálculo dessa maioria as ações cujos titulares estejam legalmente impedidos de votar, quer em geral quer no caso concreto, nem funcionam, a não ser que o contrato disponha diferentemente, as limitações de voto permitidas pelo artigo 384.º, n.º 2, alínea b).

Vejamos agora o que deve entender-se por “conflito de interesses” para efeitos do art.251º do CSC.

Segundo Raul Ventura[1], existe uma situação de conflito de interesses, quando estes “são opostos, de tal modo que um deles não possa ser satisfeito sem o sacrifício do outro” ou que “quando existe possibilidade de a deliberação satisfazer o interesse particular do sócio em detrimento comum”.
Segundo Coutinho de Abreu[2], “Relativamente a certo assunto sujeito a deliberação, um sócio está em situação de conflito de interesses com a sociedade quando no caso haja divergência de princípio entre o interesse (objetivamente avaliado) do sócio e o interesse (objetivamente avaliado também) da sociedade - interesse comum a todos os sócios enquanto tais - convindo, portanto, ao sócio uma deliberação orientada em determinado sentido e à sociedade uma deliberação orientada em sentido diferente”.
Para Raúl Ventura[3] existe uma situação de conflito de interesses, quando estes “são opostos, de tal modo que um deles não possa ser satisfeito sem o sacrifício do outro”, ou “quando existe possibilidade de a deliberação satisfazer o interesse particular do sócio em detrimento comum”.

A lei visa, com esta norma, neutralizar o perigo de adoção de deliberações contrárias ao interesse social por determinação ou influência do voto de sócio portador de interesse particular divergente.

A lei não se basta, portanto, com mecanismos reativos, designadamente a anulabilidade das deliberações abusivas que atribuam vantagens especiais aos sócios em situação de conflito de interesses. Com o impedimento de voto, ela intenta prevenir o risco de eles serem especialmente avantajados em detrimento da sociedade. O impedimento de voto é instrumento preventivo que atua no procedimento deliberativo; a anulabilidade de deliberação abusiva é instrumento reativo que atua sobre o conteúdo deliberativo”.[4]

Subscrevemos aqui o entendimento que tem sido veiculado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sentido que, a existência de um conflito de interesses, para além das hipóteses expressamente elencada nas alíneas do n.º 1 do art. 251.º do CSC, haverá de apurar-se ao nível do caso concreto, pela ponderação objetiva de toda a factualidade relevante. [5]

Atendendo-se às circunstâncias próprias de cada caso concreto, objetivamente ponderadas, poderá chegar-se à conclusão de que em determinado tipo de casos existe conflito de interesses, que obsta a que um sócio vote a deliberação, mas que noutro tipo de casos esse impedimento não existe.

Conforme resulta da factualidade provada, na situação em apreço, sabemos que o Autor e os demais sócios da sociedade Ré se encontram desavindos; sabemos, ainda, que já em data posterior à da assembleia geral convocada nestes autos, mais concretamente em 15 de março de 2021, os demais dois sócios aprovaram uma deliberação de exclusão judicial do sócio Autor da sociedade Ré, estando a correr ação de exclusão deste mesmo sócio Autor desde 2019, tendo corrido anteriormente procedimento cautelar, com decisão de indeferimento na primeira instância mas de procedência parcial na 2ª instância.

Foi ainda apurada ao longo da audiência de julgamento a pendência, desde 2023, de ação instaurada pela sociedade ora Ré contra, ademais, o sócio ora Autor, onde se mostra peticionada a condenação deste numa indemnização àquela, assente na prática de atos lesivos do património desta.

Resulta, ainda, dos factos provados, ter a sociedade ora Ré instaurado contra, ademais, o sócio ora Autor, procedimento criminal (facto provado 40).

Face a esta factualidade, na sentença recorrida, o tribunal entendeu não haver conflito de interesses pela seguinte razão: “O que nos refere o art. 251º, n.º 1 do CSC, nas suas diversas alíneas, são deliberações onde existe conflito de interesses entre o sócio e a sociedade; a deliberação aprovada na assembleia geral de 18 de setembro de 2020, sob o ponto Dois da ordem de trabalhos, não se reconduz a nenhuma das aqui exemplificativamente indicadas.

E não se entende que se subsume à previsão geral contida no n.º 1 referido.

“Está em causa, insiste-se, a deliberação sobre a aplicação do resultado líquido do exercício de 2019. O ora Autor é (era à data da deliberação questionada) sócio da sociedade Ré. E se é certo que a sociedade Ré pretende vê-lo excluído desta qualidade de sócio, tendo aprovado em 15.3.2021 deliberação de exclusão e instaurado ação judicial com o mesmo propósito, ainda pendente, apenas após a efetiva exclusão perde o ora Autor tal qualidade e, consequentemente, todos os direitos e obrigações dos sócios.

Em 18 de setembro de 2020, o ora Autor era sócio da sociedade Ré e assistiam-lhe todos os direitos inerentes a esta qualidade, podendo exercê-los.

Saber se o ora Autor foi posteriormente (à assembleia aqui em causa) ou será em ação judicial instaurada excluído não o coloca em situação de conflito de interesses relativamente à deliberação em apreço.

Tal como não o coloca em tal situação a meramente alegada prática de atos lesivos do património da sociedade Ré, no ano de 2019, nem sequer a instauração – já em 2023 – de ação de indemnização, pela sociedade Ré contra si, por tais alegados atos lesivos causadores de “elevados” prejuízos patrimoniais.

Pretendendo a sociedade Ré acautelar esse seu futuro e eventual direito a ser indemnizada, pelo ora Autor, através do valor a que este terá direito na distribuição de lucros, eventualmente na proporção da sua participação social, terá de recorrer a outros meios, distintos da invocação de conflito de interesses – que não ocorre - para considerar aprovada por unanimidade a deliberação supra referida.

Insiste-se, ainda que o sócio ora Autor (tenha sido posteriormente) venha a ser excluído dessa qualidade, nem por isso os direitos que exerceu (em data anterior, mais concretamente em 18 de setembro de 2020, para o que ora interessa) enquanto foi sócio se perdem ou devem ser “restituídos” /“reparados” à sociedade / “dados sem efeito”.

Por outro lado, desconhece-se o valor da alegada lesão do património da sociedade Ré e dos seus dois sócios, aliás, não alegado nem demonstrado.

Acresce que, ainda que se venha a provar, na competente ação, tais atos lesivos e a sua repercussão no património da sociedade e dos seus dois sócios, no exercício de 2019 obteve a sociedade Ré um resultado líquido de €863.040,57, o que permite equacionar que sem os alegados atos lesivos, este resultado líquido seria, ainda, maior.

Insiste-se, deste modo, que se entende não existir conflito de interesses na votação da deliberação relativa ao ponto Dois da Ordem de trabalhos, pelo que não estava o sócio ora Autor impedido de votar nos termos do art. 251º do CSC.”

Não vemos razões para discordar deste entendimento, que se mostra bem fundamentado.

Com efeito, seguindo de perto o recente acórdão do STJ de 27.5.2025[6], que apreciou uma situação com algumas semelhanças, pode aí ler-se que, de entre os fundamentos onde a proibição do voto em conflito de interesses (e a correspondente nulidade da deliberação também por ele determinada) recolhe justificação, destaca-se o dever de correção e de lealdade de todos os sócios para com a sociedade e os outros sócios.

E acresce, “Pode, inclusivamente, afirmar-se que o contrato de sociedade, dado o seu caráter tendencialmente duradouro e onde as obrigações assumidas por cada um dos sócios assentam numa parceria jurídico-económica e confluem para a realização de um projeto colaborativo comum, pode qualificar-se como negócio uberrimae fidei, a comprovar a especial relevância que nele assume a boa fé enquanto princípio normativo gerador de deveres laterais ou acessórios de conduta, quer de natureza positiva (deveres de cooperação, de informação e até de proteção), quer negativa (deveres de lealdade, de correção e de fidelidade).

No entanto, este dever de atuação em compatibilidade com o “interesse social” (interesse comum a todos os sócios enquanto tais) ou com interesses de outros sócios relacionados com a sociedade é, antes de mais, claramente imposto pela natureza da sociedade enquanto instrumento para a consecução de determinado fim ou a satisfação de interesses sociais – “o sócio está vinculado a respeitar essa natureza, a mover-se dentro do círculo do permitido por esse fim ou interesses”.

“(…) Deste contexto, parece decorrer com clareza que o dever de lealdade a que os acionistas se encontram adstritos por força da sua condição de sócios, comporta, também, o dever de não exercício do direito de voto em situação de conflito de interesses, ou seja, o impedimento de voto.

Este visa neutralizar o perigo de adoção de deliberações contrárias ao interesse social por determinação ou influência do voto de sócio portador de interesse particular divergente, não se bastando com mecanismos reativos, nomeadamente com o estabelecimento da eventual anulabilidade das deliberações que atribuam vantagens especiais a sócios em situação de conflito de interesses.

Com o impedimento de voto como que se antecipa a pretendida tutela, prevenindo o risco de o sócio votante em conflito ser especialmente beneficiado em detrimento da sociedade. O impedimento de voto surge, assim, como um instrumento preventivo que atua no próprio procedimento deliberativo, assim acautelando a sua legitimidade e correção.

Para que existam interesses em conflito é necessário que se verifique uma situação de incompatibilidade materialmente relevante, embora se tenha por suficiente, a sua simples potencialidade objetiva.”

O juízo que importará realizar é saber se daquela concreta proposta de deliberação, em que o sócio expressa o seu voto, resulta benefício/prejuízo para interesses que este pretende tutelar e proteger, sobrevalorizando-os aos interesses da sociedade, sendo o risco de tal poder suceder que dá causa à negação de direito ao voto estipulada na norma.

Ora, na situação em apreço, a deliberação em causa visa decidir a distribuição ou não dos lucros aos sócios, ou a constituição de reservas livres.

Apesar da lei não fornecer qualquer definição de reservas, entende-se comumente que reservas são lucros não distribuídos. São lucros retidos que ficam à disposição da sociedade.[7]

Usando a definição de Paulo Vasconcelos, “Será porventura mais correto afirmar que as reservas são valores ideais retidos na sociedade por imposição legal ou contratual, ou por livre decisão, expressa ou tácita, dos sócios e que se destinam à compensação de perdas, à incorporação no capital social ou a outro fim definido pelos sócios”.[8]

As reservas livres, ao contrário das reservas legais (cfr. n.º 1 do artigo 295º do CSC) e estatutárias, que são obrigatórias, constituem uma parte dos lucros de uma empresa que os sócios decidem reter na empresa e não distribuir como dividendos, podendo ser alocadas livremente pelos sócios para reforçar o capital próprio.

Na situação em apreço, pretendendo-se com a deliberação proposta a não distribuição aos sócios do resultado líquido da sociedade, que ascendeu a oitocentos e sessenta e três mil e quarenta euros e cinquenta e quatro cêntimos, para que seja aplicado em reservas livres, não se vê que do voto do apelado, que mantinha a qualidade de sócio na data da votação, não decorrendo também para aquele qualquer limitação a tal direito, em face da decisão proferida no procedimento cautelar não especificado referido em 11 e 16 correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 1, sob o n.º ...[9], decorra para aquela concreta proposta de deliberação, um benefício/prejuízo para interesses que este pretende tutelar e proteger, sobrevalorizando-os aos interesses da sociedade.

Não se vislumbra, pese embora a gravidade das acusações feitas pela sociedade a este sócio, que se encontram em discussão nos processos judiciais supra identificados, relativamente á concreta matéria objeto da deliberação, a existência de conflito de interesses, para mais tratando-se da retenção/distribuição de lucros referentes a exercício anterior às decisões judiciais que venham a ser proferidas no âmbito deste conflito existente entre socio e sociedade.

Aliás, a retenção dos lucros pela sociedade, aplicando-os em reservas livres não impede que os sócios possam decidir distribuí-las para qualquer finalidade ou devolvê-las aos sócios.

Se a assembleia deliberar não serem passíveis de distribuição tendo em conta a situação económica ou de tesouraria da sociedade, não implica que o não sejam em momento posterior, quando a assembleia de sócios assim o decidir, o que decorre de os lucros transitados serem simplesmente lucros retidos voluntariamente, que podem ser sempre (a todo o tempo) distribuídos pelos sócios, a quem se destinam por natureza.

Usando o critério fornecido por Coutinho de Abreu, supra mencionado, não vemos que a situação em apreço, configure uma divergência de princípio entre o interesse (objetivamente avaliado) do sócio – de participar na votação sobre o destino dos lucros do exercício apurados e o interesse (objetivamente avaliado também) da sociedade - interesse comum a todos os sócios enquanto tais – de dar um destino aos lucros de exercício apurados.

Os litígios judiciais da sociedade para com este sócio, não lhe retiraram, tal qualidade na data da assembleia a qualidade de sócio, dessa forma não se vislumbrando qualquer impedimento para aquele poder participar na votação, já que os mesmos não introduzem qualquer desequilíbrio entre o interesse social no reforço e valorização do ativo e o dos sócios uti singuli na distribuição periódica dos lucros.

Desta forma, porque não identificamos, nas circunstâncias concretas do caso, a lesão de qualquer interesse da sociedade, nomeadamente interesse patrimonial, que justifique a inibição do exercício do direito de voto do apelado, subscrevemos a decisão recorrida nesta parte, que se encontra muito bem fundamentada.

5.2.Do abuso de direito:

Discorda ainda a Apelante da sentença, quando esta não reconhece a existência de abuso de direito, alegando em suma que, configura abuso de direito o facto de o Autor, após anos sem distribuir de lucros, vir agora invocar a pretensa invalidade de uma deliberação que manteve o resultado do exercício no património societário, não logrando demonstrar qualquer atuação maliciosa ou vantajosa para os sócios maioritários.

Vejamos.

Dispõe o art. 58.º, n.º 1, alínea b), do CSC: “São anuláveis as deliberações que sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos”.

Este preceito legal que trata da anulabilidade de deliberações sociais abusivas não trata do abuso do direito de voto em termos sobrepostos ao disposto no art. 334.º do Código Civil, sendo que na situação em apreço mostra-se invocado o abuso do direito, que decorre deste artigo 334º do C.Civil.

Desde logo, quanto aos seus efeitos, a diferença entre ambas é muito nítida. Enquanto a invalidade da deliberação social, decorrente do abuso do direito, gera a nulidade daquela, a invalidade, resultante do voto abusivo, acarreta a anulabilidade da deliberação social.

Vejamos então se ocorre abuso de direito, na pretensão do sócio aqui apelado ao exercer voto contrário à distribuição dos lucros, por em momento anterior da vida societária, sendo até o responsável pela área financeira, nunca ter proposto a distribuição de lucros entre os sócios.

Nesta matéria provou-se que, o Autor conduziu e presidiu a assembleias gerais realizadas para deliberar sobre as contas de diversos exercícios, antes do exercício de 2019, sem que tenha proposto aos outros sócios a distribuição de lucros nas assembleias gerais referidas nos documentos 36 e 37 juntos com a contestação e que aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos.

Pelo dever de lealdade, o sócio, enquanto tal, está obrigado a adotar um comportamento que não seja contrário ao exigido pelo interesse social.

Quase sempre o interesse social é coincidente com o interesse dos sócios, na medida em que tanto a sociedade como os sócios tendem para o mesmo sentido, que consiste na potenciação do maior lucro possível. Situações de conflito, porém, podem existir, prevalecendo aí o interesse da sociedade, opção que a lei também privilegia (art. 295.º do CSC).

Há porém e desde logo que distinguir as situações de conflito de interesses e de abuso de direito.

O conflito de interesses, constituindo um impedimento para o exercício do voto, repercute-se viciosamente no processo formativo da deliberação social, enquanto o abuso do direito se concretiza no seu conteúdo.[10]

De resto, quanto aos seus efeitos, a diferença entre ambas é muito nítida. Enquanto a invalidade da deliberação social, decorrente do abuso do direito, gera a nulidade daquela, a invalidade, resultante do voto abusivo, acarreta a anulabilidade da deliberação social.

O abuso do direito plasmado no art. 334.º do Código Civil, estabelece que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Para que haja abuso do direito exige-se que o excesso seja manifesto. Os tribunais só podem, por isso, fiscalizar a moralidade dos atos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso.

Manuel de Andrade[11] refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça e às “hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição”.

O abuso do direito constitui, pois, uma fórmula tradicional para exprimir a ideia do exercício disfuncional de posições jurídicas. Funciona como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica.

Surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, serve como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.

Dito isto, não temos como discordar com os fundamentos usados na sentença recorrida, que afastam a ocorrência de abuso, pelo que subscrevemos na íntegra o que aí se afirma: “entende-se que não existe qualquer abuso de direito por parte do Autor nesta matéria, ao propor a presente ação e pretender a declaração de nulidade / anulabilidade da deliberação onde se aprovou a aplicação dos resultados líquidos do exercício de 2019 a reservas livres, conforme resulta da indicada deliberação impugnada, quando em anos anteriores, em que a sociedade Ré também obteve lucros, isto mesmo propôs aos demais sócios, o que foi por todos aprovado.

Em primeiro lugar porque o que se delibera num ano relativamente à distribuição de lucros não vincula as deliberações seguintes e o sentido de voto relativamente à mesma matéria, sob pena de deliberado num ano a distribuição dos lucros, nos anos seguintes não ser necessária (e ser até proibida) nova deliberação distinta (ou até coincidente, mas com sentidos de voto distintos dos sócios), havendo de seguir-se aquela primeira.

Por outro lado, as razões que levam num determinado ano a um sentido de voto, não são necessariamente as mesmas nos anos seguintes, havendo muitas variáveis a considerar em cada assembleia de aprovação de contas e de aplicação dos resultados, não resultando dos autos (nem da matéria alegada) que as referidas variáveis relativas ao exercício de 2019 e à votação expressa na assembleia de sócios de 18 de setembro de 2020 são exatamente as mesmas que existiam nas deliberações de não distribuição de lucros em anos anteriores.

Acresce, ainda, que a distribuição de lucros não se basta com o voto de uma minoria, mas de uma maioria qualificada (a não ser que os estatutos prevejam outra maioria); e no caso presente, ainda que em anos anteriores não tenha havido distribuição de lucros, por sugestão do ora Autor (que nesta ação pretende tal distribuição), menos certo não é que para esta sugestão ter sido aprovada, os demais dois sócios, que nesta ação se mostraram claramente como representantes da Ré, terão necessariamente votado a favor da aprovação de tal sugestão, sob pena de a mesma não ser aprovada. Com o que nenhuma problemática se nos afigura presente em tais deliberações (naturalmente, aqui não impugnadas, antes apenas convocadas na tentativa de demonstração da incoerência e/ou abuso de direito por parte do Autor), menos ainda a inquinar o sentido de voto do sócio ora Autor na deliberação de 18 de setembro de 2020, relativa à aplicação dos resultados líquidos do exercício de 2019.

Não existe qualquer abuso de direito por parte do Autor, ao pretender a declaração de nulidade / anulabilidade da referida deliberação, que, assim, não pode deixar de ser anulada.”

Resta pois julgar improcedente o recurso.

VI- DECISÃO:

Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da relação em julgar improcedente o recurso e em confirmar a sentença recorrida.

Custas pela apelante.


Porto, 26 de novembro de 2025.
Alexandra Pelayo
João Proença
Artur Dionísio Oliveira
___________
[1] In Sociedade por Quotas, vol. II, p. 296.
[2] In Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. IV (2ª ed.), pág. 70.
[3] In Sociedades por Quotas, Vol. II, pág. 296 6.
[4] Jorge Manuel Coutinho de Abreu e outros, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. VI, Almedina, pág.130.
[5] Neste sentido, ver entre outros, o acórdão do STJ de 24 de novembro de 2020, proferido no P nº 9934/16.0T8LSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Proferido no P. nº 22208/22.8T8LSB.L1.S1 e disponível in www.dgsi.pt.
[7] Ver Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. II, p. 247, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, p. 481, Engrácia Antunes, Capital próprio, reservas legais especiais e perdas sociais, p. 98, secundado por Fátima Gomes, O Direito aos Lucros e o Dever de Participar nas Perdas nas Sociedades Anónimas, p. 240
[8] Paulo Vasconcelos in Apuramento e Aplicação de Resultados, p. 198 e o mesmo autor e Ana Paula Rocha, in As Reservas nas Sociedades Comerciais: Noções e Impactos Fiscais in IRC, in RCEJ/Rebules N.º 30 – 2018, p. 253-275.
[9] O acórdão do Tribunal da Relação, transitado em julgado, julgou o procedimento cautelar parcialmente provado e procedente, determinando a seguinte providência cautelar: proibição do requerido de praticar quaisquer atos em representação da requerente, qualquer que seja a forma ou finalidade, designadamente celebrar negócios em seu nome ou contactar clientes da requerente, bem como de aceder às instalações da requerente e de usar ou aceder a hardware e software da requerente” – facto supra 11.
[10] Pinto Furtado, in Deliberações dos Sócios, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, 1993, pág. 384 e também Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.5.1992 (Processo n.º 16283), www.dgsi.pt, quanto ao campo diversificado de aplicação destas figuras.
[11] In “Teoria Geral das Obrigações”, pág. 63.