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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA ANTECIPADA
Sumário
- Constitui fundamento de recusa antecipada da exoneração do passivo restante o incumprimento, pelo insolvente, da obrigação de angariar profissão remunerada ou, em caso de desemprego, se inscrever no Centro de Emprego, bem como de informar periodicamente, nos termos fixados na decisão de admissão liminar do incidente, sobre os rendimentos de trabalho obtidos e as actividades exercidas. - O incumprimento de tais obrigações é de ordem a prejudicar os interesses dos credores, mesmo perante a indeterminação de qualquer prejuízo concreto, porquanto, com as suas omissões, o insolvente impede o fiduciário, não só de obter algum valor que possa ser aplicada aos fins da insolvência, mas até, a montante disso, de saber se ele privou, e em que medida, a insolvência de qualquer valor.
Texto Integral
Proc. 125/24.7T8AMT.P1
Tribunal da Comarca Porto Este
Amarante, Juízo do Comércio, J1
Rel. 994
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Alexandra Pelayo
2º Adjunto: Juiz Desembargador João Proença
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
1 - RELATÓRIO
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No âmbito do incidente de exoneração do passivo restante processado nos autos de insolvência respeitantes a AA, a quem tal benefício havia sido liminarmente concedido por despacho de 02.05.2024, foi proferida decisão final que recusou antecipadamente a concessão da exoneração, com fundamento no incumprimento reiterado dos deveres impostos durante o período de cessão, designadamente de informação quanto ao rendimentos obtidos e de procurar ativamente emprego.
Tal decisão foi motivada pelo relatório anual do Fiduciário, observado o necessário contraditório e perante pronúncia do credor A..., S.A, tendente à cessação antecipada do período de exoneração.
É desta decisão que vem interposto recurso pelo insolvente, que culmina com as seguintes conclusões:
1 - O recorrente teve sempre uma atitude transparente e honesta com o tribunal. Informou que no período em que não esteve inscrito no centro de emprego fez pequenos trabalhos, na construção e agricultura, o que lhe deu um parco rendimento.
2 - Alegou que por se tratar de valores, abaixo do salário mínimo nacional, e não ser uma atividade continua e regular, entendia não ser obrigatório emitir recibo.
3 - Notificado para a obrigatoriedade de inscrição no centro de emprego, cumpriu de imediato e juntou o comprovativo aos autos, a 20 de maio de 2025. Explicou as condições de vida, apresentou prova testemunhal, para a eventual necessidade de ser ouvida.
4 - O credor invoca a falta de cumprimento das obrigações, porém sem nada concretizar. Não alega o real prejuízo, nem junta prova disso. Faz considerações genéricas, reproduzindo o preceito legal. Efetivamente, não existe prejuízo.
5 - O tribunal a quo funda a decisão num único facto, mas nada existe no processo que o justifique, que demonstre o efetivo prejuízo. São os credores que o devem demonstrar.
6 – Neste sentido, a titulo de exemplo:
Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 30/01/2020, relator BB, processo 644/14.3TBVVD.G2; Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20/03/2025, relator CC, proc. 188/20.4T8VNF.G1
7 - Quanto à não entrega de valores à fidúcia, tendo informado os autos dos parcos valores que recebeu, de forma irregular, e tendo sido fixado rendimento disponível igual ao salário mínimo nacional, não existe motivo para considerar a sua atitude como dolosa ou sequer negligente.
8 - Sobre esta questão, pronunciou-se o STJ no Ac proferido a 09/04/2019, relator DD, proc. 279/13.8TBPCV.C1.S2, confirmando a necessidade de efetiva verificação do dolo ou negligência grave e não está demonstrado que existiu.
9 - Incorreu o tribunal a quo num erro de interpretação do disposto nos artigos 239º e 243º, n.º 1 al. a) do CIRE, pelo que se impõe a revogação do decidido, lavrando-se douto acordão que determine a normal tramitação dos autos, considerando que o insolvente tem cumprido com as suas obrigações.
Termos em que, dando provimento do presente recurso, farão V. Excias, a acostumada Justiça!
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Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.
O recurso foi admitido, subindo nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Cumpre decidi-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO
No caso, a única questão a resolver, extraída das conclusões do recurso, consiste em verificar se a conduta do apelante, omitindo a informação sobre os rendimentos que auferiu, apesar de realizar, segundo afirmou, pequenos biscates, e tendo-se inscrito no Centro de Emprego, após notificação para o efeito, não consubstancia negligência grave na satisfação dos deveres que lhe foram impostos, nem sequer redundou em qualquer prejuízo para o credor, pelo que deveria manter-se o procedimento de exoneração.
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Apesar de não os isolar e identificar expressamente, surpreendem-se na decisão recorrida os seguintes elementos factuais, que inequivocamente constituem os seus pressupostos, constando outros, que infra se indicam, dos próprios autos de insolvência:
1º - Na decisão de admissão liminar do incidente de exoneração do passivo restante, foi determinado: “Fixa-se ao/à/s insolvente/s como rendimento disponível, todo aquele que exceder o valor de um salário mínimo nacional, multiplicado por catorze meses, acrescido do valor da pensão de alimentos que comprove junto do Sr. Administrador Fiduciário ter sido paga aos seus filhos menores, a residir com a progenitora. Devendo o/a/s Insolvente/s proceder a transferência bancária para a conta da massa, mensalmente, dos valores que tiver/em auferido em cada mês, que excedam o valor do rendimento mensal indisponível fixado, e remeter ao/à Sr./Sr.ª Fiduciário/a, por e-mail ou carta registada, a cada quatro meses, os comprovativos dos seus recibos de vencimento e os comprovativos de transferências bancárias feitas para pagamento de prestação de alimentos aos seus filhos menores de idade. Deverá/ão ainda remeter ao/à Sr./Sr.ª Fiduciário/a a cópia da sua declaração e Liquidação de IRS, até 30 de junho de cada ano. (…) Em caso de situação de desemprego deverá/ão comprovar junto do/a Sr./Sr.ª Fiduciário/a a sua inscrição no Centro de Emprego da sua área de residência e que esta inscrição se mantém ativa. (…) Ficando o/a/s Devedor/a/s expressamente advertido/a/s que, durante o período da cessão, fica/m obrigado/a/s a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira/m, por qualquer título, e a informar o tribunal e o/a fiduciário/s sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe/s seja requisitado; b) Exercer/em uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado/a/s, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja/m apto/s; c) Entregar imediatamente ao/à fiduciário/a, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão; (…)”.
2º - Durante o 1.º ano do período de exoneração, o insolvente apenas realizou “pequenos trabalhos na construção civil, ao dia ou à semana, como trolha, pedreiro ou ferrageiro”.
3º - O insolvente não comprovou os rendimentos que obteve com a prestação de tais trabalhos, nem informou os períodos em que trabalhou ou quanto recebeu ao dia.
4º - O insolvente não demonstrou ao Fiduciário a sua inscrição no Centro de Emprego, nem ter procurado activamente um emprego.
5º- Em 14/5/2025, foi proferido despacho notificando o insolvente para justificar a não apresentação de recibos de vencimento ou, em caso de desemprego, a não demonstração de inscrição no Centro de Emprego.
6º - Em 20/5/2025, o insolvente juntou requerimento e documento comprovativo de inscrição no Centro de Emprego do Tâmega e Sousa, como candidato a emprego, a 19/05/2025, bem como certidão de dispensa de apresentação de declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, relativa a 2023.
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A sentença recorrida contém afirmações lapidares que se revelam pertinentes para a avaliação das omissões em que incorreu o insolvente, face às obrigações que lhe cabia satisfazer durante o período de cessão, cujo teor não oferece duvida.
Diz-se na sentença: “…o incidente de exoneração não pode ser visto como um mero decurso do prazo de 3 anos para, no final, o insolvente se libertar das suas dividas, sem que tenha, efetivamente, feito um esforço para satisfazer, ainda que parcialmente, os seus créditos.”
Da decisão de admissão liminar do incidente de exoneração do passivo, de 2/5/2024, resultava claramente o teor do esforço que lhe era imposto:
- Entregar à fidúcia os rendimentos do trabalho que angariasse, superiores ao valor do salário mínimo acrescido do valor da pensão de alimentos pago;
- Remeter ao fiduciário, a cada 4 meses, comprovativos de vencimento e dos valores transferidos;
- Remeter cópia da declaração de IRS
- Exercer uma profissão remunerada ou a procurar uma, em caso de desemprego, sem recusar sem razão algum emprego para que seja apto;
- Em caso de desemprego, comprovar a inscrição no Centro de Emprego, a manter activa.
É impossível discordar da sentença recorrida ao concluir que, passado o primeiro dos três anos do período de cessão, o insolvente nada revela ter feito para demonstrar o seu empenho no cumprimento daquelas obrigações e, por essa via, para garantir, ainda que de forma muito incipiente, os interesses da fidúcia, designadamente o de uma satisfação mínima do interesse dos credores na recuperação dos seus créditos.
Com efeito, o insolvente não encontrou emprego, apesar de se anunciar como capaz de realizar trabalhos num sector económico sempre carecido de mão-de-obra, o que é facto notório. Com efeito, como alternativa a exercer uma profissão regular nessa área, ocupou-se a realizar trabalhos na construção civil, ao dia ou à semana, como trolha, pedreiro ou ferrageiro, por sua conta.
Para além disso, e como é próprio de uma tal actividade irregular e informal, de forma alguma se aprestou a declarar o que fazia, em que momentos e o que com isso auferia, assim evitando que o fiduciário, ou o tribunal, ou qualquer credor pudessem calcular sobre se os seus rendimentos permitiam a sobra de algum valor para os fins da fidúcia, por ultrapassarem o valor do rendimento indisponível que lhe foi fixado.
Ainda para além disso, apesar de se manter desempregado, o insolvente não se foi inscrever no Centro de Emprego, assim evitando poder vir a ser convocado para a prestação de algum trabalho, para o ingresso em alguma profissão. Esta obrigação foi-lhe fixada na sentença, de que foi notificado, mas, contrariamente ao que agora alega, não foi concretizar tal inscrição mal foi notificado para o efeito. Sendo a sentença de 2/5/2024, só em 19/5/2025 acorreu ao Centro de Emprego, quando foi interpelado sobre não o ter feito antes e sobre a possibilidade de isso resultar na cessação antecipada deste procedimento.
É certo que afirma que não auferiu rendimentos superiores aos do rendimento indisponível, que a sentença lhe salvaguardou. Porém, jamais tendo declarado ou tentado justificar o que trabalhou e o que ganhou, perante o fiduciário, ao que estava obrigado de quatro em quatro meses, é impossível averiguar a realidade daquilo que agora declara.
O que a sua actuação traduz é exactamente aquilo que o tribunal afirmou que a vivência num período de cessão não pode constituir: um total alheamento para com o processo de insolvência, para com as obrigações que lhe foram fixadas e na simples expectativa de que o prazo de 3 anos daquele período se vá esvaindo sem perturbações para o regime de vida adoptado, o qual compreende inequivocamente a subtracção de qualquer rendimento que seja auferido ao conhecimento e controlo do fiduciário, do tribunal e dos credores.
Tal como ajuizou o tribunal recorrido, é evidente o incumprimento, pelo insolvente, das obrigações que lhe foram fixadas para o período de cessão, na decisão de admissão liminar deste incidente.
Complementarmente, é irrecusável o juízo de censura que tal conduta omissiva merece: ao insolvente era exigida e possível o cumprimento das obrigações fixadas: tal como o fez com atraso de um ano, poderia ter ido inscrever-se no Centro de Emprego mal lhe foi notificada a decisão de admissão do procedimento; era-lhe possível informar e justificar, ou pelo menos tentar justificar, os valores que vai auferindo com as suas actividades informais de construção civil e congéneres; tal como lhe era possível ou ter arranjado emprego na sua área de actividade, ou explicar as razões pelas quais, tendo-o tentado, não conseguiu qualquer emprego.
Tendo-o feito por forma a eximir-se voluntariamente ao cumprimento de tais obrigações – o que constituiria uma actuação dolosa – ou por desatenção à necessidade de as cumprir – o que constituiria uma actuação descuidada, negligente – a sua conduta, assume gravidade tal que não pode deixar de ser consequente, como entendeu o tribunal recorrido. Deve ser qualificada, pelo menos, como negligência grave, tanto mais que se prolongou já por um terço do período de cessão.
Acontece, porém, que os pressupostos que acabam de se identificar não são de per si suficientes para determinar a actuação do regime previsto no art. 243º, nº 1, al. a) do CIRE, legitimando a recusa a exoneração do passivo do devedor ainda antes de terminado o período de cessão.
Com efeito, dispõe essa norma que “Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração (…) quando: a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Ou seja, a recusa da exoneração só deve ser decretada antecipadamente quando se puder concluir que o incumprimento do insolvente prejudicou a satisfação dos créditos sobre a insolvência (um dos requisitos obejctivos da norma)
A este respeito, a sentença recorrida afirma “No caso da cessação antecipada prevista no artigo 243.º, o legislador basta-se com o facto de a violação das obrigações decorrentes do artigo 239.º poder prejudicar, em abstrato, a satisfação dos créditos sobre a insolvência.”
Como salientou o Ac. do STJ de 23/03/2021 (proc. nº 1155/14.2TBPRD.P2.S1, em dgsi.pt) “A cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante de pessoa singular insolvente, nos termos do art. 243.º, n.º 1, a), do CIRE (…) não depende de ser infligido prejuízo “relevante” à satisfação dos credores da insolvência, pois não se pode equiparar para esse efeito o prejuízo qualificado que se exige na previsão contemplada para a decisão de revogação da decisão final de concessão da exoneração do passivo restante (art. 246.º, n.º 1, CIRE: «prejudicado de forma relevante»).
Mais se refere em tal acórdão que o prejuízo previsto na hipótese da norma constante da al. a) do nº 1 do art. 243º do CIRE se pode verificar “independente[mente] do seu relevo quantitativo.
No caso em apreço, é certo que a decisão recorrida não chegou a concretizar qual tenha sido ou possa vir a ser a medida da afectação do interesse dos credores resultante do incumprimento das obrigações do insolvente. Porém, esse é um dos próprios efeitos do incumprimento, porquanto, com as suas omissões, ele impede o fiduciário, não só de obter algum valor que possa ser aplicada aos fins da insolvência, mas até, a montante disso, de saber se ele privou, e em que medida, a insolvência de tal valor. Como já se referiu, o insolvente não só não angariou um trabalho com uma remuneração passível de ser conhecida, optando por trabalhos informais cujos rendimentos não permite conhecer, como nem sequer permitiu averiguar se obteve efectivamente rendimentos superiores ao valor de rendimento indisponível que se lhe salvaguardou, omitindo a sua entrega ao fiduciário. Inadmissível seria, nestas circunstâncias, que tal omissão pudesse resultar em seu benefício, por se considerar inverificado o incumprimento da obrigação de entregar quaisquer rendimentos ao fiduciário pela simples razão de ele ter obstado ao apuramento dos valores por si obtidos.
Por todo o exposto, nas concretas circunstâncias do caso, torna-se inevitável concordar com a decisão recorrida ao afirmar que o incumprimento das obrigações impostas ao insolvente na decisão de admissão liminar do incidente de exoneração do seu passivo é de ordem à determinação do prejuízo creditício previsto na al.a) do nº 1 do art. 243º do CIRE.
Consequentemente, na improcedência das razões do apelante, cabe recusar o provimento da presente apelação, na confirmação da decisão recorrida.
Sumário:
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3 – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que integram esta secção do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao presente recurso de apelação, na confirmação integral da decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Registe e notifique.
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Porto, 26/11/2025
Rui Moreira
Alexandra Pelayo
João Proença