QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
PRESUNÇÃO DE CULPA
Sumário

I – No incidente de qualificação de insolvência, o art. 11º do CIRE, como manifestação do princípio do inquisitório, possibilita ao juiz que funde a sua decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes.
II - No nº 2 do art. 186º do CIRE prevêem-se presunções juris et de jure de insolvência culposa, uma vez que a lei consagra aqui uma presunção de existência de culpa grave e também uma presunção de nexo de causalidade dos comportamentos aí previstos para a criação ou agravamento da situação de insolvência.
III – Já no que toca ao âmbito objetivo das presunções previstas no art. 186º, nº 3 do CIRE, antes da Lei nº 9/2022, de 11.1. a doutrina e a jurisprudência estavam divididas.
IV – O setor maioritário entendia que do art. 186º, nº 3 resultava apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da atuação dos administradores do devedor, de direito ou de facto, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º, nº 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.
V - Outros defendiam que a simples verificação das situações previstas nas alíneas a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE constituía presunção (ilidível) da insolvência culposa - pressupondo-se, à partida, o nexo de causalidade exigido pelo nº 1 – e não apenas da culpa grave do devedor.
VI – Com a nova redação do art. 186º, nº 3 do CIRE, onde passou a constar “presume-se unicamente a existência de culpa grave”, ficou definido que para ocorrerem as presunções previstas nas alíneas a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE é imprescindível demonstrar que a situação de insolvência foi causada ou agravada em consequência da conduta assumida pelo devedor integrativa dessas alíneas.
VII – Com a alteração legislativa efetuada pela Lei nº 16/2012, de 20.4., deixou de estar prevista no art. 189º do CIRE a sanção de inabilitação para as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência, assim se tendo corrigido a situação de inconstitucionalidade que veio a originar o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 173/2009, de 2.4.2009.

Texto Integral

Proc. nº 2478/20.7 T8STS-E.P1

Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 3

Apelação

Recorrente: AA

Recorridos: Min. Público; “A..., Lda.”; B... Unipessoal, Lda.”

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Pinto dos Santos e Alexandra Pelayo

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO[1]

Por apenso aos autos de insolvência em que foi declarada insolvente a sociedade “C..., Lda.”, no âmbito do incidente de qualificação da insolvência veio o credor “A... – Aluguer e Venda de Andaimes, Lda.”, requerer a qualificação da insolvência como culposa, e, nessa sequência, ser afetado por essa qualificação o gerente da devedora AA, decretando-se a sua inibição por período não inferior a 4 anos e a sua inibição para o exercício do comércio durante um período de 5 anos, e ainda a sua condenação a indemnizar os credores da sociedade insolvente nos montantes não satisfeitos.

Alegou, para tanto, que aquele gerente terá incumprido, de acordo com as informações veiculadas pela administradora da insolvência no relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, com o dever de apresentação à insolvência, já que a sociedade devedora encontrava-se em situação económico-financeira débil e deficitária no ano de 2018, tendo o seu volume de negócios evoluído sempre desfavoravelmente desde 2017, sendo de anotar o facto de em 31.3.2019 (aprovação de contas de 2018), a empresa e os seus sócios terem tido conhecimento daquela penúria, não tendo sido adotada conduta condizente com o ditame legal previsto no art.º 35.º do Código das Sociedades Comerciais.

Mais alegou atuação que induz a verificação de dissipação do património da insolvente, já que em 2017 o valor subjacente aos “inventários” era de 831.488,12€, sendo que em 2018, 2019 e 2020 tal valor apresentava-se a zeros (0,00€), o que equivale a concluir que o gerente recorreu à venda de todo o stock, esvaziando o património da insolvente, ao mesmo tempo que continuava a realizar contratos subcontratando (subempreitadas), recebendo adiantamentos de donos de obra sem emissão de competente fatura-recibo, quando não podia deixar de pressupor que a insolvência era já inevitável (o requerido era também gerente de uma outra sociedade com o mesmo objeto do da insolvente e renuncia à gerência daqueloutra sociedade – “D...” - um mês depois do pedido de insolvência, que veio a dar origem aos autos principais, ter dado entrada em juízo).

Por último, alegou que as contas só foram depositadas até ao ano de 2019, assim tendo sido incumprido tal dever legal.

Um outro credor – B... UNIPESSOAL, Lda. -, veio juntar requerimento neste apenso, solicitando igual qualificação da insolvência como culposa, identificando, desta feita, como pessoas a afetar com tal qualificação quer o gerente (de direito) AA, quer BB, esta a título de gerente de facto.

Alegou, para o efeito, que o então casal constituído por AA e BB manteve-se em funções - como sócios e gerentes da insolvente – entre 15.12.2015 e 3.9.2018, data em que a sócia BB cessa as suas funções enquanto gerente e cede a sua quota ao sócio AA, sendo que já no ano de 2018 a esfera económica da sociedade devedora apresentava evidente degradação, com um resultado líquido de exercício negativo de 343.071,32€, e em 2019 de 280.185,57€ negativo, sendo que em 2017 evidenciou resultado líquido positivo de 21.622,18€.

Mais alegou que a partir de fevereiro de 2019 até à data da declaração da insolvência foram instauradas contra a insolvente 18 ações quer de índole executiva quer de cumprimento de obrigações pecuniárias, tudo levando a concluir que, pelo menos em 31.3.2019 a insolvente estaria insolvente, e tal não podia ser do desconhecimento dos seus gerentes.

Alegou, ainda, a existência de contabilidade com irregularidades graves, já que se verifica que a IES de 2019 teve duas versões, uma depositada em setembro de 2020 e outra depositada em novembro de 2020, sendo que as únicas verbas que foram alteradas prendem-se com o ativo e o passivo corrente dos acionistas/sócios, o que altera o total do ativo e do passivo relativamente ao exercício em questão, tendo existido “maquinação das contas com a finalidade única de eliminar qualquer crédito que a sociedade detinha perante os órgãos sociais” (Na IES 2019 depositada em setembro constava um valor de ativo corrente Acionistas/sócios de 258.500,00€ e na IES depositada em novembro passou a constar 0,00€; Na IES depositada em setembro constava um valor de passivo corrente Acionistas/sócios de 170.180,00€ e na IES depositada em novembro passou a constar €0,00).

Declarado formalmente aberto o presente incidente, veio a Sr.ª Administradora da Insolvência apresentar o seu parecer em 8.10.2021, no qual concluiu pela qualificação da insolvência como fortuita.

Apesar de reconhecer que desde o ano de 2018 a empresa passou a apresentar resultados negativos e que em 31.3.2019 (aprovação de contas de 2018) a empresa e os seus sócios teriam que ter conhecimento do estado real das coisas e do dever de dar cumprimento ao preceituado no artº 35º do Cód. das Sociedades Comerciais, certo é que deixou exarado que não logrou aferir com toda a certeza se a sociedade incumpriu o dever de requerer a declaração de insolvência, nem apurou qualquer conduta dolosa praticada pelo gerente, nos três anos anteriores ao início do processo, que tivesse contribuído para a criação ou agravamento do estado de insolvência.

Ouvido o Ministério Público, veio este propor que a insolvência fosse qualificada como culposa, secundando as alegações apresentadas pelo credor “A...” e considerando verificadas as situações previstas no art.º 186.º, n.ºs 1, 2, alíneas a), b), c), f), g), h) e i), e n.º 3, alíneas a) e b), do CIRE, devendo ser afetado o requerido AA.

Citados os requeridos, e notificada a sociedade insolvente, vieram opor-se BB e AA.

A primeira centrou-se na circunstância de o próprio Ministério Público ter peticionado a afetação exclusiva do requerido AA, excluindo a requerida de qualquer responsabilidade a apurar neste domínio, acrescentando ainda argumentação no sentido de a pretensão deduzida pelo credor B... UNIPESSOAL, Lda. assentar em distorção factual, já que em 27.8.2018 havia renunciado à gerência da insolvente e, pelo menos desde essa data, que não exerce qualquer função de gerência ou administração na sociedade.

Mais alegou que nunca se apresentou perante quem quer que fosse como patroa ou gerente da insolvente nem representou esta perante terceiros, e nunca acompanhou projetos de obra ou deu orientações a trabalhadores.

Concluiu a sua oposição solicitando a condenação do credor B... como litigante de má fé, em multa (1.020,00€) e em indemnização nunca inferior a 1.000,00€.

O requerido AA apelou ao teor do parecer apresentado pela administradora da insolvência nomeada nos autos, negando em absoluto ter tido qualquer comportamento que contribuísse ou tivesse agravado o estado de insolvência a que se viu votada a sociedade devedora, assumindo que os atos de gerência foram sempre por si praticados, isentando a requerida BB de qualquer intervenção nesse domínio.

Mais alegou que a crise económica que assolou o País, particularmente agravada pela crise pandémica provocada pelo novo coronavírus, originou uma acentuada desaceleração do investimento público e privado, o que se refletiu no sector da construção civil e contribuiu para a degradação económico-financeira da ora insolvente, tendo esta deixado de gerar recursos financeiros suficientes para pagar a fornecedores e a entidades credoras, e que ante estas dificuldades tentou previamente atrair investimento externo, fundir a insolvente com outras sociedades comerciais ou alienar as participações sociais a terceiros, o que não se tendo apresentado como exequível, levou a que não restasse outra opção que não a de reconhecer a insolvência.

Negou, contudo, ter violado o dever de apresentação e sublinhou a falta de alegação de qualquer facto passível de fazer surgir o necessário nexo de causalidade entre a hipotética violação de tal dever e o agravamento da situação insolvencial.

Alegou, também a este respeito, a suspensão do prazo de apresentação à insolvência de acordo com a norma legal contida no art.º 6.º/alínea a), da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, sendo certo que em dezembro de 2019 a insolvente encontrava-se a cumprir com as suas obrigações, não estando em situação de incumprimento generalizado, tanto mais que o oponente, em março de 2020, acreditava seriamente na possibilidade de revitalizar a sociedade insolvente.

Negou ainda ter exercido quaisquer funções ou tarefas junto da sociedade comercial “D...” e afirmou que a insolvente sempre emitiu faturas de todos os pagamentos que lhe foram realizados e obtiveram o pertinente respaldo contabilístico e também que grande parte das ações ou demandas cíveis enumeradas pelos credores requerentes neste apenso obtiveram composição amigável do litígio, procedência a favor da insolvente ou terminaram com satisfação integral dos valores que se encontrariam em dívida por banda da insolvente, concluindo que desde 2019 a insolvente logrou liquidar mais de 300.000,00€ em faturas vencidas a credores, afirmando perentoriamente que não afetou significativamente o património social, nem tão-pouco pretendeu colocar um obstáculo ao ressarcimento dos credores da insolvente.

Veio apresentar resposta o credor requerente B... UNIPESSOAL, Lda., reiterando que a presente qualificação deve abranger e afetar a requerida BB, refutando que tenha tido qualquer conduta que pudesse legitimar a condenação como litigante de má-fé.

Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial, bem como questão prévia deduzida pela requerida BB na sua oposição.

Foi fixado valor à ação e delimitaram-se e identificaram-se os temas da prova.

Realizou-se a audiência de julgamento com a observância de todos os formalismos legais.

Por fim, em 21.7.2025, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente o incidente de qualificação da insolvência e consequentemente:

- qualificou a insolvência de “C..., Lda.” como culposa;

- identificou as pessoas afetadas pela qualificação como sendo o requerido AA;

- decretou a inibição de AA para administrar património de terceiros, por um período de 4 anos e 10 meses;

- decretou a inibição para o exercício do comércio do requerido AA durante um período de 4 anos e 10 meses, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa por idêntico período;

- determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA;

- condenou AA no pagamento da indemnização até ao montante de 90.000,00€, a favor dos credores da sociedade insolvente;

- absolveu os requeridos do demais peticionado, não afetando pela qualificação a requerida BB;

- absolveu o credor “B... Unipessoal, Lda.” do pedido de litigância de má-fé/indemnização contra ele formulado.

Em 6.8.2025, o requerido AA, sem prejuízo de posterior recurso de apelação, veio apresentar o seguinte requerimento:

“1. No passado dia 25 de Julho de 2025 foi o ora Requerido notificado da prolação da Sentença e não se conformando com a mesma irá interpor o respectivo Recurso de Apelação, dispondo ainda de prazo para o efeito.

2. O Requerido entende que a Sentença encontra-se eivada de nulidades, as quais poderão/deverão ser arguidas no Recurso a interpor pelo Requerido.

3. Sucede que, não obstante dispor de prazo processual para recorrer da decisão final [o que naturalmente fará], não pode deixar o Requerido, por dever de patrocínio, conceber a nulidade ora arguida através do presente Requerimento como uma nulidade processual nos termos do n.º 1 do artigo 195.º C.P.C., com a consequente nulidade da Sentença.

4. Com efeito, e salvaguardando a perspectiva jurídico-processual de que deverá sempre ser atacado o vício da nulidade por decisão surpresa, e não a própria decisão por excesso de pronúncia, compete ao ora Requerido fazê-lo,

5. pelo que, salvaguardando esse entendimento, promove a sua arguição antecipada ao recurso a interpor da Sentença final, com vista a fazê-lo no prazo legal para o efeito.

Em concreto:

6. Consta da matéria de facto dada como provada na Sentença, entre outros, os seguintes factos: [segue-se a transcrição dos factos nºs 20 e 21]

7. Atente-se que estamos perante um incidente de qualificação da insolvência de uma sociedade comercial, revestindo-se os referidos factos como essenciais e imprescindíveis para a decisão final, atenta a sua subsunção ao previsto no artigo 186.º do C.I.R.E..

8. Tanto assim é que, desde logo, o Tribunal na fundamentação da sua decisão se estriba nestes mesmos factos (n.º 20 e 21) para “concluir que a conduta omissiva por banda do aqui requerido AA agravou o estado insolvencial da sociedade de que era gerente”,

9. e ainda para considerar encontrar-se “apurada realidade passível de ser subsumida às hipóteses legais enunciadas nas alíneas b), f), g) e h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE”.

Acontece que,

10. Jamais foi promovida pelo Tribunal um debate sobre os factos integrantes na matéria de facto dada como provada sob o n.º 20 e 21 e os quais sedimentaram o fundamento decisório.

11. Diga-se, desde já, que se retira da prova documental e testemunhal prestada nos presentes autos uma realidade exactamente oposta [cuja demonstração aqui não releva e se deixará para sede de impugnação da matéria de facto no Recurso de Apelação a interpor].

12. Mas a verdade é que em nenhum momento do processo, seja por quem fosse, foi trazida factualidade sobre o valor da venda do “Prédio de ...” não ter dado entrada nas contas da sociedade insolvente (facto n.º 20),

13. ou sobre o Requerido ter disposto de bens da sociedade em proveito pessoal (facto n.º 21).

14. E tal factualidade não foi alegada pelos Credores, pelo A.I. ou pelo Ministério Público nos seus articulados/pareceres que estiveram na génese do presente Incidente, e que delimitam a matéria do mesmo.

15. Aliás, nos temas da prova criteriosamente seleccionados pelo Tribunal em sede de despacho saneador não consta qualquer factualidade referente à eventual falta de entrada nas contas da sociedade insolvente do valor de venda do “Prédio de ...”, ou sequer quanto ao proveito pessoal que o Requerido teria tirado através da disposição de bens da sociedade.

16. Em nenhum momento dos presentes autos, foi o Requerido instado a pronunciar-se sobre a existência, ou não, daquela factualidade, tendo inexistido qualquer debate concreto sobre esta questão.

17. Seja porque não foi factualidade alegada pelos credores, AI ou pelo A.I. ou pelo Ministério Público nos seus articulados/pareceres e sobre a qual o Requerido se deveria pronunciar em sede de Oposição.

18. Seja porque nem sequer integraram os temas da prova, revelando dessa forma que NUNCA havia sido sequer debatida nos articulados.

19. Sem prejuízo do entendimento de que possa estar em causa uma nulidade de sentença por excesso de pronúncia, a verdade é que terá igualmente de se considerar que existe uma violação do princípio do contraditório do Requerido ou integrarem-se tais factos na matéria de facto dada como provada em Sentença.

20. Com efeito, o Tribunal não o poderia fazer sem permitir ao Requerido pronunciar-se sobre a mesma, o que efectivamente não aconteceu.

21. Porque nunca foi suscitado qualquer dissipação do património da sociedade em proveito pessoal, ou que o preço da venda do “prédio de ...” não tinha dado entrada nas contas da sociedade.

22. Assim, a integração desta factualidade (essencial para a fundamentação do sentido da decisão) sem permitir a pronúncia e prova (estando excluída dos temas da prova, inclusivamente) constitui uma violação do Princípio do contraditório e consubstancia a prolação de uma decisão surpresa proibida pelo n.º 3 do artigo 3.º do C.P.C.

23. Não podemos ignorar que o artigo 3.º n.º 3 do C.P.C. refere o seguinte:

“O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem ”.

24. Como assevera o Supremo Tribunal de Justiça no seu aresto de 13 de Janeiro de 2005:

«Como decorrência do princípio do contraditório, consagrado, entre outros, no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, é proibida a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes».

25. E de facto, conclui o mesmo Tribunal, mas no seu Acórdão de 12 de Julho de 2018 que:

«a decisão-surpresa que a lei pretende afastar, afoitamente, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar e não com os fundamentos não expectáveis de decisões que já eram previsíveis (…)»

26. Ou seja, consagra-se no referido n.º 3 do artigo 3.º do C.P.C. o princípio do contraditório, designadamente através da proibição de decisão-surpresa, isto é, da decisão baseada em factos e fundamentos que não tenha sido previamente considerado pelas partes.

27. Sendo que, no limite [ainda que podendo depois discutir-se uma violação do princípio do pedido…] o exercício do contraditório negado ao Requerido deveria ter lugar antes de proferido a Sentença, tratando-se até de um acto preparatório da mesma.

28. Atente-se na posição do Tribunal Constitucional que é liminar em afirmar que [vide Acórdão n.º 298/2005 de 7-6-2005]:

«o princípio do contraditório decorre a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar».

Concretizando,

29. não tendo sido dada ao Requerido a possibilidade de se pronunciar sobre tal factualidade essencial não alegada e não constante dos temas da prova [dissipação do património da sociedade em proveito pessoal, ou que o preço da venda do “prédio de ...” não tinha dado entrada nas contas da sociedade], é então possível concluir-se que em não foi permitido ao Requerido o seu debate e o exercício do seu contraditório e direito de defesa, numa gritante violação do n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, tendo sido antes confrontada por uma efectiva decisão-surpresa!

30. A verdade é que tais factos (n.º 20 e 21 do elenco de factos provados) suportaram a fundamentação do sentido decisório da Sentença do Tribunal,

31. sendo manifesto que influíram no exame e decisão da causa.

32. Pelo que a sua inclusão na matéria de facto dada como provada (factos n.º 20 e 21), sem terem sido debatidas nos articulados/pareceres, sem terem sido incluídas nos temas da prova, sem ter sido permitido o conveniente contraditório ao Requerido sobre os mesmos, reveste uma categoria “decisão surpresa”,

33. violando grosseiramente o princípio do contraditório e direito de defesa, integrando assim uma nulidade que influiu no exame ou na decisão da causa e se consumou com a prolação da Sentença, determinando a anulação de todo o processado a partir do momento em que se verificou – cfr. artigos 3º, nº 3 e 195.º, n.º 1 do C.P.C..

34. De facto, «A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico».

35. Isto, porquanto, e na esteira do Tribunal da Relação de Évora: “O exercício do contraditório é sempre justificável e desejável se puder gerar o efeito que, com ele, se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.”

36. E como bem ensinam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre:

“Os n.ºs 3 e 4 (…) consagram o princípio do contraditório, o primeiro em geral e na vertente proibitiva da decisão-surpresa e o segundo no aspecto da alegação dos factos em causa.

Resultam estes preceitos duma concepção moderna do princípio do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior à sua introdução no nosso ordenamento. Não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção.

Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma concepção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.”

37. Veja-se igualmente o Supremo Tribunal de Justiça [acórdão de 4-05-1999], que é liminar em afirmar que:

“nenhuma decisão deve, pois, ser tomada pelo juiz sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar”

Concluindo:

38. Face ao exposto, é perceptível que a decisão do Tribunal ao decidir como decidiu (integrando os factos n.º 20 e 21 na matéria de facto dada como provada em Sentença, e fundamentando a sua decisão com recurso aos mesmos) revestiu a forma de uma “decisão-surpresa”, sem audição do Requerido para que exercesse o seu contraditório quanto a uma questão de facto que jamais havia sido suscitada nos autos [dissipação do património da sociedade em proveito pessoal, ou que o preço da venda do “prédio de ...” não tinha dado entrada nas contas da sociedade].

39. Assim sendo, tratar-se-á (considerando-se estar perante uma decisão-surpresa) de uma nulidade processual, na medida em que se terá omitido a prática de um acto que a lei prescreve [artigo 195.º, n.º 1 C.P.C.].

40. Mas também, nestes termos, e visto que ficou o Requerido impossibilitado de deduzir uma defesa eficaz, útil ou adequada no exercício do seu direito ao contraditório, estamos perante uma nulidade, por violação dos princípios do contraditório (cfr. art. 3.º, n.º 1 e 3), da boa-fé processual (cfr. art. 8.º do C.P.C.), e do direito a um processo justo e equitativo (cfr. art. 20.º da C.R.P. e art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem),

41. que, a ser desvalorizada e indeferida, redunda igualmente numa violação gritante do consagrado no artigo 20.º, n.º 4 da C.R.P., padecendo de incurável inconstitucionalidade o prosseguimento dos autos sem exercício de contraditório do Requerido, a qual se deixa arguida para todos os efeitos tidos por convenientes.

42. Por último, de referir que a exigência de um processo equitativo constante do n.º 4 do art. 20.º da C.R.P. postula a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas, os quais foram violentamente atropelados nos presentes autos, redundando numa nulidade e numa inconstitucionalidade que, desde já e para os devidos efeitos legais, se deixam expressamente arguidas.

Termos em que se requer:

a. seja julgada procedente a existência de uma nulidade processual, na medida em que se terá omitido a prática de um acto que a lei prescreve [artigo 3.º., n.º 3 e artigo 195.º, n.º 1 C.P.C.] e o qual influiu no exame e decisão da causa;

b. seja julgada procedente a existência de uma nulidade, por violação dos princípios do contraditório (cfr. art. 3.º, n.º 1 e 3), da boa-fé processual (cfr. art. 8.º do C.P.C.), e do direito a um processo justo e equitativo (cfr. art. 20.º da C.R.P. e art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem). e, em consequência, seja anulada a Sentença proferida.

Devendo, por conseguinte:

c. ser proferida uma nova decisão por parte do Tribunal, considerando a eliminação dos factos n.º 20 e 21 da matéria de facto considerada como provada e que serviu de suporte à fundamentação da decisão, com uma alteração consequente ao sentido de decisão e fundamentação;

ou, caso assim não se entenda,

e na eventualidade do Tribunal pretender considerar, sem mais, tal matéria na sua decisão [ainda que em violação do princípio do pedido]

d. ser dada possibilidade ao Requerido para se pronunciar por escrito sobre tal factualidade, concedendo-se a possibilidade de apresentar os meios de prova que entenda quanto à mesma matéria de facto, mediante alteração dos temas da prova e reabertura da audiência de discussão e julgamento para realização de eventual prova testemunhal [se oportunamente vier a ser requerida].”

Em 19.8.2025 a credora “A..., Lda.” respondeu nos seguintes termos:

“1. No seu, aliás douto, Requerimento apresentado nos autos em 6/08/2025, o Requerido argui, em suma, a nulidade processual da, sempre douta, Sentença proferida que concluiu que a conduta omissiva por banda do aqui requerido AA agravou o estado insolvencial da sociedade de que era gerente, tendo por base a seguinte fundamentação:

a. A Sentença proferida padece do vício de nulidade por constituir decisão surpresa ao afirmar que «O valor de €200.000,00 (duzentos mil euros) não deu entrada nas contas da sociedade insolvente, ao contrário do que foi feito constar da escritura aludida em 17), sendo que nem a preparação da escritura foi paga pelos próprios requeridos (ali compradores) junto da Notária» e;

b. A Sentença proferida padece do vício de nulidade por constituir decisão surpresa ao afirmar que « O requerido AA, enquanto gerente de direito e de facto da insolvente, ao actuar da forma descrita, dispôs de bens da sociedade devedora em proveito pessoal, sendo que tal disposição/dissipação de tal acervo patrimonial resulta igualmente dos valores que constavam nos documentos contabilísticos da insolvente na rubrica “inventários” no ano de 2017 (€831.488.12) por comparação aos valores que passaram a constar nos anos de 2018 e 2019 (0,00);»

2. O Requerido alega, ainda, que a prova documental e testemunhal prestada nos autos à margem identificados permite concluir uma realidade exactamente oposta, pese embora reconheça que tal conclusão, a ser verdade, de nada releva para o efeito pretendido.

3. Em suma, o busílis do requerimento apresentado pelo Requerido centra-se na suposta omissão do direito ao contraditório referente aos factos melhor descritos nas alíneas do antecedente ponto 1., por não haverem sido suscitadas essas questões.

4. Acontece que, com o devido respeito, não poderão as aludidas nulidades proceder, desde logo porque a dissipação do património da insolvente consta do elenco dos temas da prova -cf. alíneas 3) e 8)-

5. Aliás, contrariamente ao afirmado pelo Requerido, a prova testemunhal incidiu, entre o mais, na dívida do Requerido à insolvente, decorrente da falta de pagamento da moradia de ... -vide declarações prestadas pela testemunha CC na audiência de julgamento realizada no dia 31/05/2023-.

6. Cumpre ainda salientar que, no seguimento das declarações proferidas pelo Técnico Oficial de Contas da insolvente, a aqui Requerente requereu que fosse ordenada a notificação da Exma. Senhora Administradora da Insolvência para juntar a documentação contabilística apreendida – com expressa referência aos documentos justificativos de suporte referentes às Declarações de Prestação de Contas relativas ao ano de 2018 e 2019 -, nos termos do nº 5 do artigo 233.º do CIRE, justificando a essencialidade do requerido para a demonstração dos Temas da Prova elencados sob os nº 3); 5) e 8).

7. O requerido pela aqui Requerente em 12/06/2023, com a referência citius 35905942, por se afigurar essencial à boa decisão da causa, foi deferido por douto Despacho com a referência citius 449390408, datado de 14/06/2023.

8. Acontece que, no exercício do direito de pronúncia à documentação contabilística posteriormente carreada nos autos, a aqui Requerente, através do requerimento apresentado nos autos em 27/09/2023, afirmou perentoriamente que da documentação contabilística da insolvente não consta qualquer documentação relevante referente à moradia de ... dissipara para a esfera do Requerido. [sic]

9. Mas mais, ainda no requerimento de pronúncia à documentação contabilística apresentado, alegou a Requerente que:

a. aos presentes autos não interessa a análise de «Notas de Lançamentos» indiscriminadas, mas, outrossim, interessa a análise dos documentos justificativos que levaram às inscrições a crédito e a débito nessa mesma conta de sócio, uma vez que, alegadamente, terá sido através dessa conta que se procedeu ao pagamento parcial do imóvel dissipado;

b. nas pastas entregues pelo Requerido AA não consta, sequer, a escritura de venda referente ao imóvel de ... e,

c. como propositadamente engendrado pelo Requerido AA, nenhuma pasta referente às vendas do ano de 2018 -na qual deveria constar a alegada venda do imóvel de ... datada de 08/2018- foi entregue a este douto Tribunal, pese embora haja sido notificado para o efeito.

Aqui chegados,

10. a falácia da arguida nulidade processual soçobra, também, pelo impulso processual do próprio Requerido quando, na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 28/09/2023, requereu «que atendendo ao documento junto ao processo e agora confrontado à testemunha CC, e também aos esclarecimentos solicitados pelos ilustres mandatários dos requerentes, bem como pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público e na ótica da descoberta da verdade material que todas as partes aqui presentes pretendem obter os cabais esclarecimentos sobre os factos que aqui nos trazem, pelo que requer, nos termos e ao abrigo dos arts. 411 e 417 do Código de Processo Civil, e uma vez que durante o decurso da audiência de julgamento também se denota e resulta a necessidade desses documentos, e que os mesmos são essenciais e imprescindíveis para a descoberta da verdade material e para a apreciação e justa composição do mérito da presente causa nos presentes autos, a concessão ao requerido de um prazo de 10 dias para proceder à junção aos presentes autos dos comprovativos de transferência para a sociedade C... dos montantes pagos a título de aquisição do terreno de ... aqui mencionado».

11. Conforme consta da Ata da referida audiência de discussão e julgamento, «Atenta a não oposição quer dos ilustres mandatários presentes, quer do Digníssimo Magistrado do Ministério Público, o Tribunal defere o requerido prazo de 10 dias, quer para a proceder à junção aos presentes autos dos comprovativos de transferência para a sociedade C... dos montantes pagos a título de aquisição do terreno de ..., quer para se pronunciar dos requerimentos apresentados pelos requerentes em 27-09-2023, referências 46626187, 46632997 e 46633020».

12. Ante tudo quanto supra exposto, vir, agora, o Requerido forçar a arguição da nulidade processual, propalando que nunca foi instado a pronunciar-se sobre a existência, ou não, daquela factualidade, tendo inexistido qualquer debate concreto sobre essas questões, apenas reforça a litigância de má-fé já apontada ao longo de todo o processado.

13. Com efeito, sendo, como é, verdade que o Requerido não só teve a oportunidade de se pronunciar sobre toda a factualidade essencial, não menos verdade é que o Requerido ainda requereu a concessão de prazo para proceder à junção de prova documental que, em tese, lhe permitiria justificar a dissipação de património que lhe foi imputada.

14. Arguir, agora e porque não se logrou justificar o injustificável, uma nulidade processual, invocando-se que não foi concedido o direito ao contraditório e de defesa, quando dos autos consta evidenciado precisamente o seu contrário é revelador de uma conduta processual manifestamente reprovável, porquanto apenas tendente ao retardamento do trânsito em julgado da Decisão, designadamente por via de uma putativa inconstitucionalidade.

TERMOS EM QUE se requer a V. Exa. se digne a julgar totalmente improcedentes as nulidades arguidas.”

Em 19.8.2025 também a credora “B... Unipessoal, Lda.” respondeu nos seguintes termos:

“I - DO MEIO PRÓPRIO PARA O EFEITO

1. Não tem obtido resposta unânime, no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal, a questão de saber se a prolação de uma decisão surpresa, com violação do princípio do contraditório, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 195.º, n.º 1, do CPC, ou uma nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, em conformidade com o disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

2. No último sentido, na esteira das posições assumidas por Teixeira de Sousa (Decisão-surpresa; nulidade da decisão, publicado in blog do IPPC) e de Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, pág. 26), se pronunciaram os acórdãos de 13-10-2020 (proc. n.º 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1), de 16-12-2021 (proc. n.º 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1) e de 13-04-2021 (proc. n.º 2019/18.6T8FNC.L1.S1,), disponíveis em www.dgsi.pt e ainda acórdão do STJ de 25-02-2025 (Revista n.º 9924/24.9T8LSB.L1.S1), e de 10-04-2024 (Revista n.º 1126/19.2T8VIS.C1.S1),

3. Assim, e como se dá nota no acórdão do STJ de 23.6.2016, proc. nº 1937/15.8T8BCL.S1, em www.dgsi.pt: no escrito datado de 10.5.2014, no Blog do IPPC, em comentário ao Ac.R. de Évora, de 10.4.2014, Miguel Teixeira de Sousa observou que ainda que a falta de audição prévia constitua uma nulidade processual, por violação do princípio do contraditório, essa “nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), do NCPC), dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão”

4. Também em escrito datado de 23.3.2015, em comentário ao Ac. da R. do Porto, de 2.3.2015 concluiu que “o proferimento de uma decisão-surpresa é um vício que afecta esta decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual) ”; como aí se refere, até esse momento, “não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir”, e que “o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria”.

5. Ainda no escrito de 20.5.2020, em comentário a acórdão da Relação do Porto, apreciou assim:

“O vício decorrente da falta da audição prévia das partes é - como é indiscutível e indiscutido -- o proferimento de uma decisão-surpresa; há, assim, uma decisão-surpresa, mas não uma "nulidade-surpresa"; basta este aspecto linguístico para justificar que o vício não é a nulidade processual, mas antes a decisão-surpresa; esta expressão indicia um desvalor da decisão, pelo que não é compreensível desconhecer este desvalor e recorrer ao da nulidade processual (e menos ainda pretender duplicar o desvalor da decisão-surpresa com o da nulidade processual); acresce que o CPC trata diferentemente as nulidades processuais (arts. 186º e ss.) e as nulidades da decisão (arts. 615º, 666º, n.º 1, e 685º), pelo que fica por justificar como é que, contra a sistemática do CPC, uma decisão viciada é uma nulidade processual;--

O objecto do recurso é (sempre) uma decisão (não pode ser outra coisa); há uma decisão recorrida, mas não uma "nulidade recorrida"; logo, o objecto do recurso é a decisão-surpresa, o que significa que o recorrente tem de fundamentar a interposição do recurso num vício dessa decisão; em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia, dado que conhece de matéria que, perante a omissão da audição das partes, não podia conhecer (arts. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC).”

6. Por último, no escrito de 22.9.2020 do mesmo Blog, escreveu: “(...) A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa). Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência. Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.”

7. Portanto, seja qual for a perspectiva que se adopte - a consunção da nulidade processual pela nulidade da decisão por excesso de pronúncia - ou a consideração de apenas um vício, o da decisão, será sempre este último que deverá ser atacado.

8. Motivo pelo qual a nulidade ora invocada em sede de reclamação devê-lo-ia sido invocada em sede de recurso da sentença, não sendo este o meio competente para o efeito, devendo assim o requerimento ser desentranhado o que se requer desde já.

Não obstante e sem prescindir, caso assim não se entenda, sempre se dirá, por mero dever de patrocínio o seguinte:

II - DA INOBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO QUANTO AOS FACTOS 20 E 21

9. O requerido alega, em síntese, que houve violação do princípio do contraditório perante a surpresa da sentença quanto aos factos dados como provados sob o n.º 20 e 21 da douta sentença proferida.

Vejamos,

10. O art. 3º do CPC insere-se no título das disposições e dos princípios fundamentais.

11. Nos termos do nº 3 do art. 3º do Código de Processo Civil, o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

12. Por sua vez, o nº 4 desse artigo prevê que às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.

13. Consagrando a Constituição da República Portuguesa, no seu art. 20º, nº 4, a garantia de processo equitativo, daí decorre que a medida de tutela final (no caso, judicial) seja produzida com participação dos titulares da relação litigiosa.

14. No dizer de Rui Pinto, CPC Anot., Vol. I, pag. 39 e ss, “num sentido objectivo a participação dos interessados é a própria lógica de estruturação do processo e que se sintetiza numa afirmação: a decisão judicial sobre uma providência requerida deve ser o resultado de um procedimento ou método que implique uma faculdade de comparticipação, colaboração ou influência paritárias”.

15. Assim, no decurso do processo, as partes, independentemente da sua posição (activa ou passiva), podem pronunciar-se previamente sobre cada acto que as afecte, se assim desejarem.

16. Ainda segundo o mesmo autor, num sentido subjectivo o princípio do contraditório implica um direito de defesa.

17. Decorre do exposto que são proibidas as decisões surpresa, ou seja, sem prévia oportunidade de participação ou audição de partes, de modo que não é lícito ao juiz decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, como refere o art. 3º, nº 3, citado.

18. Não há decisão surpresa, violadora do princípio do contraditório, quando a solução final alcançada pelo tribunal se moveu dentro do perímetro da causa de pedir e do pedido, e num quadro jurídico que, nessa medida, se afigurava como expectável ou que, pelo menos, poderia ter sido perspectivado pelas partes.

19. In casu, o requerido insurge-se contra a factualidade vertida nos factos provados constantes nos pontos 20 e 21 da sentença, designadamente: [segue-se a transcrição dos nºs 20 e 21]

20. Na sua reclamação indica que “tal factualidade não foi alegada pelos Credores, pelo A.I. ou pelo Ministério Público nos seus articulados/pareceres que estiveram na génese do presente Incidente, e que delimitam a matéria do mesmo.”

21. Alegando que “nos temas da prova criteriosamente seleccionados pelo Tribunal em sede de despacho saneador não consta qualquer factualidade referente à eventual falta de entrada nas contas da sociedade insolvente do valor de venda do “Prédio de ...”, ou sequer quanto ao proveito pessoal que o Requerido teria tirado através da disposição de bens da sociedade”.

22. Ora, tal não corresponde de todo à verdade uma vez que

- a dissipação do património da insolvente consta do elenco dos temas da prova -cf. Alíneas 3) e 8), tendo inclusive o próprio requerido na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 28/09/2023, solicitado prazo para proceder à junção aos autos dos comprovativos de transferência para a sociedade C... dos montantes pagos a título de aquisição do terreno de ....

- a aqui credora reclamante/requerente alegou ab initio na sua petição inicial, no ponto “73. Além do abandono propositado das obras em curso, o gerente utilizou igualmente a empresa insolvente em proveito próprio, pois efectuou reconstruções, reparações e mesmo construções de moradias pessoais ou mesmo de familiares, sem as ter liquidado.”

- a aqui credora reclamante requereu ao tribunal a notificação do Sr. DD, para proceder à junção de toda a documentação que dispõe relativamente às obras efetuadas à moradia ..., o que veio a suceder, sem que o requerido se tivesse sequer pronunciado sobre os documentos entretanto juntos,

- a testemunha CC foi questionada relativamente à e(ine)xistência nas IES do imóvel de ... nem verificação do seu produto de venda algo que afectou o passivo e activo.

- em sede de alegações finais ambas as questões foram abordadas por todos os intervenientes, designadamente digníssimo magistrado do MP e credoras reclamantes/requerentes, tendo o requerido tido oportunidade para também nessa sede alegar o que tivesse por conveniente.

23. Assim, conclui-se que o expediente aqui utilizado não é mais do que um meio para obstaculizar o prosseguimento dos autos e in casu o trânsito em julgado da sentença, dado o mesmo não ter o mínimo fundamento cabal nem de facto nem de direito.

TERMOS EM QUE SE REQUER A V. EXA. QUE:

- DESENTRANHE O REQUERIMENTO APRESENTADO PELO REQUERIDO POR LEGALMENTE INADMISSÍVEL

OU, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA,

- JULGUE TOTALMENTE IMPROCEDENTE A NULIDADE ARGUIDA.”

A 22.8.2025 o requerido AA interpôs da sentença proferida em 21.7.2025 recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes – e muito extensas - conclusões:

(…)

Pretende assim a revogação da sentença recorrida.

Em 27.8.2025 o Min. Público respondeu ao recurso interposto, pronunciando-se pela confirmação do decidido.

Por despacho de 4.9.2025 o recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

A Mmª Juíza “a quo”, pronunciando-se sobre as nulidades que foram arguidas pelo requerido AA tanto em sede de recurso, como antes cautelarmente através do requerimento apresentado em 6.8.2025, consignou o seguinte:

“--- Não vislumbramos a existência de qualquer nulidade que possa ter inquinado a sentença prolatada. Insurge-se o recorrente afectado contra a fixação de factos provados sob os pontos 20) e 21), alegando que jamais foi promovida pelo tribunal um debate sobre os factos integrantes dessa materialidade e que o que se retira da prova documental é realidade contrária à dada como demonstrada por este Tribunal.

--- Refutamos frontalmente esta argumentação:

. em primeira linha porque o que a parte em causa entende que se retira da prova documental é apenas entendimento conflituante com aquele que foi, através de fundamentação/motivação exaustiva e minuciosa, assumido pelo tribunal;

. em segunda linha porque toda aquela factologia insere-se nos temas da prova atempadamente fixados (necessariamente genéricos e passíveis de serem densificados com factos advindos de alegação das partes – alguns deles foram extraídos de interpretação realizada pelas partes a respeito de documentação que ia sendo junta ao processo – ou resultantes do que foi sendo apurado através da discussão na audiência de julgamento). Por outro lado, importará não obliterar a norma prevista no art.º 11.º do CIRE, com a ressalva que todos, mas absolutamente todos, os factos dados como provados por este tribunal mereceram ampla discussão e submissão a contraditório em audiência de julgamento.”

Em 19.9.2025 foram apresentadas contra-alegações por parte das credoras “A..., Lda.” e “B... Unipessoal, Lda.”, que ambas concluíram no sentido da confirmação do decidido pela 1ª Instância.

Cumpre então apreciar e decidir.


*


FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


*


As questões a decidir são as seguintes:

I – Violação do princípio do contraditório;

II - Nulidade da sentença por excesso de pronúncia;

IIIReapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto;

IV – Qualificação da insolvência como culposa;

V – Aplicação da medida de inibição prevista no art. 189º, nº 2, al. b) do CIRE.


*


É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:

1. A insolvente “C..., Lda.”, constituída em 2014, é uma sociedade comercial cujo objecto social se identifica com construção civil e obras públicas; Engenharia; Gestão de Projectos; Fiscalização de Obras; Comércio de materiais de construção; Empreendimentos Imobiliários, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, gestão de bens imobiliários próprios, locação e gestão dos mesmos; urbanizações e loteamentos de terrenos bem como a construção dos prédios próprios para venda e Promoção Imobiliária, com um capital social de 170.000,00, composto por três quotas, a saber, uma no valor de € 90.000,00 pertencente a AA, outra de € 90.000,00 pertencente a AA, e uma outra de € 90.000,00 pertencente a BB, sendo seu gerente AA, desde deliberação datada de 16.05.2014, tudo como flui do teor da certidão permanente junta a este apenso a fls. 113-119, que aqui se dá por integralmente reproduzido;

2. Na estrutura societária da insolvente ocorreram diversas alterações, ao longo do tempo, sendo que por deliberação de 15.12.2015 foi designada (também) como gerente BB, sendo que tal cargo viria a cessar por renúncia datada de 27/08/2018, registada na competente Conservatória através da Ap....3/20180903;

3. Até à data em que a sociedade devedora foi declarada insolvente, foi o requerido AA que se manteve como gerente (único) da aludida sociedade;

4. O credor “E..., S.A.”, devidamente identificado nos autos, deu entrada de pedido de declaração da insolvência de “C..., Lda.” Aos 17/09/2020 - conforme requerimento inicial ali constante – cujo teor aqui se dá por reproduzido -, relativamente ao qual a devedora não veio deduzir oposição, tendo a sentença declaratória da insolvência da sociedade requerida sido proferida por sentença datada de 11.12.2020, pelas 10h45m, sentença que viria a transitar em julgado;

5. No âmbito do relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, a administradora da insolvência nomeada nos autos, fez constar que no ano de 2019 haviam sido intentadas contra a insolvente diversas acções declarativas, executivas e injunções, num valor total de € 183.610,96, e que de acordo com a última prestação de contas – referente ao ano de 2019 – a insolvente havia registado um volume de negócios de € 1.346.430,36 com uma quebra face ao ano anterior de 23,61%, tendo encerrado o exercício de 2019 com o EBITDA negativo em – 253.270,74 e resultados líquidos negativos de – 280.185,57 (no exercício de 2018 tais resultados líquidos a negativo eram de – 343.071,32), e que de acordo com o balanço evidenciou-se um passivo de 1.069.285,66 e um activo de € 814.295,08, registando capitais próprios negativos de – 254.990,58, tudo como flui do teor de tal relatório e documentação anexa ao mesmo, que aqui se dá por integralmente por reproduzida para os devidos e legais efeitos;

6. A insolvente enfrentou sérias dificuldades no exercício económico de 2018, nunca mais tendo conseguido recuperar, sendo que o volume de negócios da sociedade evoluiu sempre desfavoravelmente desde 2017, conforme quadro que ora se deixa exarado:


7. Mais se verifica que desde 2018 o resultado operacional e o resultado líquido do exercício evidenciam anos de quebra acentuada, com excessivo peso no volume de negócios dos Fornecimentos e Serviços Externos, tendo a insolvente se tornado incapaz de gerar a margem bruta necessária para cobrir todos os restantes custos fixos e variáveis da sua actividade, conforme quadro que se deixa exarado:


8. Os níveis de autonomia financeira e solvabilidade baixaram para níveis muito baixos nos termos que se deixam consignados no quadro que se segue:


9. Ao mesmo tempo agravaram-se também todos os indicadores económico-financeiros relevantes, tais como:


10. A evolução negativa de todos os indicadores do quadro constante em 9) é demonstrativa da situação deficitária que a sociedade requerida já se defrontava desde o ano de 2018, razão pela qual já, pelo menos, em finais desse ano e, seguramente, em 31.03.2019, aquela estava impossibilitada de cumprir com as suas obrigações vencidas, apresentando-se o seu passivo muito superior ao activo, de acordo com os registos disponíveis e normas contabilísticas aplicáveis, não tendo sido adoptada a conduta prevista no art.º 35.º do Código das Sociedades Comerciais;

11. Apesar do facto referido em 10), o gerente AA absteve-se do dever legal que sobre o mesmo impendia de apresentar a sociedade à insolvência, com o que causou prejuízos aos credores, agravando a situação insolvencial;

12. A sociedade insolvente, através do seu gerente AA, celebrou um contrato denominado de “empreitada”, datado de 31 de dezembro de 2019 com EE (dona da obra), tendo ali sido declarado que esta última adjudicava àquela primeira sociedade a reabilitação interior e exterior de moradia sita na Rua ..., ... ..., obrigando-se a sociedade aqui insolvente a executar a obra correspondente a trabalhos de construção civil e especialidades de acordo com especificações constantes de anexos ao contrato, sendo o preço global da empreitada de € 105.000,00, sem prejuízo de trabalhos a mais efectuados no interesse do dono da obra ou trabalhos a menos por acordo mútuo, mais tendo ficado exarado que o dono da obra havia feito a consignação da obra no dia 18 de dezembro de 2019 e que com este acordo consignava a obra à empreiteira, assumindo não existir qualquer impedimento para o início da realização da obra, tendo ficado acordado que o início dos trabalhos ocorreria no dia 27 de janeiro de 2020, tudo conforme documento 3 junto com o requerimento de incidente de qualificação que deu origem ao presente apenso apresentado pelo credor A..., e que aqui se dá por reproduzido para os devidos e legais efeitos;

13. Por virtude do acordo de empreitada aludido no ponto anterior, a insolvente, através da actuação do seu gerente, recebeu valores entregues pelo dono da obra, a título de adiantamentos, em valor superior a € 30.000,00, sendo que os trabalhos que foram sendo realizados não cumpriam com os “timings” acordados e a insolvente não emitiu factura de adiantamento/recibo respeitante aos valores entregues pela dona da obra, o que gerou desentendimentos entre as partes;

14. Por virtude do facto referido em 13), a insolvente, ao ter recebido pagamentos de serviços por si prestados em 2020, sem emissão de correspondente factura de adiantamento, prejudicou a verdadeira compreensão da situação patrimonial e financeira da sociedade;

15. No âmbito do apenso B – verificação e graduação de créditos - foi obtida composição amigável do litígio que ali dividia a sociedade insolvente e a credora EE, através do qual as partes acordaram em fixar o valor em dívida a ser reconhecido neste contexto insolvencial a favor desta credora em € 35.000,00 (sendo € 15.000,00 referentes à cláusula penal do contrato de empreitada e remanescente de 20.000,00€ referente a custos da credora reclamante para concluir a obra), a qualificar como crédito comum;

16. Para além do valor aludido em 15) e do demais reconhecido em apensos de verificação ulterior de créditos, no competente apenso B foi reconhecido um passivo global de € 952.354,86;

17. Por escritura pública de 30 de agosto de 2018, a “C...”, através dos seus gerentes AA e BB, declarou vender, pelo preço já recebido de duzentos mil euros, aos referidos AA e BB, o prédio urbano composto de terreno para construção, designado por “lote quatro”, sito no lugar ..., ..., com as benfeitorias já existentes consistentes em construção inacabada de uma moradia de rés do chão e andar, pronta de pedreiro e de parte de trolha, com telhado, algumas portas e janelas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o número ... de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...64 da União de Freguesias ..., ... e ..., tudo como flui do documento 4 junto com o articulado de 29.11.2023 do credor requerente B... (ref.ª 47301123) - fls. 523 e ss. – cujo teor integral aqui se dá por reproduzido;

18. Simultaneamente à outorga do contrato de compra e venda referido em 17), os aqui requeridos AA e BB celebraram com o Banco 1..., S.A., um contrato de abertura de crédito com hipoteca no valor global de € 200.000,00, tudo como flui do teor do documento 5 junto com o articulado de 29.11.2023 do credor requerente B... (ref.ª 47301123) – fls. 526/527 – cujo teor aqui se dá por reproduzido;

19. Em 20 de dezembro de 2018, os aqui requerido AA e BB, declararam vender o imóvel descrito em 17) a pessoa identificada como sendo FF, pelo preço global de € 460.000,00, tudo como flui do teor do documento 6 junto com o articulado de 29/11/2023 do credor requerente B... (ref.ª 47301123), cujo teor aqui se dá por reproduzido;

20. O valor de € 200.000,00 (duzentos mil euros) não deu entrada nas contas da sociedade insolvente, ao contrário do que foi feito constar da escritura aludida em 17), sendo que nem a preparação da escritura foi paga pelos próprios requeridos (ali compradores) junto da Notária;

21. O requerido AA, enquanto gerente de direito e de facto da insolvente, ao actuar da forma descrita, dispôs de bens da sociedade devedora em proveito pessoal, sendo que tal disposição/dissipação de tal acervo patrimonial resulta igualmente dos valores que constavam nos documentos contabilísticos da insolvente na rubrica “inventários” no ano de 2017 (€ 831.488.12) por comparação aos valores que passaram a constar nos anos de 2018 e 2019 (0,00);

22. A contabilidade da insolvente era elaborada em regime de outsourcing até ao final do ano de 2019 pelo Sr. Dr. CC e a partir do ano de 2020 pelo Sr. Dr. GG;

23. Por referência à “Prestação de Contas” depositada em setembro de 2020 e a “Prestação de Contas” depositada em novembro de 2020 (referentes ao exercício de 2019), verifica-se a existência das seguintes alterações, a saber, na parte referente a “activo corrente dos accionistas/sócios” no montante de € 258.500,00 e a “passivo corrente accionistas/sócios” no valor de € 170.180,00, tais valores deixaram de constar da referida “prestação de contas” de substituição, o que foi realizado com a finalidade de eliminar qualquer crédito que a sociedade detinha perante os órgãos sociais, assim agravando, de facto, a situação insolvencial da sociedade;

24. AA e BB eram casados entre si, sendo que o respectivo casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 17 de janeiro de 2019, transitada em julgado aos 18.02.2019 (v. fls. 309 do presente apenso);

25. Foram reconhecidos créditos, no âmbito da presente insolvência, à Segurança Social de € 15.724,31, referentes a contribuições e quotizações de janeiro a maio de 2020, e à Autoridade Tributária de € 11.102,20, referente a IRS tributo vencido entre fevereiro e setembro de 2020;

26. De acordo com a prestação de contas referente ao ano de 2018, encontra-se inscrita, no quadro ...81-A, alienações de equipamento de transporte no valor de € 14.634,15 (fls. 53 deste apenso) e na prestação de contas referente ao ano de 2019 – depositada em novembro de 2020 – encontra-se inscrita rubrica de alienações de equipamento de transporte no valor de € 20.28384 (fls.67 verso deste apenso), o que revela que a insolvente alienou tal tipo de equipamento por valor não concretamente apurado;

27. Na prestação de contas de 18.11.2020 referente ao ano de 2019, foi feita constar rubrica “Entradas para cobertura de perdas” no valor de € 332.333,85, à qual não correspondeu efectiva injecção desse capital na sociedade insolvente, tendo aquela rubrica influenciado quer os resultados transitados quer o capital próprio (que passaram a apresentar resultados positivos);

28. Por virtude dos factos referidos em 23) e 27), a sociedade insolvente apresentava contabilidade irregular e que não espelhava a efectiva realidade financeira daquela;

29. No âmbito da presente insolvência foram apreendidos a favor da massa insolvente algumas viaturas automóveis, algum mobiliário, acções e saldos bancários, conforme melhor consta dos autos de apreensão juntos ao apenso C – cujo processado aqui se dá por reproduzido – tendo a liquidação desse activo resultado no valor de cerca de € 16.889,97, conforme resulta dos apensos de apreensão e liquidação;

30. O requerido AA é técnico de obra, divorciado, nasceu em ../../1980, e foi nomeado gerente de sociedade com a firma “D..., Lda.” em pacto social firmado em 16 de junho de 2020, com objecto social consistente em construção de edifícios, demolição de edifícios, terraplanagens, nivelamento de terrenos, perfurações e sondagens, instalação de canalizações; instalação de climatização; Estucagem, montagem de trabalhos de carpintaria e de caixilharia, tudo como flui do teor do documento junto a fls. 319-322 deste apenso, que aqui se dá por integralmente reproduzido (junto com o articulado junto pelo credor B... em 13.12.2021 – ref.ª 40730119);

31. O requerido AA cessou as suas funções de gerente referidas em 30), de acordo com a certidão permanente junta a fls. 78 deste apenso, por renúncia datada de 16.10.2020 e foi declarado insolvente por sentença proferida em 31.10.2022, no âmbito do processo n.º 3146/22.0T8STS (Juiz 5 deste Tribunal Central do Comércio);

32. Nos anos de 2019 e 2020, os requeridos AA e BB auferiam mensalmente, por referência à entidade empregadora “C..., Lda.”, as quantias mensais de € 2.100,00 cada um (sob o código P – remuneração de trabalho dependente), conforme Extracto da declaração de Remunerações da Segurança Social junto a fls. 216-221 deste apenso (doc. 20 junto com o requerimento do credor B... de 30/03/2021 – ref.ª 38423414);

33. Entre 31.12.2018 e 31.12.2019, a rubrica “fornecedores” de acordo com as “prestações de contas” juntas aos autos, sofreu uma redução de € 312.187,45, assim se exteriorizando uma diminuição do passivo da sociedade C... de acordo com tais elementos contabilísticos;

34. O processo n.º 2479/19.8YIPRT em que era autora a empresa “F... Unipessoal, Lda.”, no valor de € 11.398,11, que correu termos no Juízo Local Cível de Matosinhos foi concluído com transação judicial.


*


Foram considerados não provados os demais factos alegados nos autos, bem como os que com os acima demonstrados se encontrem em contradição (com exclusão dos conclusivos e irrelevantes para o efeito e os alegados em articulados sem cabimento legal) nomeadamente que:

a) A partir de 27/08/2018, apesar da renúncia formal ao cargo de gerente por banda da requerida BB, a mesma se tenha mantido na sociedade insolvente gerindo-a de facto, actuando conjuntamente com o requerido AA, praticando os necessários actos de administração e gestão, assinando documentos, celebrando contratos em nome da insolvente com fornecedores e clientes, contratando ou pagando ao pessoal;

b) As alterações de valores aludidas no ponto 3) dos temas da prova fixados no despacho saneador exarado nos autos, se tenham ficado a dever a vendas de activos imobiliários realizadas pela insolvente em anos anteriores;

c) A requerida BB tenha exercido qualquer função de gerência de facto na sociedade insolvente;

d) A insolvente tenha abandonado de propósito obras em curso, e tenha efectuado reconstruções e reparações em moradias pessoais e de familiares sem as ter liquidado;

e) A sociedade insolvente em dezembro de 2019 se encontrasse a cumprir as suas obrigações, não estando em situação de incumprimento generalizado;

f) O requerido AA desconhecesse que havia sido nomeado gerente na sociedade “D...”;

g) A insolvente tenha emitido facturas de todos os pagamentos que recebeu;

h) A factualidade alegada em 115.º e 116.º/117.º da oposição deduzida pelo requerido AA (à excepção da acima dada por demonstrada no ponto 34 dos factos provados);

i) O requerido tenha liquidado, desde 2019, mais de 300.000,00 em facturas vencidas a credores;

j) O credor requerente “B..., Unipessoal, Lda.”, no âmbito destes autos, tenha imputado à requerida BB a prática de condutas alheias à mesma, bem sabendo da falsidade de tais factos;

k) A insolvente tenha incumprido com a obrigação legal de elaborar as contas de 2019, no prazo legal, de as submeter à fiscalização e de as depositar na conservatória do registo comercial.


*


Passemos à apreciação do mérito do recurso.

I – Violação do princípio do contraditório

1. Na primeira parte das suas alegações o recorrente veio suscitar a questão da violação do princípio do contraditório por entender que os factos provados nºs 20 e 21, não constando dos temas da prova, não foram objeto de debate, o que remete para a prolação de uma decisão surpresa e para a consequente verificação de nulidade processual nos termos dos arts. 3º, nº 3 e 195º, nº 1 do Cód. Proc. Civil.

Violação do princípio do contraditório que também fora invocada pelo ora recorrente, em termos de ocorrência de uma nulidade processual, no requerimento antes apresentado em 6.8.2025.

A Mmª Juíza “a quo” pronunciou-se, no despacho de admissão de recurso, no sentido da não verificação de qualquer nulidade, salientando que todos os factos dados como provados pelo tribunal mereceram ampla discussão e foram submetidos a contraditório na audiência de julgamento.

Vejamos então.

2. O princípio do contraditório acha-se previsto no art. 3º, nº 3 do Cód. do Proc. Civil onde se estatui que «o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito e de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem

Assegura-se assim o tratamento paritário de ambas as partes ao longo de todo o processo, como garantia de uma decisão mais justa e imparcial e como seu corolário, cada uma das partes é regularmente chamada a deduzir as suas razões, não podendo ser decidida qualquer questão sem que o princípio do contraditório seja respeitado cfr. ABRANTES GERALDES, “Temas da Reforma do Processo Civil”, I volume, 2ª ed., págs. 75/6.

Por seu turno, MANUEL DE ANDRADE (in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 379), discorrendo sobre a mesma matéria, diz-nos que o princípio do contraditório impõe que cada uma das partes seja chamada a deduzir as suas razões – de facto e de direito – a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras.

A regra do nº 3 do art. 3º do Cód. de Proc. Civil pretende ainda impedir que, a coberto da liberdade de aplicação das regras de direito [art. 5º, nº 3] ou da oficiosidade do conhecimento de certas exceções, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objeto de qualquer discussão – cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., pág. 22.

É certo que o entendimento amplo da regra do contraditório “não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (…); trata-se, apenas e tão somente, de, previamente, ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de excepções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar” – cfr. LOPES DO REGO, “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, 2ª ed., pág. 32.

Porém, não poderá entender-se que toda e qualquer mutação do estrito enquadramento legal que as partes deram às suas pretensões passa necessariamente pela atuação do art. 3º, nº 3.

Assim, conforme afirma LOPES DO REGO (ob. cit., pág. 34) “…a negligência da parte interessada que, v.g. omite quaisquer “razões de direito”, alega frouxamente, situando de forma truncada e insuficiente o óbvio enquadramento jurídico da sua pretensão ou deixa escapar questões jurídicas clara e inquestionavelmente decorrentes dos autos, não merece naturalmente tutela, em termos de obrigar o tribunal – movendo-se, no momento da decisão, dentro dos próprios institutos jurídicos em que as partes no essencial haviam situado as suas pretensões – a, sob pena de nulidade, realizar uma audição não compreendida no normal fluir da causa.”

3. Prosseguindo, há a salientar que a decisão-surpresa se caracteriza como a solução dada a uma questão que, embora pudesse ser previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que esta tivesse obrigação de a prever.
A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes mas oficiosamente levantadas por si, ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3 do art. 3º do Cód. de Proc. Civil, em casos de manifesta desnecessidade.
Com este princípio quis-se assim impedir que as partes pudessem ser surpreendidas, no despacho saneador ou na decisão final, com soluções de direito inesperadas, por não discutidas no processo, as quais, no regime anterior, eram permitidas.
Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, selecionar, qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Impõe, sim, ao julgador que, para além de dar a possibilidade às partes de alegarem de direito, sempre que surge uma questão de direito ainda não discutida ao longo do processo tem de, antes de decidir, facultar às partes a sua discussão – cfr. Ac. Rel. Porto de 18.11.2019, proc. 217/19.4 T8PFR.P1, relatora EUGÉNIA CUNHA, disponível in www.dgsi.pt.
Neste contexto, a decisão-surpresa surge “se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correcta e atinada decisão do litígio”.
“Não tendo as partes configurado a questão na via adoptada pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos". – cfr. Ac. STJ de 27.9.2011, proc. 2005/03.0 TVLSB.L1.S1, relator GABRIEL CATARINO, disponível in www.dgsi.pt.
4. Com efeito, conforme se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4.5.2022 (p. 475/21.4 T8STS-B.P1, relator MANUEL FERNANDES, disponível in www.dgsi.pt.), “[n]a estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração.”[2]
Assim, “[e]m obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.”[3]
De qualquer modo, o respeito pelo princípio do contraditório não implica que haja que apresentar às partes um projeto de decisão para que sobre ele se pronunciem ou que devam ser ouvidas fora dos momentos processuais previstos sobre questões que as suas pretensões coloquem habitualmente na jurisprudência e sejam por isso conhecidas na comunidade jurídica.[4]

5. Uma vez feitas estas considerações, há que regressar ao caso dos autos.

O recorrente sustenta a ocorrência de violação do princípio do contraditório, porquanto, na sua perspetiva, os factos dados como provados sob os nºs 20 e 21, essenciais e imprescindíveis para a decisão final, não foram objeto de qualquer debate e acrescenta que nos temas da prova não consta qualquer factualidade referente à eventual falta de entrada nas contas da sociedade insolvente do valor de venda do “Prédio do ...”, ou sequer quanto ao proveito pessoal que o requerido teria retirado da disposição de bens da sociedade.

A integração destes dois factos na factualidade assente consubstancia decisão surpresa e, por isso, o recorrente entende que foi cometida nulidade processual ao abrigo dos arts. 3º, nº 3 e 195º, nº 1 do Cód. Proc. Civil.

Ora, é a seguinte a redação dos factos nºs 20 e 21:

20. O valor de €200.000,00 (duzentos mil euros) não deu entrada nas contas da sociedade insolvente, ao contrário do que foi feito constar da escritura aludida em 17), sendo que nem a preparação da escritura foi paga pelos próprios requeridos (ali compradores) junto da Notária;

21. O requerido AA, enquanto gerente de direito e de facto da insolvente, ao actuar da forma descrita, dispôs de bens da sociedade devedora em proveito pessoal, sendo que tal disposição/dissipação de tal acervo patrimonial resulta igualmente dos valores que constavam nos documentos contabilísticos da insolvente na rubrica “inventários” no ano de 2017 (€831.488.12) por comparação aos valores que passaram a constar nos anos de 2018 e 2019 (0,00).

O nº 20 conexiona-se com o nº 17, onde se deu como assente que, por escritura pública de 30.8.2018, a insolvente “C...”, através dos seus gerentes AA e BB, declarou vender, pelo preço já recebido de 200.000,00€, aos referidos AA e BB, o prédio urbano composto de terreno para construção, designado por “lote quatro”, sito no lugar ..., ..., com as benfeitorias já existentes consistentes em construção inacabada de uma moradia de rés do chão e andar, pronta de pedreiro e de parte de trolha, com telhado, algumas portas e janelas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº ...21 de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...64 da União de Freguesias ..., ... e ....

Sucede que dos temas da prova consta o seguinte:

“3) Apurar se os referidos AA e BB, atenta as suas qualidades de gerentes de direito e de facto, dispuseram de bens da sociedade, dissiparam ou fizeram desparecer tal acervo patrimonial, atendendo aos valores que constavam nos documentos contabilísticos da insolvente na rubrica “inventários” nos anos de 2017 (€831.488,12) por comparação com os que passaram a constar em 2018, 2019 e 2020 (0,00);

(…)

8) Apurar se as alterações de valores aludidas em 3) se ficaram a dever a vendas de activos imobiliários realizadas pela insolvente, que por esta haviam sido adquiridos nos anos anteriores.”

Quanto aos temas da prova a enunciar, nos termos do art. 596º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, deverá salientar-se que não estamos já perante a quesitação atomística e sincopada de pontos de facto que caracterizava anteriormente o nosso processo civil. O que agora se pretende é que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas, decorra sem barreiras artificiais e sem quaisquer constrangimentos, de forma a assegurar a livre investigação e a consideração de toda a matéria com interesse para a decisão da causa. Assim, quando mais adiante o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, aquilo que importará é que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual – cfr. PAULO PIMENTA, “Processo Civil Declarativo”, 2015, Almedina, pág. 281.

Ou seja, os temas da prova serão aqueles que os exatos termos da lide justifiquem.

Deste modo, a questão factual a que se reportam os pontos nºs 20 e 21, relativa à não entrada nos cofres da sociedade insolvente do valor correspondente à venda do prédio de ..., encontra-se abrangida pelos temas da prova nºs 3 e 8.

Por outro lado, no decurso da sessão de julgamento de 28.9.2023, na sequência de requerimento apresentado pela credora “A..., Lda.”, o requerido AA veio requerer a concessão de um prazo de 10 dias para proceder à junção aos autos dos comprovativos de transferência para a sociedade “C...” dos montantes pagos a título de aquisição do terreno de ..., o que veio a fazer, em 7.11.2023, através da junção de numerosa documentação que, na sua perspetiva, comprovaria tal transferência.

Reproduzimos aqui o teor da ata desta sessão na parte, para o caso, relevante:

“Seguidamente pedida a palavra pelo ilustre mandatário dos requeridos foi dito que atendendo ao documento junto ao processo e agora confrontado à testemunha CC, e também aos esclarecimentos solicitados pelos ilustres mandatários dos requerentes, bem como pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público e na ótica da descoberta da verdade material que todas as partes aqui presentes pretendem obter os cabais esclarecimentos sobre os factos que aqui nos trazem, pelo que requer, nos termos e ao abrigo dos arts. 411 e 417 do Código de Processo Civil, e uma vez que durante o decurso da audiência de julgamento também se denota e resulta a necessidade desses documentos, e que os mesmos são essenciais e imprescindíveis para a descoberta da verdade material e para a apreciação e justa composição do mérito da presente causa nos presentes autos, a concessão ao requerido de um prazo de 10 dias para proceder à junção aos presentes autos dos comprovativos de transferência para a sociedade C... dos montantes pagos a título de aquisição do terreno de ... aqui mencionado.

Mais foi dito pelo mesmo que apenas hoje teve conhecimento da entrada dos requerimentos apresentados pelos requerentes em 27-09-2023, referências 46626187, 46632997 e 46633020, pelo que requer o mesmo prazo de 10 dias para se pronunciar sobre os mesmos.

Pelos ilustres mandatários presentes, bem como pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público foi dito nada terem a opor ao requerido.


*

Seguidamente pela Mma. Juiz foi proferido o seguinte:

DESPACHO

Atenta a não oposição quer dos ilustres mandatários presentes, quer do Digníssimo Magistrado do Ministério Público, o Tribunal defere o requerido prazo de 10 dias, quer para a proceder à junção aos presentes autos dos comprovativos de transferência para a sociedade C... dos montantes pagos a título de aquisição do terreno de ..., quer para se pronunciar dos requerimentos apresentados pelos requerentes em 27-09-2023, referências 46626187, 46632997 e 46633020.”

É, pois, evidente que os factos dados como provados sob os nºs 20 e 21, para além de estarem abrangidos pelos temas da prova nºs 3 e 8, foram objeto de amplo debate no decurso da audiência de julgamento, o que também sempre tornaria possível a sua consideração pelo juiz ao abrigo do art. 5º, nº 2, al. b) do Cód. Proc. Civil.

A tudo isto acresce ainda que se deverá ter em atenção que, como manifestação do princípio do inquisitório no processo de insolvência, o art. 11º do CIRE possibilita que a decisão do juiz no incidente de qualificação se funde em factos que não tenham sido alegados pelas partes.

CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA (in “CIRE Anotado”, 2ª ed., pág. 121) salientam, inclusive, que é no plano dos incidentes de qualificação de insolvência que, considerada a respetiva tramitação e o momento em que se desenvolve, que melhor se pode exprimir e concretizar o princípio do inquisitório com os contornos que resultam deste preceito.[5]

Deste modo, cumpre concluir que não ocorreu qualquer violação do princípio do contraditório, tal como em nada foi ofendido o princípio da tutela jurisdicional efetiva previsto no art. 20º, nº 4 da Constituição da República.

E não ocorrendo violação do princípio do contraditório, não há que apreciar a questão colocada pelo recorrente que é a de apurar se a prolação de uma decisão surpresa integra nulidade processual nos termos do art. 195º do Cód. Proc. Civil ou a nulidade de excesso de pronúncia prevista no art. 615º, nº 1, al. d) do mesmo preceito – conclusão XVII.

Por conseguinte, nesta parte, o recurso interposto improcede.[6]


*


II – Nulidade da sentença por excesso de pronúncia

1. O recorrente vem também sustentar que na decisão recorrida foi cometida a nulidade de excesso de pronúncia prevista no art. 615º, nº 1, al. d) do Cód. Proc. Civil, no tocante à inclusão na factualidade assente dos factos com os nºs 11, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 26, 27 e 32.

2. Diz-nos esta disposição que a sentença é nula quando o juiz conhece de questões de que não podia tomar conhecimento.

Interliga-se este preceito com o art. 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, onde se estatui que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Assim, cabe às partes alegar os factos que integram o direito que pretendem ver salvaguardado, sendo que ao juiz se impõe o dever de fundamentar a sua decisão nesses factos e de resolver todas as questões suscitadas, não podendo ocupar-se de outras questões, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso, conforme também flui do referido art. 608º, nº 2.

Quanto ao que se deve entender por “questões” cujo conhecimento ou não conhecimento conduz ao cometimento da nulidade de excesso ou omissão de pronúncia, dir-se-á que apenas aí cabem as matérias que integram o thema decidendum ou dele se afastam.

Por isso, estas “questões” não se confundem com as “razões”, “raciocínios” ou “argumentos”, invocados pelas partes e que o tribunal não conheceu, nem com os que o tribunal considerou sem que tenham sido alegados pelas partes.

Se o tribunal assim fez não cometeu nem omissão de pronúncia nem excesso de pronúncia.

Com efeito, tal como escreve JOSÉ ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, reimpressão, 1984, pág. 143) “são … coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

Deste modo, quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas partes não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia suscetível de integrar nulidade.

Apenas as questões essenciais, que se integram no thema decidendum e que decidem do mérito do pleito, para além das questões de natureza processual relativas à validade dos pressupostos da instância, é que constituem os temas de que o julgador tem de conhecer, quando colocados pelas partes, ou não deve conhecer na hipótese inversa, sob pena da sentença incorrer em nulidade por omissão ou excesso de pronúncia, salvaguardando-se sempre as situações onde se admita o conhecimento oficioso por parte do tribunal.[7]

3. Perante o enquadramento acabado de expor relativamente à nulidade de excesso de pronúncia, logo se terá de concluir que esta não se verifica na situação invocada pelo recorrente, porquanto se reporta não a factos, mas sim a questões que o tribunal tenha apreciado estando fora do “thema decidendum”.

Ora, no caso dos autos o tribunal centrou a sua apreciação na questão que lhe era colocada – a da eventual qualificação da insolvência como culposa com referência ao disposto no art. 186º, nºs 1, 2, als. a), b), c), f), g), h) e i) e 3, als. a) e b) do CIRE – e que, nessa sua apreciação, não excedeu.

De qualquer modo, sempre se dirá que os factos referidos como integrando o invocado excesso de pronúncia – nºs 11, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 26, 27 e 32 – se integram nos temas da prova definidos no despacho saneador, necessariamente genéricos, para além de fluírem dos requerimentos iniciais que foram apresentados pelos credores “A...” e “B...” e resultarem também de documentação que foi sendo junta ao processo.

Tudo isto, sem prejuízo de se observar, como já atrás se referiu, que o art. 11º do CIRE, como manifestação do princípio do inquisitório, possibilita que a decisão do juiz no incidente de qualificação se funde em factos que não tenham sido alegados pelas partes.

Assim, não se verifica a nulidade de excesso de pronúncia, tal como também não ocorre qualquer violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art. 20º, nº 4 da Constituição da República.

Para além disso, impõe-se ainda concluir que a sentença proferida, manifestamente, não condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, desrespeitando o art. 609º, nº 1 do Cód. Proc. Civil e incorrendo na nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. e) do mesmo diploma, conforme é aflorado pelo recorrente nas conclusões XXI e XXVIII.

Desta forma, ainda nesta parte improcede o recurso interposto.


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IIIReapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto

1. O recorrente, nas suas alegações, insurge-se contra os factos provados sob os nºs 11, 20, 21 e 23 pretendendo que os mesmos transitem para o elenco dos factos não provados e simultaneamente entende que os factos não provados b), e) e i) deverão ser tidos como provados.

Pretende ainda que sejam integrados na factualidade assente os factos decorrentes dos arts. 59º e 132º da sua oposição e sustenta igualmente que os factos nºs 10,11, 21, 23, 26, 27 e 28 estão “pejados” de matéria conclusiva que deles deve ser expurgada.

Atendendo que os ónus previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil se mostram observados iremos então proceder à reapreciação dos pontos factuais impugnados.

2. a)Facto Provado nº 11 ((aditamento do facto alegado no art. 59º da oposição do requerido AA)

“Apesar do facto referido em 10)[8], o gerente AA absteve-se do dever legal que sobre o mesmo impendia de apresentar a sociedade à insolvência, com o que causou prejuízos aos credores, agravando a situação insolvencial.”

Sobre este ponto factual que o recorrente entende dever ser dado como não provado, refere que a “C..., Lda.” se apresentou espontânea e voluntariamente à insolvência em 21.9.2020, através do seu gerente, o próprio recorrente, tendo essa apresentação dado origem ao processo com o nº 2510/20.4 T8STS, intentado três dias após os presentes autos de insolvência.

Ora, dos elementos documentais constantes dos autos, resulta que no dia 24.9.2020 foi enviado um ofício proveniente do proc. nº 2510/20.4. T8STS com o seguinte teor:

“Solicita-se ao Mmº Juiz titular, que determine a prestação de informação sobre o estado em que se encontram os autos, a fim de instruir o/a Insolvência pessoa coletiva (Apresentação) 2510/20.4T8STS.”

Depois, no dia 11.11.2020, a “C..., Lda.” veio apresentar no presente processo requerimento, onde, além do mais, explanou o seguinte:

“1º Pese embora não tenha ainda sido citada nos presentes autos, a Requerente tomou conhecimento, na passada semana, da instauração da presente Ação de Insolvência.

2º Não obstante não prescindir de se pronunciar devidamente após a realização da competente citação, a Requerente deixa desde já consignado que se apresentou voluntariamente à Insolvência, requerendo a sua Declaração de Insolvência com os fundamentos constantes da Petição Inicial apresentada no passado dia 21 de Setembro de 2020,

3.º a qual deu origem ao processo n.º 2510/20.4T8STS, que corre termos no Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 4 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto

(…)”

Juntou com esse requerimento procuração forense emitida, em 10.9.2020, pelo seu gerente AA, aqui recorrente.

A citação da requerida “C..., Lda.” fora ordenada por despacho judicial proferido em 23.10.2020, vindo a concretizar-se m 12.11.2020, conforme aviso de receção junto aos autos em 20.11.2020.

Em 24.11.2020, a requerida apresentou requerimento, no qual reconhece a sua situação de insolvência, salientando ter sido essa a razão pela qual se apresentou voluntariamente à insolvência no dia 21.9.2020.

A insolvência da requerida “C..., Lda.” foi declarada por sentença proferida em 11.12.2020.

No seu articulado de oposição, no presente incidente de qualificação, o requerido AA alegou não lhe ter restado outra opção que não “a apresentação à insolvência da insolvente.”

Perante estes elementos processuais, dos quais decorre que a “C..., Lda.” se apresentou voluntariamente à insolvência, através do seu gerente AA, em 21.9.2020, há que concluir, nesta parte, pela procedência da impugnação da decisão fáctica, eliminando-se da factualidade assente o seu nº 11.

Simultaneamente, adita-se à mesma o facto provado nº 35 com a seguinte redação:

- A “C..., Lda.” foi apresentada à insolvência pelo requerido AA, no dia 21.9.2020.[9]

2. b) – Factos Provados nºs 20 e 21

20. O valor de €200.000,00 (duzentos mil euros) não deu entrada nas contas da sociedade insolvente, ao contrário do que foi feito constar da escritura aludida em 17), sendo que nem a preparação da escritura foi paga pelos próprios requeridos (ali compradores) junto da Notária;

21. O requerido AA, enquanto gerente de direito e de facto da insolvente, ao actuar da forma descrita, dispôs de bens da sociedade devedora em proveito pessoal, sendo que tal disposição/dissipação de tal acervo patrimonial resulta igualmente dos valores que constavam nos documentos contabilísticos da insolvente na rubrica “inventários” no ano de 2017 (€831.488.12) por comparação aos valores que passaram a constar nos anos de 2018 e 2019 (0,00);

O recorrente entende que ambos devem ser dados como não provados, indicando como elementos probatórios nesse sentido os comprovativos de pagamentos efetuados entre agosto de 2018 e ../../2019 que juntou aos autos através do seu requerimento de 7.11.2023 e também extratos das contas de 2018 e 2019, juntos através de requerimento de 7.3.2025.

Refere ainda a documentação constante das pastas de contabilidade de Operações Diversas de 2018 e de 2019.

Alude igualmente a excertos dos depoimentos das testemunhas HH, CC e II, bem como do seu próprio depoimento.

Procedemos, pois, à audição destes depoimentos.

O recorrente AA foi ouvido em depoimento de parte. Nos excertos referidos nas suas alegações de recurso disse que em 2018 a empresa tinha dois imóveis na Baixa do Porto, onde fez obras e vendeu pelo valor total de cerca de 180.000,00€ de lucro para a sociedade, embora um deles não tenha dado o resultado que se esperava. Negou ter dissipado o património da sociedade e adiantou que quem podia explicar melhor a situação era o contabilista.

CC[10] é técnico oficial de contas, tendo exercido as funções de contabilista da sociedade insolvente desde 2015 até final de 2019/início de 2020. Foi confrontado com a nota de lançamento junta aos autos a fls. 447, no valor total de 67.000,00€, que referiu reportar-se ao pagamento do prédio de .... Acrescentou que quando existiam juntava os documentos de suporte à contabilidade, tendo ainda dito que uma nota de lançamento, sozinha, não comprova nada. Porém, mais adiante afirmou que os montantes constantes da nota de lançamento entraram na sociedade e que se não tivessem sido pagos não os teria lançado. Disse, assim, que o preço respeitante ao prédio de ... foi pago na totalidade. Não foi pago de uma vez só, foi pago em várias prestações. Referiu também quanto à inserção contabilística do produto da venda de prédios o seguinte: “Os serviços prestados é em termos de subcontratação. Aqui no caso da venda de bens próprios, os prédios que eles requalificavam iam para aí. Mas agora só vendo o extrato das contas. De memória não sei”. E logo a seguir disse que não tem em seu poder os extratos de contas. Ficou tudo no servidor da empresa. Não tem mada, só as declarações fiscais

HH é inspetora da Autoridade Tributária. Subscreveu o relatório de inspeção tributária datado de 8.11.2021 e junto aos autos a fls. 342 e segs., o qual incidiu sobre questões de natureza fiscal em matéria de IVA e IRC. Disse que só viu as contas relativas ao ano de 2018 e, a instâncias da mandatária do recorrente, disse que o valor de 200.000,00€ foi visto nas contas, mas logo a seguir referiu que “agora não tenho presente”. E mais adiante disse sobre esta questão: “agora não me vou pronunciar…não me recordo.”

II foi escriturária na sociedade insolvente entre 2018 e 2020. No excerto referido nas alegações de recurso, disse que a empresa exercia a sua atividade à base de subcontratação. Tratavam dos andaimes, das licenças, da polícia para poder fazer as obras e depois tinham subempreiteiros.

Tivemos igualmente em conta os elementos documentais que foram indicados pelo recorrente, aqui se referindo, em primeiro lugar, os comprovativos de transferências bancárias efetuadas a partir da sua conta bancária ou da de BB para a sociedade insolvente juntos aos autos através de requerimento apresentado em 7.11.2023 e que constam de fls. 461 e segs.

Tal como tivemos também em atenção os extratos de conta dos anos de 2018 e 2019, juntos pelo ora recorrente através de requerimento de 7.3.2025 e que constam de fls. 566 e segs.

Atentámos ainda na documentação existente nas pastas de contabilidade e que foi referenciada pelo recorrente – operações diversas 2018 – janeiro e dezembro; operações diversas 2019 – abril, maio, junho, julho e agosto.

Posto isto, importa transcrever aqui a motivação da Mmª Juíza “a quo” quanto à prova destes dois pontos factuais, que se mostra, a nosso ver, exaustiva e convincente:

“Os factos exarados em 20) e 21) foram assumidos pelo Tribunal como erigidos com a necessária certeza jurídica, após conjugação de toda a prova coligida nos autos a este respeito. Concretizando, diremos que assumido o facto de que o requerido AA e BB – sócios e gerentes da ora insolvente (sendo que, em bom rigor, esta última em tal data já havia renunciado à gerência) – terão efectivamente adquirido um imóvel pertença da sociedade insolvente, por escritura pública datada de 30 agosto de 2018 – v. facto constante do ponto 17) -, certo é que não foi feita prova idónea e consistente de que esse valor de 200 mil euros, nessa mesma data ali declarado ter já sido recebido pela sociedade insolvente, tenha efectivamente dado entrada nas contas da sociedade e tenha ficado ao dispor das finalidades ínsitas à actividade desta, bem pelo contrário.

A este respeito, permitimo-nos assinalar:

. o depoimento da testemunha CC - àquela data responsável pela elaboração da contabilidade da sociedade insolvente, e que referiu ter sido ele o responsável pelo fecho de apuramento de resultados de 2018 -, permitiu ao Tribunal concluir que o documento junto aos autos e que consta a fls. 447 (e também junto como documento 3 junto com a exposição com a ref.ª 46633020, retirado das pastas de contabilidade juntas pelo requerido AA), tratando-se de uma simples nota de lançamento (valor global de 67.000,00€) desacompanhada de extractos bancários nada comprovará contabilisticamente, sendo que a referida testemunha explicou que o seu “modus operandi” era o de anexar à contabilidade estes documentos de suporte sempre que os mesmos existiam; Ora, destes autos, das pastas da contabilidade fornecidas pelo requerido AA, não foi encontrado documento de suporte daqueles movimentos exarados na referida nota de lançamento, onde surge consignado “pagamento prédio de ...”;

. Ante o que se deixou consignado no ponto anterior, o tribunal ponderou ainda o ditame legal previsto no art.º 63.ºC da Lei Geral Tributária (Contas bancárias exclusivamente afectas à actividade empresarial), donde emerge que os sujeitos passivos de IRC, bem como os sujeitos passivos de IRS que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada, estão obrigados a possuir, pelo menos, uma conta bancária através da qual devem ser, exclusivamente, movimentados os pagamentos e recebimentos respeitantes à actividade empresarial desenvolvida (n.º 1), e que devem, ainda, ser efectuados através da conta ou contas referidas no n.º 1 daquele artigo todos os movimentos relativos a suprimentos, outras formas de empréstimos e adiantamentos de sócios, bem como quaisquer outros movimentos de ou a favor dos sujeitos passivos; Ora, nada disto surge respeitado e escrupulosamente cumprido pela insolvente (na pessoa do seu gerente), sendo que não se percebe a razão pela qual o requerido AA teria feito entrar em contas da sociedade, “aos bochechos” ou “a prestações” o valor de 200 mil euros que refere ter pago à sociedade pela aquisição do identificado imóvel, tanto mais que tal aquisição surge acompanhada de contração de empréstimo em entidade bancária desse mesmo valor (cfr. facto 18);

. Por outro lado, foi possível ouvir o contabilista CC (depoimento pouco consistente e rigoroso), ao ser confrontado com tal nota de lançamento, referir que, à partida, aqueles movimentos retratariam um pagamento do sócio à sociedade, abatendo a dívida que detinha perante a sociedade, assumindo que o valor de aquisição do imóvel terá sido pago pelos sócios porque teria que ter havido conciliação bancária e que se o terreno não tivesse sido pago as Finanças teriam que ter detectado em Inspecção Tributária que teve lugar;

. O tribunal percepcionou o depoimento da testemunha CC como particularmente ondulante, a ponto de incorrer em visíveis contradições, consoante o interlocutor que lhe dirigia as questões em audiência de julgamento, sendo que a Inspecção Tributária que teve lugar não se debruçou sobre a questão da efectiva entrada do valor de aquisição declarado na escritura pública outorgada entre a insolvente e os seus sócios, tendo a Sr.ª Dr.ª HH tido oportunidade de declarar, em audiência de julgamento, não se poder pronunciar sobre se terá resultado qualquer prejuízo ou desvalorização para a sociedade, por não ter analisado ou se imiscuído em tais questões, atento o específico e circunscrito âmbito da acção inspectiva que realizou (cfr. relatório inspectivo junto aos autos – fls. 340 e ss);

. o depoimento da testemunha GG, que foi contabilista da insolvente a partir do ano de 2020, transmitiu ao Tribunal que o proveito da venda do imóvel de ... (terreno com construção realizada pela sociedade) teria que ter sido registado na conta de venda de activos (se estivesse inscrita na rubrica “imobilizado”) ou nas vendas se fosse proveniente da rubrica “inventários”, sendo que confrontado com a declaração de 2017 (fls. 34 e ss. deste apenso) referiu que o “imóvel de ...” enquanto imóvel próprio da insolvente não estaria sequer registado nestas contas (teria que estar em activos fixos tangíveis ou propriedades de investimento);[11]

. da leitura da prestação de contas referente ao ano de 2017 (fls. 34 verso e ss deste apenso), não se descortina, de facto, o registo daquele imóvel, designadamente no activo fixo tangível porque o valor aí constante de €54.392,81 não será compaginável com o seu valor de aquisição (valor referido pelo requerido AA como sendo de cerca de 140 mil euros), após compulsa do mapa de depreciações e amortizações junto a fls. 145 e ss. dos autos principais (note-se que na IES referente ao ano de 2018, mais precisamente a fls. 184 deste apenso, tal alienação também não se encontra revelada – dali constam valores resultantes de “outros rendimentos e ganhos” e “rendimentos e ganhos em investimentos não financeiros”);

. da documentação junta pelo requerido AA (da qual não constam balancetes analíticos dos anos de 2018 e 2019, nem modelos 22 dos anos pertinentes) não se extraiu nem se legitimou concluir que aquele apontado preço declarado ter sido pago pela aquisição do imóvel de ... tenha logrado quedar-se na esfera patrimonial da insolvente, desde logo porque todos os movimentos entre sócios e sociedade devem estar justificados e comprovados através de extractos bancários, aqui se acompanhando a argumentação dos credores do presente incidente, com particular incidência na argumentação esgrimida pelo credor “A...” no requerimento de 27/09/2023 (ref.ª 46632997) – que aqui se dá por integralmente reproduzida, por certeira – sublinhando-se a circunstância de não ter sido junto qualquer documento justificativo referente à quantia de € 599.367,37 inscrita na conta «outros rendimentos e ganhos» (da prestação de contas referente ao ano de 2018 – fls. 49 deste apenso), do qual se poderia inferir, hipoteticamente, que o valor referente à venda do imóvel de ... ali poderia ter sido registado (ao invés da conta “vendas”), assim permanecendo aquela quantia, permita-se-nos a expressão, “filha de pai incógnito”;

. Compulsada a “prestação de contas” depositada em 16.07.2019, referente ao ano de 2018, no mapa 0508-A – Activos Fixos Tangíveis, verifica-se que ali só foi registado “alienações de equipamento de transporte” e não de quaisquer terrenos ou Edifícios ou outras construções (v. fls. 53 deste apenso de qualificação, e ainda fls. 49 donde também emerge que não terá sido relevada a alienação do imóvel de ... como “Propriedades de Investimento”);

. Concedida a possibilidade ao requerido AA de demonstrar, de forma financeira e contabilisticamente relevante o pagamento à sociedade daquele preço do imóvel por si adquirido, o mesmo não o logrou fazer, limitando-se a juntar diversa documentação sem qualquer relevância para o objecto destes autos, não tendo sido disponibilizada nenhuma pasta de contabilidade referente às vendas do ano de 2018; por outro lado, juntos os extractos de conta corrente #2789 e #2681 dos anos de 2018 e 2019 (após interpelação pelo tribunal nesse sentido) – cfr. documentação anexa ao articulado de 07/03/2025 (ref.ª 516 03787) – constata-se que todos os pagamentos registados na contabilidade como havendo sido feitos por conta do (ali consignado) preço do imóvel de ... consistem em meras notas de lançamento contabilístico que titulam a movimentação contabilística de um saldo creditado numa determinada conta do balanço com destino a outra conta do balanço, e portanto não consubstanciam efectivas transferências bancárias, dando conta isso sim de movimentação consentânea com “engenharia contabilística” (v.g. da nota de lançamento constante de fls. 447 dos autos – operações diversas – em 27/12/2018 terá sido inscrito o pagamento de € 42.000,00 através da conta 1202 – conta de caixa e depósitos bancários – e com destino à conta #2681, sendo que analisado o extracto de conta corrente desta conta não consta este valor):

. Compulsada a documentação junta pelo requerido no articulado dado entrada em 07/03/2025 (ref.ª 51603787), referente a tais extractos das referidas contas, mais uma vez o tribunal é confrontado com elementos contabilísticos que não oferecem credibilidade, dado que não se percebe a que título ali constará montante intitulado “Indemnização Venda” e o referente a “Estimativa de indemnização a receber”, sendo que estes dois valores somados resultam em valor substancialmente relevante (cerca de 592 mil euros) por referência a um volume de negócios de 1.762.466,67 (registado nas “vendas e serviços prestados” da prestação de contas referente ao ano de 2018 (cfr. fls. 566 verso e 567 e 49 deste apenso), quando é certo que um daqueles valores vem a ser obliterado no ano seguinte (cfr. fls. 567 verso). Acresce, ainda, que caso aqueles dois valores não fossem ali apostos (sem que se perceba a origem dos mesmos), é seguro afirmar que, por referência àquele ano de 2018, a sociedade ora insolvente apresentaria um resultado negativo muito superior àquele que foi constatado, é dizer, na ordem dos € 935.074,04 (superior ao que se aferiu de € 343.071,32 negativo). Assim, acompanhamos, mais uma vez, a argumentação esgrimida pelo credor “A...” no articulado junto a 18/03/2025 (ref.ª 51718384), concluindo-se que tais elementos contabilísticos não merecem credibilidade e não podem legitimar qualquer convicção no sentido de ter sido pago qualquer preço a respeito da aquisição do imóvel de ....

Não se deixou de estranhar o facto de terem sido juntas facturas emitidas à insolvente contendo descrição de trabalhos e execução de instalações eléctricas e telecomunicações referentes a “moradia ...” – sendo que em momento algum o requerido nos relatou a existência de qualquer outro imóvel em ... para além daquele a que os autos aludem – com datas posteriores à alienação do mesmo, é dizer, quando o imóvel já não pertencia à C... (v. documentos juntos com articulado de 07/02/2025, ref.ª 51292426), quando é certo que a própria AT, no contexto do Relatório Inspectivo junto aos autos faz alusão à existência de uma factura referentes a trabalhos realizados na moradia de ... em data a agosto de 2018 (data da alienação ao sócio-gerente), tendo ali concluído que o sujeito passivo havia suportado um gasto de um imóvel que já havia sido alienado (cfr. páginas 11 e 12 do mencionado Relatório de Inspecção – fls. 340 e ss., deste apenso e depoimento da testemunha DD).

Acresce, ainda, que do teor do documento 7 junto com o articulado de 30/11/2023[12] (ref.ª 47301123) se extrai que terá sido a insolvente que terá realizado o pagamento da preparação da escritura junto da Notária.

Assim, entendeu este tribunal que teria que ser dado por demonstrado o facto exarado em 21) como decorrência lógica e consequencial da falta de prova da efectiva transferência daquele apontado valor de 200 mil euros para a esfera patrimonial da sociedade insolvente, considerando também que o requerido, escassos meses após logrou alienar tal mesmíssimo imóvel pelo valor de € 460,000,00.

Por referência à alteração contabilística ao longo dos anos por referência à rubrica “inventários”, o tribunal verificou que, de facto, teria que se concluir pela dissipação patrimonial, dado que os valores ali insertos, nos anos subsequentes constam a “zero”, quando é certo que por referência ao ano de 2018, a prestação de contas referente a tal ano, mais precisamente a fls. 49 e 61 verso deste apenso, permite concluir que o valor ali existente na rubrica “vendas e serviços prestados” de €1.762.466,67 se ficou a dever exclusivamente a prestações de serviços e não a vendas (de activos imobiliários);

Analisada a prestação de contas (substitutiva) do ano de 2019 – depositada em novembro de 2020 – verifica-se que o valor ali existente na rubrica “vendas e serviços prestados” de €1.346.430.36 se terá ficado a dever exclusivamente a prestações de serviços e não a vendas (cfr. fls. 63 verso e 76 deste apenso), dados que se extraem também das IES de 2018 e 2019 juntas aos autos consultadas.”

O art. 662º, nº 1 do Cód. Proc. Civil estabelece que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»

Ora, avaliando os elementos documentais e testemunhais que foram indicados pelo recorrente, entendemos não haver razão para divergir da convicção probatória formada pela 1ª Instância e que se acha solidamente fundamentada, conforme decorre da transcrição que efetuámos.

Aqui, para além das incongruências contabilísticas assinaladas pela Mmª Juíza “a quo”, não pode deixar de se sublinhar a estranheza que causa o facto de na escritura de 30.8.2018 respeitante ao imóvel situado em ... ter ficado a constar que o preço de 200.000,00€ já havia sido recebido pela “C...”, quando o requerido AA alega que tal valor terá entrado posteriormente nas contas da sociedade insolvente “aos bochechos”, o que ainda mais se estranha se se tiver em atenção que nessa mesma data este obteve do Banco 1... um empréstimo nessa mesma importância, através da celebração de um contrato de abertura de crédito com hipoteca.

Para além disso, não se pode ignorar que é jurisprudência consolidada que o Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se formar a convicção segura quanto à ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados.[13]

O que, neste caso, quanto a estes dois pontos factuais não ocorre, pois consideramos ter sido feita prova convincente no sentido de que o valor de 200.000,00€ respeitante à venda do prédio sito em ... não deu entrada nas contas da sociedade e que ao atuar dessa forma o requerido AA dispôs de bens da sociedade em seu proveito pessoal.

De qualquer modo, embora improcedendo, neste segmento, a impugnação do recorrente, a redação do nº 21 será alterada de molde a reforçar a sua dimensão fáctica.

Passará assim a ter a seguinte redação:

21. O requerido AA, enquanto gerente da insolvente, ao atuar da forma descrita, dispôs de bens da sociedade devedora em proveito pessoal, sendo que a disposição de tal acervo patrimonial resulta igualmente dos valores que constavam nos documentos contabilísticos da insolvente na rubrica “inventários” no ano de 2017 (€831.488.12) por comparação aos valores que passaram a constar nos anos de 2018 e 2019 (0,00).

2. c) Facto Provado nº 23

23. Por referência à “Prestação de Contas” depositada em setembro de 2020 e a “Prestação de Contas” depositada em novembro de 2020 (referentes ao exercício de 2019), verifica-se a existência das seguintes alterações, a saber, na parte referente a “activo corrente dos accionistas/sócios” no montante de €258.500,00 e a “passivo corrente accionistas/sócios” no valor de €170.180,00, tais valores deixaram de constar da referida “prestação de contas” de substituição, o que foi realizado com a finalidade de eliminar qualquer crédito que a sociedade detinha perante os órgãos sociais, assim agravando, de facto, a situação insolvencial da sociedade.

O recorrente entende que este facto deve ser considerado como não provado e nesse sentido indica excertos dos depoimentos prestados pelas testemunhas GG e CC e ainda o balanço junto pela Administradora da Insolvência como documento nº 1 do relatório apresentado para os termos do art. 155º do CIRE.

Salienta a este propósito que a alteração da prestação de contas se deveu a um erro do primitivo contabilista e não porque se tenha pretendido eliminar um putativo crédito da sociedade perante os sócios.

Sobre esta questão a testemunha GG, que foi contabilista da sociedade insolvente a partir de janeiro de 2020, disse que o balancete que vem às suas mãos não está conforme com a declaração fiscal e tendo falado com o anterior contabilista – CC – este explicou-lhe que o desfasamento se teria ficado a dever a um desfasamento informático.

Por seu turno, CC confirmou a ocorrência de um erro seu que o levou a corrigir a IES de 2019, erro para o qual foi alertado pelo colega que lhe sucedeu.

Tivemos também atenção o documento nº1 junto com o relatório apresentado pela Administradora da Insolvência, para os efeitos do art. 155º do CIRE, em 15.3.2021 e que corresponde a “quadros com o balanço, demonstração de resultados, e indicadores económicos e financeiros para cada um dos anos do período considerado.”

Sobre este ponto factual escreveu o seguinte a Mmª Juíza “a quo” em sede de motivação:

“A factualidade inserta em 23), 27) e 28)[14] estribou-se na análise cuidada de toda a documentação contabilística disponibilizada nos autos, devidamente conjugada com as regras aplicáveis de acordo com o Sistema de Normalização Contabilística (SNC) aprovado pelo DL 158/2009, de 13 de julho e com os depoimentos prestados por CC e GG.

A este respeito não foi possível colher qualquer explicação por banda do gerente AA, o qual deu a perceber que tal correcção/substituição se terá ficado a dever a regras contabilísticas que o ultrapassariam, já que estaria focado na parte comercial (tendo negado, de forma singela, a existência de qualquer dívida da sua parte à sociedade ora insolvente).

Ora, é inegável que houve lugar à elaboração de duas prestações de contas referentes ao exercício de 2019, uma primeira depositada em 03 de setembro de 2020 (constante de fls.89 e ss. deste apenso) e uma segunda depositada em 18.11.2020 (constante de fls. 63 verso e ss. deste mesmo apenso). Quanto à concreta razão que estaria por detrás da elaboração destes dois documentos e necessidade de apresentar o segundo dos referidos documentos, contendo as mencionadas alterações, foi possível ouvir os dois Contabilistas com responsabilidade pela elaboração da contabilidade da insolvente – CC e GG – sendo que, pelo menos em parte, os mesmos apresentaram versão consentânea. Com efeito, ambos referiram ao Tribunal que aquela segunda declaração ficou-se a dever a iniciativa protagonizada pelo segundo dos referidos contabilistas, após ter dado conta de que o balancete que lhe havia sido disponibilizado da sociedade insolvente “não batia certo” com a IES/prestação de contas depositada em setembro de 2020, já que daquele primeiro não constava inscrito qualquer valor no activo corrente da conta “Accionistas/sócios”, tendo o contabilista GG mais referido que era necessário ultrapassar aquela discrepância a fim de realizar o competente “dossier de negociação” já que quando este Contabilista passou a exercer funções para a C... foi já em contexto de graves dificuldades financeiras, com o intuito de obter rápida/imediata capitalização da empresa (quer encetando negociações com a banca quer com possíveis interessados em adquirir a empresa, com manutenção do aqui gerente dotado de “know-how comercial”).

Cotejadas as duas declarações, constatamos, pois, que:

. na prestação de contas de setembro consta inscrito no activo corrente, na conta “accionistas/sócios” o valor de €258.500,00, é dizer, contabilisticamente registada uma dívida dos sócios para com a sociedade nesse aludido valor, quando é certo que na prestação de contas apresentada em novembro relativamente ao mesmo exercício de 2019, em tal conta/rubrica já nada consta;

. na prestação de contas de setembro consta no passivo corrente na conta “Accionistas/sócios” o valor de €170.180,00, é dizer, contabilisticamente registado um crédito a favor dos sócios desse valor, quando é certo que na prestação de contas apresentada em novembro relativamente ao mesmo exercício de 2019, em tal conta já nada consta;

. na prestação de contas depositada em setembro de 2020 constam resultados transitados negativos de €251.173,33, e um total do capital próprio de €254.990,58 negativos, enquanto na prestação de contas depositada em novembro de 2020 constam resultados transitados de €81.160,52 (positivos), e um total do capital próprio de €77.343,27 (positivo).

Ante estes dados objectivos, nenhum dos identificados contabilistas logrou atestar, com propriedade, ao tribunal, que aquelas alterações que surgiram na segunda das declarações em causa era a que reflectia a verdade patrimonial e financeira da sociedade insolvente, já que questionado CC se havia aferido, de facto, se o valor devido pelo sócio à sociedade havia efectivamente sido pago e se havia visualizado o documento justificativo (contabilístico de suporte) que legitimasse o obliterar daqueles valores – conforme alterou – refugiou-se numa recorrente afirmação de que a contabilidade estaria na própria empresa, que não teve acesso a tal documentação, mas que esses documentos de suporte deveriam estar nas pastas da contabilidade da empresa (documentos estes que não foram encontrados na documentação disponibilizada pelo aqui requerido). Escudou-se, ainda, no facto de ter “confiado no colega” que lhe solicitou a introdução daquelas alterações, já que o fez sob a indicação do mesmo e perante a constatação da parte deste que teria que proceder-se a tal rectificação/substituição com vista a obter congruência na diversa tipologia documental contabilística.

Ouvido o contabilista GG a este respeito limitou-se a referir que quem tinha acesso a essa documentação era o anterior contabilista, tendo posteriormente confirmado que nenhuma das pastas de contabilidade da insolvente se encontrariam fisicamente consigo ou nos seus escritórios.

Deste modo, quedou-se o tribunal com a certeza de que de acordo com os registos contabilísticos referentes ao ano/exercício de 2019, existia um crédito a favor da sociedade C... da qual era devedor o seu sócio AA (analisado o activo corrente e o passivo corrente referente à conta accionistas/sócios sempre se concluiria por um saldo positivo a favor da sociedade insolvente), e que ao ter sido aquele indevidamente (sem sustentação documental pertinente) obliterado tal agravou o estado insolvencial da C..., que assim viu retirado um crédito a seu favor, e que, sob a capa da necessidade de “fazer bater a bota com a perdigota” se descortinou o fito de eliminar contabilisticamente créditos da sociedade perante os órgãos sociais de forma a que os mesmos não constassem do apelidado “dossier de negociação”.

(…)”

Sucede que quanto a este ponto factual, depois de conjugado o teor dos depoimentos produzidos pelas testemunhas CC e GG com a documentação atinente, onde se destacam as duas prestações de contas referentes ao exercício de 2019, uma apresentada em 3.9.2020 e outra em 18.11.2020, entendemos aqui, diferentemente da 1ª Instância, que não existem elementos que nos permitam concluir de forma minimamente segura que as alterações efetuadas tiveram como objetivo eliminar qualquer crédito que a sociedade detinha perante os órgãos sociais.

Por conseguinte, neste segmento, a impugnação factual do recorrente procede parcialmente, devendo o nº 23 passar a ter redação que se circunscreva às diferenças existentes entre a primeira prestação de contas de setembro de 2020 e a segunda de novembro de 2020.

Passará a ser a seguinte:

“23. Por referência à “Prestação de Contas” depositada em setembro de 2020 e à “Prestação de Contas” depositada em novembro de 2020 (referentes ao exercício de 2019), verifica-se a existência de alterações na parte referente a “activo corrente dos accionistas/sócios” no montante de €258.500,00 e a “passivo corrente dos accionistas/sócios” no valor de €170.180,00, uma vez que tais valores deixaram de constar da “prestação de contas” de substituição, depositada em novembro de 2020.

2. d) Factos Não Provados b), e) e i)

Estes factos não provados têm a seguinte redação:

b) As alterações de valores aludidas no ponto 3) dos temas da prova fixados no despacho saneador exarado nos autos, se tenham ficado a dever a vendas de activos imobiliários realizadas pela insolvente em anos anteriores;[15]

e) A sociedade insolvente em dezembro de 2019 se encontrasse a cumprir as suas obrigações, não estando em situação de incumprimento generalizado;

i) O requerido tenha liquidado, desde 2019, mais de 300.000,00€ em facturas vencidas a credores;

Pretende que todos estes factos passem a integrar o elenco dos provados, indicando nesse sentido excertos dos depoimentos prestados pelas testemunhas CC, HH e II e pelo requerido AA, elementos documentais constantes das pastas de contabilidade e extratos bancários da insolvente juntos através do requerimento de 7.11.2023.

O requerido AA disse que em 2018 e 2019 a empresa fez vários acordos de pagamento de prestação mensal com credores que iam sendo cumpridos. No ano de 2018 pagou só em passivo mais de 300.000,00€.

A testemunha II disse que em 2019 a dívida da empresa estaria a diminuir e que tinham feito então acordos com vários fornecedores no sentido da sua restruturação. Estavam a ser cumpridos. Num ano o Sr. AA é capaz de ter pago duzentos e tal mil euros, trezentos.

A testemunha HH disse que a dívida aumentou de 2017 para 2018 e que de 2018 para 2019 diminuiu.

Tiveram-se também em conta o depoimento da testemunha CC, já acima sintetizado nos seus segmentos mais relevantes, e os elementos documentais indicados.

Em sede de motivação da decisão de facto a Mmª Juíza “a quo” escreveu o seguinte no que toca à factualidade que foi dada como não provada:

“Quanto à factualidade tida por não provada, dir-se-á que a mesma se terá ficado a dever, nuns casos, à total falta de prova nesse sentido (o que sucedeu com a factologia enunciada na alínea d), h) e j), ou falta de prova consistente a tal respeito (o que sucedeu com a factualidade inserta nas alíneas a), c), f) e i), e noutros casos devido ao facto de ter resultado prova contrária (o que sucedeu com a factualidade ínsita na alínea b), e), g) e k).”

Verifica-se, pois, que quanto aos factos não provados b) e e) se entendeu na sentença recorrida ter resultado prova contrária e no que concerne ao b) importa referir que, depois de analisada e ponderada a prova produzida nos autos e indicada pelo recorrente, não nos é possível dar como assente que as alterações de valores que constavam nos documentos contabilísticos da insolvente na rubrica “inventários” no ano de 2017 (831.488,12€) por comparação com os que passaram a constar em 2018, 2019 e 2020 (0,0€) se tenham ficado a dever a vendas de ativos imobiliários efetuadas pela insolvente em anos anteriores.

Tal como não nos é possível dar como provado que a sociedade insolvente em dezembro de 2019 se encontrasse a cumprir as suas obrigações, não estando em situação de incumprimento generalizado.

Já no que tange ao facto não provado i) a Mmª Juíza “a quo” detalhou mais a formação da sua convicção, tendo escrito o seguinte na sentença recorrida:

“O facto exarado em i) foi dado como não demonstrado, apesar de ter sido veiculado pelo requerido quer no depoimento que produziu em audiência de julgamento – ao afirmar que fez acordos com inúmeros credores e que procedeu a pagamentos neste domínio de mais de trezentos mil euros no valor global – quer apesar de pretender demonstrar isso mesmo através da prova documental que juntou aos autos através do articulado de 07.11.2023 (ref.ª 47041002), por se ter entendido que não foi junto qualquer efectivo comprovativo de pagamento a fornecedores (por referência a que específicas facturas), nem mesmo se estas alegadas/visíveis transferências para diversas firmas (na referida documentação) se identificam com entidades que constariam no competente Balancete como fornecedores da C.... Assim, o tribunal entendeu que apenas se legitimava dar por assente o facto acima elencado em 33), como realidade contabilística extraível dos elementos disponibilizados no presente processo. Note-se que os mencionados factos não são conflituantes entre si, dado que o tribunal entendeu apenas dar por demonstrado o que resulta, a tal respeito, dos elementos contabilísticos disponibilizados, sendo que estes, como é de fácil intuição, se revelaram, em diversos outros segmentos (devidamente discutidos em sede de audiência e ali submetidos a contraditório), não fidedignos nos termos acima expostos.”

Ora, não vemos razão para, neste ponto, dissentir da convicção probatória formada pela 1ª Instância, que se encontra devidamente fundamentada, e com a qual concordamos, o que significa que, nesta parte, a impugnação factual efetuada pelo recorrente improcederá.

2. e)Aditamento do facto alegado no art. 132º da oposição do requerido AA

Por último, em termos factuais, o recorrente pretende que se adite à factualidade assente o seguinte ponto extraído do art. 132º da sua oposição:

- O requerido diligenciou pela fusão com uma sociedade comercial terceira ou no sentido de ceder as suas participações sociais a quem dispusesse de capitais próprios para investir na sociedade comercial para satisfazer as necessidades imediatas de tesouraria.

Nesse sentido indicou excertos do depoimento prestado pela testemunha GG, o qual referiu que a empresa entrou em convulsão financeira bastante grave e a sua intervenção esteve também relacionada com possíveis negociações e capitalização da empresa. Aludiu a negociações ocorridas com vista a essa capitalização imediata da empresa, mas nada de concreto disse quanto a estas.

Deste modo, nenhum fundamento existe para aditar à factualidade assente este ponto.

3. Por fim, o recorrente entende ainda que a factualidade provada deverá ser expurgada de matéria conclusiva, apontando especificamente para os factos com os nºs 10, 11, 21, 23, 26, 27 e 28.

Sucede que os nºs 11, 21 e 23 já foram por nós apreciados, tendo sido o primeiro eliminado da factualidade assente e os outros dois alterados na sua redação.

Vejamos assim os demais factos - nºs 10, 26, 27 e 28 - cujo teor é o seguinte:

10. A evolução negativa de todos os indicadores do quadro constante em 9) é demonstrativa da situação deficitária que a sociedade requerida já se defrontava desde o ano de 2018, razão pela qual já, pelo menos, em finais desse ano e, seguramente, em 31.03.2019, aquela estava impossibilitada de cumprir com as suas obrigações vencidas, apresentando-se o seu passivo muito superior ao activo, de acordo com os registos disponíveis e normas contabilísticas aplicáveis, não tendo sido adoptada a conduta prevista no art.º 35.º do Código das Sociedades Comerciais;

26. De acordo com a prestação de contas referente ao ano de 2018, encontra-se inscrita, no quadro ...81-A, alienações de equipamento de transporte no valor de €14.634,15 (fls. 53 deste apenso) e na prestação de contas referente ao ano de 2019 – depositada em novembro de 2020 – encontra-se inscrita rubrica de alienações de equipamento de transporte no valor de €20.28384 (fls.67 verso deste apenso), o que revela que a insolvente alienou tal tipo de equipamento por valor não concretamente apurado;

27. Na prestação de contas de 18.11.2020 referente ao ano de 2019, foi feita constar rubrica “Entradas para cobertura de perdas” no valor de €332.333,85, à qual não correspondeu efectiva injecção desse capital na sociedade insolvente, tendo aquela rubrica influenciado quer os resultados transitados quer o capital próprio (que passaram a apresentar resultados positivos);

28. Por virtude dos factos referidos em 23) e 27), a sociedade insolvente apresentava contabilidade irregular e que não espelhava a efectiva realidade financeira daquela;

Nesta parte, assiste razão à recorrente, uma vez que da sua leitura resulta que todos estes pontos factuais contêm matéria conclusiva.

Assim, de modo a circunscrevê-los ao domínio fáctico, altera-se a redação dos nºs 10, 26 e 27 que passará a ser a seguinte:

10. A evolução negativa de todos os indicadores do quadro constante em 9) é demonstrativa da situação deficitária que a sociedade requerida já se defrontava desde o ano de 2018, razão pela qual já, pelo menos, em finais desse ano e, seguramente, em 31.03.2019, aquela estava impossibilitada de cumprir com as suas obrigações vencidas, apresentando-se o seu passivo muito superior ao ativo.

26. De acordo com a prestação de contas referente ao ano de 2018, encontram-se inscritas, no quadro ...81-A, alienações de equipamento de transporte no valor de €14.634,15 (fls. 53 deste apenso) e na prestação de contas referente ao ano de 2019 – depositada em novembro de 2020 – encontra-se inscrita rubrica de alienações de equipamento de transporte no valor de €20.28384 (fls.67 verso deste apenso).

27. Na prestação de contas de 18.11.2020 referente ao ano de 2019, foi feita constar rubrica “Entradas para cobertura de perdas” no valor de €332.333,85, à qual não correspondeu efectiva injecção desse capital na sociedade insolvente.

Por outro lado, quanto ao facto nº 28 [Por virtude dos factos referidos em 23) e 27), a sociedade insolvente apresentava contabilidade irregular e que não espelhava a efectiva realidade financeira daquela], uma vez que todo ele se mostra conclusivo no seu conteúdo, elimina-se o mesmo da matéria de facto provada.


*


Em suma, a impugnação factual efetuada pelo recorrente AA obterá parcial procedência e, em consequência:

- eliminam-se da factualidade provada os seus nºs 11 e 28;

- adita-se à factualidade provada o seguinte facto com o nº 35:

- A “C..., Lda.” foi apresentada à insolvência pelo requerido AA, no dia 21.9.2020;

- altera-se a redação dos nºs 10, 21, 23, 26 e 27, que passará a ser a seguinte:

- 10. A evolução negativa de todos os indicadores do quadro constante em 9) é demonstrativa da situação deficitária que a sociedade requerida já se defrontava desde o ano de 2018, razão pela qual já, pelo menos, em finais desse ano e, seguramente, em 31.03.2019, aquela estava impossibilitada de cumprir com as suas obrigações vencidas, apresentando-se o seu passivo muito superior ao ativo.

- 21. O requerido AA, enquanto gerente da insolvente, ao atuar da forma descrita, dispôs de bens da sociedade devedora em proveito pessoal, sendo que a disposição de tal acervo patrimonial resulta igualmente dos valores que constavam nos documentos contabilísticos da insolvente na rubrica “inventários” no ano de 2017 (€831.488.12) por comparação aos valores que passaram a constar nos anos de 2018 e 2019 (0,00).

- 23. Por referência à “Prestação de Contas” depositada em setembro de 2020 e à “Prestação de Contas” depositada em novembro de 2020 (referentes ao exercício de 2019), verifica-se a existência de alterações na parte referente a “activo corrente dos accionistas/sócios” no montante de €258.500,00 e a “passivo corrente dos accionistas/sócios” no valor de €170.180,00, uma vez que tais valores deixaram de constar da “prestação de contas” de substituição, depositada em novembro de 2020.

26. De acordo com a prestação de contas referente ao ano de 2018, encontram-se inscritas, no quadro ...81-A, alienações de equipamento de transporte no valor de €14.634,15 (fls. 53 deste apenso) e na prestação de contas referente ao ano de 2019 – depositada em novembro de 2020 – encontra-se inscrita rubrica de alienações de equipamento de transporte no valor de €20.28384 (fls.67 verso deste apenso).

27. Na prestação de contas de 18.11.2020 referente ao ano de 2019, foi feita constar rubrica “Entradas para cobertura de perdas” no valor de €332.333,85, à qual não correspondeu efetiva injeção desse capital na sociedade insolvente.


*


IV – Qualificação da insolvência como culposa

1. Na sentença recorrida a insolvência foi qualificada como culposa com referência ao art. 186º, nºs 1, 2, als. b), d), f), g) e h) e 3, al. a) do CIRE, entendimento que teve a discordância do requerido AA que pugna pela sua qualificação como fortuita.

Vejamos então.

O art. 186º do CIRE estatui o seguinte, nos seus nºs 1, 2 e 3[16]:

«1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;

g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º

3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.»

Cabe desde logo sublinhar que todos estes comportamentos só relevam para a qualificação da insolvência como culposa se tiverem ocorrido até três anos antes do início do processo de insolvência – art. 186º, nº 1.

Por outro lado, face à letra do nº 2 deste art. 186º, quando afirma que a insolvência se considera «sempre» culposa se ocorrer qualquer dos comportamentos elencados nas suas alíneas, deve entender-se que nele se estabelecem presunções inelidíveis, “juris et de jure”.

Neste sentido aponta, além do advérbio «sempre», o confronto com o texto do nº 3 do mesmo preceito, onde tal palavra não é usada, donde se conclui que as presunções deste número são elidíveis, “juris tantum”, segundo a regra geral do nº 2 do art. 350º do Cód. Civil.[17]

Há assim a concluir que no nº 2 do art. 186º do CIRE se prevêem presunções juris et de jure de insolvência culposa, uma vez que a lei consagra aqui uma presunção de existência de culpa grave e também uma presunção de nexo de causalidade dos comportamentos aí previstos para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não sendo admitida a produção de prova em contrário.[18] [19]

3. De uma maneira geral, as situações previstas nas várias alíneas do nº 2 não suscitam difíceis problemas de interpretação, sem prejuízo de, na sua aplicação concreta, se dever atender às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor – cfr. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, “CIRE Anotado”, 2ª ed., pág. 719.

Estas alíneas podem ser agrupadas em três categorias fundamentais:

1) atos que afetam, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

2) atos que, prejudicando a situação patrimonial, em simultâneo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros;

3) incumprimento de certas obrigações legais.

No primeiro grupo incluem-se as situações das alíneas a) e c).

No segundo grupo enquadram-se as alíneas b), d), e), f) e g).

Por fim, no terceiro grupo acham-se as alíneas h) e i).[20]

4. No que concerne à qualificação da insolvência como culposa com base nas diversas alíneas do nº 2 do art. 186º, uma vez que, conforme já atrás se expôs, estamos perante presunções “jures et de jure” terá de se concluir que, preenchidas estas, não só se dispensa a prova de que a ação do devedor causou ou agravou a situação de insolvência, como se veda ao devedor a prova do contrário.

Da matéria fáctica dada como assente resulta o seguinte:

- Por escritura pública de 30 de agosto de 2018, a “C...”, através dos seus gerentes AA e BB, declarou vender, pelo preço já recebido de duzentos mil euros, aos referidos AA e BB, o prédio urbano composto de terreno para construção, designado por “lote quatro”, sito no lugar ..., ..., com as benfeitorias já existentes consistentes em construção inacabada de uma moradia de rés do chão e andar, pronta de pedreiro e de parte de trolha, com telhado, algumas portas e janelas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o número ... de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...64 da União de Freguesias ..., ... e ..., tudo como flui do documento 4 junto com o articulado de 29.11.2023 do credor requerente B... (ref.ª 47301123) - fls. 523 e ss. – cujo teor integral aqui se dá por reproduzido – nº 17;

- Simultaneamente à outorga do contrato de compra e venda referido em 17), os aqui requeridos AA e BB celebraram com o Banco 1..., S.A., um contrato de abertura de crédito com hipoteca no valor global de 200.000,00€, tudo como flui do teor do documento 5 junto com o articulado de 29.11.2023 do credor requerente B... (ref.ª 47301123) – fls. 526/527 – cujo teor aqui se dá por reproduzido – nº 18;

- Em 20 de dezembro de 2018, os aqui requeridos AA e BB, declararam vender o imóvel descrito em 17) a pessoa identificada como sendo FF, pelo preço global de €460.000,00, tudo como flui do teor do documento 6 junto com o articulado de 29/11/2023 do credor requerente B... (ref.ª 47301123), cujo teor aqui se dá por reproduzido – nº 19;

- O valor de €200.000,00 (duzentos mil euros) não deu entrada nas contas da sociedade insolvente, ao contrário do que foi feito constar da escritura aludida em 17), sendo que nem a preparação da escritura foi paga pelos próprios requeridos (ali compradores) junto da Notária - nº 20;

- O requerido AA, enquanto gerente da insolvente, ao atuar da forma descrita, dispôs de bens da sociedade devedora em proveito pessoal, sendo que a disposição de tal acervo patrimonial resulta igualmente dos valores que constavam nos documentos contabilísticos da insolvente na rubrica “inventários” no ano de 2017 (€831.488.12) por comparação aos valores que passaram a constar nos anos de 2018 e 2019 (0,00) – nº 21;

- Por referência à “Prestação de Contas” depositada em setembro de 2020 e à “Prestação de Contas” depositada em novembro de 2020 (referentes ao exercício de 2019), verifica-se a existência de alterações na parte referente a “activo corrente dos accionistas/sócios” no montante de €258.500,00 e a “passivo corrente dos accionistas/sócios” no valor de €170.180,00, uma vez que tais valores deixaram de constar da “prestação de contas” de substituição, depositada em novembro de 2020 – nº 23;

- De acordo com a prestação de contas referente ao ano de 2018, encontram-se inscritas, no quadro ...81-A, alienações de equipamento de transporte no valor de €14.634,15 (fls. 53 deste apenso) e na prestação de contas referente ao ano de 2019 – depositada em novembro de 2020 – encontra-se inscrita rubrica de alienações de equipamento de transporte no valor de €20.28384 (fls.67 verso deste apenso) – nº 26;

- Na prestação de contas de 18.11.2020 referente ao ano de 2019, foi feita constar rubrica “Entradas para cobertura de perdas” no valor de €332.333,85, à qual não correspondeu efetiva injeção desse capital na sociedade insolvente – nº 27;

- Nos anos de 2019 e 2020, os requeridos AA e BB auferiam mensalmente, por referência à entidade empregadora “C..., Lda.”, as quantias mensais de €2.100,00 cada um (sob o código P – remuneração de trabalho dependente), conforme Extracto da declaração de Remunerações da Segurança Social junto a fls. 216-221 deste apenso (doc. 20 junto com o requerimento do credor B... de 30/03/2021 – ref.ª 38423414); - nº 32

- Entre 31.12.2018 e 31.12.2019, a rubrica “fornecedores” de acordo com as “prestações de contas” juntas aos autos, sofreu uma redução de € 312.187,45, assim se exteriorizando uma diminuição do passivo da sociedade C... de acordo com tais elementos contabilísticos – nº 33.

Ora, face a esta factualidade, já expurgada de alguma matéria conclusiva, deverão ser consideradas como preenchidas as alíneas b), f), g) e h) do nº 2 do art. 186º do CIRE, tal como se entendeu na sentença recorrida.

Aliás, nas suas alegações de recurso, o requerido não questiona expressamente o preenchimento destas alíneas, centrando antes a sua argumentação no facto de a sua atuação, embora espelhando uma má gestão empresarial, não poder ser censurada ao nível da culpa – cfr. conclusões XLVIII a LXXII.

Linha argumentativa que não é de acolher, porquanto provando-se factos suscetíveis de integrar as referidas alíneas do nº 2 do art. 186º do CIRE, estamos perante presunções inelidíveis de culpa grave, em que não apenas se dispensa a prova de que a atuação do devedor causou ou agravou a situação de insolvência, como, inclusive, não se admite que este possa produzir prova do contrário.

Como tal, nesta parte e sem necessidade de outras considerações, soçobra o recurso interposto.

5. O recorrente questiona também o preenchimento da alínea a) do nº 3 do art. 186º - incumprimento pelo devedor do dever de requerer a declaração de insolvência -, a que se referem as conclusões LXXIII a XC do seu recurso.

No que concerne às presunções previstas no nº 3 do art. 186º do CIRE há que ter em conta a alteração da redação deste preceito introduzida pela Lei nº 9/2022, de 11.1, estando agora expressamente previsto que nas suas alíneas a) e b) “se presume unicamente a existência de culpa grave”.

Tal como refere MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO (in “Manual de Direito da Insolvência”, 8ª ed., págs. 161/162), ficou assim definitivamente solucionado o dissenso que dividia a doutrina e a jurisprudência nacionais sobre o âmbito objetivo das presunções previstas no nº 3 do art. 186º do CIRE.

Para a maioria da jurisprudência[21] e da doutrina nacionais[22] entendia-se que “o que resulta do art. 186º, nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da atuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º, nº 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.”[23]

Porém, outros defendiam que a simples verificação das situações previstas nas alíneas a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE constitui presunção (ilidível) da insolvência culposa - pressupondo-se, à partida, o nexo de causalidade exigido pelo nº 1 – e não apenas da culpa grave do devedor.[24]

De qualquer modo, face à alteração legislativa decorrente da Lei nº 9/2022, ficou definido que para ocorrerem as presunções previstas nas alíneas a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE é imprescindível demonstrar que a situação de insolvência foi causada ou agravada em consequência da conduta assumida pelo devedor integrativa dessas alíneas.[25]

6. Retornando ao caso dos autos, verifica-se que na sentença recorrida se qualificou a insolvência como culposa também com referência à alínea a) do nº 3 do art. 186º, o que a Mmª Juíza “a quo” fundamentou nos seguintes termos:

“ (…)

Assim sendo, torna-se imprescindível demonstrar que a situação de insolvência foi causada ou agravada em consequência da conduta assumida pelo devedor integrativa dessas alíneas, exigindo-se, pois, a verificação e demonstração de um dos requisitos previstos no n.º 1 do mesmo artigo, isto é, o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, o qual, deste modo, não podendo presumir-se, terá que ser demonstrado.

A este respeito, importará considerar que ao se exigir o apontado nexo causal, o mesmo poderá ser dado por verificado sempre que a conduta se não possa considerar de todo em todo indiferente para a verificação do resultado, sendo só provocado por causa de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas (v., neste sentido, Acórdão da Relação de Guimarães de 06.03.2012, processo n.º 9041/07.6TBBRG-AB.G1, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Dr. Eduardo Oliveira Azevedo, disponível para leitura no site www.dgsi.pt/jtrg).

Partindo deste ensinamento, e apelando ao quadro fáctico acima enunciado, poderemos concluir que a conduta omissiva por banda do aqui requerido AA agravou o estado insolvencial da sociedade de que era gerente – cfr. factos acima descritos em 1) a 11), 12), 15), 21), 25), 26), e 32) que aqui se dão por reproduzidos.

Ante a prova dos aludidos factos, legítimo se torna concluir que caso o gerente da insolvente tivesse optado, como se lhe impunha, pela apresentação à insolvência em finais do ano de 2018/inícios de 2019, teria evitado prosseguir com a contratualização de obras/empreitadas que não veio a cumprir nos termos contratualizados, gerando subsequente dívida que veio a ser reconhecida nestes autos (apenso de verificação e graduação de créditos), teria evitado o vencimento de créditos tributários e devidos à segurança social que vieram a sobrevir, ter-se-ia evitado o processamento de salários que teve lugar até 2020 (inclusive à ex-mulher do requerido) e ter-se-ia evitado a alienação de património da sociedade insolvente, que veio a ocorrer, máxime no ano de 2019 (v.g. alienações de equipamento de transporte).”

Mesmo tendo-se provado, após reapreciação da decisão factual, que a devedora “C..., Lda.” foi apresentada à insolvência pelo requerido AA, no dia 21.9.2020 (facto nº 35, aditado), eliminando-se simultaneamente o seu nº 11, cujo segmento final sempre revestiria natureza conclusiva[26], entendemos que ocorreu incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência.

Com efeito, conforme preceitua o art. 18º, nº 1 do CIRE o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº 1 do art. 3º[27], ou à data em que devesse conhecê-la.

Acontece que só no dia 21.9.2020 é que a “C..., Lda.” foi apresentada à insolvência pelo seu gerente AA, ora recorrente, sendo que se o tivesse feito em momento adequado – final do ano 2018 ou início do ano 2019 –, como lhe era imposto, teria evitado prosseguir com a contratualização de obras que não veio a cumprir, gerando subsequente dívida que viria a ser reconhecida nos presentes autos.

Tal como teria evitado o vencimento de créditos tributários e também à Segurança Social que entretanto vieram a sobrevir e ainda se teria evitado o processamento de salários, o que teve lugar até 2020, bem como a alienação de património da sociedade insolvente, inclusive no ano de 2019.

Assim, verificando-se que o devedor não requereu a declaração da sua insolvência no prazo de 30 dias indicado no art. 18º, nº 1 do CIRE, e como se demonstra que daí decorreu agravamento dessa situação insolvencial, temos como verificado, em sintonia com a sentença recorrida, o preenchimento da alínea a) do nº 3 do art. 186º do CIRE.

Por conseguinte, ainda nesta parte improcede o recurso interposto.


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IV – Aplicação da medida de inibição prevista no art. 189º, nº 2, al. b) do CIRE

1. Na sentença recorrida foi decretada a inibição de AA, declarado afetado pela qualificação da insolvência, para administrar património de terceiros, por um período de 4 anos e 10 meses, contra o que se insurge o recorrente, chamando em seu apoio o Acórdão do Tribunal Constitucional de nº 564/2007 – conclusões XCII a XCIV.

2. O art. 189º do CIRE fixa o conteúdo da sentença que qualifica a insolvência como culposa, quanto aos efeitos associados a essa qualificação, aí se preceituando o seguinte[28]:

«1 - A sentença qualifica a insolvência como culposa ou como fortuita.

2 - Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:

a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa;

b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos;

c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;

d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afetadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.

3 - A inibição para o exercício do comércio tal como a inibição para a administração de patrimónios alheios são oficiosamente registadas na conservatória do registo civil, e bem assim, quando a pessoa afetada for comerciante em nome individual, na conservatória do registo comercial, com base em comunicação eletrónica ou telemática da secretaria, acompanhada de extrato da sentença.

4 - Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença».

Na redação inicial deste preceito a alínea b) do seu nº 2 tinha a seguinte redação: «Decretar a inabilitação das pessoas afetadas por um período de 2 a 10 anos.»

Com a Lei nº 16/2012, de 20.4. esta alínea passou a ter a redação atual já acima indicada [Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos], sendo que através desta alteração se procurou corrigir a situação de inconstitucionalidade que lhe vinha sendo apontada na doutrina e também em diversas decisões judiciais, o que tudo veio a convergir no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 173/2009.

3. De forma algo surpreendente, a recorrente parece pretender retornar a esta questão, que hoje não cremos que possa ter fundamento, ancorando-se não neste, mas sim no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 564/2007.

Com efeito, como resultado da alteração legislativa efetuada pela Lei nº 16/2012, deixou de existir a sanção de “inabilitação” e era essa imposição que, como efeito necessário da qualificação da insolvência como culposa, se considerou que violava os arts. 18º, nº 2 e 26º da Constituição da República, na parte em que este último reconhece o direito à capacidade civil.

Entendeu o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 173/2009, na sequência de anteriores decisões, entre as quais se conta o Acórdão nº 564/2007 que a inabilitação prevista na al. b) do n.º 2 do art. 189º do CIRE só podia ser configurada como tendo um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido. “Essa pena fere o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis diminutio, sujeitando-o à assistência de um curador [art. 190º, n.º 1]. Ele perde a legitimidade para a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos ou apreensíveis para os fins da execução, situação que se pode prolongar para além do encerramento do processo [art. 233º, nº 1, al. a)]. Consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode deixar de ser vista como inadequada e excessiva. O que tudo levou a concluir pela desconformidade do art. 189º, nº 2, al. b), do CIRE com o art. 26º, conjugado com o art. 18º da Constituição da República.”[29]

Acontece que na sentença recorrida se aplicaram ao requerido AA, afetado pela qualificação, medidas de inibição e não a sua “inabilitação”, daí decorrendo a manifesta falta de fundamento, também nesta parte, da argumentação recursiva, onde, aliás, face à forma como a mesma se encontra estruturada, se parece ter ignorado a alteração introduzida pela Lei nº 16/2012.

Isto porque a atual redação da al. b) do nº 2 do art. 189º se reporta a uma medida de inibição e não, como parece supor o recorrente, à inabilitação do afetado pela qualificação.

Como tal, igualmente neste segmento, naufraga o recurso interposto pelo requerido AA.[30]


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo requerido AA e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas, pelo seu decaimento, a cargo do recorrente.

Porto, 26.11.2025

Eduardo Rodrigues Pires

Pinto dos Santos

Alexandra Pelayo

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[1] Seguiu-se o relatório constante da sentença recorrida.
[2] Cfr. também Ac. Rel. Coimbra de 13.11.2012, p. 572/11.4 TBCND.C1, relator AVELINO GONÇALVES, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 20.9.2016, p. 1215/14.0 TBPBL-B.C1, relator JORGE LOUREIRO, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Cfr. o citado acórdão da Relação do Porto de 4.5.2022.
[5] Cfr. também Acs. Rel. Coimbra de 12.7.2017, p. 60/16.2 T8PNH-B.C1 (MARIA JOÃO AREIAS) e Rel. Porto de 28.9.2015, p. 1826/12.8 TBOAZ-C.P1 (ANA PAULA AMORIM), disponíveis in www.dgsi.pt. 
[6] Donde resulta igualmente a falta de fundamento do requerimento apresentado pelo recorrente em 6.8.2025.
 [7] Cfr. Ac. Rel. Porto de 16.12.2015, p. 12203/05.7 TBMAI.P2, relator MANUEL FERNANDES, disponível in www.dgsi.pt.
[8] O facto nº 10 tem a seguinte redação: “A evolução negativa de todos os indicadores do quadro constante em 9) é demonstrativa da situação deficitária que a sociedade requerida já se defrontava desde o ano de 2018, razão pela qual já, pelo menos, em finais desse ano e, seguramente, em 31.03.2019, aquela estava impossibilitada de cumprir com as suas obrigações vencidas, apresentando-se o seu passivo muito superior ao activo, de acordo com os registos disponíveis e normas contabilísticas aplicáveis, não tendo sido adoptada a conduta prevista no art.º 35.º do Código das Sociedades Comerciais.”
[9] Facto este que decorre também do art. 59º da oposição do requerido AA, que tem a seguinte redação: “não restou outra opção ao ora Opoente que não a sua apresentação à insolvência da Insolvente.” [sic] 
[10] Foi ouvido em duas sessões – 31.5.2023 e 28.9.2023.
[11] Ouvimos também este depoimento.
[12] Corrigiu-se aqui manifesto lapso de escrita ocorrido na indicação da data do requerimento. 
[13] Cfr., por ex., Ac. STJ de 23.9.2025, p. 26696/21.1.T8LSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[14] É a seguinte a redação destes dois pontos factuais: “27. Na prestação de contas de 18.11.2020 referente ao ano de 2019, foi feita constar rubrica “Entradas para cobertura de perdas” no valor de €332.333,85, à qual não correspondeu efectiva injecção desse capital na sociedade insolvente, tendo aquela rubrica influenciado quer os resultados transitados quer o capital próprio (que passaram a apresentar resultados positivos); 28. Por virtude dos factos referidos em 23) e 27), a sociedade insolvente apresentava contabilidade irregular e que não espelhava a efectiva realidade financeira daquela.”
[15] É a seguinte a redação do ponto 3 dos temas da prova, que se conjuga com o seu ponto 8:
“3) Apurar se os referidos AA e BB, atenta as suas qualidades de gerentes de direito e de facto, dispuseram de bens da sociedade, dissiparam ou fizeram desparecer tal acervo patrimonial, atendendo aos valores que constavam nos documentos contabilísticos da insolvente na rubrica “inventários” nos anos de 2017 (€831.488,12) por comparação com os que passaram a constar em 2018, 2019 e 2020 (0,00);

(…)

8) Apurar se as alterações de valores aludidas em 3) se ficaram a dever a vendas de activos imobiliários realizadas pela insolvente, que por esta haviam sido adquiridos nos anos anteriores.”

[16] Com as alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022, de 11.1.
[17] Cfr. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, “Colectânea de Estudos sobre a Insolvência”, pág. 262.
[18] Cfr., por ex., na jurisprudência, Acórdãos Rel. Porto de 18.6.2007, p. 0730992; Rel. Porto de 27.11.2007, p. 0723926; Rel. Porto de 3.3.2009, p. 0827686; Rel. Coimbra de 19.1.2010, p. 132/08.7 TBOFR-E.C1, Rel. Guimarães de 29.6.2010, p. 1965/07.7 TBFAF-A.G1; Rel. Lisboa de 10.5.2011, p. 1166/08.7 TYLSB.B.L1-7; Rel. Porto de 27.2.2014, p. 1595/10.6 TBAMT-A.P2, Rel. Porto de 28.9.2015, p. 1826/12.8 TBOAZ-C.P1, Rel. Porto de 1.6.2017, proc. 35/16.1 T8AMT-A.P1 e Rel. Porto de 29.9.2022, proc. 2367/16.0 T8VNG-H.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[19] Cfr. também na doutrina, MENEZES LEITÃO, “Direito da Insolvência”, Almedina, 8ª ed., pág. 284 e MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, “Manual de Direito da Insolvência”, Almedina, 8ª ed., págs. 154/157.    
[20] Cfr. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, ob. cit., págs. 157/158.
[21] Cfr. Ac. STJ de 6.10.2011 (SERRA BAPTISTA) “(…) III – o nº 3 do mesmo art. 186º estabelece, por seu turno, presunções ilidíveis, que admitem prova em contrário, dando-se por verificada a culpa grave quando ocorram as situações aí previstas. IV – Não se dispensando neste nº 3 a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. Sendo, pois necessário, nessas situações, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. Não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais actuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento”. No mesmo sentido, veja-se, entre outros, os Acs. da Rel. Lisboa., de 22.1.2008 (GRAÇA AMARAL) e de 21.4.2009 (SÍLVIA PIRES) e o Ac, Rel. Coimbra de 8.2.2011 (BEÇA PEREIRA). 
[22] Por ex. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, “CIRE Anotado”, 3ª ed., pág. 681, nota 8; ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Um Curso de Direito da Insolvência”, 4ª ed., pág. 572; A. RAPOSO SUBTIL e outros, “CIRE Anotado”, 2006, pág. 265.
[23] Cfr. MENEZES LEITÃO, ob. cit., pág. 285.
[24] Cfr., por ex., Ac. Rel. Porto de 5.2.2009, proc. 0837835 (LUÍS ESPÍRITO SANTO), disponível in www.dgsi.pt.; CATARINA SERRA, “Lições de Direito da Insolvência”, 2019, págs. 301/302; Ac. Tribunal Constitucional nº 564/2007, de 13.11.2007 (SOUSA RIBEIRO), disponível in www.tribunalconstitucional.pt. 
[25] CATARINA SERRA (in “O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei nº 9/2022 – Algumas observações ao regime com ilustrações de jurisprudência”, Revista Julgar, nº 48, págs. 20/24), na sequência da posição por si sustentada, discorda desta alteração legislativa e sobre ela, além do mais, escreve o seguinte: “A medida é intrigante, se não mesmo incoerente no plano da política legislativa. Servindo o incidente para sancionar todos os sujeitos que, com desprezo pelas suas obrigações profissionais, contribuam para a insatisfação geral dos credores, seria essencial que se disponibilizassem mecanismos eficazes, designadamente aptos a superar as situações de prova excessivamente difícil ou impossível – sem atropelo, bem entendido, dos direitos fundamentais dos visados. As presunções são o mecanismo ideal para este efeito, mas é preciso configurá-las de modo a que possam ser úteis. Ora, uma presunção (unicamente) de culpa grave serve de pouco ou de nada se for dificílimo provar os restantes requisitos da insolvência culposa. Em quantos casos se demonstrará o nexo de causalidade entre o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência ou entre o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, de submeter as contas à fiscalização ou de depositar as contas na conservatória do registo comercial e a criação ou o agravamento da insolvência? (…) Em conclusão, a alteração legislativa reduz drasticamente a utilidade das presunções consagradas nas als. a) e b) do nº 3 do art. 186º, dada a dificuldade em provar o nexo de causalidade nestes casos.”
[26] “…, com o que causou prejuízos aos credores, agravando a situação insolvencial.”
[27] Aqui se estatui que é considerado em situação de insolvência o devedor que encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. 
[28] Com a alteração introduzida no nº 4 pela Lei nº 9/2022, de 11.1.
[29] Cfr. também Ac. Rel. Lisboa de 27.4.2021, proc. 540/19.8 T8VFX-C.L1-1, disponível in www.dgsi.pt.
[30] Uma nota final para referir que a eventual redução dos períodos de inibição (4 anos e 10 meses) está fora do âmbito da nossa cognição por não ter sido colocada pelo recorrente, nem sequer subsidiariamente, no seu recurso.