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CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA FIM NÃO HABITACIONAL
CONTRATO ANTERIOR AO NRAU
TRANSIÇÃO PARA O NRAU
COMUNICAÇÃO DO SENHORIO
TRESPASSE
Sumário
I - Após a entrada em vigor da Lei nº 31/2012 de 14.08, os contratos de arrendamento para fins não habitacionais celebrados antes do DL nº 257/95 de 30.09 passaram a estar submetidos ao NRAU, nos termos da norma transitória vertida no art. 27º, com as especificidades determinadas no art. 28º do mesmo diploma legal, bem como as constantes dos arts. 30º a 37º e 50º a 54º. II - No âmbito de um contrato de arrendamento para fim não habitacional anterior a 1995, a transição para o NRAU fica dependente de iniciativa do senhorio, que deve comunicar essa intenção ao arrendatário, indicando os elementos previstos no art. 50º do NRAU, de entre os quais o valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos. III - Recebida tal comunicação, o arrendatário pode responder, aceitando ou opondo-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor; pronunciar-se quanto ao tipo ou à duração do contrato propostos pelo senhorio, denunciar o contrato de arrendamento, e/ou invocar uma das circunstâncias previstas no art. 51º nº 4 al. a) a d) do NRAU. IV - No âmbito do contrato de arrendamento para fim não habitacional é permitida a transmissão da posição contratual do arrendatário, sem consentimento do senhorio, no caso de trespasse de estabelecimento comercial- art. 1112º nº 1 al. b) do CC-podendo o trespasse ser celebrado a título oneroso ou gratuito, mas devendo a transmissão ser celebrada por escrito e comunicada ao senhorio- art. 1112º nº 3 do CC- sob pena de nulidade (art. 220º do CC). V - A transição do contrato de arrendamento para o NRAU e a denúncia por oposição à renovação por parte do senhorio comunicada à arrendatária, é eficaz perante quem explora o estabelecimento comercial instalado no arrendado se não houve trespasse válido.
Texto Integral
Processo n.760/22.8T8ESP.P1 Juízo de Competência Genérica de Espinho- Juiz 2
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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO: 1.AA, BB e CC intentaram acção declarativa sob processo comum contra DD e EE, tendo formulado os seguintes pedidos:
A. Seja decretada a cessação do contrato de arrendamento existente entre as partes referente à parte do prédio destinado a estabelecimento comercial sito na Rua ..., em Espinho, cessação essa, na sua ótica, verificada em 31.08.2022 e serem os RR condenados na sua imediata restituição livre e devoluto.
B. Caso assim não se entenda, que seja declarada a resolução do dito contrato de arrendamento em virtude da celebração de um contrato de trespasse nulo por falta de forma e inválido e ineficaz perante os AA, por falta de qualquer comunicação a estes.
C. Sempre, sejam os RR. condenados no pagamento aos AA de uma indemnização pelos prejuízos causados pela ocupação do espaço que mantiver até à sua efetiva entrega, no valor mensal de € 259,00, cujo montante se relega para oportuna execução de sentença.
Como fundamento das referidas pretensões os Autores alegaram em síntese que são os actuais proprietários do imóvel do qual os RR são arrendatários, qualidade que estes últimos assumiram desde Outubro de 1994, por via de um trespasse dos anteriores arrendatários, sendo um arrendamento para fins comerciais desde 1975, tendo em 2017 havido transição do arrendamento para o NRAU, passando a arrendamento a ter a duração de 5 anos.
Mais alegaram que por não pretenderem a manutenção do referido contrato de arrendamento, em 19.10.2021 comunicaram à R., através de carta registada com aviso de receção, que esta rececionou em 20.10.2021, a sua oposição à renovação daquele contrato de arrendamento para o termo do prazo então em curso, ou seja, com efeitos a partir de 31.08.2022, com a antecedência superior aos 120 dias estipulados na lei, porém a Ré recusou-se a desocupar e entregar o locado, o que lhes causa prejuízos que, atendendo ao valor de mercado do mesmo espaço, calcularam em montante mensal não inferior a 259,00 €, valor equivalente ao montante que, mensalmente, a R. lhes pagava pela sua ocupação, na vigência do referido contrato de arrendamento. 2. Os Réus deduziram contestação, suscitando a excepção da ilegitimidade passiva, a caducidade do direito referente ao segundo pedido formulado na PI, e alegaram que o estabelecimento desde há mais de 20 anos está a ser explorado por FF, por força de um trespasse do conhecimento da anterior proprietária do imóvel, que a reconheceu como arrendatária, tendo dela recebido as rendas e autorizado que realizasse obras.
3. Os Autores responderam à matéria das excepções, pugnando pela sua improcedência, alegando desconhecer qualquer trespasse, que a existir é nulo por falta de forma e por não ter sido comunicado aos senhorios, e concluíram como na PI.
Mais requereram a condenação dos Réus como litigantes de má-fé, em multa e indemnização em montante não inferior a €2500,00.
4. Os Réus requereram o chamamento de FF, através de incidente de intervenção principal provocada, o qual veio a ser admitido, tendo a interveniente apresentado articulado próprio no qual alegou encontrar-se a explorar o referido estabelecimento há mais de 23 anos, com o conhecimento dos Autores, e que a transição do arrendamento para o NRAU é ineficaz perante si.
Mais requereu a condenação dos Autores como litigantes de má-fé, em multa e indemnização em valor a apurar pelo tribunal.
5. Realizada audiência prévia, nela foi proferido despacho saneador, tendo sido julgada improcedente a excepção da ilegitimidade passiva e relegado o conhecimento da caducidade para sentença final, fixado o objecto do litígio e os temas de prova.
6. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença em 3.01.2025, Ref. Citius 137779521, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decide o Tribunal julgar a presente ação procedente e, consequentemente:
1. Decretar a cessação do contrato de arrendamento celebrado e existente entre AA e RR quanto à parte do prédio destinado a estabelecimento comercial, sito na Rua ..., em Espinho, com efeitos reportados a 31.08.2022.
2. Condenar os RR. na restituição imediata aos AA do locado livre e devoluto.
3. Condenar os RR no pagamento aos AA. de indemnização devida pela não entrega do locado e enquanto a ocupação do mesmo se mantiver, no valor mensal de € 259,00 (duzentos e cinquenta e nove Euros), relegando o apuramento do valor global para incidente de execução de sentença.
4. Absolver AA e RR das imputações de litigância de má fé.
5. Julgar prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
Custas pelos RR e chamada.
Registe e notifique.” 7. Inconformada a Interveniente principal interpôs recurso de apelação da sentença final, formulando as seguintes CONCLUSÕES
a) Tendo sido vencida na sua defesa/posição, não pode a recorrente. concordar com a sentença ora em crise;
b) Como questão prévia e a ser desde logo analisada salienta que as gravações de uma das testemunhas – GG – têm cortes e hiatos nas mesmas, que impedem que se percebam na sua totalidade e que poderão influir no que tange a saber de algum facto relevante que tenha sido cortado;
c) De seguida dizer que a recorrente não pode concordar nem com a matéria dada como provada nem com alguma da matéria dada como não provada, bem como com a motivação para tal e a fundamentação e conclusões da sentença. Em que pontos:
d) Errou o Tribunal a quo em termos gerais na forma como apreciou toda a prova que resultou da audiência de julgamento, seja documental seja testemunhal;
e) Em concreto, nos diversos pontos que foi analisando para posteriormente decidir, falhou o Tribunal na sua exegese principalmente no que resultou da prova testemunhal;
f) Não viu o que as testemunhas disseram também de forma indirecta e não aplicou (ou se o fez fê-lo de forma contrária) juízos, regras de experiência comum ou mesmo presunções,
g) O que teve como consequência uma errada avaliação e aplicação do direito (razão para o pedido de reapreciação da prava gravada);
h) Desacordo desde logo pelo considerar como não provada a comunicação de 2000 a dar conhecimento, via carta, da transmissão que operou entre os Rs.e a recorrente;
i) Isto porque foi junta carta de Janeiro de 2000 dos R.s a então senhoria HH, indicando expressamente o trespasse e quem iria ser a nova arrendatária – a aqui recorrente;
j) Facto inclusive reconhecido pelos A.s pelo depoimento da testemunha GG, marido da cabeça-de-casal e filha da dita HH, que taxativamente referiu ao Tribunal que aquela HH tinha recebido a carta;
k) Ou seja, existiu comunicação, que foi conhecida dos A.s – e dela recebida e bem ciente pois até se quis aconselhar.. – falhando (sinceramente não se percebe como) o Tribunal a dar como provado o contrário devendo ser alterado o ponto C da matéria dita não provada para provada;
l) O conhecimento ou reconhecimento deveria ter sido compreendido pelo Tribunal pelos vários indícios como saberem aqueles senhorios logo naquela data quem era a recorrente, de terem os R.s simplesmente deixado desde há 23 anos de estar uma vez que fosse no estabelecimento, de a habitação dos senhorios ser por cima do estabelecimento, de logo em 2000 ter a recorrente alterado o nome do estabelecimento visível para o seu nome e outros,
m) Para a recorrente ficou claro pela prova produzida que era possível o Tribunal ter dado como provado que “...os AA., pelo menos desde 2017, sabiam que os RR. haviam transmitido o estabelecimento à interveniente principal, em seu nome….”;
n) A prova para este ponto F da matéria dita como não provada (mal) era vária quer testemunhal quer documental (as cartas da matéria provada mas que deveriam constar no seu conteúdo integral nessa matéria e não por meros excertos);
o) A inercia dos A.s nesse ano de 2017 foi no mínimo não só estranha como reveladora;
p) Ficou claro, mas não para o Tribunal que em 2017 as partes chegaram a dialogar no sentido de resolução da situação;
q) Igualmente a contrário do considerado pelo Tribunal deveria ter sido antes considerado como provado - ponto G - que a retribuição mensal do estabelecimento, pelo menos desde 2017, era reconhecida como sendo paga pela interveniente principal;
r) Pela carta de 10/7/17 os A.s deixaram de formalmente poder dizer que ignoravam a situação, e logo deixaram de poder ignorar que quem pagava a renda era a recorrente;
s) Outrossim, deveria também ter considerado como provado o ponto K da matéria dita não provada no sentido de que a recorrente tinha tomado posse do estabelecimento em 2000 e nele executara algumas obras de adaptação e conservação com o aval, autorização e conhecimento quer da falecida HH quer dos A.s;
t) Assim se adequaria o referido pelas testemunhas com a prática dos actos entre as partes, como sempre que havia problemas ser a recorrente contactada e nunca os R.s;
u) Deveria ter sido estranho para o Tribunal numa relação de vinte e tal anos nenhum problema ter sido reportado aos R.s mas sim à recorrente;
v) A relação entre A.s e recorrente era tal que até realizaram o filho e marido daquelas obras na casa dos A.s a pedido destes;
w) A serem alterados os pontos C, F, G, K, N da matéria não provada para a provada por consequência, coerência e lógica, bem como de modo a evitar contradições, a matéria dos pontos A, I e E teriam igualmente de passar para a matéria provada;
x) Que per si teriam também indícios e pistas nos documentos e testemunhos prestados a Tribunal;
y) Uteis ao Tribunal na resposta a dar a cada um dos temas de prova, mas que ele desconsiderou quando considerou os depoimentos das testemunhas como quase inúteis, parciais ou vazios,
z) Falhando aí de forma clara quendo no que tange à testemunha GG dos A.s diz que aquele de novo nada disse, quando bem ouvido, terá sido aquele depoimento mais revelador;
aa) O Tribunal do pouco que quis aproveitar socorreu-se apenas e tão só de prova directa ou imediata desdenhando a prova indirecta que também resultou do julgamento, que lhe permitia chegar a deduções e induções objectiváveis que com o auxílio de regras da experiência, permitiriam atingir ilações das quais poderia inferir os factos a provar;
bb) Tendo a recorrente ao longo deste recurso apresentado diversos exemplos deste facto (a carta de 2000, a carta de 10/7/17, a mudança do nome do estabelecimento e outros);
cc) Houvera ter sido mais exaustivo e teria o Tribunal chegado a respostas bem diversas para cada um dos temas de prova;
dd) E por consequência respostas diversas para os objectos do litígio;
ee) Falhou também Tribunal na forma como geriu a questão do enquadramento e discussão do conhecimento pelos A.s (e reconhecimento) da recorrente como arrendatária, da ineficácia para com ela da tentativa de cessação do contrato bem como da apreciação da caducidade do direito de acção pelos A.s;
ff) Considerou o Tribunal a quo mal que não podia analisar a questão da caducidade vistos os pedidos dos A.s;
gg) Errou neste ponto – crucial – pois o conhecimento e a caducidade, estão num patamar de análise anterior ao de se saber se a resolução via cessação era válida ou não;
hh)A resolução do contrato pela transferência ilícita (que não se aceita) do estabelecimento para a aqui recorrente, deveria ter sido instaurada enquanto ação no prazo de um ano a contar da data de 2017 (art. 1085º, 1 do CC) pelo que o tendo sido tal deveria ter sido declarado pelo Tribunal;
ii) Analisar estas questões pelo prisma alegado e qualificado pelos A.s é errado;
jj) No mais dizer que considera a recorrente que o Tribunal valorou mal a prova produzida já que a mesma permitia dar como provados factos considerados na sentença recorrida como indemonstrados (nulidade prevista no art. 615º, 1 c) e d) CPC);
kk) O Tribunal a quo não fez uma correcta conjugação da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente, a prova documental, testemunhal e dos depoimentos (nulidade prevista no art. 615º, 1 c) e d) CPC);
ll) Igualmente erra na alegada apreciação critica das provas e ainda a sua conjugação com as regras da experiência e senso comum, que diz fazer mas verdadeiramente lhe escapa (nulidade prevista no art. 615º, 1 d) CPC);
mm)Verifica-se um erro notório na apreciação pelo Tribunal a quo da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por não provado, factos que contrariam com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum (nulidade prevista no art. 615º, 1 c) do CPC);
nn) Mais errou o Tribunal porque se constata a existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida imporem uma conclusão ou conclusões diferentes (violação dos art. 615º, 1 c) e d) do CPC);
oo) Existe assim um erro na construção do silogismo judiciário subjacente que conduziu em termos de fundamentos de facto e direito à decisão ora em crise;
pp) Ainda é manifesto que não foi feita uma correcta análise, fiscalização e deficiente de toda a documentação junta a estes autos (nulidade prevista nos art. 154º e 615º, 1 d) do CPC);
qq) Vistas tais nulidades, erros supram evidenciados e lacunas e omissões sobre a prova e outros, mais não resta à recorrente que recorrer a este douto Tribunal de modo a por esta via de recurso se obviar a uma injustiça clara ou se quisermos de modo a obter a JUSTIÇA para o caso concreto;
rr) Que apenas pode ser atingida com o revogar da sentença e sua substituição por uma outra que absolva recorrentes e R.s;
Concluiu, pedindo que, vista que seja a questão prévia suscitada, o presente recurso seja aceite, e em primeira análise, seja dado provimento ao mesmo, devendo ser proferida decisão revogando aquela outra ora em crise nos presentes autos substituindo-a por outra que contemple as conclusões atrás aduzidas, principais ou subsidiárias, conduzindo na prática a que seja proferida decisão de absolvição da recorrente dos pedidos formulados. 8. Os Apelados ofereceram contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado.
9. Pelo Tribunal a quo foi emitida pronúncia sobre a questão prévia da deficiência na gravação do depoimento da testemunha GG, suscitada pelos Réus no requerimento de 6.06.2025, ref. Citius 17857215, com o seguinte teor:
“Requerimento dos RR. DD e marido datado de 06.06.2025, c/ a ref.ª n.º17857215:
Visto.
Vêm aqueles, ao abrigo do art.º155.º, n.º4 do CPC, requerer a anulação do depoimento prestado pela testemunha GG, com a consequente repetição e gravação, alegando que «tal depoimento padece de vários cortes, designadamente aos minutos 13m19ss; 13m29ss e 22m e47ss, tornando-se ininteligível perceber o sentido do depoimento da testemunha, com impacto direto no depoimento prestado».
Com interesse, mais invocam que a gravação apenas lhes foi disponibilizada em 28.05.2025, afirmando, assim, a tempestividade do seu requerimento (de 06.06.2025), que ora se aprecia.
Vejamos se assim é:
Com relevo para a questão (também prévia ao recurso interposto) decidenda, importa atentar no seguinte elenco cronológico-fáctico:
1. Nos presentes autos, realizou-se a audiência final em 17.03.2025 – cf. Ata c/ a ref.ª n.º137759592.
2. A gravação correspondente àquela audiência final foi disponibilizada na plataforma Citius em 17.03.2025, ou seja, na mesma data de realização da audiência final – cf. ref.ª n.º177772264.
3. Foi proferida sentença no sentido da procedência da ação em 24.04.2025, notificada às partes em 29.04.2025.
4. Em 03.05.2025, veio a chamada FF requerer a disponibilização dos registos de gravação da audiência – cf. requerimento c/ a ref.ª n.º17688637 – tendo recebido despacho nesse sentido em 05.05.2025.
5. Em 28.05.2025, vieram os ora requerentes requerer a disponibilização dos registos de gravação da audiência – cf. requerimento c/ a ref.ª n.º17806777.
6. Na mesma data de 5), foram os requerentes notificados, na pessoa da sua Mandatária, de «que se encontram disponíveis as gravações da audiência de julgamento requeridas».
7. Em 06.06.2025 dão entrada do requerimento ora em apreço e com o objeto supra exposto, pugnando os AA, em sede do exercício do contraditório, pela sua extemporaneidade.
8. Em 10.06.2025, interpôs recurso a chamada supra identificada em 4), apresentando como questão prévia a mesma que ora se aprecia.
Sendo regra, desde a alteração do CPC em 2013, a de que a audiência final é sempre gravada, estabelece o n.º3 do art.º155.º de tal diploma legal que “a gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato,” sendo que “a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada” – n.º4 da norma.
Como o ensina o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05.06.2023, de que foi relatora a Exmª Desembargadora Fátima Andrade, in http://www.dgsi.pt, “a arguição de nulidade da gravação (artigo 155º nº 4 do CPC) deve ser feita perante o tribunal a quo e no prazo de dez dias a contar da disponibilização às partes daquela, disponibilização que deve ocorrer no prazo máximo de dois dias a contar do ato em causa, para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso.”
E, com relevo, mais se acrescenta que “esta disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes, antes sobre as mesmas recaindo um dever de diligência pela rápida obtenção das gravações a contar do ato, com vista a aquilatar de eventuais vícios das gravações e sendo o caso, arguir a pertinente nulidade.”
Com interesse, mais ali é dito que “disponibilização é diferente de entrega, já que esta pressupõe uma atuação do interessado que promove a entrega e aquela respeita a um ato da secretaria que coloca a gravação disponível à parte que na mesma esteja interessada para lha entregar se esta o requerer. Esta a ocorrer no prazo máximo de dois dias, tal como decorre do já referido nº 3 do artigo 155º.
Ao remeter o legislador a arguição da falta ou deficiência da gravação para o regime das nulidades (nulidades secundárias, cujo regime está regulado nos artigos 195º e segs. do CPC) resulta do artigo 199.º que a mesma deverá ser arguida logo no ato, se de tal se aperceber a parte. Ou então, a partir do momento em que tomou conhecimento da mesma, ou dela pudesse conhecer agindo com a devida diligência (vide nº 1 deste artigo 199º).
Porque a disponibilização da gravação deve ocorrer no prazo de dois dias [e se assim não ocorrer deve a parte suscitar tal questão perante o tribunal a quo] recai sobre a parte o ónus de neste prazo e sempre até aos 10 dias subsequentes requerer a entrega da gravação e verificar a regularidade da mesma, para que e sendo o caso, no mencionado prazo de dez dias arguir a respetiva nulidade.
Assim não o fazendo, violará o dever de diligência que sobre si recai, com a consequência de ver precludido o direito a arguir a nulidade decorrente deste vício.”
Ora, conforme decorre do elenco supra exposto, a gravação da audiência final ficou logo disponível para audição pelas partes no próprio dia da realização do ato (17.03.2025), pelo que se afigura extemporânea esta arguição (feita apenas em 06.06.2025), tendo-se sanado a eventual nulidade.” 10. Foram observados os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
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As questões a decidir, em função das conclusões do recurso, são as seguintes: 1ª Questão- se a sentença recorrida padece das nulidades previstas no art. 615º nº 1 al. c) e d) do CPC; 2ª Questão- se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada; 3ª Questão- se a transição do contrato de arrendamento para o NRAU e a sua denúncia é ineficaz perante a Apelante; 4ª Questão- se caducou o direito de resolução formulado sob o pedido subsidiário.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. Em 22 de janeiro de 1975, II celebrou com JJ um acordo pelo qual aquela proporcionou a este o gozo temporário para o exercício da atividade de venda de mercearia, vinhos, eletrodomésticos e panos, pelo período de um ano, de um estabelecimento existente no rés-do-chão e cave do prédio urbano sito na Rua ..., em Espinho, mediante a retribuição mensal de 2.200$00 (dois mil e duzentos escudos), a liquidar em casa da senhoria, com início em 01 de janeiro de 1975 e termo em 31 de dezembro de 1975, considerando-se prorrogado por sucessivos e iguais períodos.
2. Em 31 de agosto de 1984, por via de escritura pública denominada de “Doação”, celebrada no Cartório Notarial de Espinho, II transmitiu gratuitamente a HH a raiz ou nua propriedade do prédio identificado em 1), reservando para si o direito ao uso, gozo e fruição do referido prédio.
3. Em 13 de julho de 1992, II faleceu, consolidando-se a propriedade plena do prédio aludido em 1) na sua irmã HH.
4. HH faleceu em 19 de janeiro de 2015, no estado de viúva de KK, sucedendo-lhe os seus três filhos, os aqui AA.
5. Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Espinho, em 10 de abril de 1987, denominada de “Trespasse”, JJ e esposa declararam «que, pela presente escritura e pelo preço de um milhão de escudos que já receberam, trespassam aos segundos outorgantes – LL e MM – esse seu estabelecimento, com todos os móveis, utensílios e mercadorias nele existentes e todos os demais elementos que o integram, mas livre de qualquer passivo.»
6. Em setembro de 1994, LL e MM celebraram novo trespasse do estabelecimento aludido em 1) para os aqui RR.
7. Na data referida em 6), o valor mensal devido pelo gozo do estabelecimento cifrava-se no valor anual de 293.160$00 (duzentos e noventa e três mil cento e sessenta escudos), cerca de €1.462,28 (mil quatrocentos e sessenta e dois euros e vinte e oito cêntimos), pago em duodécimos mensais de 24.430$00 (vinte e quatro mil quatrocentos e trinta escudos), cerca de € 121,85 (cento e vinte e um euros e oitenta e cinco cêntimos), no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar.
8. No ano de 2022, a retribuição anual pelo gozo temporário do imóvel referido em 1) correspondia a € 3.108,00 (três mil cento e oito euros), paga em duodécimos mensais de € 259,00 (duzentos e cinquenta e nove euros), no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar.
9. Com a data aposta de 15 de maio de 2017, os AA remeteram aos RR carta registada com aviso de receção c/ o seguinte teor:
«(…)
É nossa intenção que o referido contrato de arrendamento transite para o regime do NRAU, pelo que lhe propomos que o mesmo contrato passe a ser do tipo de contrato com prazo certo, com a duração de cinco anos.
Propomos-lhe que o valor da renda mensal, atualmente de 250,00 €, passe a ser de 500,00 € (quinhentos euros), valor esse que será devido a partir do primeiro dia do segundo mês seguinte ao da data da receção desta carta.
(…).»
10. Com a data aposta de 13 de junho de 2017, a R mulher remeteu aos AA carta registada com aviso de receção c/ o seguinte teor:
«(…)
Ao abrigo do disposto no art.º51.º do NRAU declaro que me oponho à transição do contrato de arrendamento em causa para o NRAU e, desde logo, porque o valor locativo indicado na caderneta predial corresponde a todo o rés-do-chão quando, efetivamente, só parte desse piso está afeto ao presente arrendamento (…).
Porém e sem prejuízo do atrás referido, venho, ao abrigo do mesmo art.º51.º do NRAU declarar que me oponho à renda indicada, devendo manter-se em vigor aquela que atualmente é paga; oponho-me ainda ao contrato proposto, nomeadamente ao prazo do mesmo.
Por outro lado, (…) venho invocar a existência de estabelecimento no locado, considerado microentidade, conforme se comprova com os documentos juntos:
(…).»
11. Os documentos aludidos em 10) são atinentes a FF e seu cônjuge NN e.
12. Com a data aposta de 10 de julho de 2017, os AA remeteram à R. carta registada com aviso de receção c/ o seguinte teor:
«(…)
Acusamos a s/ oposição às n/ pretensões da carta que, em 15/05/2017, lhe remetemos, (…) o que diga-se desde já não se aceita.
(…) conforme resulta do teor de tal documento, que lhe foi enviado em 15/05/2017, encontra-se perfeitamente discriminada, individualizada e com valor patrimonial devidamente autonomizado a parte do rés do chão correspondente ao estabelecimento comercial objeto do arrendamento em apreço, com o valor de 40.360,00€, em relação à parte do rés do chão correspondente a habitação, que não se encontra arrendada a V. Exa. e que tem o valor patrimonial de €42.239,00 (cfr. caderneta predial junta com a carta de 15/05/2017).
(…)
Ora, atenta a sua oposição à alteração do valor da renda por nós pretendida, somos a transmitir-lhe que o valor da renda devida pela ocupação daquele estabelecimento, de que V. Exa. é arrendatária, é atualizado para o montante mensal de 251,35€ (duzentos e cinquenta e um euros e trinta e cinco cêntimos) (…)
Por outro lado, ainda que V. Exa. tenha alegado a existência no locado de um estabelecimento comercial considerado microentidade, o certo é que (…) não comprovou tal circunstância.
Na verdade, juntou V. Exa. dois documentos – um print do site da segurança social direta e um modelo 3 de IRS – os quais não dizem respeito à s/ pessoa, mas sim a uma terceira pessoa, a D. FF (?), pessoa que desconhecemos de quem se trata, bem como qual a razão da junção de tais documentos…
(…)
Por último, relembramos que a renda devida em 01/07/2017, bem como as que se vencerem nos meses sucessivos, deverão ser pagas através do depósito ou transferência bancária para a conta domiciliada no Banco 1..., com o IBAN – ...”.»
13. A R, com data aposta de 27 de julho de 2017, remeteu carta aos AA., com o seguinte teor:
«(…)
A submissão ou não ao regime do NRAU, reporta-se à existência de uma micro entidade ou seja, refere-se objetivamente ao estabelecimento, independentemente das circunstâncias pessoais do arrendatário; o estabelecimento não ocupa mais de 5 pessoas e tem um volume de negócios e balança muito inferiores ao fixado no NRAU (2.000.000,00€).
Obviamente que o arrendamento não fica, para já, sujeito ao regime do NRAU.
A partir do setembro do corrente ano (inclusive) a renda será pelo montante e forma indicados.
Por outro lado, V. Exas. têm perfeito conhecimento da situação do estabelecimento no que toca à D. FF.»
14. Por carta com data aposta de 21 outubro de 2021, os AA. comunicaram à R a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento supra referido em 1), com cessação em 31 de agosto de 2022, mais solicitando a entrega da loja livre e devoluta, bem como as respetivas chaves.
15. Os RR., por carta com data aposta de 02 de fevereiro de 2022, assinada pelos próprios e pela interveniente principal, comunicaram aos AA o seguinte:
«(…) como é do v/ pleno conhecimento, o estabelecimento foi por mim trespassado à D. FF há já vários anos. Ao longo destes anos foi aquela que pagou a renda a V. Exas, que explorou o estabelecimento, que dialogou com os Senhores quando para tal [h]ouve necessidade, que pagou todos os impostos e taxas relativos ao estabelecimento, que realizou todas as obras de benfeitorias e conservação no estabelecimento, isto entre muitos outros factos e situações (…).»
16. Por carta registada com aviso de receção, com data aposta de 04 de fevereiro de 2022, a interveniente principal, reiterou, junto dos AA., o teor da comunicação transcrita em 15).
17. Por carta com data aposta de 09 de maio de 2022, enviada a 16 de maio de 2022 e recebida pela interveniente a 17 de maio de 2022, os AA., alegando fazê-lo por mera cortesia, reiteraram o teor das missivas remetidas aos RR.
18. Os RR. até à presente data não desocuparam e entregaram aos AA. o imóvel identificado em 1).
19. Os AA., por cartas com datas apostas de 16 de novembro de 2017, 25 de outubro de 2018 e 17 de outubro de 2019, comunicaram aos RR. a atualização do montante de retribuição devida pela ocupação do espaço identificado em 1).
20. As comunicações aludidas em 19) foram recebidas pelos RR., sem oposição, passando a pagar o valor constante das respetivas cartas a partir do mês de janeiro subsequente às mesmas.
21. O estabelecimento referido em 1) situa-se na mesma rua, na porta do lado onde residia HH, mãe dos AA.
22. As retribuições mensais entre 2000 a 2015 foram sendo pagas pessoalmente e em numerário a HH, a partir dessa data à A. AA, até setembro de 2017, quando passaram a ser pagas mediante depósito ou transferência bancária indicada pelos AA. aos RR.
23. Os documentos de quitação por pagamento das retribuições mensais devidas pela ocupação do estabelecimento, desde setembro de 1994, são emitidos em nome da R. mulher.
O Tribunal de 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:
A. Que entre os RR. e a interveniente principal tenha sido celebrada qualquer transmissão definitiva, por ato entre vivos, onerosa ou gratuita, do estabelecimento comercial sito em 1).
B. Que os RR. e/ou a interveniente principal tenham remetido aos AA., ou a HH, cópia do negócio aludido em A).
C. Que a falecida HH, mãe dos AA., tivesse recebido comunicação no ano de 2000 de transmissão definitiva por ato entre vivos, onerosa ou gratuita, do estabelecimento sito em 1) ou fosse conhecedora de qualquer negócio efetuado entre RR. e a interveniente;
D. Que a R. mulher tenha exibido a HH o contrato-promessa a que se tinha obrigado com a interveniente;
E. Que HH e seu cônjuge tenham dito aos RR. e à interveniente que não se opunham ao negócio, com conhecimento da A. AA.
F. Que os AA., pelo menos desde 2017, soubessem que os RR. haviam transmitido o estabelecimento à interveniente principal, em seu nome.
G. Que a retribuição mensal do estabelecimento referido em 1), pelo menos desde 2017, fosse paga pela interveniente principal.
H. Que os RR. comunicassem à interveniente todas as notificações camarárias que recebessem referentes ao estabelecimento, pedindo-lhe que as resolvesse.
I. Que o estabelecimento seja explorado pela interveniente há já mais de 23 (vinte e três) anos, de forma ininterrupta, à vista de todos e com contacto e conhecimento dos AA.
J. Que a interveniente principal tenha pedido aos AA. que os recibos de pagamento das retribuições mensais por ocupação do espaço passassem a ser emitidos em seu nome.
K. Que a interveniente tenha tomado posse do estabelecimento e nele executasse algumas obras de adaptação e conservação com o aval, autorização e conhecimento da falecida HH.
L. Que o negócio entre os RR. e a interveniente implicasse pagamento em prestações, vindo a estender-se por vários anos, por vicissitudes várias do conhecimento de HH e da A. AA.
M. Que os recibos passariam a ser emitidos em nome da interveniente mal o negócio estivesse totalmente pago, com conhecimento de HH.
N. Que os AA., ou seus pais, tenham contratado o marido da interveniente para realizar obras em sua casa.
O. Que a interveniente tenha prestado serviços de cuidados de higiene a HH;
P. Que a interveniente tenha indicado pessoa para ocupação remunerada da garagem da herança aberta por óbito de HH
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA. Nulidades da sentença
Sob as Conclusões jj a pp a Apelante sustentou padecer a sentença recorrida das nulidades previstas no art. 615º nº 1 al. c) e d) do CPC, argumentando que “ o Tribunal valorou mal a prova produzida já que a mesma permitia dar como provados factos considerados na sentença recorrida como indemonstrados”, “não fez uma correcta conjugação da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente a prova documental, testemunhal e dos depoimentos”, “erra na apreciação crítica das provas”, “não foi feita uma correcta análise, fiscalização e deficiente de toda a documentação junta aos autos”.
Sendo o elenco das alíneas do n.º 1 do art. 615º do CPC, um elenco taxativo[1], só nas hipóteses ali expressamente consignadas se coloca a hipótese de nulidade da sentença.
O art. 615º nº 1, sob as al. c) e d) do CPC, hipóteses convocadas pela Apelante, tem o seguinte teor:
“É nula a sentença quando:
(…)
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;”
A nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, al. c) do CPC, tem a ver com uma contradição lógica entre a fundamentação jurídica e a decisão.
Como refere nesta matéria J. Lebre de Freitas, “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade de sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada conclusão jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se. “[2]
Conforme se tem decidido de forma consolidada na jurisprudência, em sintonia com os ensinamentos da doutrina, o error judicando quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, não se confunde com qualquer das nulidades da sentença previstas no art. 615º do CPC.
Ora, resulta por demais evidente da argumentação apresentada pela Apelante que não é por ela apontada à sentença recorrida qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, a mesma só não se conforma com a valoração e apreciação crítica da prova efectuada pelo Tribunal a quo, que no seu entender conduziu a um errado julgamento quanto aos factos que foram considerados provados e não provados, erros esses que a existirem dizem respeito ao mérito da sentença recorrida e não a nulidades.
Quanto à nulidade por omissão ou excesso de pronúncia a Apelante não concretizou qual a questão que não foi conhecida e devia ter sido, ou qual a questão que foi conhecida sem ter sido levantada pelas partes e que não fosse de conhecimento oficioso, sendo que esse tipo de nulidade prevista na al. b) do art. 615º nº 1 do CPC é consequência do princípio consagrado no art. 608º n.º 2 do CPC, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras;não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Segundo ensinamento de Miguel Teixeira de Sousa, o aludido princípio é um “corolário do princípio da disponibilidade objectiva (arts. 264º, n.º 1 e 664º, 2ª parte) que significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. (…) Por isso é nula a decisão quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar (art. 668º nº 1 al. d) 1ª parte), ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia. (…) O tribunal não tem de se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa. (…)”[3]
Questões para efeito do referido preceito legal são «… todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes» [4], não se confundindo com os argumentos, razões ou pressupostos (de facto e de direito) em que a parte funda a sua posição sobre a questão suscitada.
Diferente das questões a decidir referidas no citado art. 608.º n.º 2 do CPC, são os argumentos de facto ou de direito alegados pelas partes em defesa dos seus pontos de vista.
Existe nulidade da sentença quando o juiz deixa de conhecer a questão/pretensão que devia conhecer, mas já não existe nulidade da sentença se apenas deixa de apreciar qualquer argumento ou razão jurídica suscitada pela parte, ou factos por ela alegados, em abono da sua pretensão.
Quando as partes submetem ao Tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o Tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão». [5]
Este entendimento tradicional decorrente da lição do Prof. Alberto dos Reis, tem sido perfilhado pela Jurisprudência, a qual, de forma reiterada, perfilha a posição de que a não apreciação de um ou mais argumentos aduzidos pelas partes não constitui omissão de pronúncia, pois que o Juiz não está obrigado a ponderar todas as razões ou argumentos alegados nos articulados para decidir certa questão de fundo, estando apenas obrigado a pronunciar-se «sobre as questões que devesse apreciar» ou sobre as «questões de que não podia deixar de tomar conhecimento.» [6]
Em suma, ao Tribunal cabe o dever de conhecer do objecto do processo, definido pelo pedido deduzido (à luz da respectiva causa de pedir) e das excepções deduzidas, devendo apreciar e decidir todas as questões trazidas aos autos pelas partes e todos os factos em que assentam, mas já não está obrigado a pronunciar-se sobre todos os argumentos esgrimidos nos autos.
Em função desse condicionalismo, torna-se evidente que a decisão recorrida não padece da referida nulidade, nem por omissão de pronúncia, nem por excesso de pronúncia, porquanto mesmo que tivesse desconsiderado factos não consubstanciaria uma omissão de pronúncia mas um erro de julgamento quanto a matéria de facto.
Mesmo uma eventual incorrecta ou deficiente análise da documentação junta aos autos apenas releva em sede de alegação de erro quanto ao julgamento da matéria de facto, não consubstanciando qualquer questão de que o tribunal devesse conhecer, mas argumento a utilizar na impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Diferente das pretensões deduzidas, são os argumentos de facto e as provas utilizadas pelo tribunal a quo na decisão proferida quanto à matéria de facto por si considerada para a resolução das pretensões formuladas e que lhe incumbia decidir.
A desconsideração pelo Tribunal a quo de factos ou de meios de prova não traduz omissão de pronúncia sobre questão que devesse ser apreciada.
A não apreciação de algum argumento ou razão jurídica, ou a não apreciação ou valoração de um meio de prova arrolado pela parte pode traduzir, eventualmente, um erro de julgamento, mas não traduz qualquer nulidade por omissão de pronúncia.[7]
A Apelante pode discordar dos fundamentos de facto e/ou dos meios de prova em que se alicerçou a decisão recorrida, não pode é alegar que a sentença é nula por excesso ou omissão de pronúncia quando se limita a não concordar com o sentido da pronúncia emitida pelo tribunal, porque nesse caso não se está perante uma nulidade mas uma discordância jurídica a escalpelizar em sede de mérito da decisão, a título de erro do julgamento de facto, ou erro de julgamento de direito.
Por conseguinte, não se vislumbrando na sentença recorrida as apontadas nulidades, improcede este argumento recursivo. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Perante as exigências estabelecidas no art. 640º do CPC, constituem ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, sob pena de rejeição, a seguinte especificação:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
“Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primeiro: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Segundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Terceiro: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.”[8]
São as conclusões das alegações de recurso que estabelecem os limites do objecto da apelação e, consequentemente, do poder de cognição do Tribunal de 2ª instância, de modo que na impugnação da decisão sobre a matéria de facto devem constar das conclusões de recurso necessariamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto impugnados, pese embora a decisão alternativa que o recorrente propõe para cada um dos factos impugnados (AUJ nº 12/2023 de 14.11), bem como a análise pormenorizada dos concretos meios probatórios, tal como as concretas passagens das gravações ou transcrições dos depoimentos de que o recorrente se socorra possam constar apenas do corpo das alegações ou motivação propriamente dita.
Analisadas as conclusões deste recurso concluímos que a Apelante recorreu da decisão sobre a matéria de facto, e nas respectivas conclusões de recurso fez específica alusão aos concretos pontos de facto que impugnava (Conclusões k), n), q), s) e w)), à decisão alternativa e aos concretos meios de prova que alegadamente sustentam a pretendida alteração da decisão sobre a matéria de facto impugnada, fazendo referência aos exactos segmentos da gravação dos depoimentos testemunhais de que se socorreu, considerando-se suficientemente cumpridos os ónus previstos no art. 640º do CPC para que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto possa ser por nós conhecida.
Colocada pela Apelante a questão prévia da deficiente gravação do depoimento da testemunha GG, por alegadamente apresentar vários cortes, cumpre salientar que essa nulidade foi suscitada junto do Tribunal a quo, a quem competia decidir, enquanto nulidade secundária, e que a julgou extemporânea.
De todo o modo, tendo-se procedido à audição dos vários depoimentos testemunhais produzidos em 1ª Instância para reapreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, considera-se que da gravação daquele depoimento não se detetam eventuais cortes que o tornem ininteligível, sendo perfeitamente audível, perceptível, correspondendo os segmentos relevantes do depoimento daquela testemunha que foram transcritos pela recorrente ao que foi por aquela dito, permitindo a este Tribunal com suficiente segurança sindicar aquele meio de prova.
A Apelante requereu as seguintes alterações à decisão sobre a matéria de facto:
- Pontos A, C, E, F, G, I, K e N dos factos não provados devem passar para os factos provados.
Vejamos.
Segundo o disposto no art. 662º nº 1 do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
i. Ponto A dos factos não provados tem a seguinte redação:
“Que entre os RR e a interveniente principal tenha sido celebrada qualquer transmissão definitiva, por ato entre vivos, onerosa ou gratuita, do estabelecimento comercial sito em 1).”
Defende a Apelante que está junta aos autos com a contestação dos RR e por ela própria uma carta datada de 24 de Janeiro de 2000 tendo a Ré como remetente e como destinatária a senhoria à data- HH- mãe dos AA, em que é comunicado o trespasse, comunicação essa que foi recebida e conhecida da então senhoria, o que foi confirmado quer pela testemunha GG, quer pela testemunha OO.
Reapreciada aquela prova documental, o que dela resulta é que a Ré DD-arrendatária do estabelecimento- comunicou por carta de 24.01.2000 à então senhoria, que pretendia trespassar o estabelecimento comercial à ora Apelante, indicando o valor e a forma de pagamento, ficando a aguardar resposta no prazo de 8 dias.
A testemunha GG confirmou que a sogra, que era à data a senhoria, terá recebido tal carta, e que não terá dado andamento àquele assunto, frisando que dela apenas consta que iam fazer um trespasse, mas que a inquilina sempre foi a D. DD, que era quem recebia as cartas referentes a assuntos do arrendado e a elas respondia, como aconteceu quando mandaram carta para transição do arrendamento para o NRAU, admitindo que quem entregava a renda era quem lá estava e que quem estava no estabelecimento era a ora Apelante, pensando todavia que fosse funcionária da D DD, nunca tendo sido inquilina, só tendo tomado conhecimento pela primeira vez de um trespasse com a carta enviada pela Ré a 2.02.2022 na qual menciona o trespasse e que a actual arrendatária seria a Apelante.
Por seu turno a testemunha OO, filho da Apelante, embora tenha referido que desde Janeiro de 2000 é a mãe que está no estabelecimento, que terá feito um trespasse com a D DD, que a senhoria dele tomou conhecimento por carta enviada pela Ré, apenas p soube pela mãe, tendo de relevante referenciado ter sido comunicada a intenção de fazer um trespasse, que nunca chegou a ver qualquer documento ou contrato de trespasse e que a mãe falou que ia ser feito, tendo mencionado ainda que o valor que a mãe ficou de pagar à Ré não sabe quando foi pago (pensa que foi em tribunal…) e instado a propósito da razão de os recibos de renda terem sido todos emitidos pela senhoria em nome da Ré referiu que como a mãe ainda estaria a pagar deixou que continuasse a ser assim.
Não é demais salientar que a própria Apelante no seu articulado de contestação alegou estar a explorar o estabelecimento no arrendado dos AA há já mais de 23 anos, que a Ré teria exibido perante a D. HH um contrato-promessa a que se tinha obrigado com a Apelante e que a Ré teria informado a senhoria da pretensão de trespasse com os termos gerais do futuro negócio e da futura trespassária/arrendatária.
Conjugadas aquelas alegações, com a referida prova documental e depoimentos testemunhais convocados pela Apelante, e com a ausência de qualquer documento que comprove a celebração efectiva de um trespasse do estabelecimento comercial durante todos estes anos em que a Apelante se encontra à frente do referido estabelecimento comercial, aliado ao facto de todas as comunicações trocadas entre senhoria e arrendatária terem sido sempre dirigidas à Ré DD, mormente a comunicação referente à intenção de transição do arrendamento para o NRAU, sem que a Ré nessa ocasião tenha dito não ser ela a arrendatária, pelo contrário, tendo deduzido resposta nos termos previstos no art. 51º do NRAU na qualidade de arrendatária, tendo sido todos os recibos de renda emitidos sempre em nome da Ré sem que a Apelante alguma vez se tenha insurgido invocando ser ela a arrendatária, levam-nos a concluir que não foi produzida prova cabal de que tenha havido transmissão definitiva do estabelecimento comercial, quando muito foi produzida prova de ter havido como que uma cessão de exploração do estabelecimento, sem transmissão do arrendamento em que o estabelecimento se encontra instalado, tendo continuado a Ré como arrendatária perante a senhoria.
A intenção da Ré e da Apelante até pode ter sido a de vir a ser celebrado no futuro um contrato de trespasse (intenção a que a própria Apelante aludiu na sua contestação e consta textualmente da carta de 24.01.2000- “pretendo trespassar” não significa trespassei) mas cuja concretização não ficou demonstrada nos autos.
Pelas razões acima expostas, consideramos que os meios de prova de que a Apelante se socorreu não impõem decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo, como exige o art. 662º do CPC, mantendo-se a alínea A) no elenco dos factos não provados.
ii. Ponto C dos factos não provados tem a seguinte redação:
“Que a falecida HH, mãe dos AA, tivesse recebido comunicação no ano de 2000 de transmissão definitiva por ato entre vivos, onerosa ou gratuita, do estabelecimento sito em 1) ou fosse conhecedora de qualquer negócio efetuado entre RR e a interveniente.”
A propósito da impugnação deste ponto de facto, para além da carta e dos depoimentos testemunhais supra identificados, a Apelante fez ainda referência ao facto de a Ré ter feito menção na referida carta à identificação da Apelante, ter deixado de aparecer ou estar no estabelecimento desde essa altura até hoje, e apenas lá estar a Apelante, a habitação da senhoria ser por cima do estabelecimento, ter conhecimento da alteração do nome do estabelecimento para o nome da Apelante no toldo da publicidade, com ela contactar sempre que surgiam problemas e ter a Apelante realizado obras de adaptação sem oposição e com o consentimento dos senhorios, considerando que são tudo indícios que o negócio tinha ocorrido e sido concretizado.
Não questionando que da referida prova testemunhal se extrai que aproximadamente desde 2000 será a Apelante quem estava à frente daquele estabelecimento comercial, deixando a Ré de lá estar, e que isso terá sido percepcionado pelos senhorios que das mãos da Apelante e do filho recebiam a renda em dinheiro, que era aquela quem diariamente se encontrava no estabelecimento, e quem abria a porta quando era necessário, tal não demonstra que a senhoria fosse conhecedora de que entre a Apelante e os RR tivesse sido celebrado um trespasse- uma transmissão definitiva do estabelecimento- ou qualquer outro tipo de negócio que tivesse implicado a transmissão da posição de arrendatária, até porque era à Ré que dirigiam as comunicações relativas ao arrendamento e era ela quem lhes respondia, assim como os recibos de rendas foram sempre entregues em nome da Ré sem que alguma vez a Ré ou a Apelante se tivessem insurgido.
Quando muito poderemos admitir que da prova produzida resultou que a senhoria e depois os Apelados saberiam que quem estava à frente da exploração do estabelecimento passou em 2000 a ser a Apelante, não existindo qualquer prova documental de que tenha sido dado conhecimento aos senhorios da concretização de qualquer tipo de negócio, qualquer que ele fosse, entre a Apelante e a Ré.
Deste modo, considera-se acertada a decisão do Tribunal a quo de dar este ponto de facto como não provado, assim se mantendo.
iii. Ponto E dos factos não provados tem a seguinte redação:
“Que HH e seu cônjuge tenham dito aos RR e à interveniente que não se opunham ao negócio, com conhecimento da A. AA.”
Sobre este ponto a Apelante não convoca qualquer meio de prova que imponha decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo, pugnando apenas que deve ser dada como provada de modo a evitar contradições, porém, não se vislumbra qualquer contradição com qualquer facto dado como provado, e a prova sobre ele é absolutamente inexistente, não tendo qualquer uma das testemunhas conhecimento desse facto, nem existindo qualquer evidência documental do mesmo.
Razão pela qual se manterá como facto não provado.
iv. Ponto F dos factos não provados tem a seguinte redação:
“Que os AA, pelo menos desde 2017, soubessem que os RR haviam transmitido o estabelecimento à interveniente principal, em seu nome.”
Mais uma vez se diga, pelos fundamentos anteriormente mencionados, que não existe qualquer prova de que os AA soubessem que os RR haviam transmitido o estabelecimento à Apelante, porque para isso era necessário que a Apelante tivesse apresentado prova segura e inequívoca de que tinha sido celebrado entre ela e os RR um negócio de transmissão definitiva, ou mesmo temporária, do próprio estabelecimento comercial, tendo-se limitado a fazer prova de que os AA saberiam que a partir de 2000 passou ela a estar à frente da exploração do mesmo.
O facto de ser ela a estar no estabelecimento, de ter colocado o seu nome no toldo, de ser com ela que os AA falavam quando era necessário aceder ao imóvel ocupado pelo estabelecimento, de ser ela a entregar a renda, nada demonstra de que tivesse sido dado a conhecer aos AA o negócio que esteve na base dessa mudança, desconhecendo estes que tipo de negócio porventura existiu entre RR e Apelante que tenha permitido a esta a determinada altura a passar a estar à frente do estabelecimento, desconhecimento que se mantém, mesmo para este Tribunal, porque dele não foi feita prova cabal e consistente.
O que decorre da carta enviada pelos AA à Ré em 10.07.2017 é que naquela data, recepcionada a comunicação dos RR relativa à oposição à transição do arrendamento para o NRAU, e vistos os documentos a ela anexos que diziam respeito à Apelante e ao marido desta, responderam aos RR escrevendo que “não aceitamos os documentos juntos como comprovativos da circunstância de excepção invocada (os quais apenas fazem prova de que o nosso estabelecimento é ocupado, ilícita e ilegitimamente, por outra pessoa que não V. Exa), demonstrando aquilo que admitiu a testemunha GG, que sabiam que o imóvel estava a ser ocupado pela Apelante que era quem estava à frente do estabelecimento, mas não que lhes tivesse sido dado conhecimento da celebração de um negócio de transmissão do mesmo.
Ainda que seja feita menção pelos AA naquela carta à “transmissão ilegal do estabelecimento”, a palavra transmissão surge no contexto do texto acima referido, até porque posteriormente, quando pela primeira vez a Ré comunica aos AA por carta de 2.02.2022 que não era ela a arrendatária porque havia trespassado o estabelecimento à Apelante, em resposta os AA por carta de 9.05.2022 aludem ao desconhecimento quanto ao título com base no qual a Apelante ocupava o estabelecimento comercial, porque efectivamente nunca foi junto a uma qualquer dessas comunicações, ou aos presentes autos, o negócio subjacente à ocupação que a Apelante faz do arrendado.
Em rigor, nem em 2017, nem hoje, pode ser afirmado que os AA, ou mesmo este Tribunal, saibam que os RR tenham transmitido o estabelecimento à Apelante, face à absoluta ausência de prova documental que o comprove, não tendo sido esse conhecimento da transmissão do estabelecimento admitido pelos Apelados.
v. Ponto G dos factos não provados tem a seguinte redação:
“Que a retribuição mensal do estabelecimento referido em 1), pelo menos desde 2017, fosse paga pela interveniente principal.”
A propósito desta matéria afigura-se-nos que foi efectivamente produzida prova nesse sentido, quer testemunhal, quer mesmo documental, porquanto a testemunha GG admitiu ter recebido o valor da renda em dinheiro da Apelante ou do seu filho OO, o que foi corroborado pela testemunha PP que trabalhava em casa da senhoria, e pela testemunha OO que confirmou assim ter ocorrido até que lhes foi transmitido para o pagamento ser feito por depósito em conta, tendo passado a fazê-lo dessa forma, como se mostra comprovado na documentação junta a fls 87 e 88.
Deste modo elimina-se o ponto G) dos factos não provados, transitando para os factos provados com a mesma redação.
vi. Ponto I dos factos não provados tem a seguinte redação:
“Que o estabelecimento seja explorado pela interveniente há já mais de 23 (vinte e três) anos, de forma ininterrupta, à vista de todos e com contacto e conhecimento dos AA.”
Que a Apelante desde aproximadamente o ano 2000 passou a estar à frente do estabelecimento comercial instalado em parte no imóvel dos AA, que era com quem a senhoria e depois os Apelados contactavam sempre que era necessário aceder a essa parte do imóvel, que era quem entregava a renda e quem passou a declarar essa exploração para efeitos tributários resulta da articulação do depoimento da testemunha OO, que acompanhava a mãe nesse negócio, que entregava aos senhorios a renda e depois a passou a depositar, que referenciou a mudança do toldo para o nome da mãe, as pinturas e pequenos arranjos que lá foram feitos no interior, conjugado com todos os outros depoimentos testemunhais que no essencial confirmaram essa exploração, à vista de todos e com conhecimento da senhoria HH e posteriormente dos AA, como admitiu a testemunha GG, assim como o referiu a testemunha PP e a testemunha QQ que tratou de uns assuntos para os AA relacionados com o imóvel e que de forma clara e assertiva afirmou saberem os AA que era a Apelante quem estava a explorar o estabelecimento.
Deste modo, elimina-se este ponto I dos factos não provados, transitando com igual redação para os factos provados.
vii. Ponto K dos factos não provados tem a seguinte redação:
“Que a interveniente tenha tomado posse do estabelecimento e nele executasse algumas obras de adaptação e conservação com o aval, autorização e conhecimento de HH e da A. AA.”
Sobre esta matéria não foi produzida prova bastante que imponha decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo, tendo inclusivamente a testemunha OO referido que fizeram algumas pinturas e arranjos dentro do estabelecimento, que nunca pediram autorização, nem nunca comunicaram à senhoria.
viii. Ponto N dos factos não provados tem a seguinte redação:
“Que os AA, ou seus pais, tenham contratado o marido da interveniente para realizar obras em sua casa.”
Para além de este facto ser inócuo para a decisão deste recurso, porquanto mesmo que fosse dado como provado dele não resultaria qualquer consequência para a pretendida alteração da decisão recorrida, também nenhuma prova consistente sobre ele foi produzida, razões pelas quais se mantém no elenco dos factos não provados.
Deste modo, defere-se em parte a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, eliminando-se dos factos não provados as alíneas G) e I) os quais passarão a integrar o elenco dos factos provados sob os números 24 e 25 com a mesma redação, respectivamente. Ineficácia perante a Apelante da transição do contrato de arrendamento para o NRAU e da sua denúncia
Na sentença recorrida foi “decretada a cessação do contrato de arrendamento celebrado e existente entre AA e RR quanto à parte do prédio destinado a estabelecimento comercial, sito na Rua ..., em Espinho, com efeitos reportados a 31.08.2022” e foram condenados “os RR na restituição imediata aos AA do locado livre e devoluto, assim como no pagamento aos AA de indemnização devida pela não entrega do locado e enquanto a ocupação do mesmo se mantiver, no valor mensal de €259,00”.
Decorre dos autos que é a interveniente principal, ora Apelante, quem está a ocupar o imóvel dos Apelados dado de arrendamento aos RR, a qual foi chamada para que o caso julgado que resulte destes autos lhe seja oponível.
Os Apelados/RR não recorreram da sentença em apreço que decretou a cessação do contrato de arrendamento de que eram titulares, conformando-se com a demonstração que resulta da factualidade dada como provada, que o outrora arrendamento para fins não habitacionais sem prazo celebrado em 1975 e que lhes fora transmitido em 1994 por força do trespasse do estabelecimento lá instalado, transitou para o NRAU, passando a ter um prazo de duração certo de 5 anos, que caducou em 31.08.2022 por força da oposição à sua renovação regularmente comunicada pelos Apelados.
Quem não se conforma com a cessação do contrato de arrendamento é a Apelante, a qual centrou a sua argumentação recursiva, com vista à revogação da sentença recorrida, em dois pontos:
1. A comunicação da oposição à renovação do contrato de arrendamento é-lhe ineficaz porque foi dirigida a quem já não era a arrendatária;
2. Caducou o direito dos Apelados a pedir a cessação do contrato de arrendamento por resolução por terem tido conhecimento da transmissão do estabelecimento- vulgo trespasse-
Adiantamos desde já que a defesa da Apelante estava desde o início votada ao completo insucesso, pois que a ter existido um trespasse, que entendemos não ter ficado demonstrado, o mesmo sempre seria nulo por não ter observado a forma escrita, nulidade essa que foi invocada inclusivamente pelos Apelados, e por conseguinte inoponível perante os senhorios, para quem a arrendatária continuava a ser a Ré; e a eventual caducidade do direito dos Apelados só se colocaria caso apenas tivesse sido pedida a cessação do contrato de arrendamento com base naquele fundamento (pedido subsidiário), não estando colocada a caducidade do direito de cessação do contrato de arrendamento por oposição à renovação do contrato (pedido principal), pedido esse que foi aquele que foi julgado procedente na sentença recorrida.
Como se extrai da factualidade apurada, os anteriores proprietários do imóvel identificado nos autos proporcionaram o gozo temporário de parte do mesmo para o exercício da actividade de venda de mercearia, vinhos, electrodomésticos e panos, mediante retribuição, pelo período de um ano, sucessivamente renovável, tendo para o efeito celebrado um contrato de arrendamento em 22 de Janeiro de 1975.
Por força de variadas transmissões quer da parte dos senhorios, quer da parte dos arrendatários- estes por virtude de trespasse do estabelecimento comercial lá instalado- desde Outubro de 1994 que os RR eram os arrendatários daquele imóvel.
Após a entrada em vigor da Lei nº 31/2012 o regime do arrendamento urbano sofreu significativas modificações, sendo que, para o que aqui interessa, os contratos de arrendamento para fins não habitacionais celebrados antes do DL nº 257/95 de 30.09 (como era o caso do contrato de arrendamento em apreço nestes autos), passavam a estar submetidos ao NRAU, conforme norma transitória vertida no art. 27º, com as especificidades determinadas no art. 28º do mesmo diploma legal, bem como as constantes dos arts. 30º a 37º e 50º a 54º.
Estando-se perante um arrendamento para fim não habitacional, a transição para o NRAU e a actualização da renda ficavam dependentes de iniciativa do senhorio, que devia comunicar essa intenção ao arrendatário, indicando os elementos previstos no art. 50º do NRAU, de entre os quais o valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos.
Por seu turno, recebida tal comunicação, o arrendatário podia responder, aceitando ou opondo-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor; pronunciar-se quanto ao tipo ou à duração do contrato propostos pelo senhorio, denunciar o contrato de arrendamento, e/ou invocar uma das circunstâncias previstas no art. 51º nº 4 al. a) a d) do NRAU.
Assim procederam os Apelados/AA- actuais proprietários do imóvel dado de arrendamento aos RR-que por carta registada com A/R de 15.05.2017 comunicaram-lhes a sua intenção de que o referido contrato transitasse para o regime do NRAU, propondo a alteração do valor da renda e a fixação de um prazo certo de duração de 5 anos.
Tendo os RR recepcionado tal comunicação e exercido o direito de resposta, nos termos consagrados no art. 51º do NRAU, opondo-se quer à alteração do valor da renda, quer à alteração da duração do contrato, invocando ainda como circunstância impeditiva da transição para o NRAU a existência no locado de um estabelecimento comercial aberto ao público e que era uma micro-empresa (art. 51º nº 4 al. a) do NRAU).
Acontece que os senhorios comunicaram aos arrendatários por carta de 10.07.2017 que não aceitavam a oposição, porque os documentos apresentados pelos arrendatários não diziam respeito aos mesmos, mantiveram o valor da renda até então existente com a actualização permitida por lei, e consideravam que o contrato de arrendamento transitava para o NRAU como contrato com prazo certo e duração de 5 anos, com início a 1.09.2017 e termo a 31.08.2022, sem que os aqui RR tenham impugnado judicialmente tal decisão.
Salienta-se que, comunicada pelo senhorio a intenção de fazer transitar o contrato de arrendamento para fim não habitacional celebrado antes de 1995 para o NRAU, ainda que o arrendatário se oponha, essa transição mais cedo ou mais tarde ocorre, porquanto o art. 33º determina qual o desfecho para o caso de oposição do arrendatário ao valor da renda, ao tipo e duração do contrato, não impedindo essa oposição a transição para o NRAU, em nenhum daqueles casos.
Em face da resposta apresentada pelos RR, e da postura assumida pelos AA, o valor da renda não foi alterado, mas actualizado e o contrato foi considerado celebrado com prazo certo, pelo período de 5 anos ficando submetido ao NRAU a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao da receção, pelos RR, daquela comunicação, conforme prevê o art. 33º nº 2, 4 al. b) do NRAU.
Essa submissão do contrato de arrendamento ao NRAU sempre ocorreria ainda que os RR tivessem comprovado de forma eficaz a verificação da circunstância prevista no nº 4 do art. 51º do NRAU, pois que nesse caso só haveria um delay na transição, uma vez que segundo o art. 54º do NRAU tal transição apenas ocorreria no prazo de 10 anos a contar da receção, pelo senhorio, da resposta.
Não obstante, a falta de comprovação adequada da circunstância invocada pelos RR na sua resposta não foi por estes questionada, nem é objecto deste recurso.
Sendo assim, assente ficou que o contrato de arrendamento que tinha por objecto parte do imóvel dos Apelados identificado nos autos, onde se encontrava instalado o estabelecimento comercial explorado pela Apelante desde inícios de 2000, ficou submetido ao regime do NRAU em 2017 e a partir daí passou a ser considerado um contrato de arrendamento com prazo certo, com duração de 5 anos, cujo termo ocorreria em 31.08.2022.
Esta transição do contrato de arrendamento para o NRAU foi efectuada por iniciativa dos Apelados, de forma regular e válida, tendo sido essa intenção comunicada aos arrendatários/RR e dado a estes o direito de resposta que dele fizeram uso, sendo pois eficaz e incontornável a submissão ao NRAU do contrato de arrendamento em apreço nestes autos quer para os arrendatários/RR- únicos titulares do direito de arrendamento perante os Apelados/AA- quer para quem de facto estivesse a explorar o estabelecimento comercial instalado no locado, como se apurou ser o caso da Apelante.
Assim não entende a Apelante, defendendo que em 2000 houve um trespasse do estabelecimento comercial instalado naquele imóvel, dado a conhecer aos Apelados, o qual enquanto transmissão definitiva do estabelecimento terá acarretado também a transmissão da posição do arrendatário para o trespassário, sendo a referida transição para o NRAU ineficaz perante ela porque não foi a ela que foi comunicada essa intenção pelos senhorios, nem conduzido o procedimento necessário para o efeito.
No âmbito do arrendamento para fim não habitacional é permitida a transmissão da posição contratual do arrendatário, sem consentimento do senhorio, no caso de trespasse de estabelecimento comercial- art. 1112º nº 1 al. b) do CC-podendo o trespasse ser celebrado a título oneroso ou gratuito, mas devendo a transmissão ser celebrada por escrito e comunicada ao senhorio- art. 1112º nº 3 do CC- sob pena de nulidade (art. 220º do CC).
Dele se distingue a locação de estabelecimento comercial instalado em prédio arrendado- art. 1109º nº 2 do CC.
A mera locação de estabelecimento comercial, habitualmente apelidada de cessão de exploração, distingue-se do trespasse precisamente porque não sendo uma transmissão definitiva, não implica necessariamente a transmissão da posição de arrendatário, mas a mera cedência do gozo do imóvel arrendado para que seja prosseguida a exploração do estabelecimento comercial, permanecendo o arrendatário o mesmo.
A viabilidade da defesa apresentada pela Apelante dependia em absoluto da existência de um trespasse do estabelecimento comercial dos RR para si, pois que só através dele teria havido cessão da posição de arrendatário dos RR para si antes da comunicação efectuada pelos AA para transição do contrato de arrendamento para o NRAU, prova que não logrou produzir.
Assim sendo, a pretensão recursiva da Apelante não pode ser acolhida, quer porque não ficou demonstrado nos autos que tenha havido qualquer negócio de trespasse do estabelecimento comercial dos RR para a Apelante, quer porque mesmo que tivesse existido, o que não concedemos, o mesmo sempre seria nulo por não ter observado a forma escrita, não sendo oponível aos Apelados, e como tal o processo de transição do contrato de arrendamento para o NRAU teria sempre de ter sido estabelecido com os RR, como ocorreu, tendo a Apelante ficado sujeita, ainda que explorasse o estabelecimento comercial instalado no imóvel arrendado, às vicissitudes que ocorreram no âmbito da relação contratual arrendatícia, na qual nunca foi parte.
Por conseguinte, tendo os Apelados comunicado aos RR- efectivos arrendatários- de forma válida e atempada, a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento por novo período, considera-se findo o contrato de arrendamento no termo do prazo dos 5 anos, que ocorreu em 31.08.2022, não tendo nem os RR, nem a Apelante, qualquer título válido que obste ao pedido de entrega do locado livre de pessoas e bens.
Tal como se fez alusão na sentença recorrida o conhecimento da questão da caducidade do direito dos Apelados à resolução do contrato de arrendamento ficou prejudicada pois que esse pedido foi formulado a título subsidiário, tendo obtido procedência o pedido principal de cessação do contrato de arrendamento por oposição à renovação do contrato.
O reconhecimento da Apelante como beneficiária de qualquer transmissão da posição de arrendatária só teria relevância jurídica para eventualmente poder obstar à resolução do contrato de arrendamento permitida pelo art. 1083º nº 2 al. e) do CC, à luz do art. 1049º do CC, direito de resolução esse que não foi o fundamento da cessação do contrato de arrendamento declarada na sentença recorrida.
Perante a improcedência dos argumentos recursivos, confirmamos a sentença recorrida.
***
V. DECISÃO
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o presente recurso de apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante, que nele ficou vencida.
Notifique.
Porto, 26.11.2025
Maria da Luz Seabra
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda
(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
________________ [1] A. Varela, Manual de Processo Civil, pág. 686. [2] José Lebre de Freitas, CPC Anotado, 2º volume, 3ª edição, pág. 736-737. Vide, ainda, no mesmo sentido, AC RP de 29.06.2015, AC RP de 1.06.2015 ou, ainda, AC RG de 14.05.2015, todos www.dgsi.pt. [3] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 220-221. [4] A. Varela RLJ, ano 122º, pág. 112. [5] Alberto dos Reis, CPC Anotado, volume V, 1984, pág. 143. [6] AC STJ de 7.07.2016, relatora Consª. Ana Luísa Geraldes, AC STJ de 21.10.2014, relator Consº. Gregório Silva Jesus e AC STJ de 8.02.2011, relator Consº. Moreira Alves, www.dgsi.pt. [7] Neste sentido, entre outros, Ac STJ de 16.11.2021, Proc nº 2534/17.9T8STR.E2.S1 [8] Cadernos Temáticos De Jurisprudência Cível Da Relação, Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consultável no site do Tribunal da Relação do Porto, Jurisprudência.